labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007

Viver para si?

O celibato feminino como ato político

Cláudia Maia

Resumo: Na primeira metade do século XX o casamento legalmente constituído, no Brasil, assegurava a submissão e subordinação das mulheres aos maridos. O casamento e a família eram apresentados como o único meio de felicidade e de realização das mulheres. Muitas mulheres, porém, para exercer uma profissão, investir na carreira profissional, constituir-se como indivíduo jurídico, ou manter a liberdade e a autonomia financeira tiveram que optar pela vida celibatária. Este artigo discute aspectos desta escolha, ressaltando o celibato feminino como um ato político.

Palavras-chave: celibato, mulheres, liberdade, autonomia.

Introdução

O celibato feminino, nas primeiras décadas do século XX, foi visto por feministas brasileiras, a exemplo de Cecília Bandeira, como a principal estratégia política contra a dominação masculina legitimada, sobretudo, no contrato de casamento. Para muitas mulheres, feministas ou não, permanecer solteira e fora do controle “jurídico” de um marido, era uma forma de se constituir em indivíduos, exercer mais “livremente” suas escolhas e construir outros modos de vida fora daquele oferecido pela família conjugal.

 O celibato feminino pode ser pensado, assim, como uma recusa ao contrato de casamento que implica e legitima a subordinação das mulheres mascarada num “pacto desigual”, no qual a esposa deve obediência a seu marido em troca de proteção (Pateman, 1993:82). Permanecer solteira para uma mulher, nesse contexto, significava dizer não à sujeição e à submissão, o que, nesse sentido, é um ato político. O celibato feminino foi também um dos múltiplos pontos de resistência nas relações de poder (Foucault, 1993:91-92) inerentes ao casamento, à família conjugal, à obrigatoriedade da maternidade e à heterossexualidade compulsória.

Nesse sentido, este artigo discute como, na posição de celibatárias, as mulheres criavam condições de possibilidade para uma existência mais autônoma, uma vez que poderiam constituir-se em indivíduos jurídicos e mais livres para investir na sua formação escolar, na carreira profissional e saírem da órbita exclusivamente familiar e da dependência masculina. Por isso, o celibato foi visto por muitas mulheres como um caminho possível para que pudessem colocar seus interesses e aspirações no centro de suas escolhas.

Para realização desta pesquisa, utilizei depoimentos de História de vida de sete professoras nascidas entre as décadas de 1920 e 1930 em diferentes cidades mineiras, exceto uma que nasceu a bordo de um navio; testamentos de mulheres que morreram celibatárias, encontrados no Arquivo e Biblioteca Antônio Torres (ABAT) da cidade de Diamantina; e alguns recortes de Jornais. Por história de vida considerei a definição dada por Lígia Maria Leite Pereira, ou seja, o relato de uma narradora sobre sua existência através do tempo, com a intermediação da pesquisadora (Pereira, 2000:118). Conforme ressalta essa autora, “por ser calcada no diálogo, a história de vida permite explorar melhor certos elementos que, em geral, são lacunares nos textos autobiográficos” como, por exemplo, “aspectos da intimidade, processos de tomada de decisão, vida cotidiana” dentre outros (Id. Ibid.: 119-120). Assim, não abordei toda a trajetória de vida das mulheres entrevistadas, mas somente a etapa referente a seu engajamento na vida profissional e suas narrativas sobre não-casamento.

Exceder ao controle: Mulheres “indivíduos”

A feminista  Maria Lacerda de Moura, em seus escritos, atentava para a necessidade de as mulheres assumirem a posição de “indivíduo”, no sentido de viver para si e sem a necessidade de proteção do pai ou marido, como forma de escaparem à apropriação privada, pelo casamento e coletiva, pelos encargos familiares. Para Maria Lacerda, “certos homens de mais (sic.) gosto têm o instinto da propriedade da mulher, exceção da mulher ‘indivíduo’”(Moura, 2005(1926):123). Desse modo, ela afirmava que “todas as mulheres que conseguiram ser ‘elas mesmas’ ou foram solteiras – ou viúvas ou divorciadas ou mal vistas pela família inteira” (Id. Ibid.:120).

Fora do contrato matrimonial e “desobrigadas” das funções requeridas pela maternidade, as mulheres poderiam aspirar a interesses mais individuais e assegurar formas de constituírem-se em “sujeito jurídico”, em “indivíduo”, excedendo os dispositivos legais de controle. Quando maior, elas se tornavam responsáveis por si mesmas e por seus bens; ao contrário das casadas que não podiam nem mesmo receber heranças, pois eram seus maridos, como “cabeça do casal”, quem recebiam.  As solteiras podiam herdar e também administrar e legar seus bens conforme quisessem e, não tendo herdeiros ascendentes ou descendentes, não estavam sujeitas nem mesmo às disposições legais da partilha.

Muitas celibatárias usaram seus testamentos para beneficiar principalmente outras mulheres. Maria Ferreira Rabello, por exemplo, em seu testamento, feito na cidade de Diamantina em 1899, declarando ser católica, “filha natural de D. Anna da cunha Coutinho, já fallecida” e que, “sempre conservei-me no estado de solteira pelo que não tenho ascendentes e nem descendentes”, ela legou à Perciliana Ferreira Rabello, que vivia em sua companhia, uma casa em usufruto na rua da Luz na cidade de Diamantina e determinou as suas disposições de última vontade:

(...) faço este legado com a cláusula de não poder ser alienado e de não poder o marido de Perciliana exercer domínio ou acto algum de administração sobre o mesmo legado, que por morte de Perciliana, ou se não for ela viva no tempo da minha morte, passará para sua filha Itelvina ou a seus filhos, se não for ella viva, com todas as cláusulas exatamente estabelecidas para Perciliana, e só por morte de Itelvina passará o pleno domínio da mesma casa a seus filhos. (grifos meus) (ABAT. Testamento de Maria Ferreira Rabello, 1899, m. 241)

Com esse legado às mulheres, garantindo-lhes sua sobrevivência, ela criou também um dispositivo para evitar que os homens tivessem acesso aos bens da esposa beneficiada. Ela deixou ainda à D. Joaquina Motta “as remanescentes de água” da casa em que residia. Nesse testamento, percebe-se que Maria Ferreira era filha de mulher também solteira, conforme indica a expressão “filha natural”, e viveu em meio predominantemente feminino. Além de bens materiais, ela legou bens espirituais a mulheres para quem pediu que fossem celebradas cinco missas, deixando certa soma em dinheiro para isso. As almas beneficiadas foram: a sua própria, a de sua mãe e a de Joaquina Simpliciana de Avelar. Ainda como “disposições de última vontade”, desejou que fosse enterrada na capela de Nossa Senhora do Amparo e rogou “às Justiças do meu Paiz que o cumpram e façam cumprir como n’elle [testamento] declarado está”(Id. Ibid.).

