labrys, études
féministes/ estudos feministas Mil folhas: escritoras e o banquete de palavras Carla Cristina Garcia Resumo MIL FOLHAS é um acepipe composto por camadas de massa
e creme alternadas. O creme pode ser salgado
ou doce, uma variedade de sabores tanto em um caso quanto no outro. O
resultado pode ser tão variado quanto os estilos narrativos das escritoras
que serão visitadas nesse trabalho, as quais fazem inusitadas alternâncias
de sabores e saberes. Massa e creme, separadamente, são alimentos, mas
somente quando juntados em formas simples ou extravagantes, vistosas ou
sutis, podem ofertar
Ingredientes: As convenções das sociedades, ensina Lévi-Strauss, decretam o que é, e o que não é, alimento, as espécies a serem comidas em ocasiões sempre sociais. As categorias que são tratadas como alimento, tornam-se intrinsecamente interessantes, isto é, “boas para pensar”. Para Bakhtin, “o encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, o introduz em seu corpo, faz dele uma parte de si. (...) Esse encontro com o mundo na absorção do alimento era alegre e triunfante. O homem triunfava do mundo, engolia-o em vez de ser engolido por ele; a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido que lhe era favorável”(Bakhtin:1987:245). Sem dúvida, a dieta de qualquer população depende dos recursos disponíveis, mas o fundamental é a decomposição da categoria alimento numa quantidade de elementos, cada qual tratado de modo diferente, pois têm diferentes tons de prestígio social. Há alimentos especiais para cada ocasião. Há os proibidos a determinadas pessoas. Há quantidades estabelecidas para cada um (a fome de um trabalhador braçal não é exatamente idêntica ao apetite de um burguês) ou para cada sexo. Há maneiras especiais de prepará-los, servi-los e comê-los. Há os de ricos e os de pobres. Alguns são servidos em horas fixas, outros podem ser comidos a qualquer tempo. Certos assuntos podem ser mencionados à refeição, outros, são tabus e, muitas vezes, exigem silêncio. Mas alimentação continua sendo o elemento básico de nosso cotidiano como observa em anotações de seu diário a favelada Carolina Maria de Jesus: “Que efeito surpreendente tem a comida em nossos organismos. Antes de comer, eu via tudo amarelo, o céu, as árvores e os pássaros, mas depois de comer, tudo ficou normal diante de meus olhos... (...) Fui capaz de trabalhar melhor. Meu corpo parou de me sobrecarregar... Comecei a sorrir como se estivesse assistindo uma bela peça de teatro. E haverá um drama mais bonito do que o do comer? Senti como se estivesse comendo pela primeira vez em minha vida” (Jesus:1988:42). A culinária, por sua vez, é uma arte normativa na qual descrição e prescrição não podem ser separadas. Deriva de duas fontes, diz Revel, da cozinha popular e da erudita. A primeira está sempre ligada ao solo, é regional, nunca nacional; segue os ritmos da natureza, é transmitida por imitação e hábito aplicando métodos de cozimento pacientemente testados e associados a certos utensílios. A segunda e se baseia na “invenção, renovação e experimentação”. É a cozinha das classes abastadas de qualquer época. Revel afirma que desde a Antiguidade algumas revoluções ocorreram na cozinha erudita sendo que duas das mais importantes aconteceram nos séculos dezoito e dezenove. O surgimento das classes médias urbanas naqueles séculos fez aparecer algumas junções entre esses dois tipos de cozinha. O resultado foi o que o autor denomina “cozinha burguesa”, codificada em inúmeros tratados. Reteve sabores da cozinha camponesa ao mesmo tempo em que nela introduzia “sutilezas e ‘distinções’ da haute gastronomie, como, por exemplo, os molhos” (Revel:1992:148). A história da gastronomia, para o autor, é uma sucessão de trocas e conflitos entre a cozinha cotidiana e a arte da alta cozinha. Culinária, a partir do século dezoito, refere-se à cozinha internacional, isto é, francesa pois foi na França que a mudança histórica se efetuou. Esse termo refere-se não a um conjunto de receitas, mas a um corpo de métodos, de princípios que permitem variações dependendo de condições locais. A expressão tem duas conotações, uma pejorativa, quando se refere à cozinha anônima, como a dos hotéis, e outra positiva que designa a Alta Cozinha, isto é, receitas re-examinadas à luz de princípios que podem ser internacionalizados. Para Revel, a fonte popular é a “mãe camponesa” da cozinha, preparada por mães ou humildes cozinheiras de