labrys, études
féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007
Metaficção
historiográfica e feminismo: olhares sobre Charlotte Bronte
Cristina Maria Teixeira Stevens
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que finge que é dor
A dor que deveras sente
Fernando Pessoa, ‘Auto-Psicografia’
Resumo
O artigo analisa as diferentes
imagens de Charlotte Bronte oferecidas por seus vários biógrafos desde
o século XIX. Aborda os fatos
biográficos transmutados em
ficção na obra daquela autora. E se encerra incluindo a obra de Michelle Robert
que ficcionaliza alguns detalhes da biobrafia de Bronte.
O presente trabalho
objetiva analisar diferentes – ou mesmo
contraditórias – imagens da escritora inglesa Charlotte Bronte (1816/55), documentadas
nos seguintes livros: The Life of Charlotte Bronte,
de Elizabeth Gaskell (1857), The Bronte Family, de Francis
A. Leyland (1886), The Infernal World of Branwell Bronte, de Daphne
du Maurier (1960), Charlotte Bronte, de Winifred Gerin´s (1967),
e The Brontes, de Brian Wilks (1975).
Essas biografias servirão de base para uma breve análise de acontecimentos
da vida dessa brilhante escritora, a qual
transformou experiências de sua vida
em material para
seus romances – especialmente The Professor
e Villette. Aprofundamos nossa análise
com o romance The Mistressclass
(2003), da escritora inglesa contemporânea
Michele Roberts, que ficcionaliza Charlotte Bronte
e seu suposto romance com
seu tutor em
Bruxelas.
Nosso interesse é visibilizar
o trabalho dessas escritoras, e analisar
suas produções a partir
da perspectiva feminista
e à luz do conceito de
metaficção historiográfica. Note-se que os comentários
de Bronte aqui citados não estão em
um único livro,
mas aparecem em sua
correspondência ou são
citados pelos biógrafos.
As traduções dos textos de Bronte são de minha
autoria.
Utilizaremos alguns insights da Psicanálise, mas
não nos limitaremos à noção freudiana de arte como sublimação e simbolização
de impulsos reprimidos no inconsciente. Sabemos que a relação entre a
vida de um autor e sua obra nunca poderia ser uma relação simples de causa
e efeito; afinal, um romance não é um livro de memórias ou um diário,
nem pode servir de fonte documental para uma biografia. Ao relacionar
a vida do autor e sua obra, me vêm à mente as palavras de Pontalis sobre
o papel do inconsciente na criação estética; para ele, em literatura,
o autor “mente verdadeiramente”(1991: 118).
Neste trabalho, tentaremos identificar como as diferentes
motivações que norteiam a pesquisa desses biógrafos de Charlotte Bronte
os levarão à criação de imagens bastante diferentes desta romancista e
sua obra. Ao tentarmos compreender o admirável processo pelo qual ela
transforma experiências de sua vida em arte, buscamos assimilar sua própria
argumentação sobre esse processo: “permitimos que a realidade nos sugira,
nunca que nos comande”(in GASKELL,1936:285). Além disto, nossa análise
focalizará a recriação dessas mesmas experiências em uma ‘verdade’
estética, na Charlotte ficcional de Roberts
Muito
se tem escrito sobre
as estreitas ligações entre os mundos ‘real’[1]
e ficcional de Charlotte Bronte, apesar das insistentes
negativas da própria
autora: “Acredito que um
trabalho de ficção
deve ser um trabalho
de criação e que o real
deveria ser introduzido parcimoniosamente
em páginas dedicadas ao ideal”
(in LEYLAND, 1973:364). Além do
bastante explorado e controverso
debate sobre a
fidelidade às experiências vividas por Charlotte durante sua permanência no internato/escola em Cowan Bridge
e transmutadas para o
romance Jane Eyre, muitos críticos também explicam que
em Shirley a autora se baseou fortemente
em fatos que
ocorreram na época de seu
pai - as chamadas
revoltas Luddite , isto é, revoltas
dos trabalhadores contra
efeitos da Revolução
industrial e que são denominadas
pelo nome do líder,
Ned Ludd. Mas ela nega esta associação: “Vocês
não devem supor que
os personagens de Shirley foram criados como retratos fiéis. Isto não
seria adequado às regras da arte nem aos meus próprios sentimentos”(in LEYLAND, 1973:285).
Em contraste com as posições
explícitas da autora, seu biógrafo Brian Wilks comenta sobre
essas associações, que quase
transformam a ficção de Charlotte Bronte num
registro puramente histórico:
Nosso conhecimento desses conflitos tem duas fontes: podemos
encontrá-los nos livros de história mas também eles são relatados detalhadamente
em Shirley, de Charlotte Bronte. ... Quando ainda bastante
jovem, Charlotte frequentou uma escola localizada bem perto da fábrica
onde os grevistas atacaram. Com o ímpeto da história que seu pai havia
lhe contado quando ela era criança e com seu próprio conhecimento do lugar
e dos acontecimentos, ela tinha vasto material para a sua imaginação trabalhar.
