labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

O feminismo entre a ideologia e a utopia

Maria Carneiro da Cunha

Resumo

De Platão até o século XIX, as escritoras freqüentaram muito pouco as ficções utópicas, dando preferência a outros gêneros de sua criação, como o romance. Entretanto, nesse século, paralelamente a uma série de reivindicações públicas de direitos, começaram a surgir várias utopias feministas que, muitas vezes adotaram a forma, mas não o espírito utópico em virtude da dificuldade de se distanciarem das ideologias predominantes sobre o papel das mulheres. Foi preciso esperar até meados do século XX, para que este espírito de utopia aflorasse, com a criação de mundos realmente alternativos em várias obras feministas.

 

Dentro e fora da História

O século XIX foi marcado por um considerável avanço do pensamento sobre a situação das mulheres e viu surgir os primeiros movimentos organizados para tentar modificá-la; mas, na medida em que não era possível concretizar certas idéias sem mudanças consideráveis no âmbito das relações entre os sexos, elas se chocaram contra o muro de uma forte oposição. A das mulheres é “a luta mais longa”, não só porque sua subordinação é milenar, mas porque elas não constituem um grupo oprimido como os outros: são mais da metade da humanidade, com a heterogeneidade que isso implica. Como no patriarcado sua inferiorização tem caráter sistêmico e está inscrita em todos os aspectos da cultura e da vida social, o feminismo não se refere só às mulheres, mas a toda a sociedade humana como a conhecemos durante pelo menos os últimos cinco milênios. Compreendido nesses termos, ele é, pois, indissociável de um amplo processo em andamento de transformação ou mutação da chamada civilização patriarcal e foi assim concebido pelo inventor do termo (Charles Fourier em 1837).

O gênero não é apenas uma estrutura fundamental para a manutenção da ordem social existente; é também a chave da identidade pessoal dentro dela. A mudança de sua forma hierarquizada requer das mulheres - as principais interessadas em sua transformação - uma luta simultânea no plano simbólico-cultural, psicológico e sócio-político, que não é isenta de ambivalências, pois elas não estão fora da cultura e só podem agir a partir dela.  Como toda dominação é uma usurpação de identidade, o primeiro passo é sempre a conquista (ou reconquista) da capacidade de se auto-definir. A visão dual tem sido uma característica dos integrantes de grupos oprimidos: significa ver o mundo ao mesmo tempo através dos próprios olhos e através dos olhos de outrem

. Essa dualidade de percepção é fruto da experiência de que tanto o ser como a realidade do indivíduo são definidos pelos outros. Esse dualismo pode ser paralisante, mas também pode evoluir para uma visão mais dinâmica em que a dialética das contradições conduz a novas sínteses (Annas 1978:144). A realidade só pode ser transformada pela transgressão dos limites do que tem sido declarado possível. O pensamento utópico é essa transgressão e também implica um duplo nível de consciência: um centrado no presente, para resistir às coisas tais como são, e outro voltado para o futuro, para imaginar como elas poderiam ser diferentes.

Há quem considere a utopia como uma fuga da História, simplificação redutora de uma relação bem mais complexa. O que somos tem suas raízes no passado, sujeito à lei da irreversibilidade; mas não é imutável, porque o futuro, como tempo da possibilidade, é indeterminado e está sempre em aberto. Construímos o futuro através de nossas ações no presente, mas essas ações dependem, por sua vez, das visões que projetamos sobre como ele poderia ser. Como assinala Ernst Bloch, (1976:355-357 passim), o presente é para nós o momento obscuro, que só adquire sentido no movimento.

Só a utopia clássica é a-histórica porque se sustenta na crença numa verdade transcendente, isto é, fora da esfera do humano. A verdade humana é sempre uma construção em que entram, em doses diversas, elementos da memória e da imaginação, duas faculdades interligadas; onde a memória é apagada, a imaginação empobrece; em outras palavras, é a imaginação utópica, quando não se fecha em novo discurso totalizante, que nos fornece o distanciamento necessário em relação às verdades autorizadas, abrindo caminho para o diferente.

A dimensão antecipadora é o que faz o feminismo utópico; sua ligação com a ação é o que o torna político (Bammer 1991:59). Mas não da forma tradicional, porque “não é um movimento reivindicatório strictu senso. Enquanto outros movimentos se constituem em torno de uma exclusão específica, o feminismo se constitui em torno de uma exclusão dispersa e, ao mesmo tempo, onipresente, pois perpassa todas as possíveis posições do indivíduo na vida cotidiana; é, portanto, uma luta contra uma condição dada historicamente pela desigualdade nas relações de gênero, que se expressa ao nível político e ao nível privado, ao nível da razão e do afeto, do trabalho e do prazer, da obrigação e do desejo.” (Pinto 1992:132).

Daí sua complexidade e sua radicalidade, mas também seu caráter fluido e em boa parte submerso. A própria dificuldade de se conceituar genericamente “mulher” ou “mulheres”, sem recair em categorias abstratas e falsamente universalizantes torna a abordagem historizante, contextual ou relacional a mais adequada (Dias 1992:40-41 passim).

Entretanto, até recentemente, as mulheres tinham sido estudadas e descritas majoritariamente por homens e sua experiência tratada como secundária e considerada como expressão de um subgrupo ou minoria, uma categoria específica a ser incluída em notas de rodapé ou num capítulo sobre “a mulher” ou “a família”. Como outros grupos dominados, as mulheres ou não têm História ou ocupam uma posição marginal naquela que é escrita do ponto de vista dos dominantes. Espoliadas de seu passado, também o são dos elementos essenciais para a construção da própria identidade e de sua autonomia.

Para que uma mulher assuma a condição de sujeito, precisa negar uma História que a nega e assumir seu lugar como participante da própria História. Recuperá-la é, pois, devolver uma memória que foi roubada e abrir caminho para o futuro. Porém, a perspectiva ginecocêntrica nem sempre é fácil de recuperar , porque a onipresença do viés patriarcal afeta as categorias em que pensamos, partindo da falsa premissa de que o ponto de vista masculino é o correto ou o mais adequado para perceber e explicar todo o mundo da experiência humana. A historiadora Gerda Lerner afirma que “a chave para entender a História das mulheres é aceitar que é aquela da maioria da humanidade. A que foi escrita até agora é a da minoria, que pode perfeitamente ser considerada, por sua vez, como um subgrupo” (Lerner:1979:16-17).

