labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2011 -jameiro /junho 2011

O olhar viajante da Baronesa de Langsdorff

Zahidé L. Muzart

Resumo:

Leitura do diário de viagem ao Brasil da francesa Baronesa de Langsdorff. As observações da Baronesa abrangem paisagens, usos e costumes do país entre os quais, a vida das mulheres e a escravidão. Nesse texto de mulher viajante, não se encontra um olhar “isento”, neutro. É um olhar profundamente crítico. Suas interrogações e perplexidades são os da européia branca culta e nobre. Mas, ao final de quase um ano, há uma virada  com a sua relativa “adoção”do país e de seus habitantes.

Palavras-chave:Diário de viagem; século XIX; escravidão.

 

O impulso da viagem foi motivador para as mulheres deixarem suas casas e se aventurarem por mares e desertos em tempos mais remotos. Ao considerarmos as condições em que os deslocamentos eram realizados, as enormes distâncias, o desconforto dos navios, carros de bois e ferrovias, além dos perigos de toda natureza a que os viajantes estavam sujeitos, causa espanto encontrar tantas mulheres que ousaram deixar a segurança de seus lares, suas famílias e enfrentaram o preconceito, as novas fronteiras, o desconhecido.

No presente trabalho, volto a um tema que continua a me encantar: as mulheres viajantes, sejam estrangeiras no Brasil ou brasileiras em outras terras. Em geral, desde os  fulcrais estudos de Miriam Moreira Leite sobre a presença de mulheres viajantes no Brasil no século XIX, tem-se estudado sobretudo a essas, as estrangeiras.Tais pesquisas foram motivadoras para que procurássemos publicar alguns diários como o de Nísia Floresta(1998) em sua viagem à Alemanha,[1] os da francesa Baronesa de Langsdorff[2] (1999)e da belga Mme Van Langendonck(2002)[3] ao Brasil e o de Flora Tristán(2000) ao Peru.[4]

A publicação, pela Editora Mulheres de dois diários de estrangeiras motivou a sua republicação na Europa. A editora belga Editions Biliki publicou Uma colônia no Brasil,[5] em 2008, depois de ter conhecido a tradução brasileira na Feira do Livro de Porto Alegre, e o diário da baronesa de Langsdorff foi republicado em 2006 pela editora portuguesa Alethéia, a quem enviamos o livro.[6]

Em um artigo sobre o tema da viagem, Octavio Ianni fala de modo lírico:

"A história dos povos está atravessada pela viagem, como realidade ou metáfora. Todas as formas de sociedade, compreendendo tribos e clãs, nações e nacionalidades, colônias e impérios, trabalham e retrabalham a viagem, seja como modo de descobrir o "outro", seja como modo de descobrir o "eu". É como se a viagem, o viajante e a sua narrativa revelassem todo o tempo o que se sabe e o que não se sabe, o conhecido e o desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual."(Ianni,2000)

Todos os diários trazem, em geral, muito interesse para os historiadores. Mas, embora o de Mme Van Langendonck contenha passagens antológicas e o de Mme Toussaint-Samson, opiniões bastante livres, curiosas e modernas, (TOUSSAINT-SAMSON,2003) o diário da Baronesa de Langsdorff é, para mim, o mais interessante, o que traz maior unidade na narrativa com os fatos mais bem encadeados cronologicamente além de ser muito bem escrito. Isso é afinal pouco surpreendente já que a baronesa, de origem nobre, foi educada com cuidado e rigor, uma mulher instruída que apreciava ler os jornais todos os dias. Além das qualidades dessa escritura, o que mais nos interessa é ouvir essa voz longínqua com sua opinião pessoal bem marcada, sua crítica e visão do país e das pessoas, corespondendo às palavras de Octavio Ianni, ou seja, tentando descobrir o outro e se descobrindo a si própria.

Victorine Emilie nasceu dia 28 de julho de 1812 e casou-se em 2 de julho de 1834 com Emile, Barão de Langsdorff.[7]

Era filha dos condes de Sainte Aulaire e, a conselho do pai, escreveu seu diário desde os 15 anos. Embora tenhamos procurado na França a continuação deste diário não nos foi possível encontrá-lo.

