labrys, études féministes/ estudos feministas
juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006

 

 

As Belas e as Feras

Norma Telles

Resumo       

     O texto apresenta variações em torno de um tema, algumas artistas e suas relações com outros seres. De modo algum se pretende generalizar uma estética feminina. O que se faz é uma leitura de algumas obras de artistas que trataram com as feras. O tema vão se abrindo, desdobrando como ramos, um após o outro, percorrendo e sugerindo outras vias. Não se pretendem conclusões, somente indagações iniciais a respeito dos itens sugeridos.

Palavras-chave: artistas, mulheres, estética.

 

[1]

No princípio era a deusa ladeada por dois felinos, Senhora dos Animais Selvagens, ela a dos mil e um nomes, entretendo a conversa entre os vários reinos de sua criação e marcando o ritmo com a cadência de seu andar.

Milênios depois, já avançada a história - e lançadas as sementes das fragmentações futuras - por volta de 1583, no Renascimento tardio, a Bela Lavinia Fontana, pintora bolonhesa de renome e muito solicitada, retratou Antonieta Gonsalvus, uma menina, uma Fera. Vestida á maneira suntuosa das cortes de então, é um ser humano coberto de pelos; pelos recobrem sua face, o corpo todo, menos as mãos e lhe dão uma aparência selvagem. A menina, conhecida como Tongina, era filha de uma bela holandesa e de Petrus Gonsaulvus, natural do Tenerife e portador de doença de pele congênita, a hypertrichosis universalis. Foi o primeiro caso registrado dessa doença e, no século XVI, e causou espanto e muitos comentários.

A família Gonsalvus foi retratada inúmeras vezes, ilustrou livros sobre monstros e tratados médicos, inclusive o do famoso médico bolonhês Aldrovandir que traz a menina na capa, um monstro em roupagem de gala. Para alguns, Tongina e os seus eram exemplo de maravilha, para muitos outros, um exemplo dos horrores da natureza, criaturas defeituosas. Eles borravam a fronteira entre o reino dos homens e o reino animal. Fronteira bem nítida para o pensamento cristão, fronteira reforçada por Tomás de Aquino ao reafirmar serem os animais sem alma e as feras peludas decididamente diabólicas.

Em outra pintura, o retrato do gabinete de curiosidades do imperador Rodolfo II, em Pragaobserva-se a família toda, o pai e os filhos cobertos de pelos e a linda holandesa, com quem se casara. Pedro, com um toucado caprichado. [2],

O pai transmitiu a anomalia aos filhos e ao neto, filho, no devido tempo, da então menina Tongina. Neste quadro, os irmãos seguram uma coruja e estudiosos já destacaram a semelhança entre a corujinha, ave noturna, fera, e a menina. Os mesmos olhos sem expressão, redondos, rodeados por penas os do animal e por pelos os da menina. Banidos do mundo humano para o mundo das feras os portadores da anomalia.

No entanto, nas lendas e nas mitologias do Ocidente, a linha divisória entre animais e humanos permaneceu bem mais flexível, constantemente cruzada e recruzada. Nas estórias de príncipes sapos ou amantes animais, a possibilidade de convivência entre as ordens de criaturas era mantida vivaz.  Nelas as feras são redimidas de sua condição selvagem e trazidas de volta à civilização pelo afeto de um homem ou mulher.

O quadro de Fontana[3]

 

 

não trata de redenção no sentido exposto acima. Mas Tongina, é apresentada diferente de outros retratos seus como os descritos acima. A menina, de uns dez anos, tem o rosto peludo redondo, suave, lábios rosados e carnudos, olhos negros. É Bela em sua estranheza. Muito séria, figura central da pintura, parece ter sido acolhida e, compreendida pela pintora (Minguel:2001). Fontana cedeu-lhe a palavra, pois a Fera segura uma carta na qual se apresenta e se localiza no mundo. Nela está escrito:

“Das ilhas Canárias foi levado

Ao senhor Henri II de França

Dom Pietro, o homem selvagem,

De aí, ele se instalou na corte

Do duque de Parma, assim como eu,

Antonietta, e agora estou na mansão da

Senhora dona

Isabella Pallavicina

         Marquesa de Soragna”.

