labrys, études
féministes/ estudos feministas
‘Literatura de mulheres’, ‘literatura feminista’ ou ‘escrita feminina’: sinônimos ou áreas de tensão? Liane Schneider [1] Resumo:
Pesquisas na área de estudos da mulher e de gênero têm inegavelmente crescido e ocupado maior espaço dentro e fora da academia, ainda que, como destaca Mary Hawkesworth (2006), ao discutir alusões por vários setores culturais a uma fase “pós-feminista”, haja um verdadeiro complô para o “enterro prematuro do feminismo”. No âmbito acadêmico brasileiro, com uma produção teórica e crítica inicialmente um tanto fragmentada, desenvolvida por pesquisadoras e estudiosas interessadas nessa temática de forma mais isolada ou em conseqüência de experiências de foro pessoal (vivências acadêmicas no exterior, troca de experiências com outras feministas militantes, participação na política nacional) tal área de estudos foi se tornando mais e mais visível, sendo que, hoje, na maior parte das instituições de ensino superior que fomentam seriamente a pesquisa há certamente um território de estudos ocupado por estudiosas/os que priorizam o gênero como categoria de análise. No bojo desse crescimento da área e no fortalecimento das teorias a ela atreladas, encontramos também a origem de questionamentos quanto às divisões anteriormente fixas e impermeáveis entre os campos de estudo, resultando em um claro crescimento de leituras críticas interdisciplinares da literatura e da cultura. Mais especificamente na área de Letras e, dentro dessa, no terreno literário, o campo crítico foi sendo consolidado inclusive com a formação de grupos de trabalho com temáticas próximas ou afins, entre os quais podemos destacar o GT “A mulher na literatura”, da ANPOLL, que completou, em 2006, vinte anos de atividade. Como destaca um de seus membros fundadores, Profa. Rita Terezinha Schmidt (2006, p.31-32), em seu artigo para a edição comemorativa dos 20 anos, onde discorre sobre as primeiras etapas de tais discussões dentro da academia, Tínhamos uma consciência bastante aguda da responsabilidade de tratarmos de questões que estavam diretamente ligadas à necessidade de transformação ampla e profunda no que dizia respeito aos códigos de valor de uma sociedade patriarcal e seus mecanismos de controle – nos campos jurídico, político e simbólico – os quais sempre definiram as condições, com ressalvas, limitações e restrições, quanto ao lugar, à atuação, aos direitos e à cidadania do ser humano definido como mulher. Além disso, inúmeras estudiosas da área das ciências humanas passaram a criticar em seus trabalhos tanto a suposta universalidade do sujeito masculino como a negação à universalidade imposta ao sujeito feminino. Se a universalidade funcionava como um princípio ou um ideal pós-iluminista com parâmetros para a realização humana, então restava encontrar os motivos pelos quais quase metade da população do mundo havia historicamente tido acesso negado a esses direitos, pelo menos enquanto sujeitos ativos e independentes. A universalidade, ao contrário do que foi apontado por tantos estudos feministas inaugurais, impunha às mulheres definições atreladas ao princípio da complementação, da relatividade, da diferença e, nesse sentido, amarrava essas em relações desiguais e desfavoráveis. Logo, já estava implícita nessa discussão a questão de que o sujeito feminino era colocado à margem, fora da arena visível de subjetividade, sendo atrelado, de várias formas, ao “outro” dentro da cultura patriarcal. O essencialismo marcava todos os sujeitos sociais, já que esse se construía a partir de paradigmas totalizantes, que almejavam explicar e definir a essência do comportamento humano; contudo, inegavelmente, o caráter essencialista vinculado às mulheres era (e, de certa forma ainda é) muito mais negativo e opressivo do que aquele atrelado aos homens. Tais elaborações teóricas, desenvolvidas em âmbito nacional e internacional, acabaram por apontar que a categoria ‘mulher’, principalmente no singular, não dava conta de todas as (im)possibilidades com as quais se defrontava o sujeito feminino na busca por desdobramentos de sua identidade em constante (des)construção. Havia a ‘Mulher’ e a ‘mulher’, a estudada e a analfabeta, a pobre e a rica, a branca e a não-branca, a jovem e a idosa, a heterossexual e a lésbica, a empregada e a desempregada, enfim, para cada direção que se olhasse havia diferenças óbvias e gritantes entre os sujeitos marcados como femininos, sendo que esses outros eixos de diferença não poderiam ser escamoteados ad eternum, nem mesmo em nome da manutenção de uma aparente unidade política. Além