O barão de Langsdorff foi enviado ao Brasil, como embaixador plenipotenciário da Casa Real de França, a fim de tratar do contrato de casamento do príncipe Francisco de Orléans com a princesa Dona Francisca de Bragança, filha do imperador D. Pedro I. À mulher do embaixador, cabia a tarefa de servir de dama de companhia da futura princesa de Joinville e instruí-la sobre a etiqueta da corte francesa. No entanto, não se tratava de uma tarefa fácil, uma vez que o príncipe tinha um temperamento muito independente e colocara a condição de o casamento se realizar apenas se a noiva fosse do seu agrado.

Uma primeira edição do texto do diário foi publicada em 1954 pela Associação dos Amigos do Museu da Marinha, em Paris. O excerto com a narração da viagem dos barões de Langsdorff ao Rio de Janeiro para os preparativos do acordo de casamento entre a irmã de D. Pedro II e o príncipe de Joinville foi editado no Brasil, em 1999, pela Editora Mulheres.

O diário da Baronesa de Langsdorff é a história de uma outra história oficial, contada por uma mulher, com um discurso muito pessoal, com personagens  ao gosto do tempo romântico, uma história que poderia ser resumida da seguinte forma: um príncipe marinheiro, amante da liberdade, em viagem por um mundo exótico, encontra uma bela princesa e casa-se com ela. Só que a história tal como a baronesa a relata não é tão romântica assim...

A primeira parte do diário é a narrativa da viagem para o Brasil realizada no navio Ville de Marseille, ao passo que a navegação de regresso é realizada na embarcação do príncipe de Joinville, La Belle Poule. As longas viagens realizadas no Atlântico são descritas com os mais diversos detalhes, desde os períodos de calmaria no mar, à rotina da tripulação e as suas diversões a bordo,

O diário é muito rico na descrição geográfica, humana e natural. Com particular relevo para os aromas, os perfumes e vivências ao longo de todo o percurso, bem como os costumes dos habitantes do Rio de Janeiro e da corte imperial brasileira. No Brasil, a atenção foi sobretudo dada à natureza e aos hábitos particulares da sociedade do Rio:

É preciso que se diga, jamais veremos lugares mais majestosos como formas, tão esplêndidos como cores. Esta natureza é gigantesca, mas com uma graça que tira desta palavra tudo o que pode aí haver de  assustador conforme nossas imaginações européias. Assim, impressionada como sou pela elegância de todas essas linhas, pelo brilho e a harmonia do ar que envolve todas essas montanhas, encantada a cada instante do dia pela visão dos loureiros rosa em flor, pela beleza desses galhos de coqueiros que se recortam tão nitidamente nesse belo céu azul, pela elegância régia dessas palmeiras, não posso explicar a melancolia, a tristeza mesmo dessa admirável e benevolente natureza. Essa tristeza não tem nada de pessoal, não vem do afastamento da Pátria, é a contemplação dessa natureza em si mesma e a impressão de sua beleza que  deixam a alma melancólica e sonhadora. O clima aqui contribui também, creio. Este calor intolerável destrói toda energia; a vida escapa a cada dia. O cansaço é de início físico, depois, moral.[8] (pág. 122)

Apesar de apreciar a natureza, queixa-se do excessivo calor e o clima tropical é  referido como algo capaz de provocar entorpecimento nos europeus. A isso se refere logo na costa da Africa: "Dizem-me que, em poucos meses, o clima tira o vigor aos europeus, fazendo-os parecer mais lentos" (pág. 97); ou já no Brasil: "Nesta terra, todo e qualquer esforço exige tenacidade, pois o clima induz atitudes de preguiça" (pág. 115); ou: "Por outro lado, também o calor tem uma influência algo desmoralizante. Sentimos os nervos tão fragilizados que a mais pequena contrariedade consegue esmagar-nos. E a preguiça é tanta — pois qualquer movimento exige grande esforço—que nem sequer pensamos em nos distrair".