Na condição de solteiras, as mulheres criavam condições para desdobrar a lei e desvelar as inconsistências que surgem, no mesmo campo discursivo, entre os enunciados de igualdade, que convocava a todos, independentemente do sexo, para participar como “indivíduos livres” do mercado de trabalho. Um decreto dos Correios, publicado no jornal de Diamantina, “O Pão de Santo Antônio”, em 1922, elucida esse processo. O decreto reconhecia e instituía as moças como indivíduos, uma vez que sem o direito à cidadania ativa, as mulheres não poderiam ocupar cargos públicos.

As moças dos Correios, em virtude da circular abaixo, do sr. Diretor Geral passam a ser consideradas indivíduos”.  (...) os indivíduos do sexo feminino poderão exercer qualquer funcção no Correio, que seja compatível com o referido sexo... (O Pão de Santo Antônio, 05/ mar./1922)  (grifos meus).

O termo “as moças” do enunciado circunscreve o referente e, ao mesmo tempo, limita os direitos conquistados estritamente às solteiras[1]. Esse decreto expõe as inconsistências de uma sociedade que, num mesmo movimento, sustentava princípios incompatíveis, simultaneamente igualitários e individualistas, por um lado, e hierárquicos de gênero, pelo outro; isto é, criava-se um equilíbrio entre a necessidade do trabalho das mulheres como indivíduos iguais, e as restringia na sua suposta natureza tendente à conjugalidade e à procriação.

Numa perspectiva de análise marxista, Eunice Durham (1983) argumentou que, para um sistema que consome força de trabalho como foi o capitalismo, em desenvolvimento no Brasil nesse período, “o sexo do trabalhador, pela primeira na história, passa a ser irrelevante”. Assim, primeiramente, criaram-se condições de “inclusão” das mulheres no mercado de trabalho impessoal na categoria indiferenciada de “indivíduo portador de força de trabalho”. Isso constituiu a fundamentação de um modelo de igualitarismo individualista. Nesse sentido, homens e mulheres se enfrentariam no mercado de trabalho como indivíduos aparentemente livres e iguais. No entanto, a industrialização promoveu a separação entre os espaços da produção e o da reprodução, estabelecendo o isolamento das mulheres na vida doméstica e sua exclusão dos direitos políticos. Dessa maneira, para Durham, as mulheres passaram a sofrer uma contradição fundamental:

“a percepção de sua igualdade enquanto indivíduo na esfera do mercado e sua desigualdade enquanto mulher, ancorada na esfera doméstica da reprodução”(Durham, 1983:34),

 ou seja, na família onde prevaleceu a assimetria legalizada pelo aparato jurídico do estado republicano. Assim, posteriormente o gênero teve a função de marcar diferentemente o sujeito dentro de uma sociedade que havia criado condições de um igualitarismo radical.

Um dos mecanismos de controle do trabalho remunerado das mulheres foi o estabelecimento das obrigações mútuas no casamento pelo primeiro Código Civil brasileiro de 1916, que acabou por legislar sobre o status. O código, além de legitimar o exercício desigual de poder e a hierarquia dentro da família, assegurou também aos maridos o direito de proibir o trabalho das esposas fora de casa. Na condição de esposas, além de não poderem se constituir em indivíduo jurídico – elas eram incapazes perante a justiça – as mulheres não podiam, também, concorrer como indivíduos livres no mundo do trabalho, pois dependiam da autorização do marido (Cf. Maia, 2007). Ao legislar o status, o Estado criou, de certa maneira, outra forma de marcar o sujeito instituindo mais um elemento de desigualdade, neste caso, entre solteiras e casadas.

 As celibatárias, ao contrário das esposas, estavam, pois, fora da órbita deste mecanismo, além disso, não tinham uma família para cuidar e reproduzir – com todas as novas atribuições do modelo de mãe/esposa requeridas pelo projeto de modernidade burguesa. No status de solteiras, elas estavam mais desimpedidas para concorrer ao emprego remunerado – não sem restrições de todo tipo – com os homens e na condição de indivíduos em pé de igualdade. Por isso, muitas feministas brasileiras nas primeiras décadas do século XX defenderam o celibato feminino como uma estratégia política de combate à dominação masculina, pois viam o casamento como uma forma de opressão feminina.

Susan Besse, em seu estudo sobre a reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, analisa textos de feministas como os de Elizabeth Bastos, Cecília Bandeira de Melo Rabelo Vasconcelos, Ercilia Nogueira Cobra, Maria Lacerda de Moura, Mariana Coelho e Bertha Lutz, que criticavam abertamente a sujeição das mulheres no casamento. Cecília Bandeira, a Chrysthème, romancista, cronista e articulista da Revista Feminina, defendia o celibato político. Ela argumentava que “(...) enquanto os homens não modificassem seu comportamento, as mulheres estariam em melhor situação sozinhas”, chegando a recomendar que as mulheres pedissem o divórcio ou permanecessem celibatárias:

“Antes o celibato, a nobre existência individual, a digna organização de uma vida sã e isolada, do que um casamento mau, um enlace pernicioso” (Vasconcelos, 1920 apud Besse,1999:46),

dizia ela. Para Maria Lacerda de Moura, conforme já dito, uma das maneiras de as mulheres escaparem à dominação masculina seria assumirem a posição de “mulher indivíduo”, ou seja, viverem primeiramente para si. No entanto, isso só seria possível às mulheres que se conservassem fora de qualquer vínculo conjugal, pois,

 “todas as mulheres que conseguiram ser ‘elas mesmas’ ou foram solteiras – ou viúvas ou divorciadas ou mal vistas pela família inteira” (Moura, 2005(1926):120).

 Ela defendia ainda a “maternidade consciente”, o divórcio e o “amor plural” como forma de libertação das mulheres e de posse do seu próprio corpo; mas, advertia: “(...) primeiramente, que a mulher resolva o seu problema econômico. A mulher tem de se bastar a si mesma na luta pela subsistência” (Id. 2005(s/d): 57). Só conseguirá ser independente a mulher que vive do seu trabalho e que manda na sua própria vida, pois, na condição de esposa,

“ligada pela lei, pelo dinheiro ou pelo receio do que possam dizer, ligada ao homem, casada ou não, dependendo da sua respiração de manhã à noite (...) é lá possível independência?” (Id. 2005(1926):124).

