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féministes/ estudos feministas Academia literária feminina do Rio Grande do Sul
Hilda Agnes Hübner Resumo O presente artigo reporta a uma instituição eminentemente feminina, criada em 1943 para proporcionar à mulher intelectual um lugar de maior realce entre os valores contemporâneos. Instituição de iniciativa privada, que por sua proposta existencial e pela atuação de 64 anos de atividade ininterrupta, vem colaborando para o desenvolvimento intelectual da mulher. Seu acervo biobibliográfico e documental constitui patrimônio imaterial útil ao estudo de gênero.
Academia Literária Feminina A história tradicional prestigia o aspecto militar, político, econômico ou diplomático dos acontecimentos, sem se deter no social. A mulher ficou no olvido, sob a tese de que era intelectualmente inferior e em tudo dependente do homem. Só nas últimas décadas do século passado despertou-se para a história social, indagando sobre grupos minoritários e inserindo a mulher na construção e na dinâmica das comunidades. As grandes guerras tiveram importância circunstancial nessa desenvoltura da história de gênero, pois, ausentes os homens, tombados ou em luta nos fronts, a mulher se viu na contingência de ocupar-lhes o lugar, desempenhando toda gama de atividades antes restritamente masculinas – desde a administração das fábricas e das escolas ao controle dos meios de transporte e dinamização das riquezas produzidas. Foi o que ocorreu na década de 1940. O mundo debatia-se em meio à hecatombe da II Guerra Mundial. A Europa destruída, parara de produzir e as mulheres tiveram uma oportunidade forçada e sem precedentes para se inserir no mercado de trabalho – mercado que se expandiu para outros continentes, outras frentes de produção. No Brasil, e no Rio Grande do Sul, a indústria teve desordenado mas notório crescimento. Em Porto Alegre, mulheres acorreram às fábricas, foram recriminadas, algumas “apedrejadas” com ovos e tomates pobres: um vexame, abandonar lar e filhos em favor do trabalho!... Apesar dos protestos, o operariado feminino tornou-se realidade. Ensino. A Escola Normal criada em Porto Alegre em 1869, preparava professoras, apesar do que no início da República o analfabetismo atingia 74% da população. Normalistas lecionavam ou casavam com advogado ou médico, mas raríssimas ousaram cursar Faculdade. As primeiras médicas ficaram restritas à área de ginecologia, englobando os cuidados pediátricos. Tal foi o caso da Dra. Noemy Valle Rocha, formada em 1919, e que mais tarde seria intelectual notória. Nesse clima cultural acanhado nasceram, na década de 40, as primeiras Faculdades freqüentadas majoritariamente por mulher: Filosofia e Ciências e Letras, cerne das Faculdades de Filosofia, Letras, História e Geografia, Pedagogia, mais tarde Serviço Social, Psicologia e outras. Lydia Moschetti. Italiana de 1888, era filha de um nobre desligado e mau provedor da família, e de mãe plebéia, submissa e resignada como convinha à mulher. Na infância sofreu toda sorte de privações, e muita humilhação no internato, carente de amor. Aos 19 anos imigrou para Santos. O pai, que viera antes, constituíra nova família e sinalizou que “no Brasil, quem quer, arranja emprego.” Lydia ensinou italiano para filhos de imigrantes, para ajudar a mãe; logo seria discriminada como cantora e atriz de Teatro. Em 1921 casou com o engenheiro italiano Luiz Moschetti, com quem ergueu próspera indústria em Porto Alegre. Condoída com a miséria à sua volta, em breve envolveu-se em campanhas beneficentes. Criou creches, orfanatos, o Internato S. Luzia para cegos; transformou seu palacete residencial em pupileira e atendimento à mãe solteira. O Banco de Olhos é hoje portentoso Hospital oftalmológico. Conheci-a nesse refúgio geriátrico, nonagenária, queixando-se de que o físico lhe negava executar as obras que ainda tinha em mente... A par dos afazeres de “Dama de Caridade” (assim a chamou a imprensa), Lydia é autora de cinco romances, que espelham aspectos da dor que procurou minorar, quatro livros de poesia e alguns ensaios. Obra imbuída de boa dose de contestação ante as injustiças sociais que vivenciou. Academia Literária Feminina. Lydia sabia bem das injunções e limitações que pesavam sobre a mulher, notadamente na esfera intelectual. Decidida, um dia subscreveu 30 