Pedro, o pai fora presenteado ao rei da França, por causa de sua anomalia, uma tal curiosidade! Na corte se educou, tornou-se um cortesão que dominava até o latim. Consta ter sido muito inteligente e era mostrado como grande curiosidade a convidados especiais.  A indicação da casa da Marquesa Soragna permite a estudiosos datarem o quadro em torno de 1583, época em que a família deixou Namur, onde estavam na corte de Margarida de Parma, regente dos Paises-Baixos até 1567, para se instalar em Parma, sede do ducado de Margarida e de sua casa para a da marquesa de Soragna.

E pintada por Fontana, Tongina continuou a nos falar através dos séculos.  E tanto isto é certo que, em 1946, ao filmar sua poética e inspirada versão de “A Bela e da Fera”, Jean Cocteau tomou aquele retrato como modelo para a caracterização do ator Jean Marais8. A versão da estória que se tornou a conhecida até nossos dias, data do século XVIII e parece ser uma adaptação de uma longa estória, de Mme Barbot de Villeneuve, por sua vez tomada de contos tradicionais que tem como tema o marido monstruoso, imortalizado desde o período helenístico, por Apuleio ao relatar a lenda de Eros e Psiquê. No século XVIII, a versão que conhecemos é publicada por uma governanta francesa que escrevia um Magasin des enfants, Jeanne Marie Leprince de Beaumont, e que institui os contos moralizantes e pedagógicos. Ao retomar a estória, Cocteau guarda a linguagem do século XVIII, mas suas metáforas visuais criam atmosfera de beleza estranha e fazem um poema cinematográfico cheio de imagens inesquecíveis e que se tornou modelo para outros tantos cineastas que vieram depois.

A década de trinta do século XX se inicia com convulsões econômicas, sociais e políticas que provocam crises e acentuam os prenúncios de conflito que pairavam no ar desde o final da Primeira Guerra. No círculo dos surrealistas, Breton publica seu segundo manifesto lembrando que os espíritos perspicazes já percebiam a aproximação de nova catástrofe mundial. Ao inserir essa linha no Manifesto tenta inscrever o movimento na história de seu tempo buscando responder a crise de civilização. Preconizava a superação de dicotomias, recusa classificações do pensamento dualista, e defende a volta à unidade de percepção e da representação para reconciliar interior e exterior, o objetivo e o subjetivo (Moraes:2002:63). Afirma haver um ponto onde os contrários não são mais irreconciliáveis, este ponto é o desejo. “Ao afirmar a proeminência do corpo do desejo sobre o corpo natural, o surrealismo colocava em cena imagens nas quais os diversos membros e órgãos tornavam-se intercambiáveis, multiplicavam-se ou eram sumariamente suprimidos” (Moraes:2002:69).

O corpo fragmentado ou ausente desrealisa a forma humana, recusa fixá-la de forma estável. Resta o princípio de mutação permanente, de metamorfose constante derivada de Lautreamont. Bachelard lembra que na obra daquele autor, uma forma cria outra, de um movimento surge outro, pois é “o excesso do querer-viver que deforma os seres e que determina as metamorfoses” (Bachelard:1995:12). A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas sobretudo deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. É a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos (Bachelard: 1960).

Uma “orientação hegeliana-marxista, uma paixão pela poesia e uma sensibilidade anarquista” colocaram o movimento entre os mais radicais daquele momento ((Rosemont:1998:45). Era anti-europeu, anti-racista, anti-imperialista; criticava o mito do progresso, desconfiava da tecnologia ao mesmo tempo em que propunha esquadrinhar o inconsciente; amava a natureza selvagem e simpatizava com outras culturas. Por tudo isso, foi um movimento atraente para as artistas e para as mulheres.  Chadwich que entrevistou várias mulheres que circularam no grupo naqueles anos e depois se dispersaram pelo mundo diz que todas elas falaram positivamente do apoio e encorajamento recebido (Chadwich:1985:11). Os surrealistas propunham também nova abordagem do conhecimento e da natureza, retomando as fronteiras flexíveis entre os reinos, a possibilidade de aproximação de realidades distintas. O estudo de tradições arcanas e a atenção aos sonhos faziam parte deste repertório, pois, como afirma Lima, o surrealismo parte do questionamento do humano e para isso emprega inúmeros meios.