família, visando a nutrição. A fonte erudita visa a si mesma, ou seja, ao aperfeiçoamento da cozinha; é, portanto, o pai da cozinha, preparada por profissionais, grandes chefes que devotam tempo e conhecimento à sua arte. Camporesi, em um estudo sobre as modificações do modo de vida a partir do século dezoito quando se firma a sociedade burguesa, traz argumentos interessantes para essa discussão. Além da extensa descrição das mudanças na mesa, na arquitetura, nas comidas e bebidas, nas roupas e modos de comportamento que marcaram a passagem para o século dezoito, mostra que o sistema filosófico iluminista, racional e científico acompanhou e foi acompanhado por um novo gosto. Como exemplo, descreve a diferença entre a economia geral da refeição nas mesas medievais e a do século dezoito. Enquanto nas primeiras havia um amontoamento bárbaro, uma caótica sucessão de pratos gigantescos em enormes travessas “pirâmides de frangos, vitelas, cabritos, uma pesada cortina de especiarias, aromas densos, bebidas fortes”, na segunda havia pouca comida, mas em vários pratos, com sabores combinados, mas não amalgamados, em louças frágeis e miúdas “consummés e sopas finas, caldos, gelatinas, sucos refrescantes, sorvetes, num vai e vem de pratos coloridos e miniaturizados” (Camporesi:1996:119). Tal transformação gerou outras mudanças: as grandes e sanguinárias caçadas foram substituídas pelo mercado; as armaduras e os tecidos grosseiros, pela seda e o toalete minucioso (os homens cada vez mais parecidos com as mulheres no cuidado com a vestimenta e no comportamento); o dia trocado pela noite; a arquitetura gótica e escura pela clara, aconchegante e serena; o tato e o olfato pela visão; o local e familiar pelo distante e exótico. Toda essa descrição nos remete ao Iluminismo, à Razão esclarecedora, geométrica, precisa e matemática, que desvenda os mistérios escondidos, clarifica as mentes, descobre e experimenta cientificamente, e cria através do espetacular, (porém, delicado) engenho humano. Essa razão não pode suportar “os restos sangrentos e vulgares de ignóbeis animais, o cheiro acre das especiarias (que causava desmaio às damas), ou ainda os banquetes extensos, imensos, fartos, povoados por glutões bárbaros” (Camporesi: 1996:125). Aí aparece de forma clara, a ligação entre uma determinada idéia de gosto e o próprio conceito de civilização. Muitos autores demonstram a ligação entre razão e mesa: por exemplo, o café era considerado uma bebida com o poder de tornar o intelecto claro e o chocolate - preparado com baunilha e açúcar, em vez daquele medieval pesado e forte - teria virtudes curativas, “restaura em pouco tempo as forças, fortifica o sistema nervoso e ampara a combalida idade senil” (Camporesi: 1996:113). O domínio da razão era o da civilização. Para Montesquieu “A mesa não contribui pouco para nos proporcionar aquela alegria que unida a certa domesticidade modesta é chamada civilização” (apud Camporesi:1996:125). A cozinha acabou por transformar-se em ciência e os chefes-cientistas da mesa, conhecedores de combinações e sabores, passaram a tratar as receitas rigidamente, apesar de não eliminarem a criatividade, mas racionalizarem-na, exigindo método e exatidão. Dentro dessa mesma ordem de idéias, as mulheres não têm lugar como chefes de cozinha, mas somente com cozinheiras de família ou quituteiras. Suas receitas não são consideradas exatas e racionais, mas impressões de vida e sobre a vida, divertidas; um pouco crônicas, um pouco anedotas, mas nunca tratados científicos como as dos homens. Antes de se comentar esse modo dicotômico e dualista de encarar a culinária, pode-se recordar outras modificações ocorridas nos séculos que viram surgir a cozinha internacional. A primeira é a separação entre local do trabalho e a casa e o espaço público do privado. Bakhtin chama atenção para o fato de que “o trabalho e o comer eram coletivos; que toda a sociedade participava em igualdade de condições. Esse comer coletivo, coroamento de um trabalho coletivo, não é um ato biológico e animal, mas um acontecimento social. Se se isola o comer do trabalho, do qual ele é o coroamento, e se passa a considerar um fenômeno da vida privada, não restará nada das imagens do encontro do homem com o mundo, da degustação do mundo, da grande boca aberta, da ligação essencial do comer com a palavra e a alegre verdade, restará apenas uma série de metáforas afetadas e desprovidas de sentido” (Bakhtin:1987:249).
