labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

Metaficção historiográfica e feminismo: olhares sobre Charlotte Bronte

Cristina Maria Teixeira Stevens

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que finge que é dor

A dor que deveras sente

Fernando Pessoa, ‘Auto-Psicografia’

Resumo

            O artigo analisa as diferentes imagens de Charlotte Bronte oferecidas por seus vários biógrafos desde o século XIX. Aborda os fatos biográficos transmutados em ficção na obra daquela autora. E se encerra incluindo a obra de Michelle Robert que ficcionaliza alguns detalhes da biobrafia de Bronte.

 

O presente trabalho objetiva analisar diferentes – ou mesmo contraditórias – imagens da escritora inglesa Charlotte Bronte (1816/55), documentadas nos seguintes livros: The Life of Charlotte Bronte, de Elizabeth Gaskell (1857), The Bronte Family, de Francis A. Leyland (1886), The Infernal World of Branwell Bronte, de Daphne du Maurier (1960), Charlotte Bronte, de Winifred Gerin´s (1967), e The Brontes, de Brian Wilks (1975).

Essas biografias servirão de base para uma breve análise de acontecimentos da vida dessa brilhante escritora, a qual transformou experiências de sua vida  em material para seus romances – especialmente The Professor e Villette. Aprofundamos nossa análise com o romance The Mistressclass (2003), da escritora inglesa contemporânea Michele Roberts, que ficcionaliza Charlotte Bronte e seu suposto romance com seu tutor em Bruxelas.

Nosso interesse é visibilizar o trabalho dessas escritoras, e analisar suas produções a partir da perspectiva feminista e à luz do conceito de metaficção historiográfica. Note-se que os comentários de Bronte aqui citados não estão em um único livro, mas aparecem em sua correspondência ou são citados pelos biógrafos. As traduções dos textos de Bronte são de minha autoria.

Utilizaremos alguns insights da Psicanálise, mas não nos limitaremos à noção freudiana de arte como sublimação e simbolização de impulsos reprimidos no inconsciente. Sabemos que a relação entre a vida de um autor e sua obra nunca poderia ser uma relação simples de causa e efeito; afinal, um romance não é um livro de memórias ou um diário, nem pode servir de fonte documental para uma biografia. Ao relacionar a vida do autor e sua obra, me vêm à mente as palavras de Pontalis sobre o papel do inconsciente na criação estética; para  ele, em literatura, o autormente verdadeiramente”(1991: 118).

Neste trabalho, tentaremos identificar como as diferentes motivações que norteiam a pesquisa desses biógrafos de Charlotte Bronte os levarão à criação de imagens bastante diferentes desta romancista e sua obra. Ao tentarmos compreender o admirável processo pelo qual ela transforma experiências de sua vida em arte, buscamos assimilar sua própria argumentação sobre esse processo: “permitimos que a realidade nos sugira, nunca que nos comande”(in GASKELL,1936:285). Além disto, nossa análise focalizará a recriação dessas mesmas experiências em uma  ‘verdade’ estética, na Charlotte ficcional de Roberts

Muito se tem escrito sobre as estreitas ligações entre os mundos ‘real’[1] e ficcional de Charlotte Bronte, apesar das insistentes negativas da própria autora: “Acredito que um trabalho de ficção deve ser um trabalho de criação e que o real deveria ser introduzido parcimoniosamente em páginas dedicadas ao ideal” (in LEYLAND, 1973:364). Além do bastante explorado e controverso debate sobre a fidelidade às experiências vividas por  Charlotte durante sua permanência no internato/escola em Cowan Bridge e transmutadas para o romance Jane Eyre, muitos críticos também explicam que em Shirley a autora se baseou fortemente em fatos que ocorreram na época de seu pai - as chamadas revoltas Luddite , isto é, revoltas dos trabalhadores contra efeitos da Revolução industrial e que são denominadas pelo nome do líder, Ned Ludd. Mas ela nega esta associação: “Vocês não devem supor que os personagens de Shirley foram criados como retratos fiéis. Isto não seria adequado às regras da arte nem aos meus próprios sentimentos”(in LEYLAND, 1973:285). Em contraste com as posições explícitas da autora, seu biógrafo Brian Wilks comenta sobre essas associações, que quase transformam a ficção de Charlotte Bronte num registro puramente  histórico:

Nosso conhecimento desses conflitos tem duas fontes: podemos encontrá-los nos livros de história mas também eles são relatados detalhadamente em Shirley, de Charlotte Bronte. ... Quando ainda bastante jovem, Charlotte frequentou uma escola localizada bem perto da fábrica onde os grevistas atacaram. Com o ímpeto da história que seu pai havia lhe contado quando ela era criança e com seu próprio conhecimento do lugar e dos acontecimentos, ela tinha vasto material para a sua imaginação trabalhar. ... Shirley continha algumas das mais facilmente identificáveis pessoas e lugares de todos os trabalhos de Charlotte. ... Uma vez publicado, Shirley provocou grande prazer na medida que os habitantes do lugar procuravam por eles mesmos entre os personagens do romance, e muitas vezes descobriam que  estavam presentes no livro em cópia fiel (130)

Em seu livro sobre a família Bronte,  Wilks escreve:

Assim como muitos autores, Charlotte se baseou fortemente em suas experiências de vida, mas talvez de uma maneira incomum ela não se preocupou muito em esconder seus modelos; esta característica de sua escrita tem deliciado muitos turistas ou detetives literários desde o primeiro dia da publicação de seus romances até o presente. Seus amigos e suas residências, seus parentes, são tecidos na trama ficcional da autora. Ela recriou pessoas tão bem e evocou lugares tão acuradamente que se tornou um passatempo a busca de identificação de vizinhos e de suas casas na obra mais recente da Sra. Currer Bell [pseudônimo de Bronte] (1975: 62).