Um pouco antes, no final dos anos 30, à Paris chegaram duas Belas artistas que desejo lembrar aqui, em suas relações com as Feras. Remedios Varo, nascida na Catalunha, e Leonora Carrington, nascida em Lancanshire, tiveram destinos marcados, desde a infância, por viagens, reais e imaginárias. Nômades por contingências históricas e porque a vida as levou, se cruzaram em Paris, no circulo dos surrealistas, em torno de Breton, Péret, Ernst, Eluard, entre outros. Este grupo lhes ofereceu um local onde a rebelião era vista como virtude e a imaginação era tida com passaporte para uma vida mais liberada. É certo que antes mesmo de ali chegarem, atraídas pelas vanguardas artísticas, já haviam iniciado jornadas em busca de liberdade da família e dos tabus sociais. As duas também já tinham aprendizado artístico e haviam escolhido a arte como expressão e carreira.

Durante a Guerra, com a ocupação nazista da França, as Belas fugiram por experiências e itinerários diferentes e foram para o México. No país que as acolheu, as duas artistas desenvolveram uma amizade profunda e duradoura e compartilharam uma busca estética e espiritual por conhecimento e liberdade de criação. Interessavam-se por arte, ciências, tradições herméticas. O livro A deusa Branca, do poeta Robert Graves tornou-se um dos livros prediletos das amigas. Eram especialmente atraídas pela alquimia que, no dizer de Bachelard, é a longa história inacabada dos amores entre os humanos e a matéria. As buscas que partilharam, os estudos que empreenderam, as experiências, sérias ou humorísticas, foram expressas em linguagens pictóricas semelhantes e ao mesmo tempo bem diferentes, como diversas foram as circunstancias de suas vidas. Elas se voltaram para suas próprias imagens e realidades como fonte para a arte. Chadwich pensa que as duas se apropriaram da identificação entre mulher e natureza, central na cultura, e a transformaram em poder criativo e força expressiva, buscando desvendar os seres vivos e os inanimados, em suas relações e em suas metamorfoses. 

Ao chegar à cidade do México, Carrington era jovem, bela, vivaz, desinibida e possuidora de uma imaginação sem limites. Ao completar oitenta anos, ainda bela e cheia de imaginação, diz que nunca realmente se decidiu a ficar ali, foi ficando, se deixou ficar. Carrington crescera em região de bosques e neblina, ao norte da Inglaterra, morando em um castelo neogótico com salas escuras cheias de móveis, nutrida por antigas estórias celtas. Desde criança gostava de equitação e dos animais que conhecia no zoológico e, declarou, certa feita, que a idéia de redenção, de tornar animais humanos, era-lhe deprimente. Em seus contos e quadros animais e humanos dialogam, jovens rebeldes são amigas de hienas, cavalos, mulheres-lobo. Ela escolheu a hiena como fera e o cavalo como animal de predileção. Uma das estórias de Carrington, de 1938, se intitula “A debutante” e gira em torno da apresentação à sociedade de uma moça que na expressão de Aberth (2004) é uma debutante relutante. Mas, lendo a estória inúmeras vezes, me convenci que a debutante e bastante decidida, que sabe bem o que quer. Senão, vejamos:

“Na época em que fui debutante, costumava amiúde ir ao zoológico. Ia com tanta freqüência que conhecia melhor os animais do que as moças da minha idade. Era porque queria fugir do mundo que ia diariamente ao zoológico. O animal que melhor cheguei a conhecer foi uma jovem hiena. Ela me conhecia também. Era muito inteligente. Eu lhe ensinei a falar francês e em troca ela me ensinou sua linguagem. Assim, passávamos muitas horas agradáveis”.