Foi também nesse contexto que ocorreram alterações nos papéis sociais de gênero que em sua nova formulação burguesa, afirmou os homens como provedores e produtores de cultura e as mulheres, como reprodutoras, anjos do lar ou demônios devoradores. Entre as elites do século dezoito, os papéis de gênero se achavam mais próximos um do outro do que estariam no caso das elites dos séculos dezenove e de início do vinte. Quando os vitorianos converteram o sexo e a diferença sexual em um novo paradigma cultural, produziu-se o efeito de polarizar os sexos, estabelecendo fronteiras rígidas entre eles e restringindo-os de maneira significativa. Sem dúvida, a sociedade européia era patriarcal. As mulheres viram-se obrigadas a suportar a exploração e a opressão que ainda hoje perduram. Mas, algumas vezes, na longa história da Europa, e, sobretudo, durante o início do período moderno, mulheres de elite conseguiram encontrar nas instituições patriarcais muitas brechas que, após a Revolução Francesa, se fecharam. O século das Luzes passou a afirmar que as mulheres não eram capazes de criar arte. Uma outra modificação significativa é a coleta de histórias e de outros saberes populares que serão impressos em livros: “A coleta sistemática de ‘pequenos discernimentos’, [como alguns a chamaram] alimentou entre os séculos XVIII e XIX novas formulações de antigos saberes — da cozinha à hidrologia e à veterinária” (Ginzburg:1989:168). Para um número cada vez maior de leitores, a experiência vai ser mediada por livros e o romance dará à burguesia a reformulação de ritos antigos, fornecerá o acesso à experiência de vida. Foi uma ofensiva cultural da burguesia cujo símbolo é a Encyclopédie. Nesse período, quando a cultura popular estava preste a desaparecer pelo avanço da sociedade capitalista burguesa, o povo foi descoberto por intelectuais que coletaram os saberes e cunharam novos termos como “canção popular”, livro de baladas, folclore. Enquanto as cozinhas eram ligadas a uma região específica, as histórias populares, os contos de fada ou as que foram fontes de romances, não conheciam fronteiras, circulavam pelos territórios em inúmeras variantes dependendo das contadoras e sua audiência, emergiam em diferentes lugares temperados com sabores diferentes, características diversas, além de detalhes e contextos regionais que proporcionam ao seu público a satisfação de uma identificação especial (Warner:1999:21). Escrever e imprimir essas histórias pôde preservá-las, mas também ocasionou mudanças inexoráveis. Elas são fixadas e quando referidas o são pelo nome do compilador. Em 1812, surge o livro de contos coletados pelos irmãos Grimm que o intitularam “Contos infantis e domésticos” e que hoje conhecemos como contos de fadas. O que há de novo nas idéias dos irmãos Grimm e de seus seguidores em toda a Europa é, “em primeiro lugar, a ênfase no povo, e, em segundo, sua crença de que os ‘usos, costumes, cerimônias, superstições, baladas, provérbios, etc., faziam, cada um deles, parte de um todo, expressando o espírito de uma nação” (Burke:1989:36). O apelo das coisas populares derivava de seu exotismo, de serem selvagens, livres das imposições do classicismo. Esse movimento se contrapunha a um tipo de Iluminismo muito racionalista e seria uma das bandeiras dos românticos, em outra vertente da cultura moderna. Esse foi também um movimento domesticador, pois os contos passaram por uma seleção de termos, palavreados e temas. Remover expressões grosseiras, termos sexuais ou piadas “sujas”, foi comum no século dezenove, parte do projeto de transformar um passatempo universal dos pobres numa distração refinada das classes médias e seus filhos. Como afirma Carter, “questões não só de classe, gênero e raça, mas também de personalidade fizeram parte, desde o início, do negócio de coletar estórias” (Carter:1999:XVII). Ora, as estórias contadas em todos os cantos, em geral, não eram domínio de um gênero, masculino ou feminino, nem de uma classe, eram anônimas, pois não pertencem ao mundo em que toda obra deve ser individualizada e única. Assim não eram os contos nem os contadores. Os contos de fada, segundo Carter, eram a ligação mais visceral com a imaginação de homens e