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juillet / décembre 2010 - julho/dezembro 2010

Caminhos do descanto

                                                                                                               Jocy de Oliveira    

 

Resumo:

Depoimento de uma compositora            

Quando estive em Bahktapur, uma extraordinária    cidade medieval no Nepal, encontrei o cineasta  Bernardo Bertolucci filmando  o Pequeno Buda. Tive a oportunidade de seguir de perto esta filmagem e notei que o cenário  montado para o filme tomando uma grande parte da cidade era deslumbrante,  parecia uma opera. Eu estava livre para olhar de varios ângulos. No entanto, quando vi o filme compreendi que o olhar da câmera era restrito e linear. Sua visao nos oferecia apenas o seu próprio ângulo…

Isto me faz lembrar a afirmação do filósofo frances, Henri Bergson, " de que o poder do espacial sobre o linear está na capacidade  da intuição". Quando se tem  uma intuição analisa-se todos elementos como um todo.

A intuição é uma questão da maior importância no processo criativo, na vivência da música, da arte, e para mim, ela atua também no conceito e na estrutura  temporal de uma obra.

Em 1890,  Guyau foi o primeiro cientista a questionar a percepção do tempo. Êle constatou que o fator tempo não existe no universo e portanto tempo é uma construção  puramente mental entre dois eventos ocorridos. Assim, é relevante lembrar o compositor Americano  Morton Feldman sôbre esta questão. Ele disse: Pensamos que musica mais do que qualquer outra arte é exploratória  acerca do tempo. Mas é mesmo? Andamento e não tempo  tem sido aceito como a verdadeira questão em música”

Procuro um momento de intuição poética, um momento de verdadeira cumplicidade entre artistas e com a audiência, um momento que nossa percepção de tempo e espaço se expanda e mergulhe no nosso interior. Absorver o tempo em sua essência não estruturada torna-se uma das questões primordiais na minha música.

Isto me leva a trabalhar com a visão  atemporal dos mitos nas sociedades matriarcais da antiguidade como a "prostituta sagrada",  nos contos de fadas, a "Diva" como personagem fadada a morte ou a vítima nas operas convencionais, o mito da Medea transportado a contemporaneidade  como mulher transgressora, discriminada, heroica e todos  aqueles ligados a figura da mulher  e seus valores que se seguem nos fragmentos de meus  textos para as  minhas seis operas .

Minha busca pela integração das diversas midias e a espacialização sonora e visual teve inicio na década de 1960 , periodo que representou um retorno ao espírito dadaista, talvez como reflexo de uma revolução social, cultural e sexual (marcante para mulher também no sentido criador).

Foi ainda  em 1960 , em Tanglewood, que encontrei John Cage sua musica e filosofia. Conhecê-lo , trabalhar com êle, tocar sua música era como vivenciar uma volta ao espírito liberto do dadaismo  que  abria para mim um novo horizonte estético.

No mesmo ano, conheci Luciano Berio e teve inicio uma longa relação musical  culminando com sua Sequenza IV para piano dedicada `a mim .  Naquela época ouvi  a primeira audição de Circles de Berio, executada por Cathy Berberian. Segui seus ensaios, as transformações da partitura, e toda a preparação de uma carreira percursora como mezzo soprano que se iniciava e que seria um grande marco na música do século XX. No momento não percebi que aquela vóz me acompanharia por varios anos como um tipo de “urstimme” (vóz primordial) se esgueirando  entre meus textos sônicos e memórias.

Em alguns de meus textos, como em "As Malibrans" procuro recriar a figura mítica da "diva" tomando como arquétipo  a vida da lendária soprano espanhola Maria Malibran.

 "Foi em 1836, no Teatro  La Scala... não, no Theatre Royal... Toda noite quando eu pisava em cena, sentia entre o  público, na obscuridade daquela frisa, o mesmo olhar gelado penetrando meu corpo e minha alma.  Era como se ele desejasse violar minha voz...

 Com um make up pesado e meus cabelos encobrindo a profunda ferida que rasgava meu rosto, angustiada, entrei no palco pela última vez em La Sonnambula, para minha despedida como prima donna. Deixava de ser Diva, casando-me com um jovem que me amava como mulher.

Não suportava mais a agonia daqueles olhos perturbadores que me acompanhavam por todos os teatros onde eu cantava, me paralisando... mas... desde a minha infância que sou atormentada por crises de catalepsia que me separam do mundo por horas e horas... me ensurdecendo aos aplausos do público...  Foi então, naquela última récita, que seu olhar ainda mais presente penetrou meu corpo como um vampiro."*[1]

Em minha mais recente ópera "Kseni- A Estrangeira" resgato o mito da Medea sob um ângulo político da mulher imigrante e discriminada.

