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janvier/juin 2010 -janeiro/junho 2010

Xingamentos em contos eróticos: transgressão ou reafirmação do mesmo?  

                                                                                              Valeska Zanello & Bruna Bukowitz

Resumo

O xingamento é um ato de fala que possui, na esfera pública, o objetivo de ofender a pessoa do ouvinte. Em estudo recente, realizado com adultos (Zanello & Gomes, 2008), em Brasília, encontrou-se, entre estas palavras, uma prevalência daquelas que possuíam caráter sexual ativo para as mulheres e de caráter sexual passivo para os homens. Estas palavras apontam para espaços sociais interditados e não desejáveis para o sujeito, em uma determinada forma de regramento libidinal, subsistente na prescrição dos comportamentos sociais. É na intimidade, na vida privada, que esta prescrição é transgredida, seja na realidade, seja através do imaginário erótico (Stoller, 1988). A presente pesquisa teve como objetivo fazer um levantamento da presença de xingamentos, bem como de sua freqüência, em contos eróticos disponibilizados em 4 grandes sites pornográficos da web. Os dados sugerem não haver uma transgressão, mas antes uma repetição de valores patriarcais que marcam a organização libidinal em nossa cultura.

Palavras chave:xingamento, ato de fala, valores patriarcais

The use of obscene language in erotic stories: transgression or restatement of itself?

The use of obscene language is a speech act which, in the public sphere, aims to insult the listener person. Each culture favors certain words that would be considered as being offensive. In a recent study with adults (by Zanello & Gomes, 2008), carried out in Brasília, it was found among these words a prevalence of those with active sexual nature to women and passive sexual nature to men. Those words point out to interdicted and undesirable social spaces to the individual, in a particular way of libidinal rules, extant in the prescription of social behaviors.  This prescription is infringed into intimacy, into private life, both in the reality or through the erotic imaginary (Stoller, 1988). The present research aimed to survey the presence of obscene language, as well as its incidence, in erotic stories available on 4 important pornographic web sites. Findings has proved to be a recurrence and strengthening of the same patriarchal values which seems to set the libidinal organization in our culture.

Key words: obscene language, offensive words, patriarchal values
 

 

 

Xingamento, segundo o Houaiss (2001), é o “ato ou efeito de xingar” (Houaiss, 2001:2897), sendo xingar considerado como o “agredir por meio de palavras insultuosas, injuriosas; ofender; descompor; destratar; afrontar” (Houaiss, 2001:2897). Podemos perceber no cerne da sua definição, dois elementos importantes: a) de um lado, o xingar deve ser considerado como ato; b) este ato tem a intenção (de seu autor) de ofender, machucar outra pessoa. Isto se passa, sobretudo, na esfera social, na qual a utilização de certos vocábulos, com uma certa entonação, gera determinados efeitos, tanto no falante (a catarse), quanto no ouvinte (a ofensa).

Em estudo realizado recentemente (Zanello & Gomes, 2008), em Brasília, com um grupo de 376 adultos, de sexos e classes sociais distintas, foram obtidos, através de um questionário semi-estruturado, 1055 xingamentos, considerados pelos entrevistados como os piores, atribuíveis a homens e mulheres. Dentre esses xingamentos, obtiveram destaque aqueles relacionados ao comportamento sexual. Em relação às mulheres, foram considerados como piores xingamentos (68,83%), tanto pelos homens como pelas próprias mulheres, os de caráter sexual ativo: “puta”, “vadia”, “vagabunda”, “piranha”, e equivalentes. Em segundo lugar, apareceram os xingamentos relacionados aos traços de caráter relacionais (9,74%), tais como “egoísta” e “falsa”, e aos atributos físicos, (9,67%), tais como “gorda” e “feia”.

Aos homens, foram atribuídos como piores xingamentos, aqueles relacionados ao comportamento sexual cujo caráter era “passivo” (50,85%), tais como “viado”, “boiola”, “broxa”, “corno”; e aos traços de caráter de auto-investimento (34,94%), tais como “fracassado”, “cafetão”, “pobre”, etc.

