labrys,
études féministes/ estudos feministas Da coragem feminista à coragem lésbica Susel Oliveira da Rosa Resumo: Conhecida por sua atuação junto aos movimentos feministas, desde seu exílio na década de 1970, Danda Prado foi uma das primeiras feministas brasileiras a defender publicamente o direito das mulheres de gerirem seu próprio corpo. Aos 17 anos já falava sobre sexualidade na Associação de Mulheres do Partido Comunista, durante a ditadura militar ajudou presos políticos a saírem do país; insurgiu-se contra os saberes estabelecidos que generizam o humano em formatos binários e fundou, no exílio, o Grupo Latino-americano das Mulheres em Paris, mesmo à revelia da esquerda mais tradicional; difundiu as idéias feministas na América Latina e no Brasil, durante a década de 1970 através do Nosotras – jornal de divulgação do grupo; buscou desnaturalizar o papel de “esposa” na ordem patriarcal; defendeu a descriminalização do aborto no Brasil, com seu retorno ao país após a Anistia em 1979; participou ativamente do “Coletivo de Mulheres” no Rio de Janeiro e editou em terras brasileiras O Sexo finalmente explícito e a Revista Impressões, na década de 1980; publicou livros que subvertem a ordem androcêntrica através da Coleção Primeiros Passos e da Coleção Aletheia, da Editora Brasiliense; ainda hoje inquieta-se com temas que envolvem a sexualidade e a luta das mulheres em vários países da América Latina. Em meio a multiplicidade de experiências vividas por Danda Prado, escrevo aqui sobre sua aproximação com o feminismo lesbiano durante os anos que esteve exilada. Palavras-chave: Danda Prado, feminismo, lesbianismo, sexualidade
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”: a potência dos encontros Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade [...] Simone de Beauvoir Um pouco antes de se casar, em 1949 e aos 20 anos, Danda Prado teve contato com o feminismo de Simone de Beauvoir ao ler O segundo sexo. “Eu fiquei muito entusiasmada quando eu li o livro [...] foi um dos primeiros livros que vieram em francês [...] e foi uma mudança muito grande pra mim, de vida, de objetivo, de tudo... e eu escrevi pra Beauvoir, aqui do Brasil”[1]. E não foi só O segundo sexo, pois Danda lia muitos livros publicados no exterior que chegavam até ela através da Editora Brasiliense[2]. Leituras que favoreceram o contato com o feminismo, que se tornaria central em sua vida, anos mais tarde. Leituras que demonstravam que o sexo era social e culturalmente construído: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, afirmava Simone de Beauvoir apontando para o papel secundário da mulher na ordem dimórfica do mundo: “a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente”[3]. Como diria Tania Swain, em nossas sociedades as mulheres não têm um sexo, elas são um sexo: “no sexo, portanto, o destino biológico naturalizado das mulheres enquanto mulheres, como mães, na sexualidade como orifícios a serem usados, objetos de prazer e, sobretudo, de poder, o poder de determinar, de dirigir, de humilhar, de ironizar, de inferiorizar, de possuir, de violentar, de controlar, de comprar, de traficar” (Swain, 2006). O texto feminista multiplicou em Danda os sentidos atribuídos ao mundo: “provavelmente eu não entendi tudo o que eu estava lendo, mas foi o suficiente pra me acordar numa certa direção. A minha mãe tinha mania de se queixar de que as pessoas não davam atenção a ela porque era mulher [...] que não sei quem tentou enganá-la porque era mulher”[4]. O entusiasmo com o encontro ficou explicita quando, uma década após seu contato com o texto, em 1960, ela soube da visita de Beauvoir e Sartre ao Brasil e aproveitou o prestigio de seu pai – Caio Prado Júnior, conhecido intelectual de esquerda –, convidando-os para jantar em sua casa, prontificando-se a acompanhá-los em sua visita a São Paulo. Nessa época Danda já estava casada, tinha seus três filhos – Cláudia, Nelson e Carla – e conta que arrumou-os dizendo a eles que naquele dia conheceriam pessoas especiais das quais muito ouviriam falar quando crescessem. No entanto, ela diz que ficou um pouco frustrada, “porque quando saímos de carro, ela ficava ouvindo o que os homens conversavam, muito atenta. E eu não imaginava assim”. Para Danda o livro de Beauvoir era “um livro que criticava o casamento, criticava a posição clássica da esposa se ocupando do marido e de repente ela está centrando aquele encontro nas preocupações dela com ele, não é?”