“E para aqueles que vêm depois de mim eu digo:

Ai de quem me julgar e de quem sentir o peso da tragédia de se tornar autora de seu próprio destino…

porque só eu, sou Medea !”

“Que preferiu levar em seu carro de fogo

a alma de seus filhos mortos

a deixá-los como parte de um mundo que lhe havia negado

o direito de ser diferente”[2]

Meu processo de contar uma estória não linear (usando música/teatro) data de 1961 em  "Apague meu spot light" num trabalho em colaboração com Luciano Berio  realizado no Estudio de Fonologia de Milão. Esta obra representou a primeira apresentação de musica eletrônica no Brasil nos Teatros Municipais do Rio de Janeiro  e durante a IV  Bienal  de São Paulo.

"Em torno de nós não há sequencia nem sentido, apenas spot lights que se acendem e se apagam , docemente, sem nenhum ruido"…2

Esta pesquisa continuou em diversos  campos, usando música, teatro, vídeo, texto, instalações numa convicção que a expressão sonora é inerente a todas as formas de vida e tentando atingir um desenvolvimento orgânico da composição/ execução sem fronteiras entre  vida e arte.

"Inori `a prostituta sagrada", primeira opera de uma trilogia,  me levou a India e Nepal para pesquisar este mito da prostituta sagrada …..

“Ele estava só; ter morrido era transpassar a solidão.

Ele estava só. Viajante no tempo que transcende o espaço.

E se foi apoiado nos pés feridos,

que não pisavam este mundo,

nem o próximo.

Sem ver e sem ser cego, ele passa tenuamente, surpreendido de ser o viajante”[3]

"Estoria I e II" foram minhas primeiras peças eletroacústicas compostas no estúdio de Musica  Eletronica da Washington University, St. Louis, em 66. Focalizavam uma investigação da  sílaba falada e suas propriedades fonéticas e semânticas que  me conduziram a uma renúncia do discurso linear e ofereceram-me uma riqueza de materiais com ênfases na qualidade essencial da própria voz humana.

Com o decorrer dos anos, não só me preocupou a pesquisa por técnicas vocais ampliadas como a manipulação da voz por processos eletrônicos. Isto me levou a procurar também outros meios de expressão em diferentes culturas, criando uma linguagem multicultural inteligivel.

Em todas as minhas peças de música- teatro, ou opera, o texto sempre é criado concomitantemente com a música e imagem cênica. Não acredito em escrever um "libreto" para uma opera ou musicar um texto. Utilizo varios idiomas para o texto cantado, sempre tendo em vista a questão sônica / musical. Algumas vezes,  estas  palavras em outros idiomas (japones, grego, sanscrito, linguas indíginas do Brasil, latim)  são escolhidas pelo seu efeito fonético e quando venho a investigar seu significado, êle se enquadra  intuitivamente ao contexto geral. O portugues ou idiomas usuais como ingles, francês,italiano, alemão,  são prioritariamente usados nos textos   falados ou em um tipo de  "spreachgesang"[4] em lugar da parte cantada.  A escrita para voz  está intrinsicamente ligada as técnicas vocais estendidas e a processos eletrônicos de manipulação, logo, me seria impossivel escolher um texto narrativo para uma parte cantada, uma vez que ela é sempre fragmentada e intimamente ligada a  timbres instrumentais  (acústicos ou eletrônicos)

Durante meados de 60 e inicio de 70  tentei eliminar o espaço do palco versus público em direção a um teatro total, conceito este que me levou a ideia de espaços/ambientes controlados. Naquela época, me preocupava em desenvolver processos com estrutura e resultado indeterminado que envolviam o público  numa ativa participação. Nesta direção, compus uma série de peças  para multimeios publicadas por Source Music of the Avant Garde. - Teatro Probabilistico I,II e III e Polinterações. Peças que embora tivessem uma estrutura controlada e instruções meticulosas visavam o processo deixando o  resultado sempre imprevisivel.  Em uma re-leitura, o Teatro Probabilistico I foi montado em forma de instalação interativa durante a exposição/instalação/performances "Imersão" , uma re- prospectiva de meu trabalho , em cartaz durante dois meses no Instituto Oi Futuro, Rio de Janeiro, Abril/Maio de 2008.

Stephen Hawking pergunta : Porque  temos a memória do passado e não do futuro?

Isto me vem a mente quando penso em composição em tempo real… Poderia ser um tipo de memória do futuro que estamos tentando alcançar?