Por todo o diário, a natureza exuberante do Brasil é uma constante. E tal tema se repete em todos os diários que conheço de mulheres ou de homens. O que entusiasma o/a viajante é, em primeiro lugar, o impacto que recebe com a natureza tropical. Mas em seguida, entre as viajantes é o conhecimento das mulheres, a curiosidade sobre as próprias mulheres. Assim também a Baronesa de Langsdorff se surpreende com as mulheres que aqui vivem:

Freqüentemente, vendo algumas mulheres, jovens ainda, ficar em uma imobilidade  que me parece sobre-humana  e guardar um silêncio que me parece durar sempre, pergunto-me se estas naturezas já estão mortas, até  se  algumas viveram; mas para compreender, seria necessário interrogá-las, porém elas não querem jamais responder.  Suportam com visível impaciência a menor pergunta que se lhes faça. Já é muito que elas escutem. Quanto a responder, nada pode obrigá-las a isso. Às primeiras indagações feitas, olham  sem  má  vontade e, quando se terminou de falar, sorriem  como se faz a uma criança  importuna  que tivesse interrompido uma  ocupação.  Caso se insista, a fisionomia da pessoa a quem se fala se contrai, e o aborrecimento que sua pergunta causa se mostra  tão claramente  que o melhor é se calar. E, como disse antes, pelo fato de nenhuma má vontade existir, logo que se tenha terminado de falar, as boas relações se restabelecem e ninguém lhe quer mal por isso. ( pág. 124)

As relações da Baronesa com as mulheres no Rio de Janeiro ficaram, provavelmente, na base de uma sociabilidade muito superficial. Pelo que se lê no Diário, não há uma grande abertura para a estrangeira que, no texto acima, traz conclusões pessoais da suas tentativas de penetrar um pouco mais na vida e no pensamento dessas brasileiras. Esse texto mostra igualmente uma diferença entre um diário de viajante homem de um diário de uma viajante mulher quanto aos interesses de cada um. A curiosidade da Baronesa  está em saber o que pensam, como agem, como se portam as mulheres deste país mas para isso seria necessário que pudesse conversar com elas, conseguir penetrar em sua maneira de pensar e de viver.

Diferentemente deste diário, o de Mme Van Langendonck mostra muito maior intimidade com as brasileiras, muito maior diálogo e até trocas de conhecimentos da vida prática. Temos de pensar nas diferenças de classe. Enquanto a Baronesa vive na Corte, onde impera o que ela comenta como sendo uma certa teatralidade nas relações e gestos, Mme Van Langendonck tem uma experiência muito próxima da população que frequenta mais intimamente.

É ainda Octavio Ianni quem afirma:

Quem viaja larga muita coisa na estrada. Além do que larga na partida, larga na travessia. À medida que caminha, despoja-se. Quanto mais descortina o novo, desconhecido, exótico ou surpreendente, mais liberta-se de si, do seu passado, do seu modo de ser, hábitos, vícios, convicções, certeza. Pode abrir-se cada vez mais para o desconhecido, à medida que mergulha no desconhecido. No limite, o viajante despoja-se, liberta-se e abre-se, como no alvorecer: caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar. (Iannii,2000: 20)

      Na análise dos textos deixados por mulheres viajantes, encontra-se essa ideia da mudança, de que o/a viajante "larga muita coisa na estrada..." ou na partida ou na travessia...No Diário de viagem da Baronesa de Langsdorff, encontra-se a visão de alguém cujo olhar não é neutro. É um olhar profundamente crítico apesar de muito participante.

  Há uma progressão nítida na visão da baronesa desde sua chegada ao Brasil, olhando a tudo e a todos um pouco com o que Mary Pratt chama de "olhos imperiais". (Pratt, 1999) Suas interrogações e perplexidades são os da européia branca culta e nobre. Mas, ao final de meio ano, há uma virada com a sua relativa “adoção” do país e de seus habitantes, o que transparece na defesa dos hábitos da Princesa Dona Francisca e na crítica aos próprios franceses, na volta à França. Ao final do livro, ela parece ver pelos olhos brasileiros de Francisca e não mais com um olhar estrangeiros.

