CLASSIFICAÇÕES CIENTÍFICAS DA OBESIDADE

Fernanda Magalhães

 

 

          O projeto Classificações Científicas da Obesidade foi criado a partir das tabelas utilizadas por médicos que classificam, normatizam e disciplinam os corpos das mulheres gordas e tem como objetivo questionar os padrões estéticos na contemporaneidade. As fotografias de mulheres nuas foram ampliadas em tamanho natural e compõem uma instalação que mostra os tipos classificados e questiona as normas e padrões impostos como modelo de consumo ao corpo da mulher. As fotografias foram montadas em um suporte leve e recortadas retirando de cada imagem a massa corpórea e mostrando somente os contornos destes corpos, criando assim uma relação entre cheio e vazio, leve e pesado. Os corpos pendurados giram levemente sobre seu eixo, ocupando assim o seu espaço com leveza e suavidade, buscando uma mudança nos discursos atrelados, em geral, ao corpo das mulheres gordas. 

Classificações Científicas da Obesidade é uma série de fotografias de corpos de mulheres que compõem uma instalação. Este trabalho surgiu a partir das tabelas utilizadas para calcular a massa corpórea e os tipos de formas de corpos obesos. As fotografias mostram os contornos de corpos de mulheres nuas fotografados em suas quatro faces - frente, costas, lateral direita e lateral esquerda.

As tabelas científicas utilizadas pelos médicos endocrinologistas são denominadas Classificações Científicas da Obesidade e determinam as doze classificações, resultado dos dois tipos de formatos de corpo relacionados com os seis tipos de massas corpóreas. Os tipos, Andróide e Ginecóide, tratam, por uma relação da medida da cintura e do quadril, das formas dos corpos que resultam, segundo estudos científicos, na obesidade benigna e na obesidade maligna. Os tipos de massas corpóreas - magro, normal, obesidade leve, obesidade moderada, obesidade severa e obesidade mórbida - classificam, por uma relação de peso e altura, os estágios da obesidade.

A intenção do trabalho é romper com estes parâmetros de modelos de corpos classificados que são utilizados e enquadrados em padrões científicos, distanciados de suas diferenças e essências mais intimas. A idéia é provocar uma reflexão sobre a padronização e a construção dos corpos em uma sociedade que busca por um pensamento hegemônico de corpo através da imposição de regras e modelos estanques de identidade.

          O trabalho mostra os corpos destas mulheres gordas fotografadas como quando se vai a uma clínica de dietas. A intenção destas fotografias realizadas em clínicas especializadas antes, durante e depois de um tratamento de emagrecimento, é para que estes corpos possam ser revistos, comparados e mostrem como devem se adequar aos modelos considerados ideais. Os corpos das mulheres gordas em geral são mostrados como corpos pesados, lerdos e lentos. Excluídos do que se considera belo, correto, rápido, ágil e produtivo, estes corpos são em geral exibidos como um problema a ser resolvido, um corpo a ser eliminado, uma aberração. São corpos que sofrem as dores da violência do preconceito e a negação da diferença.

 

Na cultura contemporânea a supremacia do olhar e da visualidade prevalece sobre os outros sentidos. O mundo está abarrotado de imagens que mostram corpos idealizados, padronizados, bonitos, leves e jovens. Corpos perfeitos, sem rugas nem doenças, com próteses e brilhos. Nossos olhares estão contaminados por essa poluição visual, uma espécie de terrorismo global, onde se deseja um corpo impossível, inatingível, idealizado, retocado e plastificado. Os corpos de carne, sangue, ossos, água e gordura são substituídos, cada dia mais, por outros formados por hormônios, suplementos alimentares, anabolizantes, silicones, chips internos, fios de ouro e próteses. Corpos construídos e que são sinônimos de beleza, força e saúde. Somados às cirurgias plásticas e às modificações, os corpos passam a ser superpotências, quase super-homens ou super-mulheres. Novas inserções substituem nossas carnes e mentes e são capazes de transformar até nossa essência mais íntima.

          Essa excessiva valorização da aparência escraviza e tornam os corpos prisioneiros de modelos impostos levando às doenças como bulimias e anorexias, em constante crescimento. Os desejos manipulados, os olhares contaminados; corpos aprisionados dentro de seus próprios sonhos de eternidade e perfeição.