... Shirley continha algumas das mais facilmente identificáveis
pessoas e lugares de todos os trabalhos de Charlotte. ... Uma vez publicado,
Shirley provocou grande prazer na medida que os habitantes do lugar
procuravam por eles mesmos entre os personagens do romance, e muitas vezes
descobriam que estavam presentes no livro em cópia fiel (130)
Em seu livro sobre a família Bronte, Wilks escreve:
Assim como
muitos autores, Charlotte
se baseou fortemente em suas experiências de vida,
mas talvez de uma
maneira incomum ela não
se preocupou muito em
esconder seus modelos; esta característica
de sua escrita tem deliciado
muitos turistas ou detetives
literários desde o primeiro
dia da publicação de seus romances até o presente. Seus amigos e suas residências, seus
parentes, são tecidos
na trama ficcional da autora. Ela recriou pessoas tão
bem e evocou lugares
tão acuradamente que
se tornou um passatempo a busca de identificação de vizinhos
e de suas casas na obra
mais recente da Sra. Currer
Bell [pseudônimo de Bronte] (1975: 62).
A partir desses (para
mim um tanto problemáticos) comentários,
voltamo-nos para dois
romances de Charlotte Bronte: Villette
and The Professor;
segundo os críticos, ambos
são profundamente autobiográficos.
The Professor foi escrito em
1846, dois anos após
o retorno de Charlotte de Bruxelas, quando ela
sentia-se “doente com uma infelicidade pessoal
para a qual não
havia cura [e] ... com
uma doença no coração
que não poderia
ser confessada”, como
é dogmaticamente afirmado na Introdução
do romance. Charlotte morou em Bruxelas por
menos de dois anos,
como aluna na escola
do Monsieur Heger, por quem apaixonou-se sem esperança
pois ele era
casado: “o dinâmico professor
cujo talento no ensino
havia ampliado a visão de Charlotte a amadurecido seu intelecto,
e cuja imagem a perseguia,
destruindo sua paz e tranqüilidade pelos próximos
dois anos”, (p. V).
Esta experiência dolorosa
é transformada em um romance que tem um final
construído de forma
comoventemente feliz;
entretanto, essas prováveis
conexões com a experiência
pessoal da autora não
constituem o elemento mais importante do romance. Como
também em Villete,
a bonita história de amor
entre a heroína e seu
professor pode ser
lida como um bildungsroman de admiráveis personagens
femininas com dimensão
poética, desenvolvimento
orgânico de uma narrativa
cativante, e profundidade
no tratamento das personagens
que garantem a qualidade
estética do livro.
.Apesar de concordar com a posição de que o conhecimento
da vida de um(a) autor(a) não é relevante para melhor compreensão
e avaliação de sua obra, aventurei-me por curiosidade nessas biografias
produzidas sobre Charlotte Bronte, tentando encontrar evidências de acontecimentos
e experiências que, segundo esses biógrafos, iluminariam a produção ficcional
da autora. Entretanto, foi curioso perceber que esses acontecimentos objetivos
recebem tratamento bem diferenciado entre esses estudiosos, em função
da perspectiva a partir da qual eles são mediados – a de uma amiga bastante
próxima, ela própria uma romancista (Elizabeth Gaskell), um conhecimento
indireto de alguém que queria na verdade desmanchar a imagem negativa
que o irmão da autora - Branwell Bronte – havia sempre recebido de amigos,
parentes e biógrafos (Leyland), um tratamento ficcional deste mesmo
irmão de personalidade intrigante (du Maurier), e uma reconstrução mais
objetiva da família Bronte (Wilks). O trecho abaixo foi extraído
da Introdução de uma reedição do livro Life of Charlotte Bronte,
de Elizabeth Gaskell:
Ela estava equivocada sobre o possível caso de amor de
Branwell. ... Ela estava equivocada sobre inúmeros pontos que eram irrelevantes
para o leitor e diziam respeito apenas às pessoas envolvidas. O que é
bastante importante para nós é que ela estava correta sobre Charlotte
Bronte. Ela estava correta em um grau ainda não atingido com igual segurança
por nenhum biógrafo ou crítico da família Bronte. ... Muitos opinaram,
fizeram inferências, conjecturas. A Sra. Gaskell tinha conhecimento direto.
... Se a Sra..Gaskell por acaso sucumbiu à tentação de todo romancista
– o efeito a ser produzido, o tema para ser sustentado ao longo da narrativa,
o assunto para ser explorado – isto não se deu às custas da verdade. De
fato, foi a verdade que mais a limitou; a verdade e seu afeto por Charlotte
Bronte, sua intimidade com tudo que dizia respeito à sua amiga, sua proximidade,
durante a preparação do livro, com os eventos nele narrados. (1936: IX-XII).
Não há argumentação
convincente que leve
a desacreditar na seriedade
do trabalho de Elizabeth Gaskell em
sua busca por “uma compreensão correta
da vida de minha querida
amiga”, como ela
própria escreveu. (1936: 6).
Ela também humildemente
reconhece suas limitações,
que são as mesmas de qualquer
biógrafo, mesmo aqueles
com relações tão
próximas com a pessoa
biografada, como foi este caso: “A família sobre a qual
eu pretendo escrever
fincou suas raízes muito
mais profundamente do
que eu posso penetrar.
Não posso entendê-la bem,
muito menos julgá-la”
(1936: 33).
Elizabeth Gaskell decide ignorar o papel vital do Sr.
Heger na vida de Charlotte. Ao trabalhar as emoções e experiências de
Charlotte durante sua vivência na escola de Bruxelas dirigida por ele,
Gaskell atribui a solidão da jovem Charlotte no pensionnat - a
sua depressão e imensas saudades de casa, seu distanciamento da Sra. Heger
- apenas a causas religiosas: ao fato de que ela era uma jovem protestante
convivendo com muitas católicas devotas. Gaskell de alguma forma tenta
desculpar-se por esse silenciamento: “Resolvi escrever a verdade, … sem
esconder nada; entretanto, algumas coisas, pela sua própria natureza não
poderiam ser relatadas tão completamente como outras” (1936: 370).