Reproduzo um pequeno trecho da chegada da Princesa D. Francisca à França, quando não entendendo bem o discurso ou querendo fazer corretamente o que lhe haviam dito para fazer, comete grande gafe. A Baronesa compreende o que ocorrera e a defende:

 Depois da missa, voltamos aos salões da prefeitura, dos quais um estava repleto de donzelas de branco. Uma delas, alta e bonita, aproximou-se com um buquê de flores na mão destinado à princesa e fez um pequeno discurso em nome de todas as suas companheiras. Mal havia aberto a boca, e a princesa, a quem se dissera para beijar a moça e dar-lhe uma jóia, inteiramente tomada pelo temor de fazer feio, interrompeu-a logo, beijou-a e entregou-lhe um bracelete, dizendo:

— Eis aqui o que lhe dou!

A jovem ficou perplexa, depois continuou seu discurso com muita distinção e boa vontade. Indo embora, o sr. Hernoux e Denise trocaram olhares estupefatos, que me deixaram desolada, condoída por minha pobre princesa. Falando novamente sobre isso mais tarde, disse-lhe que os achava muito injustos por não poderem admitir que para D. Francisca era impossível adivinhar nossos costumes, porque, no Brasil, toda a dignidade de uma princesa consistia em manter-se calada e em limitar-se a receber cumprimentos. Aqui, diferentemente, é preciso falar, ser afável, o que não podia ser aprendido em um dia. Garantia, ainda, que ela era muito inteligente e que tinha um desejo excessivo de agradar e de adquirir o mais rápido possível os hábitos franceses. Apesar disto, ainda acrescentaram:

—   Ademais, isso não é nada. Ela é muito magra e muito pálida!

Isso queria dizer: "ela não é bonita!" Argumentei, ainda, com grande convicção, mas desolada com a idéia de que ninguém me acreditaria. (p. 279-280)

A Baronesa  constantemente defende a princesa com os franceses e o próprio marido, o Principe de Joinville que é, às vezes, brusco. Pelo que se lê, o Príncipe é alegre e simpático mas muito cioso de sua importância masculina...

Dona Francisca  tem um grande choque ao deixar uma pátria cheia de sol para ingressar em um país cheio de etiquetas diferentes, de frio não só da atmosfera como do contacto com as pessoas. Ela havia levado consigo uma menina de origem italiana com quem se divertia, correndo ou cantando, na corte, no Brasil. Dona Francisca era ainda muito menina ao casar-se e, no navio, sente necessidade de movimento. A menina italiana, de repente  passa a chorar e  a retrair-se e a baronesa escreve o seguinte:

Carol passou na minha frente. A pobre pequena tão alegre, tão piedosa,  desconfiando tão pouco das pessoas, que passava suas manhãs a bordo a jogar e a cantar com a Princesa (...) a pobre criança, afirmo, passou essa manhã na minha frente e eu não a teria reconhecido se não soubesse que estava lá. Estava pálida e sobretudo tão triste e abatida que, vendo-a, não posso dizer de que piedade fui tomada! (p. 281)

Como durante os dias seguintes, continuasse menina a chorar, a Baronesa se informa com os serviçais das razões e descobre que

no primeiro dia, quando Carol jantara com a filha do Almirante, fora repreendida po seus modos de servir-se e que, no dia seguinte, mandaram-na comer com os serviçais. ... Seguramente, deixando o Brasil, essa pobre criança, filha de um açougueiro, que dançava no palácio com princesas ao ser aqui excluída da mesa, essa menina de oito anos, acreditava ter deixado o país de pessoas livres para entrar noutro, de preconceitos e de escravidão. (p. 281)

Por essa atitude, podemos ter uma ideia de como a Baronesa de Langsdorff compreendeu a alma, o espírito brasileiro não só da Princesa D. Francisca como também da menina que viajou para permanecer com ela na França. Não só a princesa sofreu com os preconceitos como também seus acompanhantes e isso foi muito bem compreendido pela viajante francesa... É certamente esse tipo de observação presente na narrativa da Baronesa que não encontramos nas narrativas mais objetivas e até mais secas dos viajantes homens que sempre ficaram mais ciosos do "público" enquanto o "privado" se introduz com facilidade nas narrativas das mulheres viajantes.