          Em relato escrito por Paula Campos, para o meu projeto com mulheres gordas, podemos perceber um pouco desta violência que transborda em seu texto. Paula diz:

Sempre fui gorda. Gordíssima. Transbordante. (...) Carne branca e flácida arrebentando a pele. Sucessão de acúmulos, montinhos, dobras. Disseram-me. Era assim que me sentia. Falaram, repetiram, riram, gritaram – desde sempre. A professora proibia o segundo prato. As tias penalizadas diante do rostinho lindo perdido na imensidão adiposa. A mãe diagnosticava o delinear de contornos bizarros e amarrava o diagnóstico com previsões proféticas, pontuadas por solteirices eternas e recalques inconfessáveis. (...) Acreditei. Aceitei como se aceitam as fatalidades oraculares. O corpo era uma evidência. O espelho, sistematicamente voltado para mim, dizia do aleijão, da imutabilidade das formas que me constituíam. Estanquei. (...) Daí vieram os tais milagres. Uma espécie de mística coletiva me conduzia a clínicas e mais clínicas. Eram templos que prometiam milagres (...) Chegava a acreditar. Envolvia-me nessas crendices. Cada clínica, cada dieta, cada medicação. Surgia a esperança da transmutação. O ritmo da casa mudava. Higienização. Alimentos sujos substituídos por limpos. Família mobilizada, milhões de energias concentradas em torno da salvação. (...) De repente, sem que me desse conta, começava a colocar dedinhos fora da estufa. Uma colher a mais de arroz. A porção de feijão gelado subtraído no meio da tarde. A camada dupla de manteiga. O prazer. A culpa. As dores. (Campos, 2007)

Estas violências simbólicas levam estas mulheres em busca das clínicas miraculosas que acabam por gerar ainda mais culpas e dores. Entre as metodologias adotadas está a realização das fotografias, para que se possa comparar o antes e o depois. Fotografias que fragilizam ainda mais estes corpos. As fotografias “científicas” realizadas para os arquivos médicos são utilizadas na construção de seus discursos. Estas imagens fotográficas realizadas em clínicas, em sua representação, se afastam dos corpos indivíduais, de suas identidades, de suas características pessoais, de corpos que contêm sentimentos, pensamentos e vida própria. São corpos considerados doentes, transgressores e sem identidade.

Para a construção desta instalação realizei as fotografias em estúdio para a obtenção de um fundo neutro. Os filmes coloridos foram utilizados para que o contraste entre fundo branco e a cor da pele fosse suave. Revelados os filmes e ampliadas às cópias estas foram recortadas manualmente retirando-se das imagens a massa dos corpos, restando assim o perfil, o contorno. As ampliações foram realizadas em tamanho natural para que se tenha a dimensão destes corpos, para que estes ocupem o seu espaço. Os contornos foram recortados buscando eliminar destes corpos sua massa corpórea, mostrando assim corpos de mulheres gordas com leveza, e os distanciando do peso social que carregam.

Tomei como referência, para os recortes dos corpos, os conceitos estéticos sobre linha, volume e massa defendidos no Manifesto Construtivista Russo, escrito em 5 de agosto de 1920 por Naum Gabo, o que proporcionou um paralelo entre esculturas e corpos. Gabo diz:

 

"...as forças estáticas de um corpo sólido, assim como a sua resistência material, não dependem da quantidade da massa ... não se pode medir o espaço em volume". (Gabo, p. 215)

 

Gabo se refere a construção das esculturas eliminando sua massa interna, provocando um jogo, no qual a ocupação do espaço não é medida pelo volume deste corpo. A idéia é a construção de uma escultura vazada, sem massa, constituída apenas pelas suas linhas externas, seus contornos. Cria-se assim uma leveza na obra, ainda que esta escultura continue ocupando o mesmo espaço, independente de ser cheio ou vazio.

A reflexão de Gabo pode ser utilizada quando pensamos sobre o espaço que os corpos das mulheres gordas ocupam na sociedade contemporânea, como são vistas as linhas de um corpo sinuoso, de um corpo arredondado, como se encara a massa corpórea e qual é o verdadeiro peso que estes corpos carregam.