A partir desses (para mim um tanto problemáticos) comentários, voltamo-nos para dois romances de Charlotte Bronte: Villette and The Professor; segundo os críticos, ambos são profundamente autobiográficos. The Professor foi escrito em 1846, dois anos após o retorno de Charlotte de Bruxelas, quando ela sentia-se  “doente com uma infelicidade pessoal para a qual não havia cura [e] ... com uma doença no coração que não poderia ser confessada”, como é dogmaticamente afirmado na Introdução do romance. Charlotte morou em Bruxelas  por menos de dois anos, como aluna na escola do Monsieur Heger, por quem apaixonou-se sem esperança pois ele era casado: “o dinâmico professor cujo talento no ensino havia ampliado a visão de Charlotte a amadurecido seu intelecto, e cuja imagem a perseguia, destruindo sua paz e tranqüilidade pelos próximos dois anos”, (p. V).

Esta experiência dolorosa é transformada em um romance que tem um final construído de forma comoventemente feliz; entretanto, essas prováveis conexões com a experiência pessoal da autora não constituem o elemento mais importante do romance. Como também em Villete, a bonita história de amor entre a heroína e seu professor pode ser lida como um bildungsroman de admiráveis personagens femininas com dimensão poética, desenvolvimento orgânico de uma narrativa cativante, e profundidade no tratamento das personagens que garantem a qualidade estética do livro.

.Apesar de concordar com a posição de que o conhecimento da vida de um(a) autor(a) não é relevante para  melhor compreensão e avaliação de sua obra, aventurei-me por curiosidade nessas biografias produzidas sobre Charlotte Bronte, tentando encontrar evidências de acontecimentos e experiências que, segundo esses biógrafos, iluminariam a produção ficcional da autora. Entretanto, foi curioso perceber que esses acontecimentos objetivos recebem tratamento bem diferenciado entre esses estudiosos, em função da perspectiva a partir da qual eles são mediados – a de uma amiga bastante próxima, ela própria uma romancista (Elizabeth Gaskell), um conhecimento indireto de alguém que queria na verdade desmanchar a imagem negativa que o irmão da autora - Branwell Bronte – havia sempre recebido de amigos, parentes e biógrafos (Leyland), um tratamento  ficcional deste mesmo irmão de personalidade intrigante (du Maurier), e uma reconstrução mais objetiva da família Bronte (Wilks).  O trecho abaixo foi extraído da Introdução de uma reedição do livro Life of Charlotte Bronte, de Elizabeth Gaskell:

Ela estava equivocada sobre o possível caso de amor de Branwell. ... Ela estava equivocada sobre inúmeros pontos que eram irrelevantes para o leitor e diziam respeito apenas às pessoas envolvidas. O que é bastante importante para nós é que ela estava correta sobre Charlotte Bronte. Ela estava correta em um grau ainda não atingido com igual segurança por nenhum biógrafo ou crítico da família Bronte. ... Muitos opinaram, fizeram inferências, conjecturas. A Sra. Gaskell tinha conhecimento direto. ... Se a Sra..Gaskell por acaso sucumbiu à tentação de todo romancista – o efeito a ser produzido, o tema para ser sustentado ao longo da narrativa, o assunto para ser explorado – isto não se deu às custas da verdade. De fato, foi a verdade que mais a limitou; a verdade e seu afeto por Charlotte Bronte, sua intimidade com tudo que dizia respeito à sua amiga, sua proximidade, durante a preparação do livro, com os eventos nele narrados. (1936: IX-XII).

Não há argumentação convincente que leve a desacreditar na seriedade do trabalho de Elizabeth Gaskell em sua busca por “uma compreensão correta da vida de minha querida amiga”, como ela própria escreveu. (1936: 6). Ela também humildemente reconhece suas limitações, que são as mesmas de qualquer biógrafo, mesmo aqueles com relações tão próximas com a pessoa biografada, como foi este caso: “A família sobre a qual eu pretendo escrever fincou suas raízes muito mais profundamente do que eu posso penetrar. Não posso entendê-la bem, muito menos julgá-la” (1936: 33).

Elizabeth Gaskell decide ignorar o papel vital do Sr. Heger na vida de Charlotte. Ao trabalhar as emoções e experiências de Charlotte durante sua vivência na escola de Bruxelas dirigida por ele, Gaskell atribui a solidão da jovem Charlotte no pensionnat - a sua depressão e imensas saudades de casa, seu distanciamento da Sra. Heger - apenas a causas religiosas: ao fato de que ela era uma jovem protestante convivendo com muitas católicas devotas. Gaskell de alguma forma tenta desculpar-se por esse silenciamento: “Resolvi escrever a verdade, … sem esconder nada; entretanto, algumas coisas, pela sua própria natureza não poderiam ser relatadas tão completamente como outras” (1936: 370).