Como uma típica mulher formada na ideologia vitoriana,
Gaskell suprimiu a ‘verdadeira’ causa da infelicidade de Charlotte. Além
da oposição que ela certamente enfrentaria por parte do esposo e do pai
de Charlotte, ela também enfrentaria as limitações impostas pelos editores
de seu trabalho biográfico, caso revelasse detalhes íntimos contidos nas
cartas de Charlotte para o Sr. Heger. Ela também estava ansiosa para proteger
sua amiga, cuja boa imagem de escritora poderia ser prejudicada caso fosse
descoberta sua paixão por um homem casado. Brian Wilks nos explica:
Por dois anos Charlotte escondeu sua dor, ao mesmo
tempo em que derramava seu sofrimento em cartas para o homem que possuía
seus pensamentos, cartas que eram tão explícitas que a Sra. Gaskell considerou
impossível inclui-las na biografia que ela havia escrito sobre Charlotte;
foi deixado para biógrafos posteriores demonstrar a verdadeira causa da
deplorável condição emocional de Charlotte e a posição embaraçosa da Sra.
Heger com relação a sua governanta inglesa (1975: 62).
Alguns críticos comentam sobre o fascínio dos leitores
com a biografia preparada pela Sra. Gaskell. Entretanto, Francis A. Leyland
não compartilhou desta ampla aprovação. Ele escreve sobre isto: “Há bastante
tempo tenho sentido que a história da família Bronte está incompleta e,
em alguns aspectos, não bem compreendida. ... É fonte de um sincero desconforto
de minha parte ser compelido a discordar daquela escritora [Sra. Gaskell]
em muitos pontos” (1973: V,VIII). O livro de Leyland tinha como objetivo
trazer à luz a – segundo ele – vida bastante distorcida de Branwell Bronte,
o irmão de Charlotte. Para fazer isto, Leyland deliberadamente ataca o
que ele considera “erros básicos da Sra. Gaskell ” (1973:297), como podemos
ler na introdução do livro::
As lendas cresciam, acompanhadas de algumas deliberadas
distorções de detalhes de forma a adaptá-los a algum ponto de vista
específico. ... A Sra. Gaskell ... escreveu de forma bastante caluniosa
sobre Branwell como se ele fosse um alcoólatra e viciado em ópio,
o que, na visão de Leyland, evidenciava falta de controle em alguns registros
da Sra. Gaskell sobre Branwell e seu pai. (1973: V-VI-grifo meu).
A fim de mostrar que a Sra. Gaskell “estava
completamente enganada na
sua versão da história”
(sobre provável caso
de amor de Branwell com
uma senhora casada),
Leyland apresenta sua própria versão, cuja
veracidade ele tenta
reforçar através
de argumentos do tipo
“não há razão para
acreditar...”, ou
“podemos apenas inferir quanto à causa original...”. Ele então
conclui com bastante confiança
que “a pura verdade
sobre a conduta de Branwell
é a seguinte:...” (67)
É interessante observar que, embora criticando a Sra. Gaskell nos esforços
dele para chegar
à, ‘verdade’ sobre Branwell – a quem
ele conhecia pessoalmente
pois seu irmão
era amigo do Branwell,
Leyland também distorce muitos detalhes para
adaptá-los à sua “teoria
particular”, ou seja,
seu objetivo de construir
uma imagem mais agradável
do Branwell como uma espécie de herói
trágico, Byroniano, através
de uma série de especulações
um tanto românticas
e condescendentes. Neste processo, ele não apenas tenta reforçar o argumento bastante frágil
de que Branwell foi o verdadeiro
autor de Wuthering Heights, romance reconhecidamente escrito por
sua irmã, Emily Bronte. Ele
interpreta o sofrimento fraterno de Charlotte
causado pelo comportamento
irresponsável de seu
irmão de forma bastante
cruel: “As críticas da
irmã dele foram provavelmente tão
pouco sábias quanto apaixonadas, desmesuradas
e, aparentemente sem
sentimento” (1973: 54).
Acredito que a interpretação de Leyland sobre
a atitude de Charlotte em
relação à condição
lastimável do seu irmão
foi injusta. Ela estava
ansiosa com o sofrimento
de seu pai, provocado
pelo comportamento
desregrado de Branwell, e profundamente consciente da verdadeira situação dele. Como
irmã mais velha e bastante
sensata, ela sabia precisamente
das sérias limitações de sua família,
cuja situação
financeira já frágil havia
sido bastante agravada
com o comportamento decepcionante
de seu irmão, em cuja educação e formação
artístico-profissional o pai gastou o pouco dinheiro
da família, o que resultou
apenas em desilusão das
esperanças que todos
haviam depositado no futuro promissor do único filho homem. Além desses sérios problemas,
ela também atravessava
em silêncio sua
crise pessoal: a sua
separação do seu tutor,
e principalmente a dor
aguda que lhe
causava as injustas limitações impostas à mulher na sociedade
vitoriana. Sendo uma amiga tão próxima de Charlotte nos últimos
cindo anos da vida dela,
a Sra. Gaskell tinha um conhecimento mais íntimo
desses problemas e tenta
registrá-los em sua biografia.