disso, mesmo esse binarismo inicial, ou seja, o fato de se constatar que havia uma série de fatores que afetavam de modo diferenciado as mulheres, dividindo-as em blocos antagônicos, não desobrigava o reconhecimento de que a gama de diferenças entre mulheres não se organizava aos pares apenas, e sim, ao longo de um processo contínuo de diferenciação e de construção de afinidades e diferenças. Portanto, a mulher com emprego poderia ter um emprego regular, documentado, ou ser profissional liberal semi-independente, ou ainda trabalhar sem qualquer vínculo empregatício. A diferença entre as mulheres, dessa forma, se dava e se mostrava ao longo de níveis de diferenciação em relação tanto a um traço específico como a vários traços que as atingiam de forma concomitante. O que se observa, nesse sentido, é que o discurso feminista, tanto em suas vertentes mais teóricas quanto na prática dos movimentos sociais, teve de admitir que era exatamente a partir de lugares diferentes que os sujeitos femininos estabeleciam relações entre si, bem como com o que era tido como ‘hegemônico’, geralmente marcado como masculino e branco; portanto, as relações sociais eram cortadas não só pelo sexo, mas também por uma infinidade de outros traços, diferenças, peculiaridades que tomavam o lugar de elementos importantes para qualquer tentativa de definição (ainda que provisória) de identidade. Dessa forma, o discurso feminista conseguiu problematizar logo de início os essencialismos que continuavam sendo atrelados à categoria ‘mulher’ ou mesmo ao ‘gênero’, construção que congelava a universalidade masculina e o essencialismo atrelado às mulheres. Vale mencionar que, para que tal problematização fosse possível, os desdobramentos da teoria e da crítica feminista foram fundamentais. Para feministas que trabalhavam na área das ciências humanas, e mais especificamente para as que se debruçavam sobre a produção cultural na área de Letras, havia ainda a questão de se definir qual seria o principal canal através do qual as teorias feministas deveriam e poderiam circular; ou seja, foi necessária uma discussão sobre as mudanças e rearranjos na relação estabelecida entre as áreas da produção literária e da crítica. Assim, se em uma primeira fase o fundamental para a crítica feminista era analisar as construções e representações hegemônicas do feminino, o que era possível fazer ao dissecar obras de autores consagrados, a partir da década de oitenta, as análises feministas de textos literários já tendiam a se voltar para o que as mulheres escreviam e como o gênero marcava sua escrita. Como a diferença interna dentro do grupo formado por mulheres não pôde mais ser escamoteada ou abafada, vieram à tona inúmeras problematizações quanto a definições muito restritas de “identidade feminina” ou “autoria feminina”. Assim, passou-se a perceber que alguns conceitos utilizados pela teoria e crítica feminista, mesmo a bem contemporânea, por vezes, devido ao fato de terem sido empregados como se a pluralidade de sentidos e as contradições internas não oferecessem maiores problemas, acabavam por excluir sujeitos que, a princípio, deveriam ser contemplados por tais análises. É nesse sentido que, visando colaborar com a ampliação do terreno da crítica literária feminista na contemporaneidade para além das fronteiras da representação fixa do sistema de gênero e das identidades masculinas e femininas, pretendemos rediscutir algumas dessas definições. Portanto, a partir das observações dos desdobramentos do passado, pretendemos iluminar alguns debates que nos parecem promissores e renovadores para nossa área de estudos. Quem é o sujeito que fala na literatura de mulheres? A presença e proliferação de vozes inscritas fora dos discursos culturais hegemônicos, suas produções estéticas alternativas, bem como os discursos teóricos e críticos que mantêm diálogo com essas, são elementos que prometem abrir o campo de discussão e representação da ‘literatura de mulheres’, que tendeu, até muito recentemente, a construir definições excessivamente limitadas sobre ‘mulher’ e o ‘feminino’. A problematização do conceito ‘mulher’ (ou ‘mulheres’) a partir de uma perspectiva que passou a levar em conta a fragmentação, diversidade e heterogeneidade inerentes a tal categoria de análise é marco inquestionável das teorias marcadas pelo pós-estruturalismo, teorias essas que envolveram a des-essencialização das identidades, já que, como defende Ann Phoenix, identidades passaram a ser conceituadas como “sempre em processo, ao invés de concluídas ou fixas” (Phoenix, 1998, p.10). Além disso, os sujeitos passaram a