Como uma típica mulher formada na ideologia vitoriana, Gaskell suprimiu a ‘verdadeira’ causa da infelicidade de Charlotte. Além da oposição que ela certamente enfrentaria por parte do esposo e do pai de Charlotte, ela também enfrentaria as limitações impostas pelos editores de seu trabalho biográfico, caso revelasse detalhes íntimos contidos nas cartas de Charlotte para o Sr. Heger. Ela também estava ansiosa para proteger sua amiga, cuja boa imagem de escritora poderia ser prejudicada caso fosse descoberta sua paixão por um homem casado. Brian Wilks nos explica:

Por dois anos  Charlotte escondeu sua dor, ao mesmo tempo em que derramava seu sofrimento em cartas para o homem que possuía seus pensamentos, cartas que eram tão explícitas que a Sra. Gaskell considerou impossível inclui-las na biografia que ela havia escrito sobre Charlotte; foi deixado para biógrafos posteriores demonstrar a verdadeira causa da deplorável condição emocional de Charlotte e a posição embaraçosa da Sra. Heger com relação a sua governanta inglesa (1975: 62).

Alguns críticos comentam sobre o fascínio dos leitores com a biografia preparada pela Sra. Gaskell. Entretanto, Francis A. Leyland não compartilhou desta ampla aprovação. Ele escreve sobre isto: “Há bastante tempo tenho sentido que a história da família Bronte está incompleta e, em alguns aspectos, não bem compreendida. ... É fonte de um sincero desconforto  de minha parte ser compelido a discordar daquela escritora [Sra. Gaskell] em muitos pontos” (1973: V,VIII). O livro de Leyland tinha como objetivo trazer à luz a – segundo ele – vida bastante distorcida de Branwell Bronte, o irmão de Charlotte. Para fazer isto, Leyland deliberadamente ataca o que ele considera “erros básicos da Sra. Gaskell ” (1973:297), como podemos ler na introdução do livro::

As lendas cresciam, acompanhadas de algumas deliberadas distorções de detalhes de forma a adaptá-los a algum ponto de vista específico. ... A Sra. Gaskell ... escreveu de forma bastante caluniosa sobre Branwell como se ele fosse um alcoólatra e viciado em ópio, o que, na visão de Leyland, evidenciava falta de controle em alguns registros da Sra. Gaskell sobre Branwell e seu pai. (1973: V-VI-grifo meu).

A fim de mostrar que a Sra. Gaskell “estava completamente enganada na sua versão da história” (sobre provável caso de amor de Branwell com uma senhora casada), Leyland apresenta sua própria versão, cuja veracidade ele tenta reforçar através de argumentos do tipo “não há razão para acreditar...”, ou “podemos apenas inferir quanto à causa original...”. Ele então conclui com bastante confiança que “a pura verdade sobre a conduta de Branwell é a seguinte:...” (67)

É interessante observar que, embora criticando a Sra. Gaskell nos esforços dele para chegar à, ‘verdadesobre Branwell – a quem ele conhecia pessoalmente pois seu irmão era amigo do Branwell, Leyland também distorce muitos detalhes para adaptá-los à sua “teoria particular”, ou seja, seu objetivo de construir uma imagem mais agradável do Branwell como uma espécie de herói trágico, Byroniano, através de uma série de especulações um tanto românticas e condescendentes. Neste processo, ele não apenas tenta reforçar o argumento bastante frágil de que Branwell foi o verdadeiro autor de Wuthering Heights, romance reconhecidamente escrito por sua irmã, Emily Bronte. Ele interpreta o sofrimento fraterno de Charlotte causado pelo comportamento irresponsável de seu irmão de forma bastante cruel: “As críticas da irmã dele foram provavelmente tão pouco sábias quanto apaixonadas, desmesuradas e, aparentemente sem sentimento” (1973: 54).

Acredito que a interpretação de Leyland sobre a atitude de Charlotte em relação à condição lastimável do seu irmão foi injusta. Ela estava ansiosa com o sofrimento de seu pai, provocado pelo comportamento desregrado de Branwell, e profundamente consciente da verdadeira situação dele. Como irmã mais velha e bastante sensata, ela sabia precisamente das sérias limitações de sua família, cuja situação financeira frágil havia sido bastante agravada com o comportamento decepcionante de seu irmão, em cuja educação e formação artístico-profissional o pai gastou o pouco dinheiro da família, o que resultou apenas em desilusão das esperanças que todos haviam depositado no futuro promissor do único filho homem. Além desses sérios problemas, ela também atravessava em silêncio sua crise pessoal: a sua separação do seu tutor, e principalmente a dor aguda que lhe causava as injustas limitações impostas à mulher na sociedade vitoriana. Sendo uma amiga tão próxima de Charlotte nos últimos cindo anos da vida dela, a Sra. Gaskell tinha um conhecimento mais íntimo desses problemas e tenta registrá-los em sua biografia.