mulheres cujo trabalho e arte moldam o mundo. “Quem primeiro inventou as almôndegas? Em que país? Existirá uma receita definitiva para uma sopa de batatas? Pense em termos de perícia doméstica. É assim que eu faço uma sopa de batatas” (Carter:1999:X). As estórias acredita Carter, foram colocadas, mais ou menos, na forma como as conhecemos pedacinho por pedacinho, a partir de outras que desconhecemos; outros pedaços foram acrescentados ou misturados por inúmeras e lendárias contadoras de estórias da tradição européia (Cascudo:1978:27). Mamãe Ganso, nos países de língua inglesa, Ma Mère l’Oie, francesa, por todas as mães, tias, camponesas ou citadinas e todas as informantes dos coletores de estórias. Ítalo Calvino, em sua obra Fábulas italianas, chamou atenção para esse aspecto da tradição, observando que várias antologias de folclore do século dezenove, que consultou e adaptou, citavam fontes femininas. Agatuzza Messia, a ama do erudito e colecionador de fábulas siciliano Giuseppe Pitré, tornou-se costureira e depois confeccionadora de acolchoados num bairro de Palermo: “Mãe, avó e bisavó, quando menina ela ouvira histórias de sua avó, que as ouvira de sua mãe, sendo que essa por sua vez ouvira histórias incontáveis de sua avó. Tinha uma boa memória, portanto nunca as esqueceu”(apudWarner:1999:42). A Carochinha pode ter inventado todos os contos de mulheres e por isso logo se tornou coisa menor, estória sem valor, irreal, mexerico trivial, “rótulos pejorativos que concedem a arte de contar estórias às mulheres ao mesmo tempo em que tira-lhes todo o valor” (Carter:1999:XI). Nessas reuniões ao pé do fogo as mulheres trocavam receitas e estórias. Uma historiadora de folclore lembra ter ouvido na infância as mulheres contarem estórias ao ritmo de pedras partindo as nozes que elas descascavam para conservar em vinagre. A essas figuras deve-se acrescentar a fiandeira, a mulher madura com sua roca, que pode trabalhar na cidade ou no campo, fixa num lugar ou em movimento, no mercado ou em peregrinação, e que se tornou um ícone genérico da narrativa nas capas das coleções de contos de fadas a partir de Charles Perrault: “Tecer uma fábula, costurar uma trama: metáforas ilustram a relação, enquanto a estrutura dos contos de fadas, com suas repetições, reprises, elaborações e minúcias, refletem a textura de uma das principais ocupações femininas — a fabricação de tecidos a partir da lã ou do linho até o rolo de fazenda pronto” (Warner:1999:49). Por tudo isso, foi uma longa luta para a mulher conseguir se colocar novamente na linha de frente das obras de arte. Assim como as receitas das mulheres passaram a ser consideradas culinárias doméstica à qual falta a espontaneidade e criatividade de um verdadeiro chef, Revel, ao separar “cozinha popular” da mãe camponesa da “cozinha internacional” de chefes objetivos se coloca na mesma linha de pensamento dicotômico predominante a partir do século dezoito, que cria uma rígida diferença entre a alta e a baixa cultura, linha divisória, na verdade, inexistente, a não ser para um tipo de abordagem que separa o que é estudado daquele que estuda e aplica o critério de objetividade distante. Ele está reproduzindo a distinção entre práticas que produzem conhecimento e atividades concretas ou rotineiras. Essa é também uma distinção hierárquica que toma a cozinha internacional, seus chefes eruditos e suas regras intelectuais que podem ser ensinadas, como ponto culminante da experiência gastronômica. Essa hierarquia valorativa também já foi empregada na filosofia da arte com a distinção entre belas artes e artesanatos ou artes aplicadas. Nesses casos, a distinção teórica tem um desvio de gênero, pois a alta cozinha e as belas artes são domínio preferencial dos homens enquanto cozinha popular e os artesanatos são das mulheres. É a distinção da ética expressa por Kant, entre julgamento moral correto posto que imperativo universal, pertinente à filosofia e costume cultural ou mera antropologia. Em todos esses casos, “a distância provê a objetividade, permite julgamento segundo padrões aceitos intersubjetivamente” (Curtin:1992:125). No entanto, como as correntes de pensamento também não são monolíticas, já foi questionada, no passado, a ausência de reflexões sobre os alimentos. Assim, diz a poeta do século dezessete Sóror Juana Inês de La Cruz: “Mas, senhoras, como mulheres, que sabedoria poderia ser a nossa, se não a filosofia da cozinha? Lupercio Leonardo falou bem quando disse: como alguém filosofa bem, quando está preparando o jantar! E eu freqüentemente digo, quando observo esses detalhes triviais: se Aristóteles tivesse feito guisados, ele teria escrito mais” (Cruz:1971). Dois séculos depois foi a vez de Nietzche