Para Leyland, Lucy Snowe é o retrato mais verdadeiro
de Charlotte, cujas memórias tristes de sua vida em Bruxelas foram registradas
em Villete “arrancadas dela como sangue de seu coração, em meio
a paroxismos de angústia criativa”(1973: 2), como ele descreve hiperbolicamente.
Para ele, muito da raiva que Charlotte sentiu pelas limitações impostas
à realização de seu sonho amoroso foram também recriadas em The Professor
e Villete. Ele faz uma identificação direta entre as emoções de
Charlotte e sua criação ficcional: “Em The Professor, temos uma
descrição dos sentimentos de William Crimsworth quando ele chega a Bélgica
que são indubitavelmente os mesmos sentimentos de Charlotte: “agarrei
a liberdade nos meus braços pela primeira vez e a influência de seu sorriso
e abraço trouxe-me uma nova vida, assim como o sol e o vento oeste””(1973:
7). ). Ao tentar ler o romance como um papel carbono da vida real, Leyland
negligencia o verdadeiro valor da obra, cujo inegável qualidade estética
nos dá a epifania de sua própria verdade.
Leyland não está só, em seus comentários dogmáticos sobre
os sentimentos de Charlotte para como o Sr. Heger: “Charlotte viveu
uma experiência em seu coração que tornou-se decisiva em sua vida e transformou-a
no que ela passou a ser” (1973: 41). A pesquisadora/romancista Daphne
du Maurier também reconhece a importância da biografia da Sra Gaskell
mas o foco de sua pesquisa é Branwell; ela nos explica, numa fórmula
que nos parece um tanto simplista, a fonte do talento literário de Charlotte:
A Sra.Gaskell pintou um quadro tão vivido sobre a vida na paróquia em
Haworth [onde Bronte morava]... que
qualquer biografia sobre
a família Bronte escrita
desde então baseou-se
neste trabalho. ... Entretanto,
ela não compreendeu que nenhum
desses romances teria sido escrito
se suas criadoras [Charlotte, Anne, Emily Bronte] não tivessem vivido durante
a infância no mundo de
fantasia que havia sido
em grande medida
inspirado e dirigido pelo
único irmão que elas
tinham, Branwell Bronte (1974: 13).
Du Maurier produziu uma biografia
ficcionalizada sobre o “mundo infernal” de seu “herói
trágico” Branwell Bronte, o que,
de acordo com alguns críticos, refletia o gosto
da autora pelo macabro romântico. Ela
cria para seu
’personagem’ sentimentos e situações
que não têm base
em documentos ou
outras fontes objetivas;
exemplo disto é a confrontação freudiana
de Branwell com suas irmãs
quando eram crianças:
Quando aquele
menino mais novo
entre todas as irmãs, encontra-se ali, glorioso
em sua nudez,
os olhos dele examinavam as irmãs, os corpos delas macios e brancos
enquanto ele possuía
não apenas o cabelo
vermelho que herdara
de seu pai, mas
também algo mais,
ele menosprezou-as por
serem incompletas (1974: 27).
Ela também
explora a relação supostamente
amorosa entre Charlotte
e seu tutor, desenvolvendo
sua argumentação de forma
bastante imaginativa (apesar
de tratar-se de um trabalho
biográfico). O texto abaixo parece um claro
eco – talvez de forma
inversa – do conceito freudiano de arte como neurose, da arte como uma estratégia de transformação das fantasias do
escritor em um
novo tipo de realidade através da expressão artística:
Não
importa o quanto ela tentou
esconder isto de sua
família e dela própria;
sua paixão pelo
Sr Heger estava se transformando de uma relação normal entre professor/aluno em uma obsessão. ... Todas as estórias que
ela havia escrito
antes de ir morar
em Bruxelas tendiam para aquela direção
– a moça mais jovem,
o homem mais velho,
e casado. Uma vez
concebido na imaginação e colocado no papel, as estórias tinham que
funcionar na realidade
e o Sr. Heger, seu superior,
era o gancho no
qual ela penduraria sua
idéia pré-concebida.
Se não
tivesse sido o Sr. Heger, teria sido alguém semelhante; a jovem que
havia vivido uma fantasia
com o Duque de Zamorna
[herói que das histórias
que os irmãos Bronte criaram
ainda crianças] desde
os tempos de infância,
era forçada por
uma necessidade emocional
de trazê-lo para a realidade.
... Havia chegado o momento
para a fusão entre
imaginação e realidade
(1974: 200).
Apesar da natureza especulativa que sentimos em seu livro
(no qual, queríamos enfatizar, aparecem muitos condicionais ‘se’), du
Maurier também utiliza como base para suas interpretações as cartas que
Charlotte escrevia para o Sr. Heger, as quais eram interpretadas como
prova irrefutável do amor que Charlotte sentia pelo seu professor:
Senhor, o pobre não precisa de muito para sustentá-lo
– eles pedem apenas migalhas que caem da mesa do rico. Mas se lhes recusam
até as migalhas, eles morrem de fome. Eu também não preciso receber muito
afeto daqueles que amo. Não saberia o que fazer com uma amizade inteira
e completa – não estou acostumada a isto. Mas o senhor mostrou-me no passado
um pouco de interesse por mim, quando era sua aluna em Bruxelas, e agarro-me
à manutenção daquele pequeno interesse – agarro-me a isto como tento agarrar-me
à vida” (1974: 217) .