convites para um encontro de poetisas e escritoras, em sua residência – um festim, segundo Stella Brum, uma das presentes. Reclamando do pequeno grupo que atendeu ao chamado, disse de seu desejo de reunir lideranças femininas visando proporcionar à mulher intelectual um lugar de maior realce entre os valores contemporâneos e o merecido culto entre as gerações futuras. Dentro desse propósito nasceu, a 12 de abril de 1943, a Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. Elegeram Diretoria, discutiram Estatuto e o aprovaram. Realizaram reuniões, prepararam programa de atividades e estabeleceram data para a instalação oficial e solene da instituição. O vendaval. Negaram-se os membros da Academia Rio-Grandense de Letras a comparecer a esse evento: – Cuidem elas de costuras e culinária; quando muito, fundam um grêmio de letras, nunca, porém, uma Academia, atributo exclusivo dos homens! Lydia convocou às pressas a primeira Assembléia Geral Extraordinária da Academia que fundara. A imprensa acorreu, ávida por sensacionalismo, e o então o sisudo e cinqüentenário Correio do Povo por três domingos tratou do assunto. A instalação ocorreu sem a presença dos acadêmicos. Meses mais tarde, um lauto jantar de confraternização acomodaria a turbulência. As pupilas de Lydia mostraram a que vieram: curso de oratória para desinibir, saraus para declamar as poesias guardadas no fundo da gaveta, publicação de seus trabalhos. O primeiro livro, Papoulas, poemas de Stella Brum, recebeu concorrido lançamento. Como os subseqüentes. Caprichados Recitais com platéia lotando auditórios, trouxeram fundos para a novel instituição. Exposição de Livros. A nascente Academia logo cultivou vasto intercâmbio cultural com intelectuais da América Latina, Itália, Espanha, Estados Unidos e até com a Ásia. No sistema de permita, reuniram milhares de livros permutados – todos autografados pelas autoras. Para trazer a público esse valioso acervo, teve lugar, em 1949, a I Exposição do Livro Latino, nas dependências da Faculdade Católica de Filosofia da PUCRS, em sua sede central, à Avenida Independência. O evento repercutiu na imprensa e entre a população. Seqüência. A dinâmica da Academia Literária Feminina fluiu entre reuniões ordinárias de convivência e planejamento, programas em Rádios locais e estaduais, comemoração do Dia Norte-americano (notório o americanismo das décadas de 40 e 50), concorridas sessões de autógrafos; sessão pública e festiva por ocasião do natalício da instituição e quando do ingresso de novos membros com “panegírico” à patrona da Cadeira; recepção a personalidades ilustres; concursos literários de âmbito nacional; palestras de tema variado, atual; cursos de história e história cultural, de gênero, de atualização direcionados ao magistério, oficinas de criação literária... Eventos e promoções fluíram no correr dos anos, e as cadeiras vagas foram sendo preenchidas por expoentes da intelectualidade feminina, local ou nacional. Temeroso citar nomes, pelas omissões involuntárias que ocorrem. Sede. Memoráveis recitais no tradicional Teatro S. Pedro, geriram renda para aquisição da primeira sede própria, um pequeno JK – em breve substituído por um apartamento maior. Na década de 70, a acadêmica Noemy Valle Rocha, a médica de quem à frente se falou, doou sua residência, um prédio de altos e baixos no tradicional bairro Cidade Baixa de Porto Alegre. Aí a instituição continua sediada. Pleiteia-se adequá-la para a implantação de um Memorial Feminino, simultaneamente a um Portal na Internet, que permitam disponibilizar ao público o valioso patrimônio imaterial que se formou ao longo dos 64 anos de ininterrupta jornada. Publicações. A par dos programas de Rádio, decidiram as acadêmicas por uma forma mais duradoura de levar ao público o conhecimento e a produção literária gerada dentro da Academia. E assim, em 1949 nasceu Atenéia, uma revista com relatos de viagem, entrevistas, produção literária como poesias e crônicas, fartamente ilustrada, e com duração de 25 anos, quando exigências de fisco dificultaram sua continuidade. A antologia Vozes Femininas marcou os 40 anos da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, e o jubileu de ouro, com 50 anos de literatura: perfil das patronas, contendo trabalhos biográficos sobre acadêmicas e suas Patronas. Na década de 80, quando pela