ser percebidos a partir das posições (descentradas) que assumem em relação a vários outros eixos além do gênero, tais como etnia, raça, classe social, sexualidade, etc. Contudo, mesmo antes dessa conscientização quanto aos vários eixos de diferenciação do sujeito, já se instaurava certa instabilidade em relação às definições atreladas à diferença sexual e a forma como essa vinha sendo abordada pela própria teoria feminista. Judith Butler, em vários de seus artigos produzidos ao longo das décadas de oitenta e noventa, questiona a anterior e aparentemente tranqüila diferenciação entre sexo e gênero, defendendo que mesmo o construir-se mulher, o tornar-se mulher, no sentido proposto por Beauvoir, seria algo sujeito a normas prévias, pois o que se entendia por ‘feminino’ ou ‘mulher’ já estaria pré-definido. Na verdade, poderemos mesmo escolher como nos tornarmos mulher ou isso (ser mulher) já nos é apresentado como uma construção cultural? E se assim é, qual seria exatamente a diferença entre ‘sexo’ e ‘gênero’, já que o sexo (ou a consciência dele) também nunca existiria num mundo totalmente pré-discursivo, natural ou corpóreo? A partir do momento em que nascemos somos definidos conforme nosso sexo, ou seja, em geral a primeira notícia dada após o nascimento de uma criança tem por base seu corpo visível – verifica-se se esse “condiz” com as características de uma menina ou de um menino (Butler, 1987, 147). Isso não acontece por acaso, já que todas as nossas primeiras experiências dentro da sociedade ocidental tenderão a ser guiadas e valoradas pela diferença sexual inicial. Poder-se-ia imaginar qual seria o efeito de sermos classificados conforme a existência ou não de cabelos no momento do nascimento, ou de termos ou não cabelos visíveis. Contudo, todas essas outras diferenças não são de imediato levadas em conta para estruturar a organização da humanidade em blocos diferentes. Já fica clara aí a supervalorização do elemento (hetero)sexual na vida social, que, aliás, se organiza de forma hierárquica, definindo o masculino como o superior e completo, e o feminino como o inferior, marcado pela falta. Além de sermos, portanto, limitadas por definições sexuais e de gênero que não se deixam desconstruir ou reconstruir livremente dentro da sociedade patriarcal, somos empurradas, no caso de mulheres que se definem como heterossexuais, para um sistema binário que desvaloriza e submete o ‘feminino’; já no caso das homossexuais, tal binarismo as perceberia como invisíveis, sujeitos sem lugar e definição. Vários teóricos se debruçaram sobre os jogos estabelecidos entre sexualidade e poder, entre eles, Michael Foucault, sendo que esse defendeu que a melhor saída para tal paradoxo seria partirmos para uma construção social com base em diferenças múltiplas, onde a relação entre os significantes ‘macho’ e ‘fêmea’ seria apenas mais uma entre tantas outras (Foucault, 1980, p.152-154). É inquestionável o fato de que as teorias feministas, e principalmente a crítica à política de identidades, já há várias décadas vêm buscando desconstruir o essencialismo que envolve o termo ‘mulher’, bem como todo o sistema de gênero. Tais discussões resultaram tanto de avanços e questionamentos que ocorreram dentro da área dos estudos feministas, como aqueles apresentados por Butler, mas também de redefinições nas agendas culturais e políticas da pós-modernidade. A homogeneidade das categorias tem sido desmascarada e a diferença interna não nega mais a instabilidade de identidades antes definidas como universais. No encalço de questionamentos anti-essencialistas, além do discurso organizado por minorias étnico-raciais, também se fortaleceram, nas últimas décadas, os discursos definidos como, gay, lesbian e queer, exigindo a abertura e redefinição de conceitos de gênero que ainda eram excessivamente binários e heterossexuais. Grande parte da revisão da produção cultural e literária de mulheres vem sendo feita a partir de perspectivas que buscam enfocar essas diferentes construções identitárias ou que, no mínimo, não as consideram nem um pouco irrelevantes. Se a própria definição do sujeito feminino, a partir de (re)discussões sobre as lacunas ou ambigüidades inerentes à política de identidades foi sendo rediscutida, obviamente a literatura produzida por esse sujeito também passou por uma certa crise de definição ou nomeação. O fato de referir-se à produção literária que o sujeito feminino produz como ‘literatura de mulheres’ ou de ‘escrita feminina’ constituiu um dos pilares dos debates que se seguiram. Parece-nos importante discutir tanto quem é essa mulher na literatura