Neste mesmo estudo, foram levantados também os elogios considerados como melhores atribuíveis tanto a mulheres quanto a homens. Dentre os elogios considerados como melhores para as mulheres, destacaram-se aqueles relacionados aos traços de caráter relacionais (36,64%), tais como “amorosa”, “atenciosa”, etc. Destacaram-se também os elogios relacionados aos atributos físicos (34,86%), tais como “linda”, “magra”, etc. O comportamento sexual apareceu em apenas 6,35% das respostas, em elogios que exaltavam, sobretudo, a renúncia e a fidelidade (nas respostas dos questionários das mulheres, houve, ainda que inexpressivamente, elogios relacionados ao bom desempenho na cama).

Nos elogios masculinos, destacaram-se os atributos físicos (29,89%) tais como “forte”, “boa pinta”, “bem dotado”, etc; os traços de caráter de auto-investimento (25,74%), tais como “eficiente”, “esforçado”, etc; e o comportamento sexual ativo (19,27%), tal como “pegador”, “macho”, “viril”, etc. Uma característica comum, encontrada nos elogios masculinos, foi a valorização da virilidade, seja física, seja no desempenho laboral e sexual.

Pode-se observar, pela relevância dos resultados, o quanto os xingamentos, bem como os elogios, constituem-se como pontes possíveis para o estudo do comportamento social e dos valores que o regem. Sobretudo, apontam para um modo de regramento da libido e da construção/ constituição dos papéis de gênero, tendo em vista que, ao xingar ou ao elogiar, fazemos coisas, constituímos espaços sociais e interditamos determinados comportamentos. Os xingamentos e os elogios considerados na pesquisa respectivamente como piores e como melhores apontam para uma organização patriarcal do desejo que coloca a mulher em um lugar de renúncia sexual e cuidado com o outro, enquanto ao homem é enaltecido não apenas o exercício “ativo” da sexualidade, mas a própria virilidade como um todo (Zanello, prelo).

No entanto, uma importante experiência colocava-me em xeque ou em choque com estes dados: minha prática terapêutica como psicanalista. Não é incomum, no consultório, ouvir mulheres que contam, com culpa, os prazeres de certas “brincadeiras” no intercurso sexual. Dentre esses prazeres, pequenas “transgressões”, encontram-se os xingamentos. O que algumas mulheres narram é o prazer de ser xingada pelo parceiro de certos vocábulos que seriam inaceitáveis na vida social, fora da alcova. Esses xingamentos são exatamente aqueles considerados como piores, encontrados na pesquisa anteriormente realizada: “puta”, “putinha”, “vadia”, “vagabunda”, “piranha” e equivalentes. Para Freud, onde há interdição, há desejo... assim, se o xingamento aponta para as interdições, presentes no regramento libidinal de nossa cultura, a pergunta que se interpunha era: o que ele nos mostra sobre os modos de estruturação do desejo? No entanto, como realizar uma pesquisa sobre o imaginário erótico e o papel que os xingamentos exercem nele?

Um primeiro empecilho se apresentou: como estudar este algo tão secreto e, ao mesmo tempo, tão permeado de vergonha e culpa, em nossa cultura? Poucas pessoas me pareciam aptas a falar abertamente sobre o que as excitam, fantasias que possuem, etc. Uma via então que se apresentou como plausível foi o estudo do imaginário erótico através dos principais contos presentes em grandes sites pornográficos da web.

Segundo Stoller (1988), os contos seriam devaneios publicados. Eles fariam parte da pornografia: “pornografia é aquele produto manufaturado com a intenção de produzir excitação erótica. A pornografia é pornográfica quando excita” (Stoller, 1988:27). Os contos guiam o imaginário erótico do leitor e seu objetivo final seria o orgasmo, através da masturbação (Barber, 1972).