Para Leyland, Lucy Snowe  é o retrato mais verdadeiro de Charlotte, cujas memórias tristes de sua vida em Bruxelas foram registradas em Villete “arrancadas dela como sangue de seu coração, em meio a paroxismos de angústia criativa”(1973: 2), como ele descreve hiperbolicamente. Para ele, muito da raiva que Charlotte sentiu pelas limitações impostas à realização de seu sonho amoroso foram também recriadas em The Professor e Villete. Ele faz uma identificação direta entre as emoções de Charlotte e sua criação ficcional: “Em The Professor, temos uma descrição dos sentimentos de William Crimsworth quando ele chega a Bélgica que são indubitavelmente os mesmos sentimentos de Charlotte: “agarrei a liberdade nos meus braços pela primeira vez e a influência de seu sorriso e abraço trouxe-me uma nova vida, assim  como o sol e o vento oeste””(1973: 7). ). Ao tentar ler o romance como um papel carbono da vida real, Leyland negligencia o verdadeiro valor da obra, cujo inegável qualidade estética nos dá a epifania de sua própria verdade.

Leyland não está só, em seus comentários dogmáticos sobre os sentimentos de Charlotte para como o Sr. Heger: “Charlotte  viveu uma experiência em seu coração que tornou-se decisiva em sua vida e transformou-a no que ela passou a ser” (1973: 41). A pesquisadora/romancista Daphne du Maurier também reconhece a importância da biografia da Sra Gaskell mas o foco de sua pesquisa é Branwell;  ela nos explica, numa fórmula que nos parece um tanto simplista, a fonte do talento literário de Charlotte:

A Sra.Gaskell pintou um quadro tão vivido sobre a vida na paróquia em Haworth [onde Bronte morava]... que qualquer biografia sobre a família Bronte escrita desde então baseou-se neste trabalho.  ... Entretanto,  ela não compreendeu que nenhum desses romances teria sido escrito se suas criadoras [Charlotte, Anne, Emily Bronte] não tivessem vivido durante a infância no mundo de fantasia que havia sido em grande medida inspirado e dirigido pelo único irmão que elas tinham, Branwell Bronte (1974: 13).

Du Maurier produziu uma biografia ficcionalizada sobre o “mundo infernal” de seu “herói trágico” Branwell Bronte, o que, de acordo com alguns críticos, refletia o gosto da autora pelo macabro romântico. Ela cria para seu ’personagem’ sentimentos e situações que não têm base em documentos ou outras fontes objetivas; exemplo disto é a confrontação freudiana de Branwell com suas irmãs quando eram crianças: 

Quando aquele menino mais novo entre todas as irmãs, encontra-se ali, glorioso em sua nudez, os olhos dele examinavam as irmãs, os corpos delas macios e brancos enquanto ele possuía não apenas o cabelo vermelho que herdara de seu pai, mas também algo mais,  ele menosprezou-as por serem incompletas (1974: 27).

Ela também explora a relação supostamente amorosa entre Charlotte e seu tutor, desenvolvendo sua argumentação de forma bastante imaginativa (apesar de tratar-se de um trabalho biográfico). O texto abaixo parece um claro eco – talvez de forma inversa – do conceito freudiano de arte como neurose, da arte como uma estratégia de transformação das fantasias do escritor em um novo tipo de realidade através da expressão artística:

Não importa o quanto ela tentou esconder isto de sua família e dela própria; sua paixão pelo Sr Heger estava se transformando de uma relação normal entre professor/aluno em uma obsessão. ... Todas as estórias que ela havia escrito antes de ir morar em Bruxelas tendiam para aquela direção – a moça mais jovem, o homem mais velho, e  casado. Uma vez concebido na imaginação e colocado no papel, as estórias tinham que funcionar na realidade e o Sr. Heger, seu superior, era o gancho no qual ela penduraria sua idéia pré-concebida.

Se não tivesse sido o Sr. Heger, teria sido alguém semelhante; a jovem que havia vivido uma fantasia com o Duque de Zamorna [herói que das histórias que os irmãos Bronte criaram ainda crianças] desde os tempos de infância, era forçada por uma necessidade emocional de trazê-lo para a realidade. ... Havia chegado o momento para a fusão entre imaginação e realidade (1974: 200).

Apesar da natureza especulativa que sentimos em seu livro (no qual, queríamos enfatizar, aparecem muitos condicionais ‘se’), du Maurier também utiliza como base para suas interpretações as cartas que Charlotte escrevia para o Sr. Heger, as quais eram interpretadas como prova irrefutável do amor que Charlotte sentia pelo seu professor:

Senhor, o pobre não precisa de muito para sustentá-lo – eles pedem apenas migalhas que caem da mesa do rico. Mas se lhes recusam até as migalhas, eles morrem de fome. Eu também não preciso receber muito afeto daqueles que amo. Não saberia o que fazer com uma amizade inteira e completa – não estou acostumada a isto. Mas o senhor mostrou-me no passado um pouco de interesse por mim, quando era sua aluna em Bruxelas, e agarro-me à manutenção daquele pequeno interesse – agarro-me a isto como tento agarrar-me à vida” (1974: 217) .

O historiador inglês Brian Wilks reconhece que “a procura por fatos é uma tarefa complexa e difícil ... devido a disposição dos detalhes que permeiam praticamente todo o material relativo a família Bronte”(1975: 141). Entretanto, Wilks também aproxima fato e ficção na tentativa de explicar os sentimentos de  Charlotte:

Seu amor pelo professor Heger... iria transformar-se na experiência fundamental que se esconde em suas melhores criações. ... O Sr. Heger [era] o único homem que a havia sensibilizado de uma forma remotamente parecida com os heróis de seus primeiros escritos. ... Muito da raiva dela foi recriada em The Professor e Villette ...  onde seu conflito e sofrimento são vistos ao longo de descrições facilmente identificáveis da escola onde ela vivenciou tanta felicidade misturada a tanta amargura (1975: 94-6)

Na Introdução do romance The Professor – o qual Margaret Lane interpreta como tendo “um foco duplo, ao mesmo tempo um romance e um sonho não realizado” (p.VIII) -  Lane comenta o que para ela representa uma tentativa fracassada da romancista em disfarçar a sua experiência pessoal nesta recriação ficcional da mesma.