Legalmente, as esposas estavam impedidas de ter um emprego remunerado, administrar bens e de constituírem-se sujeitos jurídicos. Culturalmente, o casamento era representado como a única fonte de sobrevivência para as mulheres e, por isso, elas não necessitariam de uma profissão. Sua formação escolar poderia limitar-se ao suficiente para serem educadoras inteligentes dos filhos e administradoras racionais de suas casas. A esse respeito, feministas como Elisabeth Bastos advertia que “(...) enquanto as mulheres não conseguissem mudar a consciência dos homens, seria muitas vezes melhor buscar um trabalho remunerado como meio de viver honestamente e independente dos ‘caprichos’ dos homens”. Conforme ela,

 “[O] homem não merece confiança, e casar é dar-lhe muita confiança. [...] Em certos e determinados casos, mais vale lutar só do que mal acompanhada” (apud Besse, 1999:47),

ou seja, o melhor para as mulheres seria permanecerem solteiras como forma de conservar sua liberdade e autonomia. Várias dessas feministas também permaneceram solteiras e algumas, como Mariana Coelho, rejeitavam publicamente a glorificação em torno da maternidade e da vida conjugal. Bertha Lutz também rejeitava os papéis de esposa e mãe como uma fonte adequada de auto-realização, status social e segurança econômica. Para ela, a emancipação econômica das mulheres era pré-condição para qualquer outro tipo de emancipação.

Casamento e maternidade também não faziam parte das suas aspirações.  Antonieta Villela Márquez, celibatária, professora, escritora e articulista de jornais de Uberlândia na década de 1920, também defendia maior autonomia para as mulheres através do trabalho e da educação:

“(...) trabalhemos para a completa emancipação da mulher brasileira, porque ela não vive, vegeta. (...) Estudemos, trabalhemos e vejamos se em nosso século, o homem não inclinará a fronte diante de nosso poder” (Márquez, 1920).

Por outro lado, muitas outras mulheres, simplesmente não encontravam maridos adequados que estivessem à altura da sua condição social ou de sua formação intelectual. Uma mulher com capital escolar e com uma carreira profissional, principalmente em atividades intelectuais, se, por um lado, amedrontava futuros pretendentes, por outro, tornava-se mais exigente na escolha de um marido e mais ousada na reivindicação de maior igualdade de direitos no casamento. Conforme sublinha Margareth Rago,

 “os pais desejavam que as filhas encontrassem um ‘bom partido’ para casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de trabalhar fora e obter êxito em suas profissões” (Rago, 1997:582).

Muitas dessas mulheres não estiveram engajadas em lutas feministas assumindo posições como a defesa do celibato político, mas em suas práticas, adotaram formas de vida que foram em si um ato político. Eram mulheres que não viam em um marido a única possibilidade de sobrevivência, o casamento como uma carreira ou única experiência possível para uma mulher, optando pela vida celibatária como forma de assegurar uma profissão remunerada e a autonomia financeira. Uma das professoras entrevistadas para esta pesquisa, a quem chamei de Dália, foi uma dessas mulheres. Ela abandonou as pretensões de casamento para resguardar sua autonomia e liberdade de escolha.  Na citação abaixo, ela explica os motivos de sua escolha e do seu não-casamento:

(...) muitos homens eram irresponsáveis e as mulheres que não tinham emprego, amargavam uma vida horrível de necessidade, de maus tratos, mas elas suportavam porque naquela época também não tinha o divórcio, e as mulheres eram criadas para servirem os homens (...). Meu pai é do século passado nasceu em 1885, minha mãe, por exemplo, era uma espécie de escrava do meu pai, que ela ficava 24 horas por conta dele. Ela era uma servidora dele (...) E a mulher também servia para procriar, tinha mulheres que tinha (sic) 21 filhos. (...). Eu observava isso e não achava graça nesse negócio de casamento. Não casei, porque eu ficava pensando, analisando a respeito do casamento daquela época, era uma coisa terrível! A mulher tinha de ser doméstica de forno e fogão, lavadeira, cozinheira, igual o samba ‘eu quero uma mulher que sabia lavar e cozinhar, de manhã cedo me acorde na hora de levantar’; e era assim... Tem um ditado que fala que ‘quem pensa não casa’, (...).

Desde mocinha eu já tinha emprego, eu tinha dois empregos. Todo concurso que tinha eu fazia, e depois por fim, eu fui professora primária, ensino médio e universitário, e depois eu fiz concurso para o cartório, tirei 1º lugar. Os candidatos eram todos bacharéis em direito, eu não, eu tinha curso de Letras, e tinha uma pessoa que tinha 30 anos de cartório e eu tirei primeiro lugar, nos dois concursos, para o cartório de protesto e de registro civil. Então mais uma vez a mulher, como mulher e solteira, passou na frente dos homens.

(...). Eu ficava pensando muito no casamento da minha mãe, das amigas delas, depois mais tarde das minhas colegas. Eu não tinha ilusão nenhuma, mesmo quando eu era adolescente, eu tinha um medo de casar! Porque minhas colegas todas vinham me contar as coisas, eu era muito calada, discreta, eu era um depositório de queixas e lamentações, e aquilo foi ficando na minha cabeça... (Montes Claros, jul./2004). 

Minha depoente foi uma mulher de muitos pretendentes, mas não estava disposta a abrir mão de sua autonomia e de seu trabalho para cumprir as prescrições de uma mulher casada da sua época. Resguardadas a distância que separa a época dessa fala e de sua vivência e as questões do presente que direcionam o olhar da narradora para o passado no ato de rememorar, eram principalmente as condições impostas às mulheres no casamento que a amedrontavam. Os exemplos da mãe, das amigas, das colegas faziam com que ela percebesse o casamento como algo “terrível” para as mulheres. Em seu discurso, ela estabeleceu o contraste entre a mulher casada – “escrava” do marido, dependente, dona-de-casa – e a solteira, que trabalha, estuda, vence na vida, supera os homens.

Histórias de vida de professoras mineiras

Nas narrativas de outras mulheres entrevistadas para esta pesquisa, os motivos do não-casamento se repetiram, ou seja, priorizaram os estudos e o investimento na carreira – como forma de vivenciar outras experiências – e em alguns casos, principalmente das menos afortunadas, a ocupação ou auxilio à família, abandonando as pretensões de casamento, de família e de filhos, não vistos por elas como fator principal de felicidade e de realização pessoal.