     Conforme analisa Nara Araújo, na escritura de viagem das mulheres há uma gama bem grande de assuntos:

La escritura de viajes de las mujeres incorpora una amplia gama de asuntos. No es simple costumbrismo, es reseña factualista y evaluación de los sistemas de explotación —esclavitud o trabajo asalariado—; las instalaciones —ingenios, cafetales y factorías—; sistemas de leyes, educativos y políticos.Nada parece escapar al afán totalizador de estas viajeras que, aristocráticas o republicanas, conservadoras o feministas, asumen el nuevo espacio público en toda su dimensión humana. Para hacerlo, recurren a datos de altitud y distancia, históricos  y  antropológicos, etnográficos y económicos, gastronómicos; a cifras de producción, registros de precios y costos. Esa factualidad. contribuye a producir un efecto de veracidad, aun cuando el lector sospeche que puede haber (y hay) errores. (Araújo, 1997: 21)

Lendo os textos de viajantes, homens ou mulheres, encontra-se um estilo de escrever comum a todos: como, por exemplo, o uso intensivo da descrição baseada na observação que se pretende verdadeira. É importante que pareça uma transcrição autêntica, verdadeira de tudo o que viu o viajante.  Porém, entre homens e mulheres, apesar de seguirem um mesmo estilo e as regras do relato de viagens, não são poucas as diferenças. Nas descrições das mulheres, misturam-se o público e o privado; na dos homens, há predominância do público, da aventura e pelo desejo de parecer científico, construindo sua narrativa pela erudição. Segundo a mesma pesquisadora,(Araújo, 1997) nos textos dos homens, não há estratégias discursivas. Em geral, não se auto-diminuem, não se desculpam, não se justificam nem suplicam.

Eles são exatos, verdadeiros, isto é, autoritários (de autoridade) e masculinos. Não precisam de estratégias porque detém a verdade. Já as mulheres vão um pouco pelo desvio, pelas desculpas por se aventurarem em terreno masculino, em terreno do público elas que deveriam ficar no privado, isto é, caladas! Já em trabalho anterior, estudei as estratégias das escritoras para se imporem no mundo masculino. (Funck, 1994) Nas viajantes, é um pouco parecido embora não haja a mesma submissão das escritoras brasileiras do século XIX  que com fórmulas de humildade pretendiam inserir-se no mundo masculino editorial. Nas viajantes, aparece o tom da desculpa. Há muitas diferenças de tom, de graus de modéstia nesses prólogos das viajantes, dependendo da classe a que pertencem. Carmen de Gelabert se diz “mulher do povo”, a Baronesa de Langsdorff pertence à nobreza, é instruída, Madame Toussaint-Samson não é nobre mas tem instrução, e é muito inteligente nas suas críticas ao mundo masculino.

 Em algumas, como na espanhola Carmen Oliver de Gelabert, lêem-se desculpas por não ser letrada e por não ter tido uma educação completa como os homens:

Pois, sim: uma viagem a Petrópolis merece que se fale dela, por ser um lugar tão cheio de poesia; mas como eu, filha do povo, desprovida da ciência necessária para dar o estilo que merece este discurso, para ser mais eloqüente e ao mesmo tempo não faltar ao natural que emana da prática ou discrição, certo de que tudo isso me serviria nesta ocasião que meu desejo é estender-me, porém como disse, com uma linguagem bonita, que se harmonizasse com o assunto, de modo que com esses esforços resultariam escritos que seriam dignos de ser lidos por sábios. [...]Oh! Nunca o pesar de ser mulher me havia desgostado tanto como agora, porque penso que sendo homem, naturalmente instruído e cheio de méritos adquiridos por grandes estudos, com esta idade, prática nas ciências, e sobretudo na cosmografia, talvez assim me explicaria à medida de meu desejo, e agora não me veria limitada na ocasião que gostaria  de estender-me; oh! Presa está minha mão entre minhas pobres tolices. (minha tradução) (Gelabert, 1890:8) [9]