A imaginação, que era a sua genialidade, era também sua tentação. No primeiro romance longo de seus anos mais maduros, ela estava determinada a controlar esta faculdade tanto quanto possível ... . Foi neste estado de espírito sóbrio e com a sua experiência de Bruxelas ainda bem pesada em sua mente que ela escreveu The Professor. ... Desta forma, ela pensou, sua experiência estaria bem escondida, o material modificado, os personagens colocados acima de qualquer suspeita. Que precaução inútil!... O livro palpita e ecoa sua voz. Ela está em William Crimsworth, até mesmo suas feições são tomadas por empréstimo de seu espelho: “Via uma face magra e irregular... mas não jovem”... . Nos relacionamentos de William Crimsworth, o professor, com Francis Henri, a aluna mais pobre e talentosa que ele tinha, estão todos os sonhos que haviam confortado a sua infelicidade (p.VI)

Tanto du Maurier quanto Wilks discutem as cartas que Charlotte havia enviado para o Sr. Heger.  Wilks explica que Constantine Heger recusou-se a responder as cartas de Charlotte depois que ela saiu de Bruxelas para retornar à Inglaterra e isto causou nela um sofrimento insuportável; ela então continua a escrever  suplicantemente::

Tudo que sei é que não consigo, não irei me conformar em perder a amizade de meu professor. Prefiro sofrer a dor física mais forte de que ter meu coração dilacerado por violentos arrependimentos. Se meu professor desiste de sua amizade por mim completamente, não terei mais esperanças; se ele me der um pouco – apenas um pouco – ficarei satisfeita, feliz; terei uma razão para continuar vivendo, para trabalhar (in WILKS, 1975: 95)

 Wilks explica que, quando Charlotte deixou Bruxelas, eles haviam concordado em se corresponder, mas ela se permitiu escrever sobre seus sentimentos com tanta franqueza que isto provocou a censura do Sr. Heger; aparentemente, ele então não apenas mostrou as cartas para sua esposa mas também  parou de respondê-las. No romance The Professor,  Crimsworth casa com sua aluna Frances Henri e ambos deixam Bruxelas de volta à Inglaterra, onde  vivem uma vida calma e feliz casados; assim, o romance torna-se “uma visão suave de algo que a vida havia lhe recusado”(p.VIII).

É bastante significativo o fato de termos uma autora que cria um romance relacionado a uma experiência importante em sua vida, mas narrado a partir do ponto de vista masculino, que o personagem principal/narrador é o professor e não a sua aluna/futura esposa. Que inúmeras e complexas leituras esta construção narrativa poderia provocar, além da simples associação entre experiência vivida e ficcionalizada?

Coletando dados para seu livro Charlotte Bronte, Winifred Gerin também aprofunda esta associação entre a vida de Charlotte e seus romances; ela mostra como a viajem de Charlotte de volta a Bruxelas foi elaborada em Villete, onde está  registrada também a visita de Charlotte a Londres a caminho de Bruxelas, as impressões de sua primeira experiência com a arte sofisticada das galerias de arte que ela visitou em Londres (e, posteriormente, em Bruxelas),  sua travessia para a Bélgica, o itinerário de seus passeios de domingo, a descrição das instalações do pensionato (confirmada, segundo Gerin, pela própria família Heger).

Reconhecendo a precisão das observações de Charlotte, Gerin conclui que os relatos da viajem da autora para Bruxelas e as movimentações da família Bronte podem ser facilmente identificadas através das óbvias referências de Charlotte em The Professor  e Villette (GERIN, 1967:185/86). Embora reconheça que Charlotte era extremamente reticente em admitir a existência de personagens da vida real como originais para seus personagens, Gerin afirma com muita confiança que “Madame Beck nasceu naquele janeiro [1847], do sofrimento causado pelo silêncio do Sr. Heger”(1967: 277). Ela explica a motivação de sua pesquisa na comparação da vida de Charlotte com sua ficção, numa espécie de ‘anatomia’ de seu processo criativo:

A importância de traçar suas verdadeiras experiências, em contraste com as experiências ficcionais integradas aos seus romances, está na influência dessas experiências no poder criativo de Charlotte. A própria intensidade de seus sentimentos durante aquele período conseguiu aguçar a já excepcional capacidade de observação da autora. As suas percepções, como se sob influência de uma droga, foram aumentadas em sua capacidade pela luta que ela travava em sua alma. O que ela viu e ouviu durante aqueles meses de agudo sofrimento mental e emocional deixaram impressões indeléveis, que deu colorido à textura de sua mente de forma tão profunda que supriu, em retrospecto, não apenas conteúdo emocional para dois romances inteiros, mas também os mínimos detalhes nos quais os dois enredos são articulados. Villette e The Professor representam a metade de sua produção ficcional publicada mas os dois anos de experiência dos quais esses romances são o produto foram de longe os mais cheios e ricos de sua vida (GERIN, 1967:239).