            A mãe da jovem amiga da hiena havia organizado, para o dia primeiro de maio, um baile para apresentá-la à sociedade. A jovem chorava noites inteiras, não gostava de bailes, achava-os extremamente aborrecidos, e mais ainda se eram em sua honra. Na manhã do baile vai chorar no ombro da hiena que não entende tantas lágrimas, pois ficaria encantada de ir ao baile. E a jovem então tem uma idéia: vestida com minhas roupas, você poderia muito bem ocupar meu lugar, diz à hiena. Mas esta retruca, não nos parecemos o suficiente, senão iria com o maior prazer. Não, diz a jovem, não há problema, a festa é à noite, as luzes são fracas, com um pouco de disfarce ninguém vai notá-la meio a multidão. Aceitou.

            As duas entram em um táxi e dirigem-se à mansão já preparada para a festa. Refugiam-se no quarto da moça. A mãe entra e estranha o mau cheiro, tão forte que logo se retira, ordenando a filha que tome um bom banho antes de se vestir. Vestida a hiena percebe que se luvas cobrem os pelos das mãos, o rosto não se disfarça. Mas logo tem uma idéia. Chamam uma criada, ela a mata, devora-lhe as carnes e ossos, sobram somente os pés que coloca numa bolsa para comer mais tarde, estava farta. O rosto ela coloca sobre o seu, como uma máscara, e está pronta para a festa.

            A moça recomenda-lhe que não fique junto a sua mãe, esta poderia detectar o cheiro e perceber que não era a filha. De resto, não conhecia ninguém, então a hiena não teria problemas. E lá se vai ela enquanto a moça, cansada das emoções do dia, senta-se junto à janela e fica lendo. Uma hora e pouco depois, estava lendo As viagens de Gulliver, quando a mãe entra quarto adentro, pálida de fúria, dizendo que mal haviam se sentado à mesa, “o ser que ocupou seu lugar se levantou gritando: ‘Com que meu cheiro é um pouco forte, não é? Pois não como pastéis’. A seguir arrancou o rosto e comeu-o. Depois deu um grande salto e desapareceu pela janela” (Carrington:1992:35-40).

O que é a identidade? A aparência e as vestes? O interior? O cheiro? Para surrealistas ao serem liberados de suas aparências, propriedades físicas e funções os objetos passam a ser dotados de inesgotável poder de migração. Instaura-se atmosfera de indeterminação e de certeza que evoca um tempo primeiro quando as coisas não conheciam estados definitivos, não havia oposições nem contrários (Moraes:2002:76). Um corpo subversivo envolve noções de superfícies e fronteiras entre interior e exterior.

A pele que separa o fora e o dentro não é também suficiente para definir a identidade. Transferências, troca de papéis, fronteiras fluídas entre espécies e reinos criam personagens fantásticos em contos não menos fantásticos. “A importância de definir superfícies, o medo de invasão, perda da brecha, o desejo de ser penetrada, a fusão, são modos diferentes do questionamento ontológico central a respeito do lugar do sujeito no espaço” (Cottenet-Hage:1993:82). Para Cottenet-Hage, Carrington move-se da idéia da fragilidade do corpo e do self para uma afirmação alegre das possibilidades de regeneração através da re-escrita da história humana ou de versões surreais da busca do Graal ou do retorno da Deusa. As versões são sempre múltiplas, uma logo após a outra, tornando impossível qualquer fixação. Procura reconstruir o mundo de modo a permitir que as mulheres se encarreguem de si próprias e se abram para trocas com o mundo de fora.  Método de Carrington é contar e recontar estórias na busca de várias identidades e de uma independência intencionalmente buscada.

No quadro “O Albergue do Cavalo da Aurora”[4],um auto-retrato de 1938, a figura central tem os traços da artista e está num quarto de criança sem móveis a não ser por uma poltrona vitoriana na qual está sentada e mal acomodada. Mas não é uma menina que está neste quarto e sim uma mulher. Uma de suas mãos se dirige para uma hiena, a outra está suspensa sobre o braço da poltrona que, estranhamente, mimetiza o gesto da mão. Atrás, pendendo da parede, um cavalo de pau com sua sombra e, pela janela, avista-se um corcel branco galopando pela paisagem. 