O historiador inglês Brian Wilks reconhece que “a procura
por fatos é uma tarefa complexa e difícil ... devido a disposição dos
detalhes que permeiam praticamente todo o material relativo a família
Bronte”(1975: 141). Entretanto, Wilks também aproxima fato e ficção na
tentativa de explicar os sentimentos de Charlotte:
Seu amor pelo professor Heger... iria transformar-se
na experiência fundamental que se esconde em suas melhores criações. ...
O Sr. Heger [era] o único homem que a havia sensibilizado de uma forma
remotamente parecida com os heróis de seus primeiros escritos. ... Muito
da raiva dela foi recriada em The Professor e Villette ...
onde seu conflito e sofrimento são vistos ao longo de descrições facilmente
identificáveis da escola onde ela vivenciou tanta felicidade misturada
a tanta amargura (1975: 94-6)
Na Introdução do romance
The Professor – o qual
Margaret Lane interpreta como tendo “um foco duplo, ao mesmo tempo um romance e um sonho não realizado” (p.VIII) - Lane comenta o
que para ela representa
uma tentativa fracassada da romancista em disfarçar a sua experiência pessoal nesta recriação
ficcional da mesma.
A imaginação, que era a sua genialidade, era também sua
tentação. No primeiro romance longo de seus anos mais maduros, ela estava
determinada a controlar esta faculdade tanto quanto possível ... . Foi
neste estado de espírito sóbrio e com a sua experiência de Bruxelas ainda
bem pesada em sua mente que ela escreveu The Professor. ... Desta
forma, ela pensou, sua experiência estaria bem escondida, o material modificado,
os personagens colocados acima de qualquer suspeita. Que precaução inútil!...
O livro palpita e ecoa sua voz. Ela está em William Crimsworth, até mesmo
suas feições são tomadas por empréstimo de seu espelho: “Via uma face
magra e irregular... mas não jovem”... . Nos relacionamentos de William
Crimsworth, o professor, com Francis Henri, a aluna mais pobre e talentosa
que ele tinha, estão todos os sonhos que haviam confortado a sua infelicidade
(p.VI)
Tanto du Maurier quanto Wilks discutem as cartas que Charlotte
havia enviado para o Sr. Heger. Wilks explica que Constantine Heger
recusou-se a responder as cartas de Charlotte depois que ela saiu de Bruxelas
para retornar à Inglaterra e isto causou nela um sofrimento insuportável;
ela então continua a escrever suplicantemente::
Tudo que sei é que não consigo, não irei me conformar
em perder a amizade de meu professor. Prefiro sofrer a dor física mais
forte de que ter meu coração dilacerado por violentos arrependimentos.
Se meu professor desiste de sua amizade por mim completamente, não terei
mais esperanças; se ele me der um pouco – apenas um pouco – ficarei satisfeita,
feliz; terei uma razão para continuar vivendo, para trabalhar (in WILKS,
1975: 95)
Wilks explica que, quando
Charlotte deixou Bruxelas, eles haviam concordado em se corresponder,
mas ela se permitiu escrever
sobre seus sentimentos
com tanta franqueza
que isto provocou a
censura do Sr. Heger; aparentemente, ele então não apenas mostrou as cartas
para sua esposa
mas também parou
de respondê-las. No romance The Professor, Crimsworth
casa com sua
aluna Frances Henri e ambos deixam Bruxelas de volta à Inglaterra,
onde vivem uma
vida calma e feliz
casados; assim, o romance
torna-se “uma visão suave de algo que a vida havia lhe recusado”(p.VIII).
É bastante significativo o fato de termos
uma autora que cria um romance relacionado a uma experiência
importante em sua vida, mas narrado a partir do ponto de vista masculino, já que o personagem principal/narrador
é o professor e não
a sua aluna/futura
esposa. Que inúmeras e
complexas leituras esta construção narrativa poderia provocar, além da simples associação
entre experiência
vivida e ficcionalizada?
Coletando dados para
seu livro Charlotte Bronte, Winifred
Gerin também aprofunda esta associação
entre a vida de Charlotte e seus
romances; ela mostra
como a viajem de Charlotte de volta a Bruxelas foi elaborada em Villete,
onde está registrada
também a visita de Charlotte a Londres a caminho de Bruxelas, as impressões de sua
primeira experiência com
a arte sofisticada das
galerias de arte que
ela visitou em Londres (e, posteriormente,
em Bruxelas), sua travessia para a Bélgica, o itinerário de seus
passeios de domingo, a
descrição das instalações
do pensionato (confirmada, segundo
Gerin, pela própria família Heger).
Reconhecendo a precisão das observações
de Charlotte, Gerin conclui que os relatos da
viajem da autora para Bruxelas e as movimentações da
família Bronte podem ser
facilmente identificadas através das óbvias referências
de Charlotte em The Professor
e Villette (GERIN, 1967:185/86). Embora reconheça que Charlotte era
extremamente reticente
em admitir a existência
de personagens da vida
real como originais
para seus personagens,
Gerin afirma com muita
confiança que “Madame
Beck nasceu naquele janeiro [1847], do sofrimento causado pelo
silêncio do Sr. Heger”(1967: 277). Ela explica a motivação de sua pesquisa
na comparação da vida de Charlotte com sua
ficção, numa espécie de
‘anatomia’ de seu processo
criativo:
A importância de traçar suas verdadeiras experiências,
em contraste com as experiências ficcionais integradas aos seus romances,
está na influência dessas experiências no poder criativo de Charlotte.