As narrativas permitiram-me discutir aspectos da vida celibatária que possibilitou essas mulheres escaparem ao controle legitimado no casamento. As narradoras possuem trajetórias e origens sociais diversas: duas são filhas da aristocracia rural, quatro da pequena burguesia (comerciantes e funcionários públicos) e uma delas de pequenos agricultores. Todas elas fizeram o curso de magistério, a maioria estudou em escolas normais tradicionais de Minas Gerais, como o Colégio Nossa Senhora das Dores na cidade de Diamantina e o Colégio Imaculada Conceição, em Montes Claros. A mais pobre estudou a duras penas em escolas públicas em diferentes épocas. Somente uma delas não cursou o ensino superior.

Devido à particularidade das narrativas e por tratar-se de um tema que, na maioria das vezes, traz constrangimento às mulheres, optei por manter as narradoras no anonimato, por isso utilizo nomes fictícios para identificá-las: Dália, de quem já me referi, nasceu em Bocaiúva, é licenciada em Letras e bacharel em direito, sua carreia desenvolveu-se como escrivã; Margarida nasceu em Maria da Cruz, à época distrito de Montes Claros, e aposentou-se como professora primária da rede pública de ensino; Hortência nasceu em Brasília de Minas, onde começou sua carreira como professora, ela é licenciada em pedagogia, foi supervisora escolar, inspetora e delegada de ensino; Maria Flor nasceu na zona rural da cidade de Juramento, é licenciada em Letras com especialização em literatura, como professora, trabalhou em todas as séries do ensino básico e fundamental, foi coordenadora de área do MOBRAL e da Fundação Educar[2].

Entre as economistas domésticas, dona Rosa nasceu nos EUA durante viagem da família, possui mestrado e doutorado em Economia Doméstica, cursados nos Estados Unidos; Violeta e Acácia fizeram mestrado em Extensão Rural; as três foram professoras do curso superior em Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa.

As narrativas do não-casamento

Ao ser perguntada sobre os motivos de seu não-casamento, Maria Flor respondeu: “(...) a moça, a senhorita... a menina que fosse dar aula estava muito fadada a não se casar (...) o porquê eu não sei explicar”. Sua resposta indica que estava ciente de que “dar aula”, assumir uma profissão significava para algumas mulheres correrem o risco de permanecerem solteiras.

Parece que as professoras entrevistadas estavam dispostas a correrem tal risco, pois, ao concluírem o magistério dedicaram-se intensivamente ao trabalho, à carreira e aos estudos, como sua principal prioridade. A dedicação ao trabalho aliada aos sentidos produzidos pelo discurso da incompatibilidade entre trabalho remunerado e casamento, certamente concorreram para que a moça que fosse dar aulas não se casasse, mas as escolas, ao se tornarem locais de trabalho predominantemente feminino, também não se constituíam em espaço propício onde as moças casadoiras pudessem encontrar possíveis pretendentes ou iniciar seus romances.

Com exceção de Dália que venceu um concurso para trabalhar em um cartório, todas as outras narradoras investiram plenamente em suas carreiras como professoras. Algumas foram obrigadas a migrar de cidade a fim de exercer a profissão, estudar ou assumir cargos importantes na carreira como diretoras, inspetoras de ensino e uma delas chegou a ocupar o cargo de delegada de ensino, um dos mais altos da carreira. Margarida, por exemplo, se formou na tradicional Escola Nossa Senhora das Dores, em Diamantina, e para exercer a profissão de professora, se viu obrigada a sair da casa dos pais no então distrito de Maria da Cruz onde trabalhava nos negócios da família e se mudar para a cidade de Montes Claros. Ela lembrou:

Quando eu voltei para casa, curso terminado (...) eu voltei a trabalhar. Dava aula particular naquele lugarejo, eu tinha uma porção de alunos e trabalhava com ele [o pai] no escritório dele... porque ele tinha um movimento muito grande. Tinha usina e loja.   Então fiquei lá muitos anos, trabalhando com ele, chegou um ponto que eu falei: isso aqui não dá pra mim não (...) Eu vim para cá [Montes Claros], resolvi num dia e no outro dia... vim. Cheguei aqui numa quarta-feira a noite... sexta-feira eu já estava trabalhando. Eu cheguei à noite no outro dia eu falei: vou procurar emprego. Porque meu pai não queria que eu viesse. Ele falou: o quê que você vai fazer lá? Vou trabalhar (Margarida, 2004).

O casamento não apareceu nas narrativas dessas mulheres como projeto prioritário, mas embora o desejo de maior independência, de vencer na vida, de realização profissional e pessoal fosse enfatizado, o celibato não foi para elas uma opção ou estratégia política. Para umas, ele foi o caminho mais viável, senão o único possível, para se tornarem senhoras de si e se colocarem no centro de suas escolhas. Para outras, uma condição ou resultado de um exercício de escolha, quase sempre, relativa ao desejo de investimento numa vida profissional, seja por uma realização pessoal, no caso daquelas mais afortunadas; seja como forma de auxiliar a família, no caso daquelas mais pobres.

No primeiro caso, temos o exemplo de Margarida citada anteriormente. Ela era filha de usineiros e estudou numa escola normal tradicional para onde só eram enviadas as moças das famílias mais ricas da região. Foi o desejo de maior independência em relação à família, principalmente, do pai por meio de uma profissão, que fez essa professora dedicar-se à carreira. Conforme ela explicou:

Mas meu pai era assim muito rigoroso, muito exigente, principalmente comigo. Depois eu até entendi por quê. Porque eu morava lá, era um braço dele... no escritório, eu tomava conta... Ele viajava muito, ia muito ao Rio e a São Paulo a negócio. Eu tomava conta daquilo tudo de maneira que ele me prendia um pouco por causa disso. Aí eu não queria não... não tinha vontade não [de namorar]... eu saía mais por sair.. eu não tinha vida aqui [onde morava], não vou casar, eu não tenho emprego direito. A hora que ele ficar velho e morrer... ele vai morrer primeiro que eu, pela lógica tinha que ser. Então eu vim [para Montes Claros] por causa disso (Margarida, 2004).

O pai apareceu em suas lembranças como um empecilho a seu casamento e mediante a constatação de que junto dele não teria nem marido, nem carreira, ela resolveu migrar e correr todos os riscos de sobreviver praticamente sozinha na cidade e depender exclusivamente de seus próprios recursos.

No segundo caso, o desejo de auxiliar a família apareceu como principal motivo do celibato em especial para aquelas que pertenciam a famílias numerosas e com poucos recursos financeiros, conforme explicou Hortência ao ser perguntada sobre seu não-casamento:

(...) [não] casamento para mim foi uma opção de vida, viu? (...) eles [os pais] tinham doze filhos, e eu era a segunda da família e meu pai lutava com certa dificuldade... que ele era empregado do telégrafo e tinha que educar doze filhos. Então ele conversava muito comigo que estava em dificuldade e eu falei: olha pai, eu vou ajudar. O que eu puder fazer é pela família. Aí eu comecei por aí. Mas eu acho que quem me escolheu mesmo foi Deus... que quis me separar e não quis que eu me dedicasse ao matrimônio não. Ele me queria assim solteira e dedicando a minha vida aos meus parentes, aos meus amigos, aos meus netos (Hortência, 2005).