Mudanças e resistências

O século XIX constituiu para as mulheres ao mesmo tempo um período em que foram mais constrangidas e/ou exploradas, mas também aquele dos primeiros protestos organizados e das primeiras vitórias. A longa luta pela conquista dos direitos mais elementares da pessoa - inspirada pelo individualismo moderno e, ao mesmo tempo, limitada por ele - quando não é inteiramente omitida pela maioria dos historiadores, é recuperada de forma caricatural à direita e à esquerda. O próprio termo “sufragismo”, que muitos adotam, é insuficiente para abranger todas as reivindicações que se estenderam por mais de 150 anos, pois elas também incluíam o direito à educação, à liberdade amorosa e à livre maternidade, direitos econômicos e civis, além dos políticos. Se nessa época não foi possível alcançar objetivos mais abrangentes de transformação social, os inegáveis avanços das mulheres em várias áreas forneceram bases sólidas para a retomada das lutas mais adiante.

No início do século XX, já era possível falar numa consciência feminista internacional nos países do Ocidente e num consenso em relação a certos temas: a idéia de que a inferiorização da mulher se deve à educação e não à natureza; o protesto contra a “morte civil” no casamento e na família e contra o confinamento na esfera privada; a recusa da dupla moral; a noção de que a libertação das mulheres só podia ser obra delas mesmas; a ligação de sua liberação com aquela dos operários e outros grupos oprimidos e/ou explorados (incluindo os escravos); o pacifismo e a oposição às guerras; a crença de que não há democracia quando as reivindicações das mulheres são ignoradas; a idéia de que sua luta é também aquela pela evolução de toda a humanidade. Assim, como observa Andrée Michel (1979:77), após um século, já se podia dizer que “nada que é humano é estranho ao feminismo”.

Porém, essa evolução não tem sido uniforme nem isenta de contradições. Em sua dimensão estritamente reivindicatória, pode-se considerar o feminismo como a confluência de três grandes correntes da teoria social e política moderna: a dos direitos civis e políticos, definidos pelo liberalismo dos séculos XVIII e XIX; a dos direitos econômicos, definidos pelo socialismo dos séculos XIX e XX; e a dos direitos sexuais, definidos pelas teorias de liberação sexual, sobretudo do século XX. A esses, as mulheres acrescentaram os direitos reprodutivos, categoria geralmente omitida pela tradição política androcêntrica (Eisenstein 1983:139).

Sua reivindicação por parte das mulheres complica e subverte as definições de política como algo inerente à esfera pública, o que pressupõe uma prévia divisão de esferas. Por analogia com essas correntes, parece claro que mesmo no Ocidente as mulheres ainda não conseguiram consolidar sua “revolução burguesa”. Os grupos dominantes tendem a considerar excessivos até pequenos avanços por parte dos dominados. No entanto, até a mera conquista de direitos formais por parte das mulheres está longe de ter terminado (um país como a Suíça, por exemplo, só estendeu o direito de votos a todas as suas cidadãs em 1990!).

Ela é necessária mas insuficiente para mudar as condições concretas de vida da maioria delas; e os direitos já alcançados estão sempre sob ameaça de revogação ou restrição: a facilidade com que as conquistas femininas podem ser rapidamente solapadas pela inversão de tendências políticas e ideológicas ou por crises econômicas localizadas tornou-se clara nas últimas três décadas.

Esse fenômeno de recuo ou backlash - como o denominou Susan Faludi em seu livro homônimo (1991, sobre as perdas das mulheres americanas durante o governo de Reagan - não é uma novidade: sucedeu na Rússia sob Stalin (que restringiu boa parte das conquistas de 1917); em vários países europeus com a ascensão do nazi-fascismo entre as duas guerras mundiais; na época da Grande Depressão e nos anos 50 e agora no goverrno de Bush filho nos Estados Unidos. Isso mostra que não se pode falar em “pós-feminismo”, como se fosse um movimento homogêneo e linear, com metas previamente estabelecidas, embora muitos e muitas (como Badinter 1991) já falem genericamente do feminismo no passado, deixando de levar em conta as desigualdades entre as mulheres no presente.

Analisando as principais diferenças entre o que se convencionou chamar de “primeira e segunda ondas” feministas, verifica-se que foram as questões relativas à sexualidade e à posição da mulher dentro da família as que encontraram maior resistência. Ela é consistente com a ansiedade e os temores que acompanham todos os grandes processos de transformação social. O da industrialização que, a partir de alguns países europeus, mudou a face do mundo ao longo dos séculos XIX e XX, foi altamente traumático; a idéia de “progresso” não era um contrapeso suficiente para o agravamento de conflitos que ele representou para amplas camadas da população.

O reforço da família tradicional - e de uma imagem idealizada da mulher dentro dela - pode ser melhor entendido se pensarmos que, num mundo que muda constante e aceleradamente, ela passa a ser considerada como um porto seguro, uma esfera humanizada num ambiente crescentemente desumanizado. Paralelamente, as relações de gênero desenvolvidas no âmbito privado, naturalizadas pela ideologia, passam a constituir o substituto simbólico de uma relação mais harmônica com a natureza, que permanece conflituosa em todos os outros âmbitos. Ao demonstrar os problemas também nesse âmbito, o feminismo não cria conflitos inexistentes; apenas serve de veículo para aqueles já existentes mas cujas manifestações foram suprimidas (Miller 1976: 132-133).

Nas utopias escritas pelos homens nesse período, propõe-se a correção apenas do que se considera negativo na sociedade, mas os arranjos de gênero dentro da família não são considerados desfavoráveis do ponto de vista masculino. Como havia, por outro lado, uma constante insatisfação feminina, que começava a se expressar também na área pública, aqueles apontados como progressistas “resolviam” a questão através de estratégias discursivas em que os ideais do “mundo novo” e os da “verdadeira feminilidade” tornavam-se inteiramente compatíveis.