Stoller (1988), seguindo a trilha aberta por Freud, aponta assim que a vida erótica humana é marcada por idiossincrasias que a afastam completamente de uma visão biológica definida por instintos reprodutivos. Para Stoller, o homem, ao ser falante, ser simbólico, necessita de um roteiro imaginário para excitar-se, para desejar. Este roteiro seria constituído no processo de humanização da criança, isto é, seria particular, ainda que mediado pela e na cultura. Em outras palavras, diferentemente dos animais, marcados pelo cio, a vida sexual humana necessitaria de imaginário. O corpo deixa de ser simples máquina, para ser um corpo pulsional, subjetivado na relação com o outro e marcado por uma história única, pessoal e, ao mesmo tempo, social.

 Para o autor, o ápice da excitação do sujeito se dá na vivência de transgressão, fulcro do roteiro imaginário. Mais do que uma transgressão em si mesma, trata-se aqui da vivência, completamente particular, por parte do sujeito, de se estar “pecando”.

É aqui se encontra nosso interesse pelos xingamentos nos contos. Como apontamos anteriormente, os xingamentos podem ser pontes para valores que marcam, na nossa cultura, uma certa forma de regramento libidinal, dizendo que lugares sociais são permitidos e desejáveis para homens e mulheres (modelo binário). Estudar o uso do xingamento como componente de excitação seria uma via para compreendermos essa transgressão.

Para Lynn Hunt (1999), a pornografia, em geral, seria uma “zona de batalha cultural” (Hunt, 1999:13), pois o obsceno só existe onde há distinção entre o comportamento público e privado. No centro desta batalha estaria a estruturação libidinal favorecida por determinada forma de organização social. A transgressão, na pornografia, deve ser assim compreendida nas bordas entre o público e o privado. Para Susan Moller Okin (2008), a própria dicotomia “privado-público”, implícita na idéia de transgressão, aponta para um modo de organização social específica que, em sua natureza, seria patriarcal[1].

Laura Kipnis (1999) ressalta que a pornografia tem muito a dizer:

“a pornografia deveria nos interessar porque ela fala intensa e cruelmente sobre nós. Ela envolve as vias da cultura e os cantos mais profundos do self (...) ela tem eloqüência. Ela tem sentido, ela tem idéias (...) a pornografia é central para nossa cultura” (Kipnis, 1999:161).

Ela seria uma rota para observarmos e compreendermos a constituição social/cultural dos sujeitos.

Uma das características fundamentais, presente na pornografia em geral, e nos contos em específico, é a escolha das palavras. Elas devem ser obscenas, chulas, escrachadas. Palavras banidas do espaço público, social. Eliane Moraes (2003) investigou, neste sentido, a relação entre vocabulário obsceno e cultura pornográfica, mostrando o quanto esta relação é um fenômeno histórico, inscrito em nossa cultura a partir do Renascimento. Em outras palavras, junto com a moral burguesa firma-se uma assepsia lingüística: a interdição na própria linguagem, a afirmação de um léxico da decência! Falar certas palavras, em certos momentos, adquire assim uma conotação de transgressão deliberada. A obscenidade estaria não na palavra em si, mas no efeito que ela provoca: ela não apenas representa a coisa, mas seria a própria coisa. “A palavra pornográfica acaba subvertendo a função abstrata de signo para ganhar um corpo próprio que, no limite, substitui o corpo real” (Moraes, 2003: 4).

Segundo Arango (1978), “as palavras possuem, muitas vezes, um poder alucinatório. Provocam a representação do órgão ou da cena sexual da forma mais clara e fiel. Suscitam, também, fortes sentimentos libidinosos” (Arango, 1978:15). Os jargões obscenos, e porque não dizer, os xingamentos, “são obscenos porque revelam, verdadeiramente, a vida sexual que não deve ser mostrada em público” (Arango, 1978: 21). Mas como se dá a utilização dos xingamentos na vida erótica? E o que seu uso nos aponta acerca do regramento libidinal de nossa cultura e das relações de gênero? Estudar estas questões foi o escopo do presente trabalho.