Embora inicialmente ela tenha afirmado ter sido o não-casamento uma opção de vida, mais adiante ela, porém, se retirou do papel de agente da ação, colocando-se no lugar de agente passivo no jogo das relações matrimonias e familiares. Assim ela não escolheu, mas foi escolhida, atribuindo a uma instância divina os rumos de seu destino. O seu não-casamento não foi, portanto, sinônimo de um fracasso pessoal, mas se deveu ao fato de que ela foi escolhida para uma missão muito maior e mais importante: a de auxiliar o pai no sustento da família.

Seu celibato não foi um castigo, um peso, um preço a ser pago, mas, ao contrário, foi uma missão que se desdobra no fato de ela ter que abrir mão de uma etapa importante de sua própria vida (o casamento) para se dedicar ao outro: pais, parentes, amigos, “netos” (filhos dos sobrinhos e sobrinhas). Vemos nessa narrativa o funcionamento do interdiscurso que, conforme Eni Orlandi (2002:31), “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa”; ou seja, na sua memória discursiva ela acessou sentidos produzidos antes em outro lugar e esquecidos, mas que determinam o que disse.

A narrativa dessa professora aponta ainda para uma prática tornada comum entre as famílias do interior mineiro que foi a de “separar” uma das filhas para, primeiro, auxiliar os pais na criação dos irmãos e irmãs mais jovens e, depois, se ocupar deles na velhice, bem como da família dos irmãos. Para isso, ela renunciava ao matrimônio e a constituição de sua própria família.

Situação semelhante foi narrada por Maria Flor que viu na oportunidade de inserção na carreira do magistério, quando era ainda muito jovem, uma forma de ajudar a família e de melhorar sua própria vida. Filha de agricultores sem terra, ela era a quarta de uma família de onze filhos, e a mais velha dentre as mulheres. Para sua sobrevivência, a família trabalhava como meeira[3], por isso migrava sempre de uma fazenda a outra, tendo ela estudado em várias escolas rurais até conseguir se formar. Após a conclusão da quarta série primária, ela foi convidada a assumir uma turma numa escola rural:

(...) eu terminei minha quarta série. Aí em Juramento (...) e fui lecionar. (...) Já, numa localidade chamada Ribeirão. (...) eu era uma menina-moça, de dezessete anos... dezesseis, dezessete anos. E fui dar aulas... Na zona rural, que estava sem escola porque a professora veio embora para Montes Claros. Então quando um lugar na minha época ficava sem escola aproveitava... minha época de criança, aproveitava-se a pessoa que terminava a quarta série e que mostrava um certo desempenho.

Então o meu salário era gasto com as mínimas despesas que eu pudesse dedicar a mim, a minha pessoa, e ajudar os meus irmãos menores, tanto em material escolar, roupa, uniformes para irem pra escola, porque todos estudaram graças a Deus e... houve época em que este salário tinha que ajudar na despesa alimentar também da família, porque não é sempre que a família tem os gêneros necessários a alimentação, os gêneros todos. Mesmo meu pai sendo pessoa que cultivava, que produzia, que colhia feijão, verduras, há umas coisas que a terra não produz que a pessoa precisa de comprar. E eu tinha que entrar, na medida do possível, com um pouco do nosso salário para isso. Eu estou falando do nosso salário porque Geralda minha irmã também... (Maria Flor, 2007). 

O salário de professora assegurou por muito tempo certa tranqüilidade e conforto para uma família numerosa e pobre, que vivia em um lugar de escassos recursos monetários. Assim, não foi o desejo considerado “egoísta” de “viver para si” que orientou a escolha dessa professora, mas, antes, o desejo de auxiliar a família e de exercer uma profissão que a conduziu ao trabalho remunerado.  O celibato foi o resultado dessa escolha.

As moças diplomadas que detinham certo capital cultural e independência financeira se tornavam mais exigentes na escolha de marido, pois desejavam parceiros mais cultos, que tivessem pelo menos a mesma formação escolar, e no caso das mais ricas, o mesmo “nível” social. No caso das mais pobres, como Maria Flor filha de agricultores, tornava-se ainda mais difícil conseguir marido adequado já que não pertencia a uma família “tradicional”. Ela enfrentava, por um lado, a concorrência das moças de famílias mais ricas e prestigiadas pelos melhores partidos e, por outro, por morar e trabalhar na zona rural, durante sua juventude, não teve as mesmas oportunidades de participar de ciclos de convivência ou de encontro (como o footing, o cinema, as serestas, as festas) onde encontraria rapazes com formação escolar à sua altura.

A ausência de atrativos pessoais também apareceu na explicação do não-casamento dessa professora:

“(...) eu acho que eles [os rapazes] não me achavam bonita não, havia moças mais bonitas do que eu e eles se engraçavam mais nelas, mas sucesso com eles eu não fazia não” (Id. Ibid.).

Nessa narrativa, vemos o discurso produzindo efeitos. A beleza foi forjada por diversos discursos, principalmente das revistas da época, como um fator essencial que qualificava as moças no mercado matrimonial e que, por sua vez, orientava a escolha da esposa ideal, que deveria ser bela, mas também recatada e submissa.

Por outro lado, a independência e autonomia das mulheres – características associadas à mulher moderna – eram qualidades que pouco interessavam aos rapazes na hora de fazerem suas escolhas. Nesse sentido, uma outra entrevistada argumentava que

“(...) Eu também não servia para casar não, porque eu era muito independente”. Ser “independente” parece que tornava as mulheres menos atrativas no mercado matrimonial. A esse respeito, Maria Lacerda de Moura também citou a resposta de uma ilustre moça, culta, linda, emancipada e consciente à pergunta “por que não se casa a senhorita”? feita por um também ilustre cientista das letras: “Porque mulheres da minha têmpera não se unem a homens vulgares e homens a quem poderíamos admirar não nos querem, e a razão simples: somos independentes e temos caráter e eles precisam de escadas para subir” (Moura, 2005(1926): 125). As narradoras assumiram o discurso e fizeram uso dele para explicar os motivos pelos quais não se casaram.