[5]. Essa crítica ao casamento e ao papel da esposa que Danda leu no texto de Beauvoir e não encontrou tanta ressonância no contato pessoal, tornou-se o tema de sua tese de doutorado defendida anos mais tarde[6]. O conhecimento feminista desterritorializa, faz o familiar se tornar estranho, abrindo possibilidades de criações conceituais renovadas, diz Braidotti (2003). E essa é uma desterritorialização constante. Eis seu efeito sobre Danda. O encontro com a primeira edição de O Segundo Sexo produziu uma mudança singular em sua vida. O texto de Beauvoir foi um encontro gerador das “potências aumentativas”, um encontro que criou novas possibilidades de vida para muitas mulheres. Deleuze e Parnet dizem que um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou núpcias, muitas vezes encontramos pessoas, mesmo sem as conhecer, e encontramos também “movimentos, idéias, acontecimentos, entidades” (1998, p.6). Encontros que aumentam nossa potência de pensar. Pensar incitado pelos afetos – “ora, os afetos é que nos obrigam a pensar, essa é a grande contribuição de Deleuze para a filosofia” (Orlandi, 2008). O mundo é uma indagação permanentemente instigada a cada encontro. Encontros como o que Danda teve com o texto de Beauvoir, encontros que suscitaram acontecimentos. Acontecimento pensado enquanto ruptura, movimento de forças que faz com que as coisas sejam percebidas de formas diferentes, alterando o curso da própria história, como define Foucault. Nesse caso, encontro que a aproximou ainda mais de uma estética feminista que se materializou nos anos em que esteve exilada na França. “A gente tinha que fazer alguma coisa, não era possível ficar vivendo assim” Em 1964 Danda já havia se formado em Psicologia e fazia parte do Partido Comunista. Contudo, já há algum tempo ela sentia as reuniões da intelectualidade do partido como vazias: “Eu não agüentava mais reuniões comunistas e toda aquela discussão teórica. Descobri que o grupo masculino era meio oco [...] Eles se reuniam lá em casa e eram horas de conversas que não levavam a lugar nenhum [...] falava-se de tudo, muita teoria... mas não falavam das pessoas”[7]. Eram discussões não incluíam as mulheres, pois para a maioria dos grupos de esquerda dos anos 1960 e 1970, a ordem patriarcal e misógina era um problema secundário que seria resolvido através da revolução comunista[8]. Com a repressão nas ruas, Danda sentiu vazio maior ainda no discurso masculino da revolução, voltado para causas que ela já percebia abstratas e gerais. Foi em nesse contexto que ela se afastou das reuniões e após 15 anos de casamento pediu o desquite (na época não existia o divórcio), já que seu marido também fazia parte do grupo ao qual ela se refere: “eu precipitei a minha separação, por que de repente eu me dei conta que eu entendia tudo aquilo que eles tavam dizendo, mas eu ficava pra trás por que eles eram homens, eles ‘sabiam coisas’, eles iam ter cargos, era tudo nesse nível”[9]. Assim, em 1966 ela desligou-se desse grupo mas continuou ligada ao Partido buscando informações que ajudavam a localizar os presos políticos, contatar suas respectivas famílias e tirar militantes do país. “ A gente tinha que fazer alguma coisa: o tempo todo, a gente ouvia alguém que vinha contar absurdos [prisões, torturas, desaparecimentos], tinha a indignação... não era possível ficar vivendo