Para os surrealistas, a femme-enfant (mulher-criança) era a mediadora para a criação. No quadro de Carrington o brinquedo da mulher que já foi criança está posto de lado e a criança desapareceu na mulher, cuja vasta cabeleira mais parece uma crina animal. A figura olha a hiena e pressente o corcel correndo lá fora. O cavalinho de pau deixado de lado, a infância emoldurada e sombreada, é também o sacrifício do cavalo. Opera-se assim uma desconstrução pois em mitos ou nas praças, o cavalo é montaria de heróis, conquistadores, imperadores, salvadores. A delicadeza, a gentileza e o mistério do animal só podem ser percebidos quando o sacrifício do cavalo, diz Hillman, o livra do peso heróico e marcial.

Livre do peso cultural, o animal pode figurar a antiga deusa celta, Epona ou o sentido que lhe dava a alquimia, que usava seu ventre do cavalo como signo de calor interior para a digestão de eventos, de incubação. O outro animal na tela assinala não haver mais inocência infantil, pois a hiena, animal carniceiro que é, sempre foi mal vista no bestiário europeu. Desde os antigos gregos se acreditava que mudasse de sexo, de fêmea para macho e de macho para fêmea, a seu bel prazer. É bem verdade que Aristóteles desmentiu essa idéia, mas foi inútil, ela persistiu.

A hiena do quadro tem três tetas cheias de leite o que nos permite entrever a fusão de criatividade biológica e da artística e a necessidade de retroceder até épocas anteriores à linguagem para retomar sua força e a ligação entre os reinos, entre a vida e a morte. A hiena, animal da noite, é transformadora da matéria, devora a carne, limpa os ossos, os resíduos da existência anterior, infantil e socializada. Quando a hiena devora o infantil suas tetas ficam cheias de nutrição, torna-se uma mãe selvagem e o cavalo branco dispara, voa em seu galope, como voara pela janela a hiena na estória de a debutante. Isto é, as metamorfoses trazem maior leveza e agilidade aos movimentos. Alberth aproxima essas duas cenas da noção de abjeção em Kristeva, nos dois casos seria esta a função da hiena, símbolo então da raiva e ressentimento da artista por tentarem colocá-la no mercado de casamento. Abjeção aqui não deriva da sujeira, mas sim da perturbação da identidade, do sistema e da ordem. Aquilo que não respeita fronteiras, posições, regras como fazem as personagens da estória e do quadro, justapondo então a bela e a fera (Alberth:2004:35).

Em entrevista a Acker, em 1987, para um docmentário, The flowering of the crone, Carrington diz que escolheu a hiena porque sempre fora particularmente atraída por elas nos zoológicos que freqüentava desde pequena, e acredita que a grande virtude desses animais é comerem lixo (apudAberth: 2004:32). Em 1999, em entrevista concedida em sua casa, explica melhor, diz “sou como uma hiena, entro nas latas de lixo. Tenho uma curisidade insaciável” (Alberth:2004:32). Sou como uma hiena, curiosa, sempre remexendo o lixo! Afora o elemento de humor nesta comparação surreal, a identificação parece chocante, a bela tão bela e o animal tão feio, a bela se vê na fera. Bachelard lembra que se pode ultrapassar formas humanas para tomar posse de outros psiquismos, que se pode ver o animal em suas funções, não em suas formas. E mais, podemos lembrar como todas as tradições religiosas, antigas ou modernas, e muitos contos tradicionais, aconselham seus adeptos, ou personagens, a arrumarem suas coisas todos os dias, a varrerem o lixo, como um exercício no caminho do conhecimento. Varrer o lixo, vasculhar o lixo, refazer coisas a partir do que foi jogado fora, a bricolagem, são ações de revisão, discriminatórias, de separação do joio do trigo, do que pode ser metamorfoseado, do que deve ser jogado fora. Muitas vezes o fragmento que foi para o lixo é um fragmento mudo, que pode ter a ver com perguntas, com respostas, com desafios.