Não objetivando aprofundar detalhes deste debate sobre a influência da vida de um autor para sua criação, gostaria de comentar apenas que, quando li esses romances sabia muito pouco sobre a vida de Charlotte, nem estava interessada em comparar cenas ou fazer inferências através de minha leitura sobre detalhes da vida e dos dilemas pessoais da autora. Mais do que uma descrição vívida de experiências e impressões, a riqueza dos romances está no seu admirável poder narrativo, construção orgânica de personagens complexas, atmosfera, enredo; não precisamos de originais óbvios para reconhecer a transmutação dos mesmos no mundo ficcional admiravelmente construído por Charlotte.

Sabemos que o biógrafo nem sempre dispõe de informações adequadas e necessárias à reconstituição da vida do seu biografado; provavelmente ele irá preencher alguns desses vácuos com suas próprias inferências e interpretações das evidências e dados disponíveis, criando assim a ilusão de organicidade para seu trabalho. De certa forma, este processo pode ser considerado uma ficcionalização do seu material supostamente objetivo – ele cria aproximações metafóricas, desenvolve conexões um tanto forçadas, evitando dessa forma o que poderia parecer um trabalho incompleto e fragmentado; assim vejo o trabalho desenvolvido pelos biógrafos de Charlotte Bronte brevemente exemplificado acima. Sem querer abrir uma outra vertente de análise em meu trabalho, gostaria apenas de enfatizar o surpreendente esforço desses biógrafos em esconder suas subjetividades, o que é uma mera ilusão, como já demonstrado em inúmeros estudos sobre a epistemologia feminista, e tantas outras contribuições teóricas do pós modernismo.

Sem querer detalhar-me no complexo e rico debate sobre a função mimética do romance, gostaria de introduzir nessa argumentação a contribuição do historiador americano Hayden White e da pesquisadora canadense Linda Hutcheon, os quais vêem a história e a literatura como discursos relacionados. Seus estudos baseiam-se na consciência de que tanto a história como a ficção são discursos e que, portanto, não há uma garantia firme de verdade; eles enfatizam a provisionalidade e indeterminação das construções humanas, principalmente as construções discursivas que constituem a natureza intrínseca da história e da literatura. White enfatiza a qualidade inevitavelmente narrativa das reconstruções historiográficas e expressa sua dúvida sobre a existência de uma consciência histórica específica; ele aprofunda suas suspeitas sobre o trabalho historiográfico a ponto de algumas vezes não fazer distinção entre o historiador e o romancista:

Trato o trabalho histórico como ele manifestamente é: uma estrutura verbal que tem a forma de uma prosa narrativa. Histórias (e filosóficas da história também) combinam uma certa quantidade de ‘dados’, conceitos teóricos paraexplicaresses dados, e uma estrutura narrativa para sua apresentação como um ícone de um conjunto de eventos que ocorreram em tempos passados. Mantenho ainda que eles contêm um conteúdo estrutural profundo que é genericamente poético e especificamente lingüístico em sua natureza e  serve como um paradigma aceito pre-criticamente sobre o que a explicação distintamente histórica deveria ser (1983: 9)

Em seu livro sobre pós-modernismo, Hutcheon utiliza o termo metaficção historiográfica, o qual ela define como

romances que são intensamente auto-reflexivos e ao mesmo tempo paradoxalmente também apropriam-se de eventos e personagens históricos. ... A metaficção historiográfica faz indagações epistemológicas e ontológicas. Como conhecemos o passado (ou o presente)? Qual o status ontológico do passado? De seus documentos? De nossas narrativas?(1992: 50)”.

 Hutcheon identifica um crescente número de escritores contemporâneos que vêm utilizando material histórico em suas produções ficcionais, objetivando expor e debater a impossibilidade de captar o real apenas através de sua representação discursiva. Na atmosfera atual das formulações teóricas do pós-modernismo - as contribuições do desconstrucionismo derrideano, da polifonia bakhtiniana, da dimensão ideológica da linguagem bem como de sua opacidade, como nos expõem respectivamente Foucault e Lacan,  entre tantas outras contribuições teóricas - esses romances problematizam a noção de objetividade e transparência da linguagem, expondo assim as limitações do nosso sistema discursivo. Ao mesmo tempo, desenvolvem uma reconstrução crítica dos registros históricos tradicionais sem no entanto objetivarem substituí-lo, uma vez que revelam seus status de construção que como tal pode ser indefinidamente desconstruída e reconstruída.

Ao compor esta dialética entre ficção e história, esses escritores explicitam seus processos criativos como parte integrante da obra, em claro contraste com a “voluntária suspensão da descrença”que o livro deveria provocar no leitor, conforme pregava a estética do Romantismo, que teve duradoura influência neste aspecto específico. Essas noções são instrumentais para uma melhor compreensão da obra de Michele Roberts, particularmente seu romance The Mistressclass, no qual Charlotte Bronte aparece como personagem principal.