assim”[10]. Os absurdos eram tamanhos que em paralelo a situação vivida pelos militantes, a censura, as prisões, a suspensão dos direitos políticos, o mergulho do país na anomia de um estado de exceção tornado regra, a família de Danda – pertencentes a alta burguesia paulistana: os Silva Prado, Álvares Penteado e os Cerquinho – rompeu contato com ela, temerosos que estavam de serem identificados com os “subversivos”: “na minha família, as minhas tias cortaram relações, uma me deixou um cartãozinho embaixo da porta, dizendo que dadas as circunstâncias não podiam mais nos ver e a gente não poderia mais ir na casa delas”. Danda diz que essas foram cenas “ridículas”, pois ela não se considerava tão envolvida com a militância para tal: “eu me lembro da minha prima, um dia eu encontrei ela no cabeleireiro e ela não falava comigo [...] eles ainda eram mais alienados do que nós”[11]. Cenas que não eram propriamente novas em sua vida, pois, como seu pai pertencia ao Partido Comunista, ela lembra que já quando criança costumava ser apontada na rua como “filha de comunista”: “eu me lembro de jogarem pedra em nós na rua, eu com minha mãe, lá em Higienópolis (...) jogavam no carro e tudo, havia uma reação muito mais violenta do que mais tarde [...]”[12]. Habituada com a “acusação” de ser comunista, em meio à ditadura militar, “fazer alguma coisa” significou, para Danda, obter informações sobre os presos políticos, contatando suas famílias, denunciando no exterior as prisões e pedindo apoio para os militantes saírem do país, aproveitando em muito as visitas ao pai no presídio Tiradentes - Caio Prado Júnior havia sido preso em 1970, acusado de subversão, pois havia supostamente defendido a luta armada num jornal de estudantes da Unicamp. Ao fazer isso, Danda acompanhou de perto o acirramento da violência e da repressão política: “eu ajudei consciente de que era um pequeno risco, mas que aquilo tinha um limite, eu não poderia ficar muito tempo no Brasil”. O limite veio com o AI-5 (Ato Institucional número 5), de dezembro de 1968 e seus decretos complementares, como o AI-14 (Ato Institucional número 14) que legitimou a pena de morte e a prisão perpétua no país. A partir de então, o acirramento das perseguições e assassinatos políticos levaram-na a tomar a decisão de partir. No segundo semestre de 1969 foi para a França. Para não chamar a atenção dos órgãos de segurança organizou primeiro uma mudança para o Rio de Janeiro com seus filhos e de lá seguiu para Paris, levando Carla – a filha mais nova, com 8 anos na época – decidida também a escrever sua tese de doutorado. No entanto, em 1970 retornou para acompanhar o julgamento de seu pai. Como o julgamento foi adiado, ela permaneceu no Brasil esperando a nova data até 1971, quando a casa de Rubens Paiva[13] foi invadida e ele foi seqüestrado pelos policiais do DOI/CODI/RJ[14]. Seqüestro que se estendeu à Eunice Paiva e a uma das filhas do casal, que também foram conduzidas ao DOI-CODI. Danda era amiga de Rubens e Eunice Paiva, seus filhos estudavam no mesmo colégio e freqüentemente estavam na casa do casal. Ela não imaginava que ele seria assassinado pela repressão. A justificativa para a prisão foi o auxílio prestado por ele a grupos como o MR-8, tirando militantes do país. Logo, era uma prisão muito próxima, dizia respeito a atividades que ela também realizava. Rubens Paiva havia auxiliado a tirar do país a filha de um amigo, lembra Danda. Helena Bocaiúva – a moça em questão – estava envolvida no seqüestro do embaixador americano e era procurada pela repressão. Rubens ajudou a escondê-la e auxiliou em sua fuga. Essa informação chegou até os policias do DOI-CODI e do CISA através de uma carta de agradecimento enviada por Helena e interceptada pela repressão. “Manter correspondência com brasileiros exilados no Chile”[15], foi a justificativa oficial para a prisão de Rubens. Ao saber das circunstancias da