Assim, mesmo nas visões de futuro em que outros aspectos mostravam mudanças radicais, os leitores eram assegurados de que o gênero se mantinha constante: não importa o que mudasse, a “mulher” permanecia a mesma. E implicitamente, o “homem” também (Bammer 1991:30). Nas utopias de Bellamy e Morris, respectivamente Looking Backward e News from Nowhere, esse aspecto ressalta especialmente. A defesa meramente retórica da igualdade entre os sexos é contrastada com a apresentação de figuras femininas das mais convencionais. Apesar da afirmação de que todas trabalham fora de casa, são mostradas realizando apenas as tarefas femininas tradicionais. E mesmo nesse mundo inteiramente transformado, continuam sendo definidas só em relação ao casamento (ou ao homem) e à maternidade.

Ascetismo forçado

É interessante como esse ideal da “verdadeira feminilidade” opera do lado das mulheres. A ligação entre a repressão sexual, o papel da mulher na família e sua opressão mais ampla dentro da cultura e da sociedade já está perfeitamente articulada no pensamento de Charles Fourier, desde o fim do século XVIII. Mas esse pensamento ou foi rejeitado pela maioria de suas contemporâneas - inclusive as que se diziam suas discípulas - ou só passou de forma indireta e filtrada através de alguns saint-simonianos. A idéia de que o amor deve ser livre certamente atraiu algumas delas, mas só se tornou aceitável acompanhada de uma forte idealização da mulher, como a fornecida por Enfantin.

E o virtual abandono dessas teses no feminismo da segunda metade do século XIX indica o grau de resistência que encontraram, mesmo em sua versão edulcorada. O conflito está presente de forma explícita ou latente em toda a literatura feminina do século XIX; mas talvez tenha sido Olive Schreiner, escritora inglesa nascida na África do Sul, aquela que melhor expressou de forma alegórica em seu apólogo Three Dreams in a Desert (Três Sonhos num Deserto), de 1890, a quase impossibilidade para as mulheres dessa época de harmonizar as necessidades erótico-afetivas com as aspirações emancipatórias. Entre o ascetismo compulsório e a dependência subserviente, ela ainda prefere o primeiro, como outras antes dela.

Entretanto, o “ascetismo” das mulheres vitorianas pode ser mais bem compreendido se recolocado em seu contexto. Ele se deve não só à repressão sistemática de uma educação puritana, mas ao fato de que a sexualidade feminina, nos limites estreitos do casamento burguês em que era admitida, apresentava para elas contradições reais numa época em que métodos contraceptivos eficazes não estavam disponíveis e os direitos conjugais dos maridos eram absolutos, geralmente sem levar em consideração o desejo da mulher, tido como inexistente.

As condições das mulheres para exercer sua própria sexualidade eram das mais desfavoráveis e elas suportavam mal a que lhes era imposta como pode-se ler, por exemplo, no conto Virgin Soil de Egerton (1895): “O casamento tornava-se para muitas uma prostituição legal, uma degradação de todas as noites, um jugo odioso sob o qual envelheciam como meras portadoras de filhos, concebidos num sentido de dever, não de amor (apud Showalter:1978:189)”. Assim, a ignorância masculina, o senso de opressão física, os perigos da gravidez e das doenças venéreas (a sífilis, tal como a AIDS atualmente, era endêmica, incurável e transmissível à prole) e a falta de qualquer meio para expressar suas necessidades nesse campo, faziam da abstinência a opção menos ruim para um grande número de mulheres. Ao mesmo tempo, a virtual impossibilidade de operar na área pública e obter independência econômica, tornava o casamento impositivo para quase todas, transformando suas vidas em dilema insolúvel. A divinização do “instinto maternal” como base ideológica era uma válvula de escape insuficiente para as muitas que se sentiam oprimidas por essa espécie de sexo, sobre a qual não tinham controle nem escolha.

Por outro lado, o modelo idealizado de mulher obviamente não se aplicava a todas num momento em que enormes contingentes femininos eram explorados como mão-de-obra barata (ou escrava na América e nas colônias). Essas mulheres não eram descritas como anjos, mas eram tratadas como animais, ou mais adequadamente, bestas de carga. Eram elas também que iam engrossar as fileiras de outra válvula de escape, instutucionalizada para a manutenção do privilégio masculino: a prostituição.

Em Londres, como já observara Flora Tristan (1978) no começo do século XIX, elas eram legião, desmentindo a cada passo os discursos moralistas sobre a “pureza” feminina. Não por acaso, a psicanálise surgiu exatamente nesse período: a maior parte dos clientes de Freud era constituída por mulheres de classe média ou alta e o novo discurso sobre sua sexualidade estruturou-se a partir de um viés patologizante. Como os chamados “fatos da vida” agora tinham nomes concretos (mesmo rotulados como complexos, neuroses etc.), podiam ser expressados de alguma maneira e mantidos na esfera privada.

Foi preciso esperar até o século XX para que Emma Goldman (1972):137) apontasse que uma emancipação dentro dos limites da moral imposta era estreita demais para permitir uma verdadeira realização humana. “No domínio da ética - diz ela - ainda permanecem muitas ruínas decadentes do tempo da não contestada superioridade do homem; e bom número das emancipadas é incapaz de se livrar delas”.

A mesma problemática pode ser detectada nas utopias femininas escritas nesse período. Num levantamento realizado por Daphne Pataï (1981:184), pelo menos 102 utopias foram escritas por mulheres entre 1836 e 1979, só na língua inglesa. Mas, até pouco tempo atrás, poucos sabiam de sua existência, já que nem sequer são citadas nos estudos desse campo. Várias utopias de autoria feminina desse período podem ser rotuladas grosso modo como feministas, porque nelas, ao contrário do que ocorre nas utopias clássicas e na esmagadora maioria daquelas escritas pelos homens, as mulheres não se situam à parte e são apresentadas como sujeitos plenos em vez de meros objetos da ação.