Celibatárias e Casadas: avaliando escolhas

A dedicação ao outro (representado ora pela família, ora pelos alunos) não significou, todavia, que essas mulheres, em certos momentos, não se colocassem no centro de suas escolhas, quase sempre quando estas estavam associadas ao desejo de maior investimento na carreira e nos estudos. A entrada na carreira profissional e a dedicação intensiva ao trabalho e aos estudos passaram a ocupar todos os espaços da vida dessas mulheres, tornando seu objetivo prioritário, como ficou claro em suas narrativas:

Eu não tinha tempo para isso [namoro] também. Você sabe que eu não tinha tempo? Eu vivia assim fuçando a escola. Escola para mim foi uma continuação de um lar que eu deixei para trás. Vivi em função disso. Então ali eu ia à tarde e à noite, eu ia no primeiro turno, saía às onze horas, voltava para o segundo turno. Começava às duas, eu entrava duas e meia, saía às cinco. Ia às seis para o terceiro turno e saía às dez, dez e meia. Mas negócio de namoro... quem que queria uma pessoa que só vivia atrás de criança e literatura ... (risos) (Margarida, 2004).

Assim, o investimento no namoro e no casamento, que deveria ser feito durante a juventude, foi aos poucos sendo deixado para segundo plano até que, por fim, deixou de fazer parte de seus interesses mais imediatos e de seus projetos de vida. Daí a consciência de que, sem perceber, seu tempo passou:

“(...) as moças namoravam já para casar ou então elas ficavam aguardando o momento propício e este momento passava, como passou para mim e para muitas colegas” (Maria Flor, 2007). Ou ainda, “Eu acho que eu fiquei muito preocupada em estudar e passou o tempo sabe...” (Rosa, 2007). 

Se esse tempo passou sem ser percebido é porque foi um tempo bom e de certa maneira um tempo de alegrias, daí o sentimento de “que valeu a pena”. Como explicou uma delas:

“(...) acho que eu não tive tempo... eu acho que talvez não... mas valeu a pena” (Violeta, 2007). 

Se, em suas narrativas, a opção pelo celibato valeu a pena para elas, o mesmo não ocorreu com o casamento para muitas de suas amigas e irmãs.

“E não vejo muita vantagem, olhando as colegas... Sei lá... não sei se valeu a pena para elas, não” (Id. Ibid.).

A comparação com as casadas apareceu voluntariamente em suas narrativas, quando explicavam os motivos de seu não-casamento ou quando lembravam suas experiências de vida:

(...) eu tinha medo era de fazer um mau casamento. (...) eu observava isso e não achava graça nesse negócio de casamento, não casei, porque eu ficava pensando, analisando a respeito do casamento daquela época, era uma coisa terrível. A mulher tinha de ser doméstica de forno e fogão, lavadeira, cozinheira, igual o samba ‘eu quero uma mulher que sabia lavar e cozinhar, de manhã cedo me acorde na hora de levantar’ e era assim... (Dália, 2004).

O casamento foi visto por elas como algo terrível e como um grande sacrifício devido aos encargos múltiplos exigidos pelas tarefas domésticas, mas sobretudo, pelas renúncias que deveriam fazer, dentre elas pela liberdade.  Ao contrário da mulher casada dona-de-casa, a mulher solteira aparece nas narrativas como dona-de-si, mais livre para ganhar e gastar seu próprio dinheiro, para ir onde desejar e, também, para amar a quem quiser e quantas vezes possíveis.

Se o casamento oferecia às esposas – pelo menos em aparência – o amor do marido e dos filhos, uma prática sexual regular e uma casa para governar, como privilégios exclusivos, nas narrativas das celibatárias entrevistadas, elas também procuraram enunciar seus privilégios em relação às casadas, apresentando o que elas tinham ou poderiam ter e as outras, na condição de casadas, não poderiam: liberdade, autonomia financeira, possibilidade de amar mais vezes. Os seus valores eram outros e se estendiam para além do universo estritamente familiar.

Fora da órbita familiar

O desejo de investimento no estudo e na carreira e o engajamento no trabalho remunerado criaram, assim, condições para que as mulheres celibatárias pudessem sair da esfera familiar, acumularem certo capital cultural e se tornarem mais autônomas. Conforme sublinhou Michelle Perrot, sair do ciclo doméstico e estável da família foi um dos primeiros passos de independência das mulheres, do desenvolvimento de uma “consciência de gênero” e da erupção de algumas rupturas na fronteira dos espaços considerados masculinos e femininos como, por exemplo, no mundo do trabalho (Perrot, 1991).

 As oportunidades de trabalho remunerado para as mulheres derivadas do magistério foram ampliadas também em função do aumento do número de escolas públicas primárias. A necessidade cada vez maior de alfabetização da população, seja para atender ao projeto de modernizar a sociedade, ou para atender às demandas do mercado de trabalho que exigia cada vez mais trabalhadores/as que soubessem ler e escrever, ampliou principalmente a partir dos anos de 1920 o número de escolas públicas primárias e, conseqüentemente, a oferta de trabalho para professoras e suas possibilidades de sair de casa. Os jornais freqüentemente noticiavam a abertura de novas escolas e a nomeação de professoras:

Foi nomeada professora pública da cadeira mista do Riacho das Varas a normalista d. Josephina Marques Vianna (Idea Nova, 06/dez,.1908).

A normalista D. Ambrosina Alice Beltrão foi nomeada para o cargo de professora da 2ª. Cadeira da cidade de Grão Mogol (Id., 26/ago./1906).

Anúncios desse tipo apontam, ainda, para outros elementos, como a maior mobilidade e autonomia das professoras, uma vez que muitas escolas para as quais eram nomeadas estavam localizadas em outros municípios, distantes do controle mais sistemático da família, ou ainda na zona rural, onde as possibilidades dessas mulheres – instruídas e algumas bem-nascidas – de encontrarem maridos adequados às suas exigências eram ainda mais reduzidas.

Maria Flor foi uma das celibatárias que, para estudar e trabalhar, teve que sair e viajar. Ela começou a lecionar na zona rural da cidade de Juramento com a formação apenas da quarta série primária, posteriormente fez o curso de formação de professoras na cidade de Leopoldina equivalente ao ensino fundamental (quinta a oitava série), por último o curso normal e a graduação em Letras na cidade de Montes Claros. Acácia e Rosa também viajaram aos Estados Unidos para complementação dos seus estudos. Hortência trabalhou e ocupou cargos importantes na hierarquia da carreira em várias cidades do Norte de Minas.

As professoras saíam e viajavam para trabalhar, para estudar, para passear, para se qualificar e com isso conheciam e trocavam experiências com as colegas de profissão muitas das quais vivenciavam a mesma condição de solteira. Em 1928 a revista Semana Ilustrada publicou uma foto (abaixo) de uma turma de professoras que saiu do interior para se aperfeiçoar na capital mineira:

FIGURA 7: Alunas do curso de Aperfeiçoamento da Escola Normal Superior

FONTE: SEMANA ILUSTRADA, Belo Horizonte, ano II, n.66/67, 22/12/1928.