Metodologia

Foram selecionados 4 grandes sites pornográficos da web[2]. Destes, foram recortados os 10 contos mais votados, os 10 mais lidos ou os 10 melhores, em dois momentos de publicações dos sites, no ano de 2008, incluindo os contos repetidos (totalizando 77 estórias[3]). Realizou-se uma análise quantitativa e qualitativa dos xingamentos presentes nos contos. Na análise qualitativa foi observado o sentido do uso do termo, ou seja, o aspecto pragmático envolvido no ato de xingar.

Resultados e discussão

Foram encontrados 398 xingamentos, dos quais 78,14% foram atribuídos às mulheres e 21,86% aos homens. Abaixo, pode-se observar pela distribuição no gráfico a diferença percentual.

Dos xingamentos encontrados em geral, 390 apontavam para o comportamento sexual (304 para mulheres e 86 para homens).

 Dos xingamentos atribuídos às mulheres, 97,75% tinham caráter sexual ativo, tais como “puta”, “piranha”, “cachorra”, “safada”, “vadia”, etc. Isto é, os mesmos xingamentos considerados como ofensivos, na esfera pública. Além disso, apareceram xingamentos relacionados a atributos físicos (“rabuda”, “bucetuda”, etc) e traços de caráter (“traidora”, etc). No entanto, o percentual foi praticamente inexpressivo, como podemos ver no gráfico abaixo.

 


 

Já nos xingamentos atribuídos aos homens apareceram 98,85% de xingamentos sexuais, sendo que destes 74,71% possuíam caráter sexual ativo, tal como “putão”, “safado”, “tarado”, etc, e 24,14% caráter sexual passivo, como por exemplo, “corno”, “cornudo”, “broxa”, “viadinho”. Ainda entre os homens, 1,15% dos xingamentos apontavam para traços físicos (de virilidade ou de inferioridade, tais como “picudo”, “velho”, “fedido”).

Abaixo segue uma tabela com excertos escolhidos das categorias expressivas encontradas:

 

Comportamento sexual ativo feminino

FAMÍLIA PERVERSA: "...sua vadia você adora dar para os outros na casa de swing agora vai ter que dar para mim…"

O VELHO QUE É MEU DONO: "Ai, não faz assim, me faz gozar, faz sua piranhinha gozar, eu sou uma puta, uma puta!”

Comportamento sexual ativo masculino

TIA CLARA: UM SONHO REALIZADO II (verídico): "- Seu puto sem vergonha, safado... aaahhhhhhh.... ooooohhhh.... filho da puta, cachorro.... aaahhhhh..."

Comportamento sexual passivo masculino

UMA TRAIÇÃO BEM PERIGOSA: “- Olha como o corninho ta adorando saber que você ta fudendo aqui, olha como ele olha pra gente e sorri.. Juliana enlouquecia com seu noivo sorrindo, achando engraçado estarem fudendo ali na sua frente.”

     Através dos dados, pôde-se constatar uma prevalência da utilização de xingamentos como forma de promoção de excitação erótica, sobretudo em relação às mulheres: tanto do lado daquele que ofende (conto realizado na primeira pessoa do ofensor, no caso, um homem como o “humilhador”- 65,13%), quanto daquele supostamente ofendido (conto realizado na pessoa que recebe o xingamento e se excita com a idéia de ser xingado, uma mulher, “humilhada”- 34,87%). Como nos diz Stoller, a transgressão exerce um papel importante na promoção da excitação na vida erótica: a sensação, por parte do sujeito, de se estar “pecando”. Interessante sublinhar, neste sentido, a semelhança encontrada entre os xingamentos considerados como piores para uma mulher (considerado tanto por elas quanto por eles), na esfera pública, e os mais presentes nos contos eróticos, relacionados a elas, na vida privada.