Entretanto, a maneira como se entrelaçam em cada texto os elementos utópicos e os ideológicos depende de como se articulam os impulsos emancipatórios no sentido da transformação e os temores em relação às suas conseqüências . Assim, embora muitos desses textos tenham sido inspirados pelos movimentos feministas de suas respectivas épocas, alguns identificaram-se de tal forma com a ideologia predominante, que, a não ser pela forma, mal podem ser considerados utópicos hoje.

De Mary Wollstonecraft a Simone de Beauvoir, as feministas têm indagado como poderiam ser as mulheres se as condições que vêm truncando seu comportamento e suas aspirações fossem outras. Ao criar e desenvolver alternativas ao que existe, a literatura especulativa é, pois, o veículo mais adequado para tentar responder a essa questão. Dois parâmetros têm sido propostos: uma sociedade bissexual igualitária e sem dominação entre os sexos e uma sociedade monossexuada em que os homens desapareceram ou foram eliminados. Nesse período, a última forma foi a que predominou em textos escritos por mulheres de posições políticas bem diversas. Sua redescoberta nas décadas de 70 e 80 do século XX, abre para a teoria feminista novas possibilidades de análise comparativa, mostrando mudanças e permanências ou diferenças de ênfase. Como qualquer texto, ensejam linhas diversificadas de leitura, de modo que as interpretações de hoje ajudam a iluminar não só o passado, mas as tendências, os impasses e as polêmicas do feminismo contemporâneo.

A eliminação do gênero masculino surge nessas utopias menos em conseqüência da reivindicação de posturas separatistas por parte das autoras do que de uma separação existente de fato, fruto de uma extrema polarização entre os sexos na sociedade burguesa de então. Ela é expressada pela ideologia das chamadas “esferas separadas”, pois os sistemas de dominação são geralmente “naturalizados”, atribuindo-se à natureza o que é sócio-cultural e político. Em relação à dominação de gênero esse papel coube por muito tempo ao discurso religioso. Com o declínio no Ocidente da influência das religiões institucionalizadas, a função naturalizadora passou a instâncias como o discurso médico-científico.

Alguns autores, como Michelet, recorrem abundantemente à medicina e à biologia da época para justificar seu ideal de feminilidade, mas não dispensam de todo a retórica anterior. O papel da mulher, definido em função das necessidades do homem, é sacralizado sob a forma de adoração do “eterno feminino”. O discurso não difere muito daquele da religião tradicional, mas, num momento em que se avolumavam as reivindicações das mulheres, convencê-las de que são “por natureza” moralmente superiores aos homens desde que fiquem onde estão, é mais eficaz que a eterna condenação de Eva. É esse pano-de-fundo ideológico da imutabilidade dos gêneros que explica o surgimento de várias utopias monossexuais no século XIX. Enquantto discursos masculinos influentes reiteravam que a feminilidade é superior à masculinidade, algumas autoras os pegam pela palavra, levando às últimas conseqüências esse argumento ao imaginar um “mundo melhor”, simplesmente eliminando o renitente gênero masculino.

As utopias monossexuais eram uma resposta imaginária para os dilemas mais prementes de muitas mulheres: nelas, continuavam a ser mães sem ter que sque se sujeitar a uma sexualidade indesejável; podiam atuar publicamente e obter a autonomia econômica almejada, ao mesmo tempo que mantinham a auto-imagem angelical, preservando assim os elementos da ideologia dominante sobre a “verdadeira feminilidade”.

Dessa forma, permanecem prisioneiras de uma lógica dualista na qual as mulheres, associadas à natureza, são apresentadas como a antítese dos homens e de sua cultura . Como o papel da mulher é revalorizado mas não redefinido, há um reforço dos conceitos tradicionais sobre os gêneros em vez de sua diluição. Mary Wollstonecraft (1976:99) certamente compreedeu melhor as armadilhas desse endeusamento, comentando ironicamente: “Em que incoerências recaem os homens quando seus argumentos são destituídos de qualquer princípio. As mulheres, as frágeis mulheres, são comparadas aos anjos; porém, se poderia supor que seres de uma ordem superior possuíssem mais inteligência que o homem; senão, em que consistiria tal superioridade? É também por zombaria que lhe atribuem mais bondade, piedade e benevolência. Duvido que seja assim, mesmo que seja dito por cortesia, a menos que a ignorância seja considerada a mãe do devotamento.”

Se o que distingue o modo utópico é seu caráter oposicionista ao que existe, nos textos concretos, a relação entre o utópico e o ideológico é sempre complexa senão ambígua. Obviamente, algumas feministas de então procuraram usar o discurso dominante sobre as mulheres para seus próprios fins, uma estratégia arriscada, pois invocavam os mesmos argumentos usados para manter a situação que tornara o movimento emancipatório necessário. Quando se recorre a conceitos de gênero ideologicamente petrificados, recai-se numa posição conservadora e, sob uma mudança aparente, as estruturas sociais permanecem intocadas; os “novos mundos” assim concebidos só são utópicos para uma ínfima minoria. A romantização das mulheres como a encarnação da virtude e da bondade avaliza, em última análise, a ideologia das esferas separadas, em função da qual seus direitos enquanto indivíduos tinham sido praticamente eliminados (Bammer 1991:35, 38 passim).

Além disso, na visão baseada numa identidade feminina ideal, tão perfeita que dispensa qualquer mudança, o motor da transformação passa da mulheres (as interessadas) para os homens (não interessados), dependendo de um hipotético desejo dos últimos de recuperarem o que perderam (ou negaram) de sua humanidade no decorrer do processo de dominação. Enquanto esperam Godot, as mulheres perdem seu foco em si mesmas e umas nas outras e enfraquecem sua capacidade de ação oposicionista e até sua capacidade de imaginar futuros realmente diferentes e caminhar nessa direção.

Assim, a própria base de um movimento feminista é minada, porque ele não pode se desenvolver sem a construção simultânea de uma subjetividade e sem a articulação conseqüente do pessoal com o político. A identidade feminina não é um elemento a priori dado por uma pretensa natureza, mas algo que se elabora em termos relacionais no âmbito de uma coletividade de mulheres. A natureza, tanto quanto a cultura, é uma construção histórica. E “o ideal da feminilidade e a chamada natureza feminina são modelados por uma sociedade masculina, a qual, quando quer parecer humana, cultiva nas mulheres sua própria correção, num ato de insofismável domínio”, como observou Adorno (em Minima Moralia, apud Bammer 1991:76).