A fotografia chama a atenção ainda para as mudanças que podem ser observadas na postura e na imagem desta nova geração de professoras. Diva Muniz estudou as mestras mineiras do século XIX e observou que para inserir no mundo do trabalho e serem socialmente reconhecidas, as professoras tiveram que “interiorizar papéis, valores e normas existentes de forma a pautar suas condutas segundo os padrões” instituídos de mestra da época, “presididos por imagens de professora como pessoa abnegada, distinta, estóica, vigilante, disciplinada e assexuada...” (Muniz, 2002:3). As “professoras de antigamente”, conforme poema de Carlos Drummond de Andrade analisado pela autora, eram feias e usavam óculos, o ensino se fazia com dificuldade e todas se sentiam profundamente infelizes (Id. Ibid.).

As professoras desta nova geração, quando o ensino já havia mudado, não usam óculos, são bonitas, graciosas e modernas: cabelos curtos à melindrosa (e não em “coques”), vestidos curtos, com as pernas à mostra em tons claros e transparentes (e não cobrindo os tornozelos e em tons escuros e pesados), bocas pintadas e insinuantes (e não descoloradas e cerradas) braços descobertos e descansados sobre as pernas, elegantemente cruzadas ou encolhidas (e não cobertos e segurando a palmatória ou rentes ao corpo perfilado, disciplinado), enfeitam os olhos e o espírito dos moços enamorados com sua elegância e inteligência, conforme o enunciado abaixo da fotografia (e não a professora assexuada e desprovida de qualquer atributo físico). A fotografia assinala uma materialidade corporal e indumentária que traduz as mudanças operadas na postura das professoras do século XIX para as dos anos de 1920 em diante que saíam de casa e alteravam a paisagem dos espaços públicos.

A constante e variada mobilidade dessas mulheres criou condições que as possibilitaram desvencilharem-se das cobranças e do olhar mais atento e vigilante da família, do ciclo de amigos e conhecidos; conquistar maior autonomia e romper com certas representações de gênero às quais haviam sido forjadas, embora tivessem que assumir um tipo de comportamento esperado de uma mulher solteira e de um modelo de professora.

Esse modelo imposto de mestra, argumenta Diva Muniz, não foi explicitamente recusado pelas professoras, mas, “por meio de estratégias e escolhas minuciosas” elas se apropriaram dele, “mobilizando-o para seus próprios fins, as professoras ‘feias’ de ‘antigamente’ acabaram por ingressar em um setor do mundo do trabalho antes restrito aos homens” (Muniz, 2005:87). Para muitas, este modelo abnegado e dedicado da professora servia também de justificativa, socialmente aceita, para o não-casamento.

Assim o modo de vida adotado possibilitou que elas não estivessem presas o tempo todo nas redes de significação que as constituíam e assim exceder certos pontos de assujeitamento, por exemplo, o marido como profissão ou a vocação inata para a maternidade e para o casamento. “Porque eu não tive vocação para casamento. Graças a Deus minha filha!”, afirmou uma das professoras pioneiras da economia doméstica entrevistada por Maria de Fátima Lopes (1995). O depoimento de Maria Flor, ao falar sobre a condição das mulheres solteiras da sua geração, também permite perceber esse processo.

(...) Eu agradeço também a minha família que não colocou na minha cabeça que eu ia ser uma titia. Quando eles pensaram que não, eu tinha virado uma titia, eles não me viram virando, porque eu não tive azedume, aquele momento assim: ah, pois é... eu não me casei! Eu não me casei, mas sou feliz, porque a minha condição de amar sempre existiu, se não aproveitaram mais desse amor eu sinto muito! Porque o amor está aí, para dar, partilhar e para viver... (...)

Agora comigo aconteceu uma coisa interessante, que pode ter sido providencial para esse não inculcamento. Por exemplo, as pessoas que conviveram comigo dos meus sete aos quinze anos, não são as mesmas que conviveram comigo na minha juventude, vamos dizer assim dos 18 aos 30, aos 30 e tantos anos. Também quem me viu dos sete aos quinze não sabe se eu sou casada ou não, porque a gente não ficou morando ali no mesmo lugar. A minha família foi sempre de mudar de lugar. Quem não tem terra tem essa vantagem de estar sempre mudando de lugar e para cada lugar que a gente morava a gente construía um grupo de amizade. E depois que eu fiquei adulta, por exemplo, não me consta, não me lembro de alguém ter chegado perto de mim e [perguntar]... mais vem cá! Você não casou? Parece que, pode ser exceção, mas entre os meus amigos e amigas não houve esta preocupação não. Ou nós fomos muito beneficiados, da minha geração, ou então nós fomos realmente diferentes das pessoas que não se casaram, e que sofrem porque não se casaram. (Maria Flor, 2007)

As pessoas com quem ela conviveu não foram as mesmas da infância à idade adulta, o que significou escapar à cobrança mais direta feita pelas pessoas do ciclo de convivência que esperam ver realizadas sucessivamente cada etapa da vida de uma mulher – traçada por seu destino social e biológico – ou seja, o namoro, em seguida o noivado, o casamento, os filhos, os netos... “mais vem cá! Você não casou?”. Significou também que, ao conviver com diferentes grupos de amigos e de vizinhança, ela vivenciou outros valores e representações com os quais se identificou e não somente aqueles do universo burguês. Assim sua mobilidade física proporcionou que seus valores, interesses e pontos de identificação fossem também mais móveis, transitórios, flexíveis e plurais (Braidotti, 2000).

Por outro lado, essa professora é a de origem mais humilde dentre as narradoras e viveu parte de sua vida na zona rural onde a ameaça de se tornar uma solteirona não parece ter produzido os mesmos efeitos que em outros contextos: “(...) minha família que não colocou na minha cabeça que eu ia ser uma titia”, disse ela. O celibato estigmatizado, o terror da solteirona parece ter pertencido nesse momento, sobretudo, mas não exclusivamente, às famílias burguesas e urbanas, ou seja: mais susceptíveis às pressões da modernização (Cf. Maia, 2007). Para as famílias mais pobres e de origem rural não havia problema em ser sozinha ou não aderir a um padrão de conjugalidade.