O texto classificatório científico traduz como o discurso vigente aborda os corpos de mulheres gordas e se coloca no cotidiano da sociedade em que estão inseridos.  Claude Fischler diz:

 

Uma suspeita pesa, portanto, sobre os gordos. Mas se não podem emagrecer, eles tem uma possibilidade de se redimir dessa suspeita: precisam proceder a uma espécie de restituição simbólica, aceitando desempenhar os papéis sociais que se esperam deles. (...) De fato, a classificação de um obeso na categoria positiva ou negativa resulta, sem dúvida, não de um traço particular, mas da relação entre os traços físicos e a imagem social da pessoa (...) os gordos são considerados transgressores; eles parecem violar constantemente as regras que governam o comer, o prazer, o trabalho e o esforço, a vontade e o controle de si. (Fischler, p. 71, 72 e 74)

 

 

A transgressão destes corpos, que ousam ser volumosos, fogem as regras sociais da aparente possibilidade de harmonia constante. Fugindo destas imposições estes corpos geram um conflito pela sua própria aparência. O que busco com este trabalho é borrar estas fronteiras, possibilitar ao corpo estas indefinições, identidades suspensas, flutuantes e diversas. Mostrar corpos de mulheres gordas grandes e leves. Corpos inusitados, que flutuam e ocupam seus espaços plenamente, sem culpas em ser e estar.

A fotografia aqui é fundamental para que se tenha a dimensão destes corpos e também para que se veja as dobras, a pele e a gordura com toda sua carnalidade. A fotografia é fundamental para que se possa perceber que estamos lidando com corpos de carne e osso, corpos que sentem dor.

O que se vê nesta instalação são os desenhos dos corpos, seus contornos com detalhes fotográficos apenas nas bordas. Estes grandes corpos que flutuam, talvez possam revelar, a partir desta leve presença, muito mais do que poderiam mostrar com os miolos que foram extirpados. Através dos contornos dos corpos percebe-se o volume, pela linha e pela massa corpórea ausente. O vazio mostra o volume pela ausência de imagem, porém a ocupação do espaço é absolutamente a mesma, quer o objeto seja realizado somente por uma linha, quer ele tenha massa preenchendo este volume. Vazio e cheio criam uma relação de identidade com aquele corpo. O corpo da mulher gorda e todo discurso realizado a respeito dela tratará das questões resultantes das formas, do volume e de sua aparência.  São fronteiras que se rompem, estilhaçam e borram ...             

Para provocar a sensação de leveza, as fotografias dos corpos foram montadas sobre uma estrutura de isopor extremamente leve, tratada com massa acrílica e penduradas por um fio de nylon, o que possibilita que girem suavemente sobre seu próprio eixo, como uma metáfora de sua presença. Mulheres gordas que assumem seu espaço, suas dimensões e sua identidade, como se declarassem “esta sou eu!”.

Os cortes nas fotografias também pretendem abordar as questões da violência com o corpo da mulher. A lâmina que recorta a imagem se refere aos cortes impostos a estes corpos para se adequarem às normas, para cumprirem com os modelos de corpos aceitos e válidos.

A instalação permite que o público caminhe entre os corpos dialogando com os trabalhos. Foi possível observar, durante as exposições realizadas, que as pessoas tentam entrar nos corpos, atravessá-los e se encaixar em suas formas, interagindo com as fotografias.

Quando produzi este material, ao longo daqueles meses, através dos recortes fotográficos pude resgatar minha memória corporal. Cada dobra, cada curva por onde passei a lâmina uma imagem do corpo se manifestou e a dor foi resgatada, tendo sido sentida com toda a sua intensidade, como se estivesse sendo naquele momento. As dores de uma roupa apertada, um elástico cortando, um aprisionamento da carne, as culpas e a inadequação do corpo. São citações de dores corporais, de cortes e agressões pelas tentativas de adequar este corpo ao padrão imposto, para saciar o desejo dos corpos insatisfeitos, para amenizar as culpas que todo corpo feminino carrega.                                                                                                                                                                                                                                                      

 

 

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