As mulheres não podem se dissociar de maneira idealista do patriarcado, porque também fazem parte do sistema; mas podem se libertar da prisão de uma economia especular em que as próprias imagens de si mesmas são produzidas pelo desejo alheio. O processo de transformação de objetos em sujeitos surge originalmente no âmbito do desejo, como acentuou Fourier, corroborado por inúmeras feministas do passado e do presente; o resgate por elas mesmas de suas energias libidinais - no sentido amplo, que engloba tanto o erótico como o criativo-imaginal - é uma dimensão essencial da liberação das mulheres, pois este é não só um sítio primário da repressão, como assume formas diferentes de acordo com o gênero.

Mulheres perfeitas

O tema da “superioridade moral” predomina em vários textos utópicos escritos por mulheres no século XIX e persiste em alguns do século seguinte. Three Hundred Years Hence, de Mary Griffith, publicado anonimamente em 1836, é uma das primeiras utopias femininas americanas e antecipa questões que serão focalizadas depois tanto pelos movimentos feministas como por seus adversários; oscila entre o culto da “verdadeira feminilidade”, que prescrevia para as “damas” o ideal da piedade, da pureza e da domesticidade, e a reinvidicação de igualdade e de liberdade sexual. Cautelosamente, Griffith utiliza um narrador masculino que, após um sono de 300 anos, desperta para testemunhar o resultado de uma revolução pacífica na qual as mulheres obtiveram a igualdade econômica. “

Em vez de usurpar nossos privilégios, elas optaram por se devotar altruisticamente à melhoria da humanidade: aboliram a guerra e os duelos, tornaram ilegais o fumo e o álcool e expurgaram a literatura das passagens indelicadas” - constata ele. As mulheres do futuro continuam fazendo a mesma coisa que suas antepassadas burguesas: tomam conta da família, com a única diferença de que estenderam suas funções moralizadoras a todo o Estado. Quatro décadas depois, a Women’s Suffrage Association repete os mesmos argumentos de que as mulheres deveriam obter o direito de voto para cumprir seu destino de “mães da família do homem”. Como “mães da nação”, iriam criar uma humanidade mais nobre e altruísta. A “diferença” é transformada num passe de mágica de inferioridade em superioridade.

Mas em 1889, tais argumentos já tinham sido colocados de maneira bem diferente  em Mizora: A Prophecy, de Mary E. Bradley (publicado originalmente sob forma seriada em The Cincinnatti Commercial, 1880-1881); em vez da abnegação, as mulheres preferem assumir o controle sobre suas próprias vidas, criando um mundo de acordo com seus interesses. A espécie masculina extingue-se e elas descobrem seu grande potencial; o mundo torna-se próspero e florescente em todos os aspectos.

Trata-se não só de um “novo mundo” mas de uma nova espécie, pois, após descobrirem os segredos da procriação, fabricam uma raça perfeita de mães e filhas louras, de pele clara e olhos azuis, gostos refinados e maneiras graciosas. Em outras palavras, o protótipo ideal da “dama” branca de classe alta. Através de avanços científicos e tecnológicos, a sociedade de Mizora eliminou a doença, o crime e a pobreza e transformou o trabalho em lazer; eliminou também as raças escuras e “a natureza mais grosseira dos homens”. Enfim, ela só é utópica para uma camada diminuta da população feminina.

Tanto no caso do gênero como no da raça, atribui-se à natureza o que é cultural, que é exatamente o que faz a ideologia. E é essa própria concepção que torna imperativa a “solução eliminatória”. (Griffith é um pouco mais suave e sua solução para o problema racial é a “reexportação voluntária” para a África de todos os escravos e ex-escravos, depois da indenização aos donos). Partindo da premissa de que o lar é o lugar apropriado para as mulheres, Lane tranforma o mundo inteiro em sua réplica. As mulheres do futuro são exatamente iguais às únicas que ela aceita no presente.

O rótulo de “utopia feminista” sob o qual o livro foi republicado em 1975 soa desafinado quando se considera que, tanto na primeira como na segunda fase, os movimentos feministas americanos surgiram respectivamente na esteira da militância abolicionista e do movimentos pelos direitos civis dos negros. Se lhe fosse possível ler esses textos, a ex-escrava Sojourner Truth certamente voltaria a bradar: “Olhem para mim! Olhem meus braços! Arrastei o arado, plantei e armazenei as colheitas, nenhum homem poderia me colocar sob tutela... E, pior acaso, não sou mulher?” (Do discurso por ela proferido na Convenção dos Direitos da Mulher em Ohio em 1851).

Uma sociedade de mães

A idéia de que as mulheres são intrinsecamente melhores que os homens e capazes de criar coletivamente sociedades mais harmoniosas está também presente em autoras com visões e objetivos bem mais amplos que a conquista do direito de voto, como Charlotte Perkins Gilman, que considerava a última simbolicamente importante, mas não uma meta prioritária. Conhecida na virada para o século XX como uma das principais autoras feministas de língua inglesa, junto com Olive Schreiner e Ellen Key, sobretudo por sua obra Women and Economics (1898), em que se fundem idéias socialistas e feministas, Gilman foi quase completamente esquecida até ser redescoberta no fim da década de 70 do século XX, com a publicação em livro de sua utopia intitulada Herland.

Publicada originalmente em 1915 de forma seriada em The Forerunner (O Precursor) - revista que ela editava desde 1909 para divulgar seus escritos e idéias, pouco aceitos pelos periódicos tradicionais - é o segundo de seus textos utópicos, precedido por Moving the Mountain (1911) e seguido por With Her in Ourland (1916), que é sua continuação.