Ser "sozinha"

Este contraste pode ser percebido ainda no depoimento de Margarida, cujo pai foi comerciante e usineiro e a família esteve envolvida em várias atividades do comércio e da indústria na cidade de Montes Claros:

Isso que ela [a irmã casada] sempre soube me falar: vida boa é a sua. Eu é que sei! Eu sou o homem e a mulher. Eu que tinha que pensar. Que agir e pensar como homem e como mulher. E trabalhar também! A gente sem marido...  Acho que o casamento é uma coisa indispensável. Tanto é que o próprio Deus criou o homem. Depois ele falou: não é bom que o homem seja só. Façamos uma mulher como sua companheira. E foi aí que criou Eva. Ele mesmo viu que no fundo ninguém vivia só não. E nós humanos precisamos de uma companhia. Precisamos de um lar. Precisamos de um braço forte que ajude a gente. A gente precisa muito. Eu acho que toda moça deve casar. A minha [adotiva] casou mal. Por ignorância (...). Mas eu criei para fazer um bom casamento. Que desgosto eu tenho nisso (...). Meu Deus! Eu sei que tudo que eu fiz foi mal feito e errado... exceto escola... escola eu dei tudo que eu pude, não dei mais porque não tinha para dar...

Ela não usou em sua narrativa o substantivo solidão, mas, o adjetivo “sozinha”, no sentido de ser/estar desamparada. Assim, ser sozinha apareceu como uma carga muito pesada para uma mulher e tal situação estava ligada a fatores específicos como a tomada de decisão – “eu tinha que pensar” – à sobrevivência – “e trabalhar também” – à criação dos filhos, neste caso dos sobrinhos, e à velhice.

O casamento era assim, não a realização de um desejo pessoal ou de um sonho de juventude, mas uma possibilidade de dividir os duros encargos da vida. Sem o casamento não havia a divisão de tarefas, baseado em obrigações mútuas, que este pressupunha e ela, que criou irmãos e sobrinhos, teve que executar tudo sozinha, “agir e pensar como homem e como mulher”, afirmou. Por isso, acreditava ter fracassado e errado em tudo que fez na vida. O seu fracasso não estava, entretanto, na sua incapacidade de conquistar um marido para si, mas naquilo que executou sozinha, por isso, afirmou que “toda moça deve casar”.

O fracasso ressaltado, neste caso, é o mau-casamento da sobrinha que ela criou e educou sozinha. A exceção foi a escola, pois foi a sua profissão e esta não pressupunha divisão de tarefas com um companheiro ou marido. Assim, embora se sentisse uma “fracassada”, essa professora é amplamente reconhecida e lembrada na cidade onde vive devido a sua competência no trabalho e por ter idealizado e criado uma escola, no início mantida pela indústria dos irmãos e hoje pelo Estado. Em outro momento, ao lembrar e narrar sua trajetória ela expressou um sentimento de ausência, de algo de lhe falta agora na velhice:

(...) Minha vida aqui foi uma luta. Busquei não sei o que... que chega o fim da vida, o que que eu arranjei? O quê que eu fiz? Estou aí, sozinha, não tenho marido, não tenho filho...  aí sozinha. (Margarida, 2004).

Ser sozinha nesse contexto era não ter marido e filhos, pois ela viveu rodeada de pessoas. Primeiro os irmãos que ajudou a criar, em seguida os sobrinhos e, no momento que a entrevista foi feita, os sobrinhos-netos. A narrativa sobre a solidão dessa professora apareceu voluntariamente na entrevista sem que fosse mencionada ou colocada em perspectiva como um ponto a ser lembrado em sua história de vida.

 Essa narrativa chamou minha atenção, então perguntei à Maria Flor se ela sentia algum tipo de solidão. A resposta também foi contrastante:

“Nenhuma. Eu sinto saudade. Saudade das pessoas (...) de um determinado tempo da minha vida (...) mas solidão não”. Comicamente ela completou: “Mesmo porque depois do telefone, ninguém precisa sentir solidão” (Maria Flor, 2007).

Considerações finais

As histórias de vida dessas mulheres revelaram que, ao contrário da imagem da celibatária egoísta, transformada em solteirona, vivendo exclusivamente para si, ao colocarem suas carreiras profissionais à frente de outros interesses como o casamento e a maternidade, essas mulheres se dedicaram intensamente ao outro representado pela família, pelo trabalho ou pela comunidade. O casamento também não apareceu nas narrativas como uma vocação inata das mulheres.

Para umas ele não foi uma aspiração prioritária, outras simplesmente não viram nele um negócio interessante preferindo o celibato. O celibato não apareceu como uma estratégia deliberadamente política adotada por elas, mas foi uma condição velada, senão a única via possível, para que pudessem colocar seus interesses e aspirações no centro de suas escolhas. Ao não se casarem, entretanto, elas mostravam para as esposas e aquelas que se orientavam exclusivamente nesta direção, a possibilidade de existência fora da conjugalidade, neste sentido, o celibato delas pode ser percebido como ato político. 

Referências

Documentos cartoriais

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Livros, revistas e artigos – Impressos

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Artigo em revista eletrônica

MUNIZ, D. do C. G. Sobre as professores de “antigamente” que eram “feias” e “usavam óculos”... Labrys, Brasília, n.1-2, jul./dez. 2002. Disponível em <www.unb.br/ih/his/gefem>, acessado em 10/maio/2003.

Depoimentos de História de Vida

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DÁLIA, Montes Claros, maio/2004. 1 fita K7

HORTÊNCIA, Montes Claros, set./2005. 1 fita k7

MARGARIDA, Montes Claros, jul./2005. 1 fita k7

MARIA FLOR, Montes Claros, mar./2007. Mp3

ROSA, Viçosa-MG., Fev./2007. Mp3

VIOLETA, Viçosa-MG., Fev./2007. Mp3

Nota biográfica:

Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB) com área de concentração em Estudos Feministas e período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris, com a tese A invenção da Solteirona: conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais (1890-1948); autora do livro Lugar e Trecho: gênero, migrações e reciprocidade em comunidades camponesas do Jequitinhonha (Ed. Unimontes, 2002); e líder do Grupo de Pesquisa Gênero e Violência. Atualmente é professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).


 

[1] O termo “moça” no Brasil era utilizado somente para se referir às mulheres solteiras, sobretudo virgens.

[2] Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização – foi um programa do governo federal para alfabatização de adultos, utilizando o método de Paulo Freire. A Fundação Educar foi substituta do Mobral. Utilizei em geral nomes de flores para identificar as narradoras, excedo Maria Flor.

[3] Tipo de contrato de serviço em que a família de agricultores sem a posse da terra entra com a mão-de-obra e o fazendeiro concede a terra e a semente a ser cultivada. Ao final, o produto da colheita é dividido ao meio entre as duas partes. 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007