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abrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /décmbre 2009 -janeiro/dezembro 2009

Apresentação

 

Desejo de memória

Margareth Rago

 

            Não é demais lembrar, mais uma vez, como as mulheres estiveram presentes nas lutas de resistência às ditaduras militares implantadas na América Latina, nos anos setenta e, paradoxalmente, como têm estado ausentes, com algumas exceções, nos textos históricos e nas produções biográficas e autobiográficas, em que se narram os trágicos acontecimentos que marcam dolorosamente esse período. Não é demais insistir sobre a importância de ouvir suas vozes e de escutar atentamente os seus depoimentos e testemunhos, especialmente quando desfazem as mentiras oficiais, revelam episódios que muitos gostariam de calar e expõem a nu a violência física exercida sobre seus corpos, nas prisões, em sessões de interrogatório e tortura, ou ainda, a violência simbólica em suas inúmeras dimensões.

Não se trata, aqui, de vitimizar mais uma vez as mulheres, chorando infinitamente as suas dores, nem  de construir ingenuamente figuras heróicas e idealizadas, já ultrapassadas. Trata-se, antes, de permitir que a pluralidade da história não seja obliterada pelas narrativas pretensamente universais,  sempre excludentes e estigmatizadoras, criando-se espaços para a expressão diferenciada da memória de todos os setores sociais.

 A historiadora uruguaia Graciela Sapriza pergunta se é possível “relatar a tortura”, e ainda, “qual é o sentido político dessa recuperação?”, quando a linguagem fracassa na tentativa de abarcar os sentimentos e os sofrimentos envolvidos em situações traumáticas. Nessa direção, uma ampla literatura procura, em nossos dias, questionar os limites do discurso falocêntrico  e, ao mesmo tempo, entender os difíceis processos da rememoração de experiências dolorosas dos/as sobreviventes. Sabemos como esses complexos processos envolvem também o silêncio e o esquecimento frente a intensidades que não conseguem ser trabalhadas na presença de um passado que não passa, que continua presente, calando fundo no corpo e na alma, e que não encontra formas adequadas de expressão.

Se a elaboração do  luto é um trabalho necessário para toda a sociedade, no sentido  do acerto de contas, tanto quanto no da construção de novas relações com o passado, que deve deixar de ser traumático, tanto individual quanto coletivamente, está claro que,  nos países latino-americanos,  marcados pelo exercício da arbitrariedade dos regimes ditatoriais, pela violação dos direitos e pela tortura física, sexual e psíquica, esse movimento ainda não está encerrado, nem resolvido. Ao contrário, ainda temos muito a dizer, a lembrar e a escrever; ainda temos muito pelo que lutar. O direito à verdade, à memória e à história ganha toda força nessa direção. Convocando Derrida: “A democratização efetiva se mede sempre por este critério essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação.”[1]

            Insistimos, portanto. De modo geral, os textos que compõem esse dossiê dão visibilidade às narrativas femininas que ousam denunciar, refletir e testemunhar, fragmentando as histórias oficiais, abrindo brechas no tecido textual, instigando a perguntar pelo silenciado, esquecido e reprimido na definição do arquivo, de modo a exigir a possibilidade de intervenção em seu próprio espaço, reencontrando a temporalidade constitutiva das experiências e dos acontecimentos.

Impossível calar. Quarenta anos depois, é preciso lembrar, pois o silêncio sobre esse triste passado significaria uma segunda derrota para os que se foram, para os desaparecidas/os, mortas/os, eliminadas/os da cena pública pelo terrorismo do Estado. Mais do que isso, resultaria numa traição que atormentaria incessantemente o presente. Na esteira de Walter Benjamin, lembrar constitui um momento fundamental da luta de quem acredita que é preciso agir no presente, impedindo que o passado se repita, daquelas que apostam na importância do compromisso ético e político com o outro.

            Organizamos esse dossiê, tendo em vista ampliar o arquivo e abrir espaço para um contato mais estreito com as memórias das lutas femininas e feministas do passado recente, como observam as intelectuais brasileiras, argentinas, uruguaia e chilena, aqui presentes, com suas instigantes e renovadas reflexões. Suas narrativas expressam e promovem lutas que são de todas nós, e que se vêem constantemente ameaçadas pelas novas formas biopolíticas de captura dos corpos e de dissolução da radicalidade, incluindo-se a amnésia social.

Como um desafio a ser enfrentado coletivamente, convidamos as possíveis leitoras a participar dessa experiência, como um desdobrar da resistência sempre possível e da aposta na criação de um outro mundo, de uma vida outra, aqui e agora.

                                               São Paulo, 13 de setembro de 2009.

 


 

[1] DERRIDA, J. Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005,p.16.

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