Como define Julio Plaza, o realismo conceitual  do sistema numérico nos permite representar o que se sabe e não somente o que se vê.

Ao contrário da pintura classica ocidental, a   tradição medieval ocidental e a cultura oriental usam a imagem como visualização do conceito , assim como acontece hoje no sistema  digital.

Isto explica também  no meu trabalho o emprego de  estruturas indeterminadas/ fragmentadas compostas de pequenos eventos ou células como numa mandala e a renúncia `a linearidade.

Esta linguagem musical procura o justo equilibrio entre o determinado e o indeterminado contando com o estimulo `a inteligência e musicalidade do interprete assim como do ouvinte. Não basta ler a partitura é preciso entender o conceito, apreender a desenvolver uma capacidade maior de ouvir. Nós vivemos numa sociedade visual e a percepção auditiva está diminuindo. Desenvolver a percepção é um dos desafios num trabalho multidisciplinar. O ator, bailarino não ouvem, só veem. O músico não vê, e sua audição é limitada…

Meu método de trabalho me  leva a agrupar músicos, atores, bailarinos tentando construir uma linguagem coerente onde processos aleatórios são combinados a outros estritamente determinados.

Procuro um equilíbrio entre a tecnologia e os elementos naturais inerentes  `a pesquisa tímbrica instrumental  vocal na justa medida entre composição/interpretação/execução.

Exemplo da partitura - Ofelia presa nas cordas de um piano [5]

Mencionamos intuição ,conceitos de temporalidade e atemporalidade, estruturas abertas, mas e a memória?

O que seria esta memória do futuro como se refere Stephen Hawking? Seria a memória genetica, do inconsciente ,do consciente que armazena dados os processa e os recria? Seriam os pilares de nossa formação? As influências ao longo de nossa tragetória?

Cada pessoa tem um mecanismo que  desperta sua memória . O meu sempre foi a música. Nada me leva de maneira tão  forte de volta a momentos passados ou futuros (!) A música, embora exista no tempo, tem o poder de nos levar a atemporalidade . Nem cheiro, nem imagens, nem lugares nos transportam tão inteiramente como a emoção da  escuta. 

Nos nossos dias, o  público se torna o próprio intérprete numa relação lúdica com a máquina, isto é, nos meandros da informática e o compositor  se confunde a estes ambientes inteligentes, através de instalações, espaços cibernéticos, performances.

Hoje, muitas vezes o compositor se torna seu próprio intérprete num processo compositivo, interativo em tempo real. A música existe enquanto criada/executada.  As vezes, ele se junta aos intérpretes tornando-se uma extensão da própria partitura,  o que tem sido uma entre  minhas escolhas.

 


 

[1] "Diva virtual", segmento de minha opera "As Malibrans" texto inspirado na vida da soprano do início do século XIX  Maria Malibran  e "La Stilla" diva ficcional de Jules Verne

[2] texto de meu drama eletrônico - "Apague meu spot light"

[3] texto de minha opera Inori `a prostituta sagrada

[4] falar/cantado

[5] Exemplo de minha partitura -Ofelia presa nas cordas de um piano (1997) para cantatriz e piano objeto

 

nota biográfica:

Jocy de Oliveira é uma proeminente compositora brasileira, nascida em Curitiba que estudou piano em São Paulo e Paris. Desde 1961 desenvolve um trabalho de composição inédito no Brasil, em multimídia, isto é, que envolve, ao mesmo tempo, teatro, música eletroacusitca, instalações textos, video. Compôs seis óperas, entre elas “Kseni, a estrangeira” relendo o mito de Media, “Fata Morgana”, uma miragem do impalpáve, apresentadas na Alemanha, USA e Brasil, Argentina. Recebeu vários premios internacionais e nacionais, ente os quais da Rockfeller Fondation e do New York Council on the Arts, da Fundação Vitae.
Entre 1989 e 2000, compôs, produziu e gravou uma trilogia operística com enfoque em valores do feminino: “Inori”, baseada na diversidade de culturas, cria mitos através de um rito de passagem ,buscando a imagem da ‘prostituta sagrada’; “Illus Tempus”, liturgia do espaço é uma ópera fábula que evoca sonhos femininos através de textos, mitos e contos de fatas; e “As Malibrans”, encomendada pelo Staatstheater de Darmasthad, cuja personagem principal é Maria Malibran, cantora de ópera muito famosa no Oitocentos que morreu aos vinte e oito anos; a personagem leva consigo o lado obscuro e as trágicas vidas de tantas outras divas. Em 2010 apresentou em São Paulo um novo trabalho, “Revisitando Stravinsky”, onde relembra a amizade e a parceria musical com o musico.

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