Há que se pensar aqui o que esta “coincidência” vem apontar: se na vida erótica os xingamentos são utilizados como atos de fala cujo efeito perlocucionário é a excitação no interlocutor (e no próprio falante!), e se esta excitação advém do caráter de transgressão (daí a coincidência não ser tão coincidência assim), o que se revela é uma forma específica de regramento libidinal que, apesar da aparente “transgressão” e “liberdade”, reafirma os mesmos valores patriarcais que marcam um espaço de exercício “ativo” sexual para um “verdadeiro” homem, e de renúncia sexual para uma “verdadeira” mulher. Como aponta Okin (2008), os domínios da vida pessoal e da vida social (pública) não podem ser interpretados isoladamente. Em outras palavras, a aparente transgressão, ligada à excitação, presente nos contos eróticos, reafirma o ponto-parâmetro a partir do qual ela se dá. Por ser transgressão, até certa medida permitida, ela reafirma os mesmos valores do regramento libidinal, presentes na esfera pública... A transgressão assim não subverte, ela reafirma, refaz, reforça este ponto.  

Trata-se aqui, como nos aponta Focault (1979), da necessidade de uma análise adequada para descrever uma forma de poder cujos mecanismos centrais não são mais apenas repressivos, mas constitutivos. Nesta microfísica do poder o que se afirma é uma forma de regramento libidinal particular: a patriarcal.

Nos xingamentos masculinos, apareceram poucas palavras consideradas como xingamentos na esfera pública (sexual passivo), mas antes, sobretudo, elogios utilizados na esfera pública como afirmação da virilidade, tais como: “safado”, “picudo”, “garanhão”, etc. Isto é, a transgressão masculina, na vida erótica, é menor, mas nem por isso inexistente. Além disso, os xingamentos, no fundo elogiosos, são recebidos (87,70%) mais do que auto-referenciados (12,30%).

Os xingamentos de comportamento sexual passivo que mais ocorreu foi “corno” (62%), proferido pelo amante ou pelo terceiro da cena. A percentagem de “viado” foi inexpressiva (4%)!

“Corno” aponta para uma experiência de não dar conta do “fogo” da mulher... quem apaga este “fogo”, neste caso, é um terceiro: é este lugar de superação (competição) que é privilegiado pelo conto e que enaltece a virilidade do “comedor”. Os xingamentos masculinos parecem, neste sentido, destacar ainda mais a transgressão da mulher na cena erótica: ela, como aquela que deseja ativamente, que transborda, que é insaciável... ele, narcisicamente, de maneira refletida no espelho dessa insaciabilidade, como a afirmação máxima da potência viril! 

Conforme Montgomery Hyde (1973), o mercado produtor e consumidor de pornografia é essencialmente masculino. Assim, mesmo quando aparecem personagens femininos, são construções a partir do imaginário masculino[4]: “uma boa parte da literatura pornográfica apresenta descrições detalhadas da atividade genital- em especial as proezas genitais masculinas” (p. 25)

O elemento “mulher” apareceu, portanto, na análise desses contos, como fator primordial para se compreender o erotismo aí presente e a transgressão que o constitui. Os contos produzem e reproduzem os mesmos espaços sociais e de disposição subjetiva em relação ao desejo, presentes na esfera pública.

Conclusões

A partir dos dados, pôde-se concluir que a situação de humilhação exerce um papel importante na vida erótica imaginária (Stoller, 1988), não apenas daqueles que escrevem os contos, mas também daqueles que o lêem. Nesta cena, há um predomínio da mulher no papel de humilhada (xingada por palavras consideradas ofensivas na esfera pública) e do homem no papel de humilhador. Os dados apontam para um controle mais efetivo da sexualidade feminina (que pode se realizar pela via do masoquismo, como forma de “liberação sexual”, pois a transgressão na vida íntima casa-se com a humilhação da esfera pública); e um exercício da sexualidade masculina, marcada e valorizada pela virilidade. Mesmo os xingamentos masculinos (sexuais passivos) apontam para a transgressão do desejo feminino, quando este transborda, é insaciável[5]. Além disso, à mulher é proporcionado, na cena dos contos, um lugar privilegiado de ser xingada, enquanto ao homem, ou de receber elogios à sua virilidade, ou de xingar a um terceiro a quem ele supera na virilidade.