 Em seu livro de ensaios sobre inspiração e escrita, Roberts trabalha questões como a relação entre autobiografia e imaginação, o poder do escritor em criar ilusões de verdade, sua visão da ‘verdade’ como algo complexo, escorregadio, proteano; fala-nos também que sua fonte inspiradora também se encontra no “subversivamente criativo id” (1998: p.42). Neste livro, como também em sua produção ficcional, Roberts explora questões de autoridade e alteridade, interpretação e intertextualidade, pastiche e plagiarismo. Roberts utiliza inúmeros personagens históricos em seus romances, como por exemplo, Flaubert, George Sand, Mary Wollstonecreaft, Wordsworth, Maria Madalena, entre outros; enfatiza também seu interesse na linguagem e na forma como elementos fundamentais em sua obra.

Comentando sobre seu romance The Mistressclass, ela reconhece seu débito para com Charlotte Bronte: “a narrativa evoca o estilo dos escritores do século XIX e seus temas: desejo, prazer, culpa ... . O romance é influenciado por uma das primeiras expoentes desta época, Charlotte Bronte, e a sua busca apaixonada pela realização artística”. Assim, Roberts dá vida a uma Charlotte ficcional neste romance. The Mistressclass tem dois enredos que se entrelaçam: um é contemporâneo e envolve duas irmãs (Vinny e Catherine) que amam o mesmo homem (Adam) e por isso traem uma a outra; o enredo do século XIX trata basicamente de uma sequência de cartas enviadas por Charlotte, uma mulher casada que não consegue esquecer o seu amor proibido: o também casado Constantine.

Para tornar as fronteiras entre fato e ficção ainda mais confusas e assim desencorajar qualquer tentativa de traçar a fidedignidade entre esta e a Charlotte histórica, Vinny (ela mesma  poeta e professora de literatura) nos fala sobre a ‘real’ escritora Charlotte Bronte: “às vezes fico pensando ... o que teria acontecido se Charlotte não tivesse morrido durante a gravidez. Se o Sr. Heger tivesse de alguma forma voltado a fazer parte de sua vida. Talvez eles até  tivessem tido um caso amoroso” (1998: 67). O leitor é estimulado a  imaginar um enredo diferente, mais promissor, para essa escritora que parece ter sofrido tão forte desilusão.

A Charlotte ficcional comenta sobre seu sofrimento e a transformação dos seus sentimentos em arte, seguindo as lições que ela aprendeu com o professor Heger; é um conceito fértil expresso admiravelmente, mesmo que não se aplique à verdadeira Charlotte:

 O cerne da mensagem que você expôs para mim várias vezes é que o sofrimento deve ser agarrado, controlado, triturado, reduzido a uma poeira fina no calor do fogo. Então, só então, algo poderia ser feito dele. Quando estivesse seco. Quando estivesse controlado, destruido. Quando já estivesse transformado em memória, transformado em ouro pelo poder da alquimia, finalmente transformado em algo suportável, e, por último, em arte (ROBERTS, 2003: 42)

Para Vinny,  escrever é um trabalho de ressurreição; ao criar uma Charlotte ficcional que escreve cartas para seu mentor, Roberts dá vida a uma outra Charlotte, não apenas para enriquecer o enredo contemporâneo de amor e rivalidade entre irmãs, mas também para ficcionalizar uma dimensão mais complexa, onde o ficcional e o real estão entrelaçados: como deve sentir-se alguém que não é amado por aquele que ama; e, mais importante ainda, como transformar este sentimento em ouro, em arte duradoura.

Em sua resenha sobre The Mistressclass, Jenny Newman explica que as cartas constituem a fantasia mais rica desta Charlotte ficcional, independentemente de termos em mente as cartas enviadas ao Sr. Heger pela Charlotte histórica. Neste romance, as cartas são queimadas, contrariamente ao que aconteceu às cartas verdadeiras, as quais foram enviadas mas  nunca respondidas. Em um determinado ponto do romance, Charlotte deixa uma ‘cópia’ dela mesma para cuidar de seu marido Arthur (o mesmo nome do verdadeiro marido de Charlote Bronte) e do pai, em sua residência em Haworth, uma espécie de “réplica fria e correta como um defunto” (1998: 266).  Entretanto, ela não foge  para visitar o Sr. Heger mas viaja para Nohant, onde diverte-se bastante na companhia da famosa romancista francesa George Sand, ou Amandine-Aurore-Lucille Dupin, uma outra fantasiosa desconstrução de fronteiras entre ficção e realidade desenvolvida por Roberts:

Sand ensina à melancólica Charlotte la douceur de vivre, e em seu chateau Bronte começa a levar uma vida de bem estar sensual em boa companhia, como aquela do Flaubert – provavelmente inspirado no possível caso amoroso entre Sand e Flaubert. Através da magnífica recriação da vida emocional da verdadeira Charlotte Bronte, Roberts dá voz aos desejos reprimidos da mulher vitoriana convencional, como podemos perceber claramente nas próprias palavras de Charlotte: ”um desejo tão forte de ter asas. ... Estava  pela minha consciência de faculdades não exercitadas ... essas emoções absurdas e rebeldes eram apenas momentâneas. Espero não revivê-las pois elas são agudamente dolorosas (www.cercles.com/review/r11/roberts)

Um aspecto importante do romance é sua dimensão metanarrativa, desenvolvida através das observações da professora de literatura (Vinny) e principalmente das cartas de Charlotte, nas quais esta escritora ficcional discute o que significa ser escritora:

Inventei minha própria máscara apenas quando escrevia romances. Falar mentiras sancionadas, escrever ficção: só assim eu poderia voar livremente para longe da agradável Charlotte, a boa filha. Eu poderia escrever sobre raiva e dor. Escrevi sobre dentes ralando sobre pedras, sobre escorpiões agarrados na palma da mão. Ensaiei vidas diferentes. Imaginei ‘eus’ alternativos. Descobri como era sentir-se uma outra pessoa (2003: 265)

A metanarrativa une organicamente os fios das narrativas vitoriana e contemporânea no romance de Roberts, além de evidenciar os interesses da própria autora, a qual assim nos fala sobre a auto-reflexividade em seu trabalho: “o romance diverte-se discutindo seu próprio processo de criação” (1998: 54).