Cottenet-Hage pensa que Carrington rejeita representações de corpos tradicionais jovens, nus, sexuais e vulneráveis, “corpos ausentes” e os substitui por híbridos. Os pintores surrealistas também empregaram híbridos, mas na maior parte das vezes híbridos conhecidos como serias e minotauros. As artistas que estamos tratando usam híbridos, segundo aquela autora, na tentativa de equilibrar polaridades enquanto transcendem o normal; a origem dupla é um a mais, não um a menos. O que se tem é uma multiplicidade do self nas representações que supera as limitações auto-definidoras. Os híbridos aproximam realidades distantes e não as confundem, nem fundem. E, pensa Cottenet- Hage, o sentido do ser não é gendrado transcendendo assim as limitações socais de gênero que impõe auto definições. Com isso, assim como com a frágil fronteira entre reino animal, mineral, vegetal e até com as coisas, Carrington e também Varo antecipam temas e elementos que surgirão em algumas artistas do final do século XX. 

Varo, ao chegar à terra de exílio era Bela, jovem, discreta e costumava dizer, sacudindo os lindos cabelos um tanto avermelhados, “sou medrosa” e “muito supersticiosa”. Acreditava na potente interdependência dos seres e dos objetos.  Moça ainda, morreu de repente na cidade do México, em 1963, deixando fama e obra consideráveis. Ela partilhou as inquietações, a busca de conhecimento e os estudos alternativos das tradições com sua amiga Carrington.

As duas haviam freqüentado o círculo surrealista, mas, como outras artistas que por lá passaram, não influíam nas conformações das teorias muitas delas envolvendo profundas contradições no que diz respeito às mulheres. Naquela cidade não se formou uma rede de apoio entre as mulheres do grupo como havia entre os homens. “Eu, que não conseguia perder meu ar provinciano, ficava assustada, temerosa, deslumbrada”, diria Varo mais tarde (Kaplan:2001:56) Por isso, foi no México, onde as duas se exilaram, que Varo e Carrington se aproximam, ficaram amigas e desenvolvem uma extraordinária colaboração de trabalho. “A presença de Remedios no México mudou minha vida”, disse Carrington (Chadwich;1985:194).

Varo se interessava, especialmente e por influência do pai engenheiro que lhe ensinara a desenhar e com quem viajou muito na infância, por ciência, matemática e objetos mecânicos. Sua linguagem pictórica madura lembra manuscritos iluminados, traduz influência do Renascimento italiano e do norte da Europa, assim como pintores espanhóis que desde menina visitava no Museu do Prado. Varo uniu pensamento de vanguarda com artesanato meticuloso – uma atenção primorosa aos detalhes como se observa também nos quadros de Fontana - em telas comparadas a jóias, para criar universos ricamente codificados, estratos superpostos, tempos condensados, e múltiplos significados subversivos. Como Carrington, colocou a mulher no centro do ato de criação, mesmo que suas figuras tenham se tornaram cada vez mais andróginas. Varo escolheu os pássaros, onipresentes na alquimia, representantes dos vapores que emanam dos processos, como familiares e a coruja como Fera.

No quadro “Criação das Aves”[5], de 1958,

uma personagem com corpo de mulher e rosto de coruja, meio cientista, meio artista, está sentada junto a uma mesa, desenhando com um instrumento que sai de um violino colocado sobre o coração, usando cores que provém de alambiques alquímicos onde a substância de estrelas é armazenada. Com a outra mão segura uma lente, triangular como o prisma de Newton, que recolhe e amplia a luz da lua que incide sobre o papel no qual desenha pássaros que saem voando por uma janela lateral. A coruja pode ser considerada Fera por ser, desde tempos remotos, pássaro da noite e arauto da morte. Mas é símbolo ambíguo, pois representa também a sabedoria como a de Atena que ensinou aos homens todas as artes para se viver em cidades, ou como o saber das bruxas medievais que conheciam segredos mortais. E que adotaram a Lilith babilônica, com pés de coruja sobre dois pequenos leões e asas como as das duas corujas que estão a seu lado, bem maiores que os leões que domina. E, muito antes de todas essas histórias, híbridos de mulher e pássaro aparecem figuradas nas pinturas das cavernas e outras representações desde o Paleolítico. A arcaica deusa Pássaro era a expressão do processo  de vida/morte/vida!