Em Herland, ela imagina uma sociedade só de mulheres, um mundo onde os homens desapareceram há dois mil anos. Essa nação exclusivamente feminina está situada numa região selvagem separada por montanhas intransponíveis por terra e, durante uma expedição exploratória, é descoberta por acaso por três americanos que conseguem atingi-la num avião. Eles encarnam os tipos mais comuns de atitudes masculinas em relação às mulheres - o conquistador (Terry), o cavaleiro andante (Jeff) e o intelectual condescendente mas recuperável (Vandyck) - e é através das reações deles que as diferenças entre os dois mundos vão sendo assinaladas, seguindo um clichê do gênero utópico.

Ela reincorpora vários dos elementos presentes nas utopias de Griffith e Lane, como a eliminação dos homens, um universo de mães e filhas que se reproduzem por partenogênese, a idealização da maternidade, a defesa de um eugenismo excludente e a narração através de um personagem masculino. E, tanto como as outras, seu objetivo não é separatista, mas o de introduzir uma perspectiva de distanciamento para criticar as atitudes masculinas e esvaziar os principais argumentos antifeministas de sua época.

Entretanto, ao contrário das anteriores, considerava os comportamentos ligados ao gênero como construções sócio-culturais e, portanto, mutáveis. Para ela, a esfera privada do lar, da família e da maternidade era um locus primário de contradição e o culto em torno dela mistificava suas funções repressivas, contribuindo para manter as mulheres em seu lugar. Percebendo que os mecanismos ideológicos e os impulsos emancipatórios  estão em boa parte interligados, tenta resolver dialeticamente os dilemas que se apresentam às mulheres.

Por outro lado, Gilman introduz um elemento até então ausente: o humor, utilizando o recurso de um texto explícito e um subtexto implícito. Através da figura do narrador masculino - o sociólogo Vandyck Jennings - ela pretende atingir os homens que liam The Forerunner; ao mesmo tempo, atribuindo aos três homens comportamentos típicos bem conhecidos das mulheres, os transforma em objeto de riso e ironia para as leitoras. Como a maioria dos autores utópicos do século XIX, sua intenção era alcançar um público mais amplo, constituído pelas classes médias de formação recente e em expansão.

Na utopia clássica, o modelo é o diálogo filosófico, dirigido a um círculo restrito de discípulos ou de humanistas, tal como foi desenvolvido por Platão e imitado por Morus; este último, aliás,  escreveu seu texto em latim, língua da elite culta de seu tempo. No século XIX, quando a utopia se torna militante, o leitor não é só o ouvinte a ser persuadido intelectualmente, mas alguém implicado num processo de identificação envolvendo a emoção e a experiência tanto quanto o intelecto. O modelo ficcional passa a ser o do romance popular, fórmula adotada com grande sucesso de público por Edward Bellamy, (cuja obra foi traduzida como Daqui a Cem Anos. Revendo o Futuro) e seguida também por Gilman.

A maternidade está no centro de Herland, mas seu caráter contraditório dentro do patriarcado, no qual constitui ao mesmo tempo um dos pilares da dominação masculina e um baluarte da identidade feminina, não escapou a Gilman. Como Adrienne Rich meio século depois, ela procura separar a experiência da instituição e mostrar que não é a maternidade em si que oprime as mulheres, mas o contexto político, econômico e social em que ela foi institucionalizada. Ironicamente, essa visão surge como resultado de um dos períodos mais repressivos para as mulheres, com a extrema polarização dos gêneros, traduzida na doutrina das “esferas separadas” que predominou durante o século XIX. Nela, o papel da mulher era, além de socializar as crianças, zelar pelos valores morais e religiosos e fornecer aos homens um abrigo do mundo áspero e insensível da competição capitalista.

O notável é que, em vez de rejeitar a cultura feminina que surgiu desse arranjo, Gilman a universalizasse com a base de uma nova sociedade. A própria maternidade surge então como algo novo porque é escolhida livremente e cada mulher tem o apoio de todas as outras. Ela considera que pequenas comunidades mais flexíveis apresentam melhores condições para o desenvolvimento de uma socialidade igualitária e que as hierarquias que estão na base do sistema patriarcal se reproduzem analogicamente no governo, na economia e na religião.

E crê que as mulheres nas quais a competitividade foi menos incutida são mais aptas que os homens a exercer atividades cooperativas. Sua utopia pode ser vista como um experimento para verificar como os elementos ideológicos da maternidade podem liberar um conteúdo utópico, se levados às últimas conseqüências, o que ela faz ao colocar a criação e educação das crianças como função primordial da sociedade que imagina. Como essa tarefa é realizada de forma coletiva e determina todas as outras atividades, a distinção entre esfera privada e pública é substituída por um senso de comunidade em que vida e trabalho são inseparáveis. Os conceitos de “lar” e “família” são esvaziados e “trabalho” é simplesmente “o que precisa ser feito”. Não elimina a divisão de trabalho, porque em Herland abundam as especialistas, mas isso não dá ensejo a privilégios, pois tanto as saberes como seus resultados são democraticamente partilhados.

Zona selvagem

Dorothy Berkson (1990:100-102) compara Charlotte Gilman com sua tia-avó, a escritora abolicionistas Harriet Beecher Stowe, e insere ambas numa tradição utópica americana de autoras imbuídas de zelo reformista, que buscam uma sociedade regenerada e estão convictas de que as instituições da sociedade patriarcal devem ser subtituídas pelos valores e estruturas da cultura feminina. Enquanto Beecher Stowe, vivendo no mundo ainda agrário das pequenas cidades da Nova Inglaterra, aceita sem criticar o casamento e a família tradicional, Gilman, várias décadas depois, quando esse mundo já está em franca desaparição, percebe esse arranjo de família nuclear e domesticidade separada como um dos fundamentos da opressão feminina.

Com assinala Jean Pfaelzer (1983:132), após a guerra civil, o capitalismo industrial se consolidou nos Estados Unidos, absorvendo grandes contingentes de mão-de-obra feminina, cujos salários eram muito inferiores aos da masculina. Já constituíam 20% do total em 1890, concentrados no setor de serviços e na fabricação de produtos não duráveis, o que facilitava a negação do valor econômico e social de seu trabalho. Mesmo assim, acumulado com as tarefas domésticas tradicionais, este já criava novas contradições para um número crescente de mulheres. Gilman que, durante muito tempo, sustentou-se com dificuldade como desenhista de cartões, professora, governanta e dona de pensão, as conhecia por experiência própria.