prisão, Danda decidiu sair definitivamente do país, sem esperar o novo julgamento de seu pai. Esperou apenas que Eunice Paiva fosse liberada[16]. As lembranças duras dessa época acompanham Danda: “acho que foi uma época tão terrível que até hoje eu não consigo me recuperar [...] percebi que a coisa tava piorando, então eu resolvi que eu ia embora. Nunca imaginei que isso ia levar 10 anos”, diz ela ao falar da prisão da família Paiva e de sua decisão de deixar o país. Foram 10 anos de intensas atividades feministas – parte delas narradas no artigo “Danda Prado: por uma estética feminista” (Rosa, 2010) -, em meio as quais coragem feminista e coragem lesbiana se entrelaçaram. Da coragem feminista à coragem lésbica ...a historicidade da opressão das mulheres revela que a heterossexualidade compulsória foi e é ainda um dos eixos maiores de seu assujeitamento voluntário – ou não – no mundo dominado pelo masculino. Tania Swain Talvez a "coragem lesbiana" da Danda tenha o mesmo peso no Brasil que a da Adrienne Rich nos USA. Maria José de Lima Para Margareth Rago, a escrita de si, enquanto prática constitutiva das estéticas da existência, se amplia com a parrhesia – o falar verdadeiro, a coragem da verdade – e ambas são fundamentais para entendermos como as mulheres que viveram a militância de esquerda nos anos de ditadura militar ousam mergulhar nas experiências vividas, reinterpretando-as e “recusando o destino supostamente biológico que lhes foi imposto, para construírem-se autonomamente em sua singularidade”. Escrevendo ou falando francamente, apontam “tanto para um trabalho sobre si, quanto para a luta política em defesa da dignidade, da justiça social e da ética” (Rago, 2009). Nesse trabalho sobre si e na luta política em busca de justiça social e dignidade, Danda Prado, ao romper com as normas patriarcais mergulhando nos movimentos feministas, afirmou novos modos de ser e existir. Se aos vinte anos o encontro com O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, afetou-a profundamente; aos quarenta, e mãe de três filhos, rompeu seu casamento, percebendo o mundo masculino – e, especificamente, o mundo da esquerda com o qual convivia – pouco solidário com as mulheres. Já no exílio, ao construir para si uma “estética feminista”, aproximou-se do que Francine Descarries chama de “feminismo lesbiano”, também chamado de “feminismo radical” (Descarries, 2000). Feminismo que questionou a instituição da heterossexualidade compulsória, entendida enquanto regime político essencial à manutenção do patriarcado. Se a categoria “sexo” não existe a priori, se “homem” e “mulher” são definições políticas e não dados naturais; são criações que fundam a sociedade heterossexual definindo as mulheres em função da reprodução, fazendo com que elas passem a existir apenas em relação aos homens, “as lésbicas não são mulheres” dizia Monique Wittig (2006), causando estupor entre suas leitoras. Da mesma forma, Adrienne Rich (1996) afirmava a existência estratégica das lesbianas como um ato de resistência à instituição política da “heterossexualidade compulsória” – categoria política de naturalização dos seres, de exclusão e confinamento de um feminino, construído como oposto, complemento do masculino –, explicitada pela autora (Swain, web/2010). O lesbianismo é visto, tanto por Wittig quanto por Rich, como exterior ao regime heterossexual e, portanto, necessário politicamente. Ameaça à ordem androcêntrica, a lesbianidade escapa ao “contrato sexual” que, em conjunto com o “contrato social”, legitima a exploração das mulheres através da instituição do “direito patriarcal moderno”, como mostra Carole Pateman (1993). Combatendo essa estratégia biopolítica de controle e gestão da vida que produz corpos heterossexuais e legitima o direito sexual de acesso dos homens ao corpo das mulheres, Danda adotou o feminismo lesbiano enquanto prática pessoal e política. Posição que sustentou