O pássaro “vive em um volume, enquanto nós só vivemos sobre uma superfície. Os pássaros possuem, como dizem os matemáticos, uma “liberdade”a mais do que nós” (Bachelard:1995: 51). O gosto da metamorfose, lembra ainda Bachelard, vem sempre junto com uma pluralidade de atos como no quadro de Varo, onde a imaginação no sentido bachelardiano, é o elemento de imprudência que deforma e dissolve fronteiras e estabilidades sólidas enquanto cria novas formas e imagens, provê outros psiquismos. Amplia a possibilidade biológica abolindo fronteiras entre reinos da natureza, entre seres vivos ou objetos inanimados, para atingir um estado de solidão tranqüila e plena de criações.

Por outro lado, Kaplan considera este quadro como sendo a inversão da “Anunciação” pois aqui a ave não anuncia a boa nova, uma outra vida, mas os pássaros aqui encarnam a vida nova. E no quadro há inter-relação entre arte, alquímica e moderna, ciência, vibrações e ondulações que se nutrem entre si num ciclo representado também pelos objetos, vasos, alambiques, canos e vasilha em forma de ovo. Esse quadro pode ser visto como imagem de sua busca paradigmática de beleza e vida através da conjunção de luz e som.

“Pelo cuidadoso arranjo do violino, do alambique, e dos vidros, ela permite que a música e o ritmo de sua própria vida, a substância das estrelas e a luz da lua “alimentem” sua pintura, e lhe confiram vida”(Lauter:1984:85). A imagem difere totalmente das de estórias relacionadas como Pigmalião ou Pinóquio, trazidos a vida por um criador que deseja ser amado, enquanto no caso de Varo há o emprego de forças cósmicas e uma metamorfose da criação e da criadora; a ação é colaborativa, é um ato de amor. O efeito é reforçar a empatia entre formas não humanas de vida. “Ela nos mostra o grau de auto-transformação e colaboração com forças que estão além de nós mesmos exigidas quando se aspira trazer algo novo ao mundo” (Lauter:1984:97).

Nas décadas de 80 e 90 do século XX surgem, de modo mais disseminado, práticas artísticas criticando a representação como sendo cúmplice do pensamento logocêntrico/falocêntrico ocidental. As artistas começam a contestar não só as representações do feminino e do masculino, como principalmente qualquer subjetividade concebida como estável.

Cindy Sherman, por exemplo, no início dos anos 80 se transforma em uma inquietante imagem da feminilidade os filmes B dos anos 50 em sua performance fotográfica. O trabalho investiga o papel da fotografia na construção do self unificado e torna explícitas as relações de poder provocadas pelo ato de olhar. Untitled Film Stills [6](1977-80), é uma série de 65 fotografias granuladas branco e preto que lembram os “film noir". Embora seja tanto modelo quanto fotógrafa, essas imagens não são autobiográficas. Ela se retrata em vários disfarces da feminilidade estereotipada, cada uma um momento numa narrativa implícita mais ampla. E afirma também, concordando com Iregaray para quem nem mesmo a visão é indiferente, que a câmara não é instrumento neutro, mas um aparato ideológico que enquadra e constrói um ponto de vista particular.

Ao comemorar 94 anos em 2005, a artista Louise Bourgeois, uma das grandes escultoras do século XX, continua uma longa carreira de sucessos, inovações, provocações, e para celebrar se pinta e faz fotografar como Fera (Bête)[7].

Usa uma camiseta sem mangas branca, está sentada e o foco é somente na parte superior do corpo, com o rosto pintado como o de um tigre, olhar matreiro, meio sorriso, atenta. Talvez lembrando que faria intervenções, em maio de 2006, sobre o tema Mulher, uma exploração. O eterno fascínio com o corpo da mulher. E com a Fera que tem esculpido nas últimas décadas, as enormes aranhas que começou a fazer nos anos 90 e estão hoje espalhadaspelo mundo, do Brasil ao Japão, dos Estados Unidos e Canadá à Inglaterra e Rússia.