se perguntar “Até aqui ainda falta, a tudo o que dá cor à existência, uma história: ou onde poderia alguém encontrar uma história de amor, avareza, inveja, consciência, piedade ou crueldade?... Alguém sabe os efeitos morais da comida? Existe uma filosofia sobre o alimento?” (apud Curtin:1992:3). Vale ressaltar que Nietzche é um dos primeiros filósofos modernos a criticar o binarismo da cultura ocidental, e a morte da filosofia que ele denuncia está acompanhada de igual esterilização do espírito que perde gostos e sabores por serem considerados ingredientes menos nobres. Nascendo a tragédia, do saborear passa-se à descrição das coisas e, talvez, à intensificação da relação humana com a comida recupere importante papel na recriação radical da subjetividade produtora da vontade de poder. A epistemologia feminista contemporânea compartilha o senso crescente de que o sistema cartesiano é fundamentalmente inadequado, uma visão de mundo obsoleta e auto-ilusória, necessitando urgentemente de reconstrução e revisão. Central a esse questionamento é uma idéia que está, atualmente, presente nas construções das complexidades e da nova ciência da cognição, a saber, que as unidades básicas do conhecimento são “concretas, corporais, incorporadas, vividas: que o conhecimento diz respeito ao estar situado; e que a singularidade do conhecimento, sua historicidade e contexto, não é um “barulho” que encobre uma configuração abstrata em sua verdadeira essência. O concreto não é um passo rumo a uma outra coisa: é tanto onde estamos quanto o como chegaremos para aonde estamos indo” (Varela:1999:7). Nessa perspectiva, o que se propõe é fazer uma leitura das obras de algumas escritoras que, no decorrer do século vinte, buscaram outros marcos na relação das mulheres com o alimento, sua preparação, os elementos éticos e cognitivos envolvidos nesse processo. O que se procura é descobrir maneiras de saciar a fome que requerem formas apropriadas de expressão do eu. A experiência com o alimento é corporal, o que significa que a reflexão expressa a partir dessa perspectiva não é dualista, não separa corpo e cabeça, sujeito agente e objeto passivo como na corrente hegemônica de pensamento. A prática concreta de dispor de alimentos ou de palavras parte das mãos para reverberar no corpo e toma várias formas. A experiência com o alimento é temporal, mas também situacional, pois o alimento é cultivado e fertilizado; uma fruta é apreciada madura um instante antes de tornar-se podre. A preparação de refeições requer estratégias e planejamentos, ordenações segundo a cultura em que ocorre, envolve os cinco sentidos e seu sabor não se perde em abstrações. Longe de não ter valor por ser transitório e contextual, o prazer de comer pode ser extensivo.[1]Isto é, enfocar relações participatórias e incluir compreensão e maneiras de agir que são mútuas, entre os indivíduos e o alimento, os indivíduos e os outros a quem respondem. Cozinhar As receitas também não são relativistas, uma vez escolhido o plano de trabalho para algum prato as escolhas são feitas e implicam em limitações, os ingredientes (aspectos do mundo) selecionados estão limitados pelo projeto inicial. O não relativismo também está presente na escolha da receita, nos motivos que conduziram a sua seleção e que não se esgotam no simples fato de alimentar, mas envolvem o ambiente, a preocupação com o trabalho que acompanha o preparo. E, nesse campo, nada é imperativo. Há regras que poderíamos chamar
absolutas — como ferver toda a água em determinadas
ocasiões — mas se olhamos um passo para trás, descobrimos que esses imperativos
repousam em escolhas tão utilizadas que esquecemos que são escolhas Heldke:1992:261).