Em se livro The Aesthetics of Freud; a Study in Psychoanalysis and Art, Jack Spector observa que a estética psicanalítica ainda não explicou adequadamente como a forma se desenvolve de sua origem (segundo Freud) no caos do inconsciente. Da mesma forma, as forças e motivações complexas implicadas na gênese de um trabalho criativo não podem ser explicadas unicamente pela vida de seu autor. A ficção, não importa quão rigorosa a ‘realidadeque cria, nos dá uma afirmação de vida contrária à transitoriedade da nossa própria vida; numa espécie de desafio em sua essência, a obra cria sua ‘realidade’.

Após fazer várias conexões entre a vida de Charlotte Bronte e sua ficção, Leyland conclui o seu livro com as seguintes observações:

Freqüentemente observa-se que a vida de um poeta pode ser melhor compreendida  pelos trabalhos que ele nos deixou. Podemos cometer erros ao lidar com circunstâncias de sua vida exterior e errar também quanto a cronologia ou fatos; desta forma, podemos ser levados a fazer uma estimativa falsa de sua personalidade. Mas se descobrimos a personalidade que se esconde por trás de sua obra, se podemos captar o espírito escondido que informa seus escritos, nos capacitamos a seguir seu coração em seus afetos profundos, compreender a tendência característica de seus pensamentos, compreender até mesmo a própria psicologia de sua alma. ... [Entretanto], não podemos sempre descobrir os  emaranhados caminhos nos quais a expressão natural se disfarça, nem completamente atravessar o opaco traje de convenções ou disfarces através dos quais ela está sutilmente revelada  (1973: 287).

Não acreditando na onisciência e objetividade do biógrafo, prefiro concluir este trabalho com os comentários da Charlotte ficcional sobre a artificialidade desses esforços biográficos em anatomizar a vida da famosa romancista:

Quem escreveu minha história e descreveu a filha dedicada, a boa esposa, esforçada auxiliar de ensino, devota frequentadora da igreja? Quem tentou encaixar-me? Uma ficção, não mais que isto em um certo nível, embora comovente, embora conveniente algumas vezes. Sim, escondi-me atrás de uma máscara. Covardemente Charlotte. (2003: 265)

Mas não podemos esquecer que esta também é apenas uma outra Charlotte fictícia - uma outra construção enganadora na qual nós podemos escolher acreditar, num jogo derrideano de palavras que podem sempre ser rearranjadas.

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

. BRONTË, Charlotte. 1994Villete. London: Penguin Books .

. _______. 1980.The Professor. London: Everyman´s Libray

. DU MAURIER, D.1974.The infernal world of Branwell Bronte.New York: Avon Books

. FREUD, S. 1971.“Creative Writers and Daydreaming” in The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. Trad.J. Strachey.London: The Hogarth Press

. GASKELL, E. 1936The life of Charlotte Bronte. London: J. M. Dent & Sons, Ltd.

. HUTCHEON, L.1992 A poetics of Postmodernism: history,theory,fiction. New York & London: Routledge, (5a.ed.)

. LEYLAND, F. A. 1973.The Bronte family. Manchester: E.J. Morten

. GÈRIN, W. 1967. Charlotte Bronte.London: Oxford University Press

. NEWMAN, J. The Mistressclass - Review. www.cercles.com/review/r11/roberts

.__________.An interview with Michele Roberts.www.cercles.com/interviews/roberts.html

. PONTALIS, J.B 1991..A força de atração.Trad.L. Magalhães.Rio de Janeiro: Jorge Zahar

. ROBERTS, Michele. 2003.The Mistressclass. London: Little, Brown

. __________. 1998.Food, sex, and God. On inspiration and writing. London: Virago

. RIVERA, T. 2002.Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

. SPECTOR, J. J. 1972.The aesthetics of Freud. A study in Psychoanalysis and art. London: The Penguin Press

.WHITE, H. 1983Metahistory. The historical imagination in nineteenth-century Europe. Baltimore & London: The John Hopkins University Press, (3rd ed.)

. WILKS, B. The Brontes. 1975. London: The Hamlyn Publishing Group Ltd,

Nota Biográfica

Cristina Maria Teixeira Stevens é doutora em Literatura Inglesa pela USP; professora no curso de Letras e Teoria e Crítica Feminista no Pós Braduação em Literaturas da Universidade de Brasília. Organizadora dos livros Quando tio Sam pegar no tamborim: uma visão transcultual do Brasil, Caminhos e Colheitas: ensino e pesquisa em inglês no Brasil; é também tradutora. 


 

[1] Por questões de foco deste trabalho, não debateremos o já consolidado conceito de ‘realidade’/representação

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007