A própria intensidade de seus sentimentos durante aquele período conseguiu
aguçar a já excepcional capacidade de observação da autora. As suas percepções,
como se sob influência de uma droga, foram aumentadas em sua capacidade
pela luta que ela travava em sua alma. O que ela viu e ouviu durante aqueles
meses de agudo sofrimento mental e emocional deixaram impressões indeléveis,
que deu colorido à textura de sua mente de forma tão profunda que supriu,
em retrospecto, não apenas conteúdo emocional para dois romances inteiros,
mas também os mínimos detalhes nos quais os dois enredos são articulados.
Villette e The Professor representam a metade de sua produção
ficcional publicada mas os dois anos de experiência dos quais esses romances
são o produto foram de longe os mais cheios e ricos de sua vida (GERIN,
1967:239).
Não objetivando aprofundar detalhes deste debate sobre
a influência da vida de um autor para sua criação, gostaria de comentar
apenas que, quando li esses romances sabia muito pouco sobre a vida de
Charlotte, nem estava interessada em comparar cenas ou fazer inferências
através de minha leitura sobre detalhes da vida e dos dilemas pessoais
da autora. Mais do que uma descrição vívida de experiências e impressões,
a riqueza dos romances está no seu admirável poder narrativo, construção
orgânica de personagens complexas, atmosfera, enredo; não precisamos de
originais óbvios para reconhecer a transmutação dos mesmos no mundo ficcional
admiravelmente construído por Charlotte.
Sabemos que o biógrafo
nem sempre dispõe de informações
adequadas e necessárias à reconstituição da vida do seu biografado; provavelmente ele
irá preencher alguns desses vácuos
com suas próprias
inferências e interpretações das evidências e dados disponíveis,
criando assim a ilusão de organicidade para
seu trabalho. De certa
forma, este processo pode ser considerado uma
ficcionalização do seu material supostamente objetivo
– ele cria aproximações
metafóricas, desenvolve conexões um tanto forçadas, evitando dessa forma
o que poderia parecer um trabalho incompleto e fragmentado;
assim vejo o trabalho
desenvolvido pelos biógrafos
de Charlotte Bronte brevemente exemplificado acima. Sem
querer abrir uma outra vertente de análise em meu trabalho, gostaria apenas de enfatizar
o surpreendente esforço
desses biógrafos em esconder
suas subjetividades, o que é uma mera
ilusão, como já
demonstrado em inúmeros estudos sobre a epistemologia
feminista, e tantas outras contribuições
teóricas do pós modernismo.
Sem querer
detalhar-me no complexo e rico
debate sobre a função
mimética do romance, gostaria de introduzir nessa argumentação
a contribuição do historiador americano Hayden
White e da pesquisadora canadense Linda Hutcheon,
os quais vêem a história e a literatura como discursos relacionados. Seus
estudos baseiam-se na consciência
de que tanto a história como a ficção
são discursos e que,
portanto, não há uma garantia
firme de verdade;
eles enfatizam a provisionalidade e indeterminação
das construções humanas, principalmente as construções discursivas que
constituem a natureza intrínseca da história
e da literatura. White enfatiza a qualidade
inevitavelmente narrativa das reconstruções historiográficas e expressa sua
dúvida sobre a
existência de uma consciência
histórica específica; ele
aprofunda suas suspeitas
sobre o trabalho historiográfico
a ponto de algumas vezes não fazer distinção entre o historiador e o romancista:
Trato o trabalho
histórico como ele
manifestamente é: uma estrutura verbal que
tem a forma de uma prosa
narrativa. Histórias
(e filosóficas da história também) combinam uma certa
quantidade de ‘dados’,
conceitos teóricos para
‘explicar’ esses
dados, e uma estrutura
narrativa para sua
apresentação como um
ícone de um conjunto
de eventos que ocorreram
em tempos passados.
Mantenho ainda que eles
contêm um conteúdo estrutural
profundo que é genericamente
poético e especificamente lingüístico em sua natureza e serve como
um paradigma aceito pre-criticamente sobre o que a explicação distintamente histórica
deveria ser (1983: 9)
Em seu livro sobre pós-modernismo, Hutcheon utiliza o
termo metaficção historiográfica, o qual ela define como
romances que são intensamente auto-reflexivos e ao mesmo
tempo paradoxalmente também apropriam-se de eventos e personagens históricos.
... A metaficção historiográfica faz indagações epistemológicas e ontológicas.
Como conhecemos o passado (ou o presente)? Qual o status ontológico do
passado? De seus documentos? De nossas narrativas?(1992: 50)”.
Hutcheon identifica um
crescente número de escritores
contemporâneos que vêm
utilizando material histórico
em suas produções
ficcionais, objetivando expor e
debater a impossibilidade de captar
o real apenas através
de sua representação
discursiva. Na atmosfera atual das formulações teóricas do pós-modernismo
- as contribuições do desconstrucionismo derrideano,
da polifonia bakhtiniana, da dimensão
ideológica da linguagem bem como de sua opacidade, como nos
expõem respectivamente Foucault e Lacan,
entre tantas outras contribuições
teóricas - esses romances problematizam a noção
de objetividade e transparência da linguagem,
expondo assim as limitações do nosso
sistema discursivo. Ao mesmo
tempo, desenvolvem uma reconstrução crítica
dos registros históricos
tradicionais sem no entanto objetivarem substituí-lo, uma
vez que revelam seus status
de construção que como
tal pode ser indefinidamente desconstruída e reconstruída.