primeira vez estive na presidência da Instituição, concurso de Crônicas reuniu milhares de estudantes do país, e Jovem Escritor reuniu por cinco anos os 50 melhores trabalhos do concurso. O concurso “Mulher no II Reinado”, com excelentes trabalhos, também na década de 80, realçou a monografia da socióloga paulista Maria Thereza Crescenti Bernardes. Em 1986 foram editados os anais do curso Porto Alegre: história e cultura, expressão de sucessivos anos de cursos direcionados à atualização do magistério secundário, ao mesmo tempo que geria recursos para reforma e manutenção da sede da Academia Feminina. Desde 1986 circula anualmente a antologia Presença Literária, com poesias, crônicas e contos, com trabalhos de crítica literária e ensaios frutos de pesquisa. Há colaborações a nível nacional, enviadas pelas sócias correspondentes da instituição. Simultaneamente, está em andamento a Coleção Sempre Viva, perfil de “livro de bolso”, para edições individuais. Eu voltarei é reedição póstuma da acadêmica Alzira Freitas Tacques, inteligente mulher, autora, na década de 1950, de cinco massudos volumes: “Perfis de musas, prosadores e poetas brasileiros e estrangeiros”. É imperioso citar que o acervo bibliográfico da Academia contém obras raras, algumas esgotadas, de inquestionável valor lítero-histórico, como Divórcio? da feminista Andradina de Oliveira e Autobiografia de Lydia Moschetti, ambas com projeto de reedição. Quadro acadêmico. A Academia Literária Feminina RS iniciou com 20 Cadeiras, logo ampliadas para 40, o molde acadêmico tradicional. Entre as patronas, mulheres de destaque, desde a poeta cega Delfina Benigna da Cunha; as irmãs Revocata de Melo e Julieta de Melo Monteiro que por 60 anos monitoraram Corimbo, o mais duradouro jornal feminino no país; a nordestina Nísia Floresta e a porto-alegrense Luciana de Abreu, defensoras da igual capacidade intelectual entre os sexos; Ana Aurora do Amaral Lisboa, educadora de escol e dramaturga; Carolina von Koseritz, tradutora de clássicos alemães como alternativa à hegemonia do francesismo cultural; a quase esquecida Vivita Cartier, poeta sensível que a tísica levou em prematura idade; Andradina de Oliveira e sua filha Lola, exímias poetas, assim como Lila Ripoll. Tantas outras podem ser citadas... Entre as acadêmicas, igualmente nomes brilhantes; dentre as fundadoras, a idealizadora Moschetti e a educadora emérita Aurora Nunes Wagner. O enriquecimento ao longo das décadas aponta nomes como Natércia Cunha Veloso, as educadoras de voz Carmen Cunha Vianna e Anna Luiza Teixeira, a declamadora Aracy Dantas de Gusmão, a pedagoga Camila Furtado Alves... Mais recentemente, a escritora de literatura infantil Maria Dinorah e a romancista premiada Patrícia Bins foram distinguidas como patronas da cinqüentenária Feira do Livro de Porto Alegre. O atual quadro acadêmico reflete o status intelectual da mulher nos dias atuais, ampliando espaços dentre um leque de atividades profissionais. Na área estritamente literária há poetas, contistas, cronistas, romancistas, novelistas, escritoras de literatura infantil, críticas literárias e tradutoras; biógrafas, memorialistas e uma dicionarista. No ramo de profissionais liberais, temos acadêmicas psicólogas, jornalistas, historiadoras, profissionais de marketing, museólogas, artistas plásticas, arquiteta e advogadas, uma desembargadora. Número significativo de acadêmicas, e também de sócias correspondentes, Mestres e Doutoras, integram os quadros do magistério universitário de diferentes Universidades do país e estrangeiras. O projeto de preservação, recuperação e divulgação do patrimônio imaterial que se pretende implantar, através de Site e Portal, deverá disponibilizar a instituição ao acesso de internautas à moderna conectividade, concorrendo para aproximar povos, divulgar cultura e colaborar para a compreensão e paz entre os povos.
Atenéia. Revista da Academia Literária Feminina RS. Porto Alegre, 1949-1963 Correio do Povo, jornal diário de Porto Alegre, vários números entre 1943 e 1947 Livros de Atas da Academia Literária Feminina RS (1943-2007) Pastas das Cadeiras da Academia Literária Feminina RS. Acervo da instituição Presença Literária, antologia anual da Academia Literária Feminina RS (1986-2007)
Nota biográfica Hilda Agnes Hübner
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