 

Intitulou estas esculturas Maman, em francês. Algumas, protetoras, carregam no corpo de metal ovos brancos de mármore polido que parecem jóias mas lhes dão aparência de seres do lar, mães acolhedoras. Mas o outro lado das aranhas é assustador, nos contos tradicionais, no sonho das crianças, ou das pessoas, a aranha desencadeia medos infantis secretos e seu tamanho descomunal projeta ampla sombra física e psicológica. Disse a artista que faz essas feras pra explorar questões relacionadas à memória de sua mãe que tinha muito de uma aranha, era deliberadamente esperta, flexível, macia, razoável, sutil.  Maman[8], a escultura é enorme, suas pernas muito longas, no entanto, dão-lhe aparência de elegância e fragilidade. As aranhas não são monstruosas, são poderosas, estranhas e belas.

Louise Bourgeois, sempre extremamente original, e muitas outros artistas jogam com novas idéias a partir do movimento livre de identidades e sexualidades, a partir também da construção de novas narrativas (Collado:1999). Para desestabilizar o masculino feminino, trabalham em obras que nova configuração ética e formal. Novas estratégias vão criando uma epistemologia tendendo ao plural que já estava presente nas artistas do começo do século XX que mostramos acima.

Nesta mesma linha, Zoe Leonard ironiza o corpo estereotipo da sedução, ao refazer a seu modo a foto de Marilyn Monroe na famosa folhinha: um corpo de mulher deitado sobre uma seda vermelha berrante, sinuoso, sorrindo. A pose nos parece a mesma, mas a moça ostenta enormes bigodes. É mais uma artista que parece insistir na indistinção entre aparência e ser. Esta artista tem outros trabalhos que destroem as figuras sedutoras de mulher. Um deles é Preserved Head  of a Bearded Woman (1991)[9] quatro fotografias de uma cabeça encontrada no Musée  Orfila, em Paris. A etiqueta do museu simplesmente dizia: busto mumificado, tamanho natural, de Germaine D.” Como a pesquisa nada revelou, ela visualizou o destino de uma mulher que viveu em torno de 1900 e foi exibida como “abnormal” em um museu de história natural. Aqui a artista se multiplica em voyeur e em detetive. Começamos este texto com a menina peluda, a Fera do século XIV e terminamos com a cabeça barbada de uma mulher do 1900 tornada obra por uma artista do final do século XX, pontuamos algumas variações em torno do tema central e deixamos várias indagações em aberto .

O elemento subversivo nestas duas últimas décadas não é a denúncia das injustiças sociais contra as mulheres, mas romper o sistema da representação dominante. “Todos/as podemos ser outro/a (Collado:1999:79). As artistas se aproveitam da idéia de maleabilidade feminina para tornar evidente a falácia de um corpo inato, biológico, suporte instintivo de um gênero indistinto. O corpo instável oferece oportunidade de novas aberturas, novas identificações, novos prazeres. Idéias de final de século já presentes nas primeiras décadas iniciais do XX. Idéias que durante o último século foram se firmando e ainda estão sendo elaboradas, expressas e debatidas.

Referências bibliográficas

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Nota biográfica


Norma Abreu Telles, bacharel em História pela Usp fez mestrado em Antropologia e doutorado em Ciências Sociais na Puc-SP onde lecionou por muitos anos. Atualmente pesquisadora independente, continua a escrever sobre autoras brasileiras do século dezenove, tema de seu doutorado, e mulheres artistas de outros períodos, preocupada com trocas, diálogos e intertextualidades em suas complexas relações com questões epistemológicas e ontológicas. Autora de Cartografia Brasilis; Mínimas Rimas dos Ventos de Outono; Medéia Sertaneja; autora de inúmeros artigos e capítulos sobre mulheres e literaturas. Pesquisa em particular a escritora Maria Benedicta Bormann, estabelecendo seus textos e re-editando a obra.

Notas

[1]  Deusa encontrada em Çatalhüyük, datando entre 6000-7000 A.C. Ver www.regiaomediterranea.com/civcty/cathykoo.htm.

[2] Família Gonsalvus, por Dirk de Quade van Ravestyn in Alberto Manguel, Lendo Imagens p.116.

[3] Retrato de Tongina por Lavinia Fontana. Ver www.universitadelesonne.it/demau.htm 

[4] in Susan L. Aberth, Leonora Carrington, Surrealism, Alchemy and Art, p.31.

[5] in Janet Kaplan, Viajes inesperados, p. 180.

labrys, études féministes/ estudos feministas
juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006