Ao compor esta dialética entre
ficção e história, esses
escritores explicitam seus processos criativos como parte integrante da obra,
em claro contraste com
a “voluntária suspensão
da descrença”que o livro
deveria provocar no leitor,
conforme pregava a estética
do Romantismo, que
teve duradoura influência
neste aspecto específico. Essas noções são
instrumentais para uma melhor
compreensão da obra de
Michele Roberts, particularmente seu romance
The Mistressclass, no qual Charlotte Bronte aparece como personagem
principal.
Em seu livro de ensaios sobre inspiração e escrita,
Roberts trabalha questões como a relação entre autobiografia e imaginação,
o poder do escritor em criar ilusões de verdade, sua visão da ‘verdade’
como algo complexo, escorregadio, proteano; fala-nos também que sua fonte
inspiradora também se encontra no “subversivamente criativo id”
(1998: p.42). Neste livro, como também em sua produção ficcional, Roberts
explora questões de autoridade e alteridade, interpretação e intertextualidade,
pastiche e plagiarismo. Roberts utiliza inúmeros personagens históricos
em seus romances, como por exemplo, Flaubert, George Sand, Mary Wollstonecreaft,
Wordsworth, Maria Madalena, entre outros; enfatiza também seu interesse
na linguagem e na forma como elementos fundamentais em sua obra.
Comentando sobre seu romance The Mistressclass,
ela reconhece seu débito para com Charlotte Bronte: “a narrativa evoca
o estilo dos escritores do século XIX e seus temas: desejo, prazer, culpa
... . O romance é influenciado por uma das primeiras expoentes desta época,
Charlotte Bronte, e a sua busca apaixonada pela realização artística”.
Assim, Roberts dá vida a uma Charlotte ficcional neste romance. The
Mistressclass tem dois enredos que se entrelaçam: um é contemporâneo
e envolve duas irmãs (Vinny e Catherine) que amam o mesmo homem (Adam)
e por isso traem uma a outra; o enredo do século XIX trata basicamente
de uma sequência de cartas enviadas por Charlotte, uma mulher casada que
não consegue esquecer o seu amor proibido: o também casado Constantine.
Para tornar as fronteiras entre fato e ficção ainda mais
confusas e assim desencorajar qualquer tentativa de traçar a fidedignidade
entre esta e a Charlotte histórica, Vinny (ela mesma poeta e professora
de literatura) nos fala sobre a ‘real’ escritora Charlotte Bronte: “às
vezes fico pensando ... o que teria acontecido se Charlotte não tivesse
morrido durante a gravidez. Se o Sr. Heger tivesse de alguma forma voltado
a fazer parte de sua vida. Talvez eles até tivessem tido um caso
amoroso” (1998: 67). O leitor é estimulado a imaginar um enredo
diferente, mais promissor, para essa escritora que parece ter sofrido
tão forte desilusão.
A Charlotte ficcional comenta sobre seu sofrimento e a
transformação dos seus sentimentos em arte, seguindo as lições que ela
aprendeu com o professor Heger; é um conceito fértil expresso admiravelmente,
mesmo que não se aplique à verdadeira Charlotte:
O cerne da mensagem que você expôs para mim várias
vezes é que o sofrimento deve ser agarrado, controlado, triturado, reduzido
a uma poeira fina no calor do fogo. Então, só então, algo poderia ser
feito dele. Quando estivesse seco. Quando estivesse controlado, destruido.
Quando já estivesse transformado em memória, transformado em ouro pelo
poder da alquimia, finalmente transformado em algo suportável, e, por
último, em arte (ROBERTS, 2003: 42)
Para Vinny, escrever é um trabalho de ressurreição;
ao criar uma Charlotte ficcional que escreve cartas para seu mentor, Roberts
dá vida a uma outra Charlotte, não apenas para enriquecer o enredo contemporâneo
de amor e rivalidade entre irmãs, mas também para ficcionalizar uma dimensão
mais complexa, onde o ficcional e o real estão entrelaçados: como deve
sentir-se alguém que não é amado por aquele que ama; e, mais importante
ainda, como transformar este sentimento em ouro, em arte duradoura.
Em sua resenha sobre The Mistressclass, Jenny Newman
explica que as cartas constituem a fantasia mais rica desta Charlotte
ficcional, independentemente de termos em mente as cartas enviadas ao
Sr. Heger pela Charlotte histórica. Neste romance, as cartas são queimadas,
contrariamente ao que aconteceu às cartas verdadeiras, as quais foram
enviadas mas nunca respondidas. Em um determinado ponto do romance,
Charlotte deixa uma ‘cópia’ dela mesma para cuidar de seu marido Arthur
(o mesmo nome do verdadeiro marido de Charlote Bronte) e do pai, em sua
residência em Haworth, uma espécie de “réplica fria e correta como um
defunto” (1998: 266). Entretanto, ela não foge para visitar
o Sr. Heger mas viaja para Nohant, onde diverte-se bastante na companhia
da famosa romancista francesa George Sand, ou Amandine-Aurore-Lucille
Dupin, uma outra fantasiosa desconstrução de fronteiras entre ficção e
realidade desenvolvida por Roberts:
Sand ensina à melancólica Charlotte
la douceur de vivre, e em seu chateau Bronte começa a levar
uma vida de bem estar
sensual em boa companhia, como aquela do Flaubert – provavelmente
inspirado no possível caso
amoroso entre Sand e Flaubert.