As receitas, portanto, são muito flexíveis e por isso exigem um processo
de auto-reflexão e mesmo quando não dão certo podem exigir
uma prática reflexiva para sua salvação. Essas considerações sobre as
receitas, ou modos de cozinhar Modo de fazer: Coloque todos os ingredientes citados em um grande caldeirão. Deixe-os se misturarem até surgir a mulher esfaimada, não só as anoréxicas que real e literalmente estão morrendo de fome, mas a mulher na sociedade burguesa, presa pelos papéis dominantes prescritos ao lar onde a cozinha foi entendida como espaço de confinamento. Mulheres que vivem num estado de hambre del alma, resultado, afirma Estés, da palidez que domina suas vidas. A espontaneidade e a criatividade queimadas no fogo do desuso, da desvalorização do próprio trabalho numa sociedade que considera tudo o que fazem, ou pensam, como trivial; ou queimadas nas chamas do silêncio auto-imposto: "muitos anos foram gastos em não ir, não se mexer, não aprender, não buscar, não conseguir, não pegar, não se tornar. Estar no estado de hambre del alma é estar inexoravelmente faminto" (Estés:1994:287). Junte também um outro lado dessa questão.
As mulheres mantêm uma relação íntima com o alimento, passada de mãe para
filha oralmente o que, se por um lado aprisionou-as, por outro se tornou,
muitas vezes, foco de resistências e de criatividade e arte, ao pé do
fogo trocando receitas e estórias. Porém, do ponto de vista hegemônico,
cozinhar Acrescente as especiarias trazidas por Deleuze. Para o autor, não se escreve com as próprias neuroses. A neurose e a psicose não são passagens da vida, mas estados nos quais se cai quando o processo é interrompido, impedido e colmatado. A doença não é processo, mas parada de processo. Por isso o escritor enquanto tal não é doente, mas antes médico de si mesmo e do mundo. O mundo é conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece então como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde, mas ele goza de uma irresistível pequena saúde que vem do fato de ter visto e ouvido coisas demasiadamente grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis e cuja passagem o esgota. Para Deleuze, o delírio é uma doença,
a doença por excelência, mas é medida de saúde quando invoca essa possibilidade
criativa que não cessa de se agitar
sob as dominações, de resistir Cozinhando em fogo brando, lentamente, começa a surgir a forma da mulher esfaimada, mas criativa, daquela que em vez de inscrever a neurose em seu corpo reafirmando preceitos culturais, escreve para descobrir caminhos por entre alimentos e pensamentos de corpos agentes que amassaram conflitos e impossibilidades para dar-lhes novas formas. As mulheres esfaimadas, mas escritoras e criadoras, não são neuróticas, ressalta Woolf ao mesmo tempo em que alerta escritores de forma geral: cuidado, o tratamento psiquiátrico pode roubar-lhes o poder e >exauri as fontes da criação. Para Woolf, a loucura ou a neurose seriam espécies de frenesi que não teriam nenhuma semelhança com as crises pelas quais passou e que alimentaram o pavio de sua imaginação. Em uma das únicas referências que fez a seus ataques de insanidade diz: "Meu cérebro explodiu numa chuva de fogos de artifícios... Como experiência a loucura é fantástica, posso lhe garantir e não é coisa que se possa cheirar; em sua lava encontro ainda a maior parte do que escrevo. Ela faz disparar dentro da pessoa tudo em forma final, não em pequenas porções como faz a sanidade. Nunca esquecerei o dia em que escrevi 'The mark in the wall', tudo num lampejo como num vôo. Aquilo, mais uma vez, num segundo, me mostrou que eu podia corporificar todo meu depósito de experiência numa forma que combinasse" (apud Porter:1990:81). Esse ingrediente exige atenção, compreensão e persistência, pois, como escreve Lispector: "E também o milagre se pede, e se tem, pois a continuidade tem interstícios que não a descontinuam. O milagre é