como que literatura é essa. Em Intervenções Críticas, quando Nelly Richard questiona se a escrita tem sexo, ela quer exatamente verificar se existem certas caracterizações de gênero textual que estariam necessariamente presentes em uma escrita feminina. De início, Richard faz uma revisão de idéias apresentadas por algumas feministas que defenderam que, sim, deveria haveria algo na expressão, estilo ou no tema que seria necessariamente específico da escrita de mulheres. Richard, por sua vez, defende que a ‘literatura de mulheres’ “designa um conjunto de obras literárias cuja assinatura tem valência sexuada” e que tal literatura “se mobiliza para delimitar um corpus, baseado no recorte da identificação sexual”, sendo que para isolar esse corpus se recorreria a uma “identidade de gênero” (Richard, 2002, p.129). Ainda que tenhamos problemas para, por vezes, identificar quem seria esse coletivo, mulheres, haveria a possibilidade de tomar por base a identificação sexual. Mas será que, após aceitarmos que existe um grupo que se identifica como mulheres, poderíamos ficar tranqüilas no sentido de que tudo que essas produzirem poderá ser imediatamente definido como ‘escrita feminina’? Segundo Richard, a ‘escrita feminina’ deveria necessariamente construir representações antipatriarcais, contra-hegemônicas, sendo que esse tom seria dado pelo lugar político a partir de onde ela é produzida: Qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do formato regulamentar da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, levaria o coeficiente minoritário e subversivo (contradominante) do ‘feminino’. Qualquer escrita, pronta para alterar as pautas da discursividade masculina/hegemônica, compartilharia o “devir-minoritário” (Deleuze-Guattari) de um feminino que opera como paradigma de desterritorialização dos regimes de poder e captura da identidade, normatizada e centralizada pela cultura oficial. (Richard, 2002, p.133, grifo da autora) Aqui Richard está fazendo referências à Kristeva, que defende que a escrita coloca em funcionamento um “processo interdialético de várias forças de subjetivação”, sendo as principais forças a “raciocinante-conceitualizante (masculina), garantindo a instituição do signo”, e a “semiótico-pulsátil (feminina), que excederia a finitude da palavra com sua energia transverbal” (apud Richard, 132). Portanto, o que estaria sempre em jogo em qualquer escrita seria definir qual das forças predomina – a identificada como masculina e estabilizante ou a desestruturante e feminina e, a partir dessa percepção, poderíamos definir qual das forças seria a determinante na feitura do texto. Exatamente a partir desse ponto, Richard defende que se fale em “feminização da escrita” ao invés de “escrita feminina”. A autora recusa, assim, a coincidência natural entre determinante biológico (ser mulher) e identidade cultural (escrever como mulher), o que permitiria ler as entrelinhas da representação, onde inclusive o espaço e as marcas do feminino (e do masculino) estariam menos restritas e naturalizadas. Vale citar a conclusão de Richard: Somente depois de romper com a crença determinista, na qual a função anatômica (ser mulher/ser homem) e papel simbólico (o feminino/o masculino) se correspondem naturalmente, e com o mito da Identidade-Una do corpo de origem, é possível tornar extensivo o valor contestatório do feminino (entendido transversalmente) ao conjunto das práticas anti-hegemônicas. (Richard, 2002:.134, grifo da autora) Percebe-se, a partir disso, que tanto o feminino quanto o masculino podem transgredir a dinâmica monológica dos signos, escrevendo de forma transgressora e interrogando as hegemonias estabilizadas. Ainda segundo Richard, o fundamental seria que a crítica feminista continuasse a “pensar o feminino como em tensão com o marco da intertextualidade cultural”, e não em isolamento (Richard, 2002:136). É nesse sentido que todas as vozes, inclusive as masculinas, que se proponham a questionar cânones rígidos e fechados bem como as ortodoxias patriarcais, devem ser resgatas como possíveis aliadas das vozes femininas e feministas emancipatórias. Com certeza, dentro dessa perspectiva, haverá vozes (e produções literárias) femininas que não se alinham com esses princípios transgressores, exatamente por se quebrar a ilusão errônea de que o corpo determinaria o pertencimento ou a inserção cultural. Contudo, não podemos esquecer que, A explicação de porque o feminismo é prioritário para as mulheres e porque as mulheres são prioritárias para o feminismo (dizer prioritário não é dizer exclusivo, nem menos ainda excludente), tem