Através da magnífica recriação
da vida emocional da verdadeira
Charlotte Bronte, Roberts dá voz aos desejos reprimidos da mulher vitoriana convencional,
como podemos perceber claramente nas próprias palavras de Charlotte:
”um desejo tão
forte de ter asas.
... Estava pela minha consciência de faculdades
não exercitadas ... essas emoções
absurdas e rebeldes eram
apenas momentâneas. Espero não revivê-las pois elas são agudamente dolorosas (www.cercles.com/review/r11/roberts)
Um aspecto importante
do romance é sua dimensão
metanarrativa, desenvolvida através das observações
da professora de literatura (Vinny) e principalmente
das cartas de Charlotte, nas quais esta escritora ficcional discute o que significa ser escritora:
Inventei minha própria máscara apenas quando escrevia
romances. Falar mentiras sancionadas, escrever ficção: só assim eu poderia
voar livremente para longe da agradável Charlotte, a boa filha. Eu poderia
escrever sobre raiva e dor. Escrevi sobre dentes ralando sobre pedras,
sobre escorpiões agarrados na palma da mão. Ensaiei vidas diferentes.
Imaginei ‘eus’ alternativos. Descobri como era sentir-se uma outra pessoa
(2003: 265)
A metanarrativa une organicamente os fios
das narrativas vitoriana e contemporânea no romance de Roberts, além
de evidenciar os interesses
da própria autora, a qual
assim nos fala
sobre a auto-reflexividade em seu trabalho: “o romance diverte-se discutindo
seu próprio processo
de criação” (1998: 54).
Em se livro
The Aesthetics of Freud; a Study in Psychoanalysis and Art, Jack
Spector observa que a
estética psicanalítica
ainda não explicou adequadamente como a forma se desenvolve de sua
origem (segundo Freud)
no caos do inconsciente.
Da mesma forma, as
forças e motivações complexas implicadas na gênese
de um trabalho criativo
não podem ser explicadas
unicamente pela vida
de seu autor. A ficção,
não importa quão rigorosa
a ‘realidade’ que cria,
nos dá uma afirmação de vida contrária à transitoriedade da nossa
própria vida; numa espécie
de desafio em sua
essência, a obra cria
sua ‘realidade’.
Após fazer
várias conexões entre
a vida de Charlotte Bronte e sua ficção, Leyland conclui o seu
livro com as seguintes observações:
Freqüentemente observa-se que
a vida de um poeta
pode ser melhor compreendida pelos
trabalhos que ele nos
deixou. Podemos cometer erros
ao lidar com
circunstâncias de sua vida
exterior e errar também
quanto a cronologia ou
fatos; desta forma,
podemos ser levados
a fazer uma estimativa
falsa de sua personalidade.
Mas se descobrimos a personalidade
que se esconde por trás
de sua obra, se podemos
captar o espírito escondido
que informa seus escritos,
nos capacitamos a seguir
seu coração em
seus afetos profundos,
compreender a tendência
característica de seus
pensamentos, compreender
até mesmo a própria
psicologia de sua alma.
... [Entretanto], não
podemos sempre descobrir
os emaranhados caminhos nos
quais a expressão
natural se disfarça, nem
completamente atravessar o opaco
traje de convenções
ou disfarces através
dos quais ela está sutilmente
revelada (1973: 287).
Não acreditando na onisciência e objetividade do biógrafo,
prefiro concluir este trabalho com os comentários da Charlotte ficcional
sobre a artificialidade desses esforços biográficos em anatomizar a vida
da famosa romancista:
Quem escreveu minha história e descreveu a filha dedicada,
a boa esposa, esforçada auxiliar de ensino, devota frequentadora da igreja?
Quem tentou encaixar-me? Uma ficção, não mais que isto em um certo nível,
embora comovente, embora conveniente algumas vezes. Sim, escondi-me atrás
de uma máscara. Covardemente Charlotte. (2003: 265)
Mas não podemos esquecer que esta também é apenas uma
outra Charlotte fictícia - uma outra construção enganadora na
qual nós podemos escolher acreditar, num jogo derrideano de palavras que
podem sempre ser rearranjadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Penguin Books .
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Freud. Trad.J. Strachey.London: The Hogarth Press
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London: J. M. Dent & Sons, Ltd.
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New York & London: Routledge, (5a.ed.)
. LEYLAND, F. A. 1973.The Bronte family. Manchester:
E.J. Morten
. GÈRIN, W. 1967. Charlotte Bronte.London: Oxford
University Press
. NEWMAN, J. The Mistressclass - Review.
www.cercles.com/review/r11/roberts
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Jorge Zahar
. SPECTOR, J. J. 1972.The aesthetics of Freud. A
study in Psychoanalysis and art. London: The Penguin Press
.WHITE, H. 1983Metahistory. The historical imagination
in nineteenth-century Europe. Baltimore & London: The John Hopkins
University Press, (3rd ed.)
. WILKS, B. The Brontes. 1975. London: The
Hamlyn Publishing Group Ltd,
Nota Biográfica
Cristina Maria Teixeira Stevens é doutora em Literatura Inglesa pela USP; professora no curso de Letras
e Teoria e Crítica
Feminista no Pós Braduação
em Literaturas da Universidade
de Brasília. Organizadora dos livros Quando tio Sam pegar no tamborim: uma visão transcultual do Brasil,
Caminhos e Colheitas: ensino e pesquisa
em inglês no Brasil;
é também tradutora.
[1] Por questões de foco deste trabalho, não debateremos o já consolidado
conceito de ‘realidade’/representação
labrys, études
féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007
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