abertamente, como percebemos numa das cartas enviadas a sua mãe: Paris, 3/11/76 Querida mamãe, [...] Como conversamos dessa vez! Acho que começo a compreender um pouco de você e suas reações, o que não é fácil. Por outro lado acho que você começa a perceber que minhas atitudes são fundamentadas em decisões profundas e irreversíveis [...] não me parece ter tempo para retomar outros caminhos, e me parece que estou certa em minha visão das coisas. Isto é, refiro-me a entrar no páreo de procurar um homem a todo pano para conviver ou ter vida “social” no sentido convencional. Esses tra-la-las para mim não têm o mínimo significado e não é deste lado que espero reforço e aceitação na vida. E os exemplos que assisto à minha volta de forma alguma me desestimulam a seguir meu caminho, pelo contrário!!![17] Nada preocupada com as convenções sociais ou com a aceitação pública, Danda, nesse trecho, descarta qualquer possibilidade de manter relações afetivas heteronormativas com homens, mesmo que apenas para manter certo tipo de vida social – como parece ter sugerido sua mãe –, da qual ela já estava distante. “Esses tra-la-las para mim não têm o mínimo significado e não é deste lado que espero reforço e aceitação na vida”, dizia, afirmando sua posição perante a família. “Há mil escolhas e você pode viver as que quiser”, acentua hoje ao falar sobre o assunto. Parrhesiasta, assumia abertamente novas possibilidades de subjetivação, afirmando a vida como “escândalo da verdade” e desterritorializando a heterossexualidade. Na articulação entre a teoria e a prática, a palavra e o ato, a verdade e a vida, em seus últimos cursos – nos anos de 1983 e 1984 – Michel Foucault retomou as reflexões dos antigos (aos gregos, a Sócrates, aos cínicos, etc.) sobre a parrhesia, o falar verdadeiro e ético que exige coragem: a “coragem da verdade”. Em oposição à fala rebuscada, persuasiva e bajudalora da retórica, a parrhesia supunha a fala franca e direta, oriunda de uma convicção pessoal; em oposição à confissão, supunha o risco de uma fala engajada que pode desagradar, ameaçar os poderes e desestabilizar os saberes instituídos; em Sócrates, estava ligada ao cuidado de si e à arte de dar forma à própria existência, constituindo modos de vida éticos e verdadeiros; nos cínicos transformava a vida no escândalo da verdade (Foucault, 2006, 2010). Nesse sentido, afirmar o feminismo lesbiano nos anos 1970 dizia respeito a essa coragem da verdade, a esse escândalo de buscar formas de viver desvinculadas do regime heterossexual. Como acentua Frédéric Gros, trata-se “de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade. [...] porque a ‘vida verdadeira’ é sempre ao mesmo tempo uma vida escandalosa” (2004, p.163). Escandalosa porque foge aos padrões sociais, culturais e políticos tidos como “normais”, rompe com as normas e escapa aos dispositivos de controle e sujeição e entra “em cada nova aventura-descoberta inteiramente, de corpo inteiro, sem se esconder”: Desde jovem, vi a Danda como especial e diferente. Ela já era diferente, com certeza, das "mulheres em geral", por vir de uma família ao mesmo tempo "rica, famosa, culta e aristocrática", cujo sobrenome está em várias ruas de São Paulo: Caio Prado, Martinico Prado, Dona Veridiana, e por aí vai. Mas ela ultrapassou essa diferença primeira, apenas herdada, pelas suas próprias atitudes diante da vida, entrando em cada nova aventura-descoberta inteiramente, de corpo inteiro, sem se esconder[18]. Rita Moreira, feminista, diretora e produtora de documentários como Temporada de Caça e A dama do Pacaembu, é amiga e acompanha a trajetória de Danda há um longo tempo. Diz que sempre chamou sua atenção a inquietação e o envolvimento de Danda com a vida e as pessoas a sua volta. Lembra de situações nas quais, ainda casada e sem fazer parte dos movimentos feministas, se revoltava com a situação de opressão das mulheres. Mais tarde, acompanhou