a nota musical que fica entre duas notas musicais, é o número que fica entre o número um e o dois. É só precisar e ter. A fé é saber que se pode ir e comer o milagre. A fome, essa é que é em si mesma a fé" (Lispector:1979:39). Pode-se cozinhar com paixão, com palavras, com idéias, com desejos e anseios por qualquer coisa que a mulher realmente ame: "É realmente essa paixão que causa o ato de cozinhar, e as idéias das mulheres são as substâncias que cozinham. Cozinhar consiste em cozinhar a vida criativa no fogo interno" (Estes:1994:40). As tarefas domésticas, tão negligenciadas e desvalorizadas pelos pensadores dessa cultura, nem mesmo constam como artes ou ofícios. Mas, varrer, passar, lavar, cozinhar, são também “metáforas que oferecem caminhos para pensarmos, nutrirmos, limparmos, ordenarmos a vida da alma. Limparmos os escombros em volta de uma idéia crua e acender o fogo com vitalidade, fazer comida para psique" (Estés:1994:98). Adélia Prado sempre compreendeu bem essa receita: "Se me dessem licença de comer eu me curava, virava gente grande”. Prado é dessas cozinheiras que sentem prazer em comer a própria comida, em juntar um restinho de milho na rapa do arroz e levar ao fogo com um ovo e farinha. “Só quem pode fazer isto é eu. Se outra pessoa fizer, eu fico com raiva dela, achando uma feiúra sem fim, querendo lhe negar a palavra" (Prado:1987:24). Para saciar essa fome, a hambre del alma, as escritoras nos deixam receitas e modos de fazer diferenciados. Ao gosto do leitor, pode-se efetivamente levar seus romances à cozinha, e transformá-los em saborosos pratos, que revelam o segredo do tempero de suas autoras. De outra forma mais sutil, podem nutrir com imagens que o transporta a um verdadeiro banquete de palavras. Cozinhando o que foi escrito por elas, ou lendo o que elas escreveram sobre a cozinha e seu universo, essas autoras alimentarão a alma dos convidados ao banquete. Bom apetite! Este texto faz parte do livro Hambre del alma, escritoras e banquete de palavras. São Paulo, Limiar, 2007 (agosto). Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. 1987. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Huicitec: BURKE, Peter. 1989. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras CAMPORESI, Piero. 1996 Hedonismo e exotismo:a arte de viver na época das luzes. São Paulo: UNESP::119. CARTER, Ângela. 1999 O Quarto do Barba Azul. Rio de Janeiro: Rocco . CASCUDO, L.C.1978. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio CRUZ, Juana I. de la. 1971 Antologia. Salamanca; Anaya . CURTIN,D.e Heldke,L. 1992. Cooking, eating, thinking. Bloomington: Indiana University Press DELEUZE, Gilles. 1993. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34 ESTÉS, Clarissa P. 1994. Mulheres que correm com lobos. Rio de Janeiro GINZBURG, Carlo 1989. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, HELDKE, Lisa .1992.Recipes for Values” in Curtin and Heldke, Cooking, Eating, Thinking. Bloomington: Indiana University Press, JESUS, Carolina M. 1998. Quarto de Despejo. São Paulo: Ática, 5ª edição REVEL, J.F. 1992 “Culture and Cuisine” in Curtin and Heldke, Cooking, Eating Thinking. Bloomington: Indiana University Press . VARELA, Francisco. 1999. Ethical know-how. Stanford: Stanford University Press WARNES, Marina. 1999. De fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das Letras, Nota biográfica Carla Cristina Garcia tem Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP onde é professora e pesquisadora em Estudos de Gênero. É autora de artigos e dos livros Ovelhas na névoa: um estudo sobre as mulheres e a loucura; As outras vozes:memórias de mulheres em S. Caetano do Sul e Hambre del Alma. [1] CURTIN, Deane. Recipes for Values. In: Cooking, eating, thinking: transformatives philosophies of food. Ed. Deane Curtin and Lise Heldke. Bloomington: Indiana University Press, 1992, p.129.
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