Já a belga Mme Van Langendonck vem ao Brasil atrás de uma paixão: as florestas virgens. Então, ela já chega aqui com um outro olhar. Ao mesmo tempo em que a viagem trouxe-lhe a experiência do estranhamento, depois de permanecer por dois anos no Rio Grande do Sul, volta para a Bélgica mas da mesma forma que outras viajantes, sofre o desenraizamento agora da terra estrangeira a que se apegou e a saudade impõe-lhe a volta ao Brasil, desta vez em definitivo.

Há muitos assuntos que são comuns às viajantes como o estranhamento ante a vida das outras mulheres, a maneira de portarem-se e até de saírem à rua. Mas em todos os relatos, invariavelmente, há temas comuns como a admiração pela paisagem do Rio de Janeiro, são os relatos amenos, e os textos que mostram a visão do viajante/da viajante sobre a escravidão. E sejam nobres como a Baronesa de Langsdorff ou Rose de Freycinet ou burguesas como Mme Toussaint-Samson, a inteligente francesa que de todas melhor me pareceu compreender o povo e o país ou Mme Van Langendonck, todas escrevem sobre os negros e a escravidão manifestando traços de racismo: disfarçado em algumas, mais forte em outras ou mais matizado.

    Mme Van Langendock, aqui se depara  com a escravidão, prática contra a qual reagira e até escrevera, na Europa, mas, no Brasil, ao conviver com essa cruel realidade, deixa transparecer os mesmos preconceitos dos escravocratas e demonstra idéias arraigadas de branca de classe média alta e muito religiosa. Suas observações acerca dos escravos negros baseiam-se no que viu do relacionamento entre crianças negras e brancas. E a educação recebida como mulher, com todas as amarras e preconceitos, traduz-se no que escreve a respeito:

"Em suma, a escravidão, tal como a vi no Brasil, me pareceu menos funesta aos negros que prejudicial à raça branca. Quaisquer que sejam as causas, o fato é que os maus instintos inerentes à natureza do negro deixam nele bem pouco espaço para os sentimentos de probidade, de pudor e de moral. No entanto, é no meio dessas criaturas que os brasileiros deixam seus filhos chegarem à idade da razão: essas crianças são educadas com os negrinhos e brincam com eles, que, para algumas coisas, nunca são crianças."( angendock,2002:41)

Por outro lado, não demonstra racismo em relação aos indígenas, tendo ficado muito amiga de família indígena vizinha, “nativos” aos quais se liga com afeto.

Já a opinião da Baronesa é variável, ela julga segundo os indivíduos que conhece. Há momentos em que olha as mulheres negras e, sobretudo, as crianças, com muita simpatia e compreensão mas nunca julga o sistema. Constata apenas. É uma mulher que sai bastante do comum, pois sendo leitora de jornais, interessa-se pela política não só da França mas do país visitado e estranha o modo como se fazia o governo na época.

A Corte aqui tem um caráter  muito particular, que não se pode explicar senão pelo gosto  dos brasileiros e pela circunstância de três crianças governarem essa Corte, a quem  unicamente pode destinar-se essa etiqueta. Quando essas crianças aparecem, compreendem-se todas essas fórmulas de respeito, e sua educação tornou-os  bem adaptados  a se apresentarem nas cerimônias, mas, assim que não estão presentes, não há realmente  mais  Corte, pois não há política aqui neste país. Não  há, na verdade,  liberalismo  nem  “ultra-realismo”, embora se sirvam dessas palavras  por imitação  de nossos partidos. Em um país de escravos, não há inimigos nem amigos políticos: há  algumas pessoas  ativas que fazem negócios e uma imensa  multidão de pessoas que não deseja mais do que obedecer. Depois, há os brancos, os negros e mulatos que devem  andar juntos. É, no fundo, a única dificuldade desse país. (p. 157)

Ao olhar da baronesa não escapam as peculiaridades da Corte brasileira e a extrema teatralidade de tudo o que a ela se refere. Ela fica chocada com a pouca religiosidade, ou melhor, com a festividade em que as cerimônias religiosas  são transformadas, ocasião para as mulheres aparecerem em público e se adornarem dos melhores vestidos e de muitas joias.