sua trajetória fora do país: Assim, talvez um pouco como Simone de Beauvoir, com quem conviveu em Paris e a quem ciceroneou em São Paulo, ela foi avançando: depois de esquerdista, descobriu-se feminista e, mais adiante, homossexual. Eram os anos 70, creio, do MLF (Mouvement de Liberation de Femmes), em Paris, do Women's Movement, em Nova York[19]. Em meio aos movimentos feministas que se multiplicavam nos anos 70, invertendo as evidências construídas e reafirmadas pelo dispositivo da sexualidade, as lésbicas reivindicavam a construção de outra realidade social, recusando as imposições masculinas e criando comunidades nos Estados Unidos e Canadá. Citando Ti-Grace Atkinson, Swain diz que a “lésbica política” era a figura “cujos desejos sexuais não se voltavam necessariamente para outras mulheres”, mas estavam engajadas numa luta sem tréguas na qual a “sexualidade estava no centro da resistência” (Swain, 2002). Exemplo disso é uma matéria publicada no Nosotras , em 1976: LESBIANISMO E FEMINISMO Notas para uma reflexão mais longa Mariza Figueiredo A editora DES FEMMES (França) publicou em fins de 1975 o livro “Odisséia de uma Amazona”, de Ti-Grace Atkinson. [...]Publicar “Odisséia de uma Amazona” é, no nosso entender, um ato de subversão, já que este livro compreende um esboço de uma estratégia e das táticas necessárias à vitória feminista. [...]Entre as múltiplas conferências que ela fez nos EUA entre 1969 e 72, gostaríamos de assinalar aqui algumas passagens de sua análise sobre “Lesbianismo e Feminismo”.Antes de tudo é necessário uma explicação sobre a distinção feita, atualmente, nos EUA entre as palavras “lesbian” e “gay” pois ambas servem para designar mulheres homossexuais.As primeiras (lesbians) são mulheres homossexuais, politicamente engajadas como feministas.As outras (gays) também são homossexuais mas não estão politicamente engajadas no Women’s Lib; ou seja, são mulheres que ainda não se (re)uniram para analisar o próprio fenômeno existencial da recusa em assumir o papel dito “feminino”, imposto social e culturalmente pelo grupo homens ao grupo mulheres. [...]Para retomar a explicação sobre a diferença feita entre a “lesbian” e a “gay” nos EUA, poderíamos dizer que a “lesbian” recusa-se conscientemente a reproduzir todo e qualquer papel estereotipado (masculino ou feminino), no seu comportamento pessoal e nas relações sociais enquanto que a “gay”, tendo recusado o modelo feminino de nossa cultura procura afirmar esta recusa pela imitação do modelo masculino o que é, no nosso entender, uma simples reação que demonstra a ausência de uma reflexão e de uma análise sobre a engrenagem político-patriarcal. [...] (Nosotras, n.25-26/1976) Ti-Grace Atkinson (1975) é uma das feministas que defendia a lesbianidade – o “lesbianismo político” – como forma de subversão à sujeição das mulheres ao patriarcado e à heterossexualidade compulsória. Entendendo por “lésbica” não toda e qualquer mulher que se relacionasse com outras mulheres, mas apenas aquelas que possuíam a consciência feminista. Aquelas que se furtavam a reproduzir os papéis heteronormativos, retirando a centralidade do sexo da vida política e social. Importante distinção, pois nem sempre relações homossexuais, ou outras tantas “práticas desviantes” ou “paródias de gênero”, são subversivas. Muitas vezes, a reprodução dos padrões instituídos permeia essas relações. Logo, a “coragem lésbica” é aquela que não se apóia em uma identidade, mas funda um espaço para além do regime político da heterossexualidade, como defendia a autora da matéria citada acima, Mariza Figueiredo. Mariza que foi companheira de Danda por longos anos e organizou com ela e outras feministas, o Grupo Latino-Americano das Mulheres em Paris e o Nosotras. O Nosotras que em alguns momentos serviu também como espaço de divulgação do feminismo lesbiano, funcionando como um instrumento de recusa da mitologia patriarcal