Analisando várias coleções de cartas femininas do século XIX, Carroll Smith-Rosenberg assinala, por outro lado, que, apesar de excluídas da vida pública, mulheres de diferentes estratos da população americana tinham então uma possibilidade muito maior de estabelecerem entre si fortes laços afetivos e íntimos e de criar redes de apoio recíproco para além da família restrita. Essas relações eram aceitas sem maiores problemas porque se instauravam paralelamente e não se opunham ao casamento tradicional nem contestavam as prerrogativas masculinas.

E, para muitas, essas amizades eram tão ou mais importantes que as relações com os respectivos maridos, que pertenciam a um mundo distinto, com outras normas de socialização. Essas mulheres se situariam de fato no âmbito de uma subcultura, uma espécie de “zona selvagem” - como a denominou o antropólogo Edwin Ardener (1975) - sobre a qual os homens projetavam suas próprias fantasias e à qual atribuíam os valores ameaçados em sua disputa por riqueza e poder na sociedade capitalista.

            Suas representações estão situadas entre dois momentos ideológicos diferentes; no período anterior à 1ª Guerra Mundial, como uma forma de revitalizar a instituição do casamento, o ideal da maternidade e da domesticidade começa a dar lugar à valorização do prazer no sexo e da liberdade sexual. Gilman rompe com o culto reacionário à “esfera feminina”, mas em relação ao sexo sua visão ainda é vitoriana, evidente na ênfase sobre uma maternidade dessexualizada, pura e sagrada. Sintomaticamente, em Women and Economics, ela já fizera a análise da ideologia vigente nos seguintes termos:

“Mais sagrada que a religião, mais constrangedora que a lei ... a matriolatria é um sentimento tão arraigado, tão amplamente disseminado e estabelecido há tanto tempo, que chega a dominar todas as mentes. Está associado com nossos instintos religiosos de um lado e com nossos instintos sexuais de outro, a respeito dos quais se proíbe qualquer discussão - um sendo demasiado sagrado e outro demasiado ímpio.” (apud Bartkowski 1989:32).

Idealização compensatória

O excesso de idealização faz de Herland um mundo estático e, embora a autora afirme que suas habitantes estão sempre em busca de aperfeiçoamento, isso se torna pouco convincente porque não é mostrado na ação. Aliás, como o paraíso poderia ser aperfeiçoado? Por isso, o impulso de mudança vem sempre de fora e é fornecido pelos seres imperfeitos que ali se introduziram: os homens. A estrutura narrativa é fechada, mesmo havendo uma continuação, porque a tendência é fortemente teleológica. Porém, a utopia é uma viagem e não uma meta. Nesse caso, o discurso utópico deixa de ser heurístico na medida em que a representação totalizante obscurece a noção de processo, passando a ser confortadora em vez de um estímulos para a práxis.

            Certamente, as raízes dessas opções compensatórias estão na própria experiência de Gilman com a maternidade. Dominada por uma depressão após o nascimento de sua filha, ela foi submetida à famosa “cura de repouso” do psiquiatra S. Weir Mitchell (a mesma empregada com Virginia Woolf), que ela descreve num texto de 1892: The Yellow Wallpaper (O papel de parede amarelo). Assim, se pôde ser redescoberta recentemente como teórica feminista e autora utópica, foi porque se recusou a seguir os conselhos do “especialista” de nunca se afastar da filha e não tocar em papel e pena. Ela fugiu do tratamento e do marido, levando a filha; mas, premida por dificuldades econômicas, concordou em devolvê-la ao pai, depois que este se casou com sua melhor amiga, também apegada à menina.

Por um lado, manter os laços de amizade com o ex-marido e a “outra” parecia à maioria ainda mais inaceitável que o próprio divórcio; e, por outro, a pecha de “mãe desnaturada” a perseguiu pelo resto da vida. É evidente que, enfrentando o risco da marginalização, ela recusou as restrições do papel de esposa e mãe que constituía a base da identidade da mulher nessa época. (Em 1900, aos 40 anos, ela voltou a se casar com um primo de quem adotou o sobrenome; ele morreu subitamente em 1934 e Gilman, com 75 anos e já atacada por um câncer inoperável, suicidou-se com clorofórmio no ano seguinte, após escrever uma autobiografia para sua filha).

            Em sua utopia, entretanto, reinstala a própria ideologia que pretendia combater, privilegiando o mental e o racional (identificados tradicionalmente com o masculino) como a esfera “mais nobre”, que deve ser reforçada em detrimento do corporal. Assim, por trás de uma aparente elevação do feminino, seu ideal é o que a cultura definiu como masculino em sua lógica excludente de mente versus corpo. Talvez por isso, as ultracompetentes e perfeitas habitantes de Herland nos parecem seres humanos incompletos, não por serem mulheres, mas porque sâo definidas de forma redutora através da mesma lente da cultura que as reduz na realidade. Apesar de apresentar as mulheres como superiores aos homens, o tipo humano ideal que Gilman tem em mente é similar ao do homem tal como ele vê a si mesmo, expurgado dos elementos que considera indesejáveis e que projeta sobre as mulheres.

O desejo suprimido  

            É curioso que a teórica lésbico-feminista Tucker Farley (1984:236) tenha incluído Herland entre as utopias lésbicas, com base no argumento de que, na época, o que se designava como sexual era apenas a sexualidade fálica. Essa interpretação parece mais a extrapolação de um contexto atual para o passado, pois não encontra respaldo no texto. Na utopia de Gilman, não é só o falo que desaparece, mas o próprio corpo como fonte de prazer sensual. A maternidade é descrita de forma etérea como “um dever sagrado”, apesar de ser uma experiência corporal. A visão é sempre distanciada e instrumental: o corpo deve ser saudável e bem treinado como instrumento adequado do trabalho e da procriação. Não há desejo, pois a dimensão erótica foi completamente evacuada, o que certamente a distancia da maioria das utopias femininas atuais, monossexuais ou não.