Quanto à escravidão, as opiniões da baronesa são paradoxais. Ora, admira uma mulher negra, ora  manifesta opinião absolutamente contrária. Parece-me que seus sentimentos dependem muito do local onde está, da maneira como os negros estão vestidos, por exemplo, ou são aceitos pelos donos. No entanto, o que vai predominar é o que estabelece com frieza e distanciamento , no texto que copio . O excerto do diário fala dos negros africanos:

O que me pareceu claro, pelo que pude ver, é que os negros vindos da África não tinham absolutamente nenhuma idéia em  comum conosco. O que chamamos bem, o que chamamos mal não tem sentido para eles. Ao fim de alguns anos de servidão, começam a tomar um pouco de nós: seus filhos, que são muito mais criados com seus donos do que com seus pais - pois a relação dos pais  com os filhos não existe, estes conhecem apenas sua mãe - têm, por esse fato muito mais relações conosco do que com seus pais. São chamados “crioulos”. Não se deveria  contudo confundi-los com os créoles das Antilhas e do Sul da América do Norte, que são  de raça branca pura e, quase na totalidade, francesa.

Dentre esses crioulos do Brasil, os mais inteligentes se aproximam de nós e podem perfeitamente prescindir de um dono. Em geral ganham sua liberdade, e a dificuldade está superada: estão do nosso lado da civilização, mas, quando se olha um negro vindo da África e que se pretende tornar livre essa criatura, diz-se uma coisa que pode parecer sensata de longe, mas que, para qualquer um que conhece a realidade, seria um verdadeiro ato de crueldade. Seria dar a independência a uma criança de dez anos. Pode-se dizer, é verdade, que, em seu país, os negros vivem livres!  Inicialmente, dentre eles  já existem muitos escravos mas, afora isso, viver livre em um país selvagem  não é muito difícil. Não há propriedade, nada de família, nada de leis, quase nada é proibido. Não há insetos que os piquem, nem carros que os atropelem. Se alguém  quer torná-los livres entre nós, evite  todos os perigos resultantes de nossa civilização aos quais eles estão expostos e que não existem entre eles. Lá  eles se colocam em grupos em um canto e, desse canto os animais se  distanciam!  Nenhum perigo, nenhuma defesa os preocupa. (p; 184)

É um texto de grande crueldade e de absoluto desconhecimento do continente africano, das razões da escravidão e da vida em países africanos. Quis colocar em contraponto a fala da escrava africana, Mãe Susana, no romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis, uma das primeiras escritoras brasileiras e a primeira escritora negra. O romance, publicado em 1859, é um grito contra a injustiça de tais julgamentos, de tais preconceitos, sobressaindo " a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão representada pelo trabalho forçado."(Duarte, 2009:272)

Liberdade! liberdade... Ah! eu a gozei na minha mocidade! — continuou Susana com amargura. — Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla. Não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranqüila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: — uma filha, que era a minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade! (Reis, 2009:115)

No resgate da história das mulheres, na busca das marcas por elas deixadas, recupera-se, às vezes, uma história profundamente imbricada com o discurso masculino oficial. No caso, o Diário da Baronesa corre paralelo a essa História com H maiúsculo mas escrevendo e inscrevendo-se nas entrelinhas, à margem. Hoje, com a valorização da micro-história, tais entrelinhas saltam à posição dominante pelo interesse que despertam.  Miriam Moreira Leite, uma das primeiras estudiosas dessa literatura,  vê os diários das viajantes como fonte primária da história social do Brasil por contribuírem para a história das mulheres ao descreverem as particularidades da sociedade local, assuntos aos quais os textos de viagem masculinos estariam bem mais distanciados.