e heteronormativa, tal como vemos na caricatura de “Adão e Eva”, na qual Eva declara ser alérgica a maçãs: “No gracias, yo soy alérgica a las manzanas” (Nosotras - n.4, abril de 1974, p.3) Se a “coragem feminista” – que incentiva a recusa a cenas reiteradas e fixadas pela memória discursiva como a do mito do paraíso – já fazia parte da vida de Danda, a “coragem lésbica” sacudiria as evidências que naturalizam a heterossexualidade, surpreendendo (e escandalizando) muitos: Ao surpreender, Danda abria caminho para novas possibilidades: não só para as jovens militantes, mas também para as primas e familiares mais velhos, para os colegas de vida intelectual. E isso muito antes do assunto se tornar, como hoje, menos escabroso entre heterossexuais. E deu seu exemplo com naturalidade, sem mudar de tom, mantendo-se elegante, conservando todas as coisas positivas de sua educação privilegiada: a postura tranqüila e delicadeza nos gestos e palavras [...] Danda ganhou admiração e respeito, dando um exemplo que tantas mulheres ainda hoje precisam. Enfim, com seu modelo de coragem feminista e de coragem lésbica (coragem, sim, pois com pai famoso, seu direito a heranças, tendo filhos e netos, ela tinha sim o que perder, e muito!), mantendo sempre sua postura digníssima Danda é o nosso melhor exemplo de Lesbian Chic paulistana. (Ora, e por que uma lésbica teria sempre que tomar cerveja na garrafa e ter modos "rústicos"? -- não que eu tenha nada contra as desse tipo, claro).[20] Por que fixarmos rótulos, colarmos identidades, nessa tendência totalitária a catalogação das sexualidades? O que é “ser lésbica”? O que é “ser feminista”? Que desejo de localização sustenta o imaginário que identifica “a lésbica” como aquela que “toma cerveja na garrafa e tem modos rústicos”? Existe um “ser” ou apenas posições de identidades, móveis, fluídas? Que compulsão é essa para as definições? Tania Swain nos diz que essa compulsão compõe o “sistema de pensamento ‘falogocêntrico’, funcionalista, ‘cada coisa em seu lugar, cada lugar sua função’ na ordem da verdade, na univocidade do sentido, na ordem do Pai”. Isso porque “definir uma identidade não é senão criar seu próprio campo de exclusão: ‘a verdadeira lésbica’, a ‘verdadeira mulher’”, figuras ficcionais que servem à reafirmação da heterossexualidade compulsória (Swain, web/2010). Nesse sentido, a denominação de “lesbian chic” – além da referência ao status social privilegiado – remete àquela que não se “parece” com a figura imaginada da “verdadeira lésbica”. Não reproduz o modelo heteronormativo, pois, ao contrário do supostamente esperado, age “com naturalidade, sem mudar de tom”. Precisaríamos aqui distanciarmo-nos da univocidade do sentido, pensando não em “lesbianismo”, mas em “lesbianismos, em multiplicidades, tão numerosas quanto as próprias mulheres, assim construídas socialmente”. Pois, felizmente “não há um referencial estável, uma prática única, sólida, partilhada por todas que se dizem lesbianas” (Swain, web/2010). Aliás, ao se perguntar “afinal, o que é lesbianismo”, Swain considera que não existem respostas fora do social: “apenas um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo: estratégia, opção, passagem, destino, recusa, cansaço, emoção. E sofrimento. Cada qual [com] seu desenho, sua fluidez. No horizonte, a subversão” (idem). Na subversão dos valores patriarcais, feminismo e lesbianismo se entrelaçam na trajetória de Danda, desde o exílio. Exílio que findou com a decretação da tão limitada lei de anistia em 1979, permitindo-lhe o retorno ao Brasil. Analisando romances de exiladas – como La nave de los locos de Cristina Peri Rossi – Paloma Vidal entende a narrativa do exílio como deslocamento discursivo, “prática de linguagem que faz emergir o estranhamento e viabiliza uma forma de colocar-se a margem dos discursos hegemônicos, abalando os princípios políticos, sexuais e lingüísticos que os