Os xingamentos encontrados são assim sintomas do modo de organização de nossa sociedade, mostrando uma forma de regramento libidinal que deve ser compreendida em seu caráter histórico[6]. Apontam também, tanto em seu uso público (ofensivo), quanto em seu uso na vida privada (excitante) para o caráter relacional da construção dos papéis de gênero e dos processos de subjetivação.

Referências Bibliográficas

Arango, Ariel. 1991. Os palavrões - Virtudes terapêuticas da obscenidade. São Paulo: Editora Brasiliense.

Barber, Dulan. 1972. Pornography and society. London/Edinburgh: Charles Skilton LTD.

Bensusan, Hilan. 2004. Observações sobre a libido colonizada: tentando pensar ao largo do patriarcado. Revista Estudos Feministas, v.12, n.1. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026x2004000100007&lang=pt

Foucault, Michel. 1979. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

Houaiss, Antônio & Villar, Mauro. 2001. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.

Hunt, Lynn. 1999. Obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800. In: Hunt, Lynn (Org). A invenção da pornografia. São Paulo: Hedra, 1999, pp. 9-46.

Hyde, Montgomey. 1973. Historia de la pornografia. Buenos Aires: Editorial La Pleyade.

Kipnis, Laura. 1999. Bound and Gagged- Pornography and the politics of fantasy in America. Durham: Duke University Press.

Moraes, Eliane Robert. 2003. O efeito obsceno. Cadernos Pagu, n.20. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332003000100004&lang=pt

 Okin, Susan Moller. 2008. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, v.16, n. 2. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X200800020000&lang=pt

Stoller, Robert. 1988. Observando a imaginação erótica. Rio de Janeiro: Imago.

Zanello, Valeska. 2009. “Vagabundo” ou “vagabunda”? Xingamentos e relações de gênero (prelo).

Zanello, Valeska. & Gomes, Tatiana. 2008. Xingamentos: Sintoma e Reprodução da sociedade patriarcal. In: Atas do Congresso Feminista. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, CDROM.

Valeska Zanello- Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília, com doutorado sanduíche na Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica. Psicóloga e bacharel em filosofia pela Universidade de Brasília. Especialista em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília. Professora do curso de Psicologia do IESB/ Brasília. Trabalha na interface entre saúde mental, linguagem e relações de gênero.

Bruna Bukowitz- Graduanda em Psicologia. Participa do grupo de pesquisa “Xingamentos: entre a ofensa e a erótica”.


 

[1] Uma frase popular e bem ilustrativa desta dicotomia presente na esfera dos xingamentos/elogios seria a seguinte: “Fulana é uma lady na mesa e uma puta na cama!”. Okin (2008) aponta o quanto a dicotomia público x privado é uma fenômeno histórico e social.

[3] Três estórias estavam fora do ar devido à censura do material. Tratava-se de contos envolvendo crianças e adolescentes.

[4] Mesmo a mulher que goza, nesta posição, se identificaria com este imaginário.

[5] Interessante apontar que, segundo Lynn Hunt (1999), apesar de o público consumidor de pornografia ser constituído privilegiadamente por homens, a sexualidade masculina apareceria pouco problematizada. Isto é, há um enfoque quase exclusivo sobre a sexualidade feminina.

[6] Hilan Bensusan (2004) aponta o quanto a nossa libido é politizada e o quanto o nosso desejo pode ser colonizado. Pensar em um “desagenciamento” é uma reação, de ruptura, sem a afirmação de um ideal totalitário. Faz parte do “desagenciamento” pensar a organização patriarcal como apenas uma de outras muitas possibilidades...  

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