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Zahide Lupinacci Muzart (zahide@floripa.com.br)

Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua no curso de Pós-Graduaçâo em Literatura dessa Universidade. É pesquisadora do CNPq e trabalha na linha de pesquisa Literatura e Mulher. Publicou diversos artigos em revistas especializadas e é responsável pela edição de alguns diários de viajantes estrangeiras no Brasil no século XIX. Coordenou trabalho de resgate com pesquisadoras de várias universidades brasileiras o que resultou nos livros Escritoras brasileiras do século XIX, volumes I, II e III. Dentre suas publicações destacam-se os livros Cartas de Cruz e Sousa, Júlia da Costa: Poesia, Mariana Coelho: A evolução do feminismo, Tempo e Andanças de Harry Laus, Refazendo nós: ensaios sobre mulher e literatura (com Izabel Brandão). Coordena a Editora Mulheres, em Florianópolis.


 

1998

[1] NÍSIA FLORESTA. 1998 .Itinerário de uma Viagem à Alemanha. Trad. Francisco das Chagas Pereira. Introd. Constância Lima Duarte. Co-edição: Edunisc. . 216 p.

[2] LANGSDORFF, Baronesa Emile de. 1999Diário da Baronesa E. de Langsdorff. Relatando sua viagem ao Brasil por ocasião do casamento de S.A.R. o Príncipe de Joinville, 1842–1843. Trad. Patrícia Chittoni Ramos e Marco Antônio Toledo Neder. Introd. Míriam Lifschitz Moreira Leite. Florianópolis: Mulheres, .

[3] LANGENDONCK, Mme Van.2002. Uma colônia no brasil. Trad. Paula Berinson. Intr. Augusto Meyer. Florianópolis: Mulheres,

[4] FLORA TRISTAN. 2000 .Peregrinações de uma pária. 1ª ed. 1838. Tradução de Maria Nilda Pessoa e Paula Berinson. Introdução por Roland Forgues. Co-edição Edunisc. 540 p.

[5] LANGENDONCK, Mme Van. Une colonie au Brésil. Bruxelas: Editions Biliki, 2008.

[6] O Diário da viagem de D. Francisca de Bragança (1842-43). Tradução por Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Alethéia Editores, 2006.

[7] Este Langsdorff não tem nada a ver com o famoso explorador alemão, Georg Heinrich von Langsdorff, nascido na Prússia (1774-1852), naturalizado russo e que esteve várias vezes no Brasil onde morou por muitos anos.

[8] Todos os exemplos do Diário da Baronesa de Langsdorff são extraídos da edição da Editora Mulheres de 1999. Por isos, depoisi de cada excerto, só informo a página.

[9]  “Pues si: um viaje a Petropolis merece muy bien ocuparse de él, por ser um lugar tan ricamente lleno de poesía; mas como yo, hija del pueblo, desprovista de la ciencia necesaria para dar el estilo que merece este discurso, para ser mas elocuente y al mismo tiempo no carecer de este natural que emana de la práctica o discreción, cierto de que todo eso me serviria em esta ocasion que mi deseo es estenderme, pero como he dicho, con um lenguaje bonito, que marchase acorde com el asunto, de suerte que com esos esfuerzos saldrian escritos que serian dignos de ser leidos por sabios.

[...]Oh! Nunca el pesar de ser mujer me habia disgustado tanto como ahora, porque pienso que siendo hombre, naturalmente instruido y lleno de meritos adquiridos por grandes estudios, à esta edad, práctica en las ciencias, y mayormente em la cosmografia, talvez asi me explicaria à medida de mi deseo, y ahora no me veria acortada en la ocasion que deseo estenderme; oh! Presa esta mi mano entre mis pobres tonterías.

 

Referências Bibliográficas

PRATT, Mary Louise. 1999.Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação. Trad. Jésio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC

ARAÚJO, Nara. Otra vez,1997 Viajeras al Caribe. In: El alfiler y la mariposa. La Habana: Editorial Letras Cubanas, p. 17-37.

FUNCK, Susana Bornéo Funck. In1994. Artimanhas nas entrelinhas..Trocando idéias sobre a Mulher e a Literatura. Florianópolis: EDEME.

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labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2011 -jameiro /junho 2011