funda” (Vidal, 2004:19). Na trajetória de Danda esse deslocamento foi flagrante e se fez sentir entre as feministas brasileiras. Num contexto mais amplo, a historiadora Raquel Shoiet diz que o retorno ao Brasil das exiladas, aliado à experiência daquelas que permaneceram no país nos anos 1970, proporcionou aos feminismos locais novas configurações: “a partir desse momento, questões antes colocadas em segundo plano, vistas como próprias à esfera privada, tais como as relativas ao corpo, ao desejo, à sexualidade, à violência, foram legitimadas e trazidas à esfera pública, reconhecendo-se sua dimensão política” (Shoiet, 2010). Danda foi uma das responsáveis por essas novas configurações. Ela retornou ao país em 1979, depois de permanecer por um bom tempo sem documentos no exterior, pois a Embaixada do Brasil na França recusava-se a renovar seu passaporte. Ao desembarcar, foi conduzida ao DOPS para prestar depoimentos – como aconteceu com a maioria dos que retornaram – pois os policiais desejavam saber nomes e dados das feministas com as quais ela conviveu[21]. Seus vínculos com grupos como a VPR e o MR-8 não eram os que preocupavam os policiais, mas, sim, sua atuação “subversiva” junto aos feminismos. Subversão à qual Danda deu continuidade em terras brasileiras. Foi morar no Rio de Janeiro e lá articulou e participou de muitos movimentos feministas. Tanto que, de acordo com Maria José de Lima – Zezé –, sua casa “era o centro de tudo, de todas as reuniões na época do Rio”[22]. Reuniões, estas, ligadas a um feminismo libertário que questionava profundamente a ordem patriarcal e a heterossexualidade compulsória colocando, como mostra Shoiet, questões relativas ao corpo, à sexualidade e à violência contra mulheres no centro dos debates feministas brasileiros, uma vez que estas questões permaneciam, até então, em segundo plano no CMB (Centro da Mulher Brasileira)[23]. Isso se modificou na década de 1980, graças a intervenções de outras feministas, como aquelas que pertenciam ao “Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro”. Contudo, isso já é tema de um outro artigo. Por ora, ficamos com os indícios da coragem da verdade que influenciou muitas outras feministas... Referências Bibliográficas Atkinson, Ti Grace. 1975. Odyssée d’une amazone. Paris: Des Femmes, 1975. Beauvoir, Simone. 2009. O segundo sexo. RJ: Nova Fronteira, 2009. Braidotti, Rosi. 2003. Becoming Woman: Or Sexual Difference Revisited . Theory, Culture & Society, Vol. 20, No. 3(p.43-64). Deleuze, Gilles e Parnet, Claire. 1998. Diálogos. SP:Escuta. Descarries, Francine. 2000. Teorias Feministas: liberação e solidariedade no plural. Em: Feminismos: Teorias e Perspectivas. Tania Swain (org.). Revista do PPGH/UnB (Vol. 8, N.1-2). Foucault, Michel. 2010. O governo de si e dos outros. SP: Martins Fontes. ___. 2006. A Hermenêutica do sujeito. SP: Martins Fontes. Gros, Frédéric. 2004. A parrhesia em Foucault. Em: Foucault e a coragem da verdade. SP: Parábola Editorial. Orlandi, Luiz. 2008. Ética em Deleuze. Texto disponível em www.cpflcultura.com.br/revista_ler.aspx?Revista_Categoria_ID=2&arquivo_ID307. Acessado em 19/09/2008 Paterman, Carole. 1993. O Contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra. Prado, Danda. 1979. Esposa, a mais antiga profissão. SP: Brasiliense. Rago, Margareth. 2009. Escritas de si, Parrésia e Feminismos. Texto apresentado no VI Colóquio Internacional Michel Foucault, realizado entre 19- 22 de outubro de 2009, no IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro. Rich, Adrienne. 1996. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. Em: Stevi Jackson e Sue Scott (org.) Feminism and Sexuality: a Reader. Columbia UniversityPress. Rosa, Susel Oliveira. 2010. Danda Prado: por uma estética feminista. Revista Aulas (Online), Unicamp. Dossiê Estéticas da Existência. Shoiet, Raquel. 2010. Mulheres brasileiras no exílio e consciência de gênero