            Se a visão de Gilman é muito mais abrangente que as de Griffith e Lane, suas limitações são também as das correntes de pensamento em que ela bebeu. No século XIX e em boa parte do século XX, muitas teóricas feministas permaneceram limitadas pela distinção perfeitamente binária entre o “biológico” e o “social”, herdada das teorias sociais que as influenciaram e modelada ao longo de linhas de separação entre privado e público. Dentro dessa tradição, ao invocar o condicionamento social para explicar as representações e imagens ligadas à mulher, faziam uma leitura dicotomizada da relação entre biologia e sociedade. A fé excessiva na ciência e no progresso permeia tanto o darwinismo social como o socialismo de seu tempo. Não se cogitava então que a ciência também poderia fazer parte da ideologia. Ao escolher como seus mentores o darwinista Lester Ward e o socialista Edward Bellamy, Gilman não escapa nem ao biologismo determinista do primeiro nem ao economicismo do segundo.

            A primeira corrente também foi adotada por outras feministas da época, porque, invocando a ciência, ela fornecia uma teoria de que o progresso era inevitável e de que a evolução social podia ser conscientemente conduzida;

daí a colocar as mulheres num patamar superior da evolução da espécie era só um passo, dado por muitas que se esqueciam, porém, que o mesmo argumento poderia ser usado por outros grupos dominantes como o dos colonizadores brancos sobre outros povos. Sob esse mesmo pretexto, Gilman e outras endossaram as ditas “práticas eugênicas”, eufemismo para um racismo endêmico. O socialismo de Bellamy, por sua vez, era uma diluição das correntes frias do marxismo, amputadas dos elementos crítico-utópicos.

Para ele, o progresso não só era líquido e certo como se baseava no aumento da produção industrial e no desenvolvimento da tecnologia. Sua utopia, que entroniza o gadget como medida da evolução humana, provocou as conhecidas contestações de William Morris e Aldous Huxley, entre outros. O etnocentrismo do “partido nacional” de Bellamy tem pouco a ver com a tradição internacionalista do socialismo e esse aspecto também pode ser detectado nos textos de Gilman, como no título da continuação de Herland (With Her in Ourland), em que “nosso mundo” limita-se aos Estados Unidos.

Dessa forma, permanece o dualismo que ela tenta dissolver em Herland, pois opta pela eliminação do que achava prejudicial às mulheres de sua época e não pela integração atrvés de uma teoria que fosse além dessa esturutura dual de pensamento. A maternidade deixa de ser um valor social para se tornar a função primordial da sociedade, abrangendo a educação, que era o mais importante para ela. Alinha, assim, a maternidade com o sagrado e elimina a sexualidade, mudando o objeto de veneração que é devidamente expurgado de qualquer instinto animal.  

A teoria feminista contemporânea foi bem além: ao conceber um modo alternativo de ligar o pensamento com a vida, proporcionou um ponto de vista crítico a partir do qual desconstruir as formas de conhecimento estabelecidas e introduziu outra ordem de valores dentro do próprio processo de pensar, dando prioridade à experiência vivida. A noção mutante de sujeito, como uma entidade biopsíquica em que ambos os aspectos são inextricáveis, recoloca atualmente a questão das raízes corporais da subjetividade e problematiza qualquer concepção prescritiva e definida previamente.

Em vez da soma de seus órgãos ou de uma essência biológica fixa, o corpo é o limiar do subjetivo, uma interface entre o biológico e o social, entre o campo sócio-político da microfísica do poder e o indivíduo. (Braidotti 1990:95-97 passim). Nos seres corporificados que somos, a afetividade e a sexualidade, que não são dados da natureza mas construções a partir deles, exercem papel preponderante sobre a experiência, com base naquilo que faz um sujeito querer conhecer: o desejo. O desejo é precisamente o que leva o indivíduo a se relacionar com os inúmeros outros que constituem a realidade externa. Por isso, a liberdade sexual é importante para as mulheres, que precisam se redefinir como sujeitos e não só como objetos sexuais;

O sistema patriarcal, ao privilegiar o vínculo homossocial masculino, pode ser visto como a monumental negação de tudo isso, pois, para se manter, é forçado a fazer a biologia coincidir com o papel social, a anatomia com o psico-sexual e a sexualidade com a reprodução. Foi sobretudo em relação ao corpo da mulher que se articularam as negações do patriarcado, que as colocou na base da instituição da família tal como a conhecemos (Braidotti 1990:97-98 passim). Assim, tanto no passado como no presente, uma visão que se pretende feminista e suprime o desejo das mulheres e suas origens corporais, tem poucas condições de transformar as relações concretas entre os seres e a estratificação dos gêneros.

Talvez por isso, Adrienne Rich tenha afirmado que “a re-apropriação pelas mulheres de nossos corpos traria mudanças mais essenciais para a sociedade humana que a apropriação dos meios de produção (Rich:1976:57)”. Se ela ocorresse, elas estariam livres da percepção de si mesmas apenas como mães ou não-mães. Entretanto, tal revolução da consciência não endossaria qualquer crença na “bondade intrínseca” das mulheres em virtude de diferenças biológicas, uma visão que não só deixa de reconhecer os aspectos ambíguos de todo ser humano, suas possibilidades tanto de energia destrutiva como construtiva, mas é, em última análise, determinista, ao descrer da possibilidade de transformação pessoal e social de mulheres e homens.

Nota: Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla e ainda não publicada sobre as relações entre feminismo e utopia - com a análise comparativa das idéias do socialista utópico Charles Fourier (1772-1837) e as de autoras feministas dos séculos XIX e XX - intitulada Os Jardins das Delícias ou o Reino Milenário de Charles Fourier.

 

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Nota biográfica:

Maria Carneiro da Cunha é escritora e jornalista, tendo trabalhado por mais de dez anos na grande imprensa de São Paulo. Foi também colaboradora de várias publicações da imprensa alternativa e é autora de O Que é o Aborto (Cortez, 1980), em co-autoria com Carmen Barroso, e Comportamento Sexual - A Revolução Que Ficou no Caminho (Nobel, 1988), textos que traduzem várias décadas de sua militância feminista.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007