obviamente a ver com o fato de que, ao serem elas as que se inserem mais desfavoravelmente nas estruturas sociais e culturais, a tarefa crítica de desorganizar e reinventar os signos da cultura, desde um ponto de vista não hegemônico, é mais vital e decisiva para elas que para aqueles que, apesar de tudo, continuam se beneficiando dos privilégios de autoridade da própria cultura que criticam. (Richard, 2002: 161, grifo da autora) Claro que aqui teríamos de levar em conta outros eixos de organização de discriminações e privilégios além do gênero (cujo sistema privilegiaria, a priori, o masculino). Questões relativas à raça e classe, nesse contexto, não podem ser desconsideradas, já que a mulher branca estaria, dentro da sociedade ocidental, também em situação mais cômoda no que se refere aos “privilégios da autoridade” do que a mulher ou o homem negro. Assim, se as literaturas produzidas por mulheres que se vinculam a tais projetos emancipatórios e antipatriarcais são definidos como ‘escrita feminina’, deve-se garantir que esse significante (escrita feminina) esteja carregado de todas as tensões que compõem o tecido cultural, não sendo inscrito nem limitado por uma visão binária e naturalizada de mundo. Restaria nos perguntarmos se, nesse caso, não seria mais apropriado o uso, ao invés de ‘escrita feminina’, do termo ‘escrita feminista’, que já em sua nomeação indicaria marcos teóricos e propósitos políticos bem delineados, que diferenciariam tal literatura daquela que se caracteriza por ser “simplesmente” produzida por mulheres, a partir de quaisquer perspectivas. Contudo, mais uma vez aqui, mesmo denominando-se eventualmente tal produção de ‘escrita feminista’, também não estaríamos seguras quanto a qual dos feminismos (da experiência, da diferença, da desconstrução, marxista, etc.) estaríamos nos referindo. Além disso, haveria (assim como há) autoras que produziriam um texto ‘feminista’, sem, no entanto, aceitarem, de bom grado, tal classificação. Certamente correríamos também o risco de perder toda a referência de grupo sexualmente marcado, o que possivelmente enfraqueceria as lutas das mulheres não só na literatura, mas em vários outros campos da vida social. Portanto, nos parece que devemos, sim, continuar utilizando os mesmos conceitos e definições no que se refere à produção literária de mulheres, desde que tenhamos consciência e indiquemos na nossa crítica a impossibilidade de abrangência e inclusão concomitante de todos os sujeitos, femininos e feministas, em tais categorias. Afinal, a ‘escrita feminina’ e a ‘literatura de mulheres’ já se tornaram parte do jargão acadêmico e literário de qualquer teórica ou crítica contemporânea comprometida com os desdobramentos filosóficos e políticos que seguiram a fundamental descoberta de que a diferença sexual dentro de uma sociedade patriarcal é utilizada no sentido de reger, controlar, validar e excluir grande parte de seus membros; cabe a essa parcela de “excluídos” dissecar aquelas classificações e generalizações que não a representam, que a deformam ou marginalizam. Nesse Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 7. ed. São Paulo: Nova fronteira, 1980. BUTLER, Judith. “Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Wittig e Foucault”. In: Seyla Benhabib & Drucilla Cornell (eds.). Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1987. CAVALCANTI, Ildney et al (eds.). Da mulher às mulheres: dialogando sobre literatura, gênero e identidades. Maceió: UFAL, 2006. FOUCAULT, Michael. The history of sexuality. New York: Random House, 1980. HAWKESWORTH, Mary. A semiótica de um enterro prematuro: o feminismo em uma era pós-feminista. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.14, n.3, pp. 737-763, 2006. PHOENIX, Ann. “(Re)constructing gendered and ethnicised identities: are we all marginal now?” Open lecture at the University of Humanities, Utrecht, 1998. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. SCHMIDT, Rita Terezinha. “Mulher e Literatura: histórias de percurso”. In: CAVALCANTI, Ildney et al (eds.). Da mulher às mulheres: dialogando sobre literatura, gênero e identidades. Maceió: UFAL, 2006. p.31-42. SPIVAK, Gayatri C. The post-colonial critic: interviews, strategies, dialogues. Ed. Sarah Harasym, NY: Routledge, 1990. Nota biografica A Professora Dra. Liane Schneider está vinculada a UFPB
[1] Uma versão simplificada desse debate foi apresentada na coletânea comemorativa aos vinte anos do GT ‘A Mulher na Literatura’, organizada por Ildney Cavalcanti et al e que está na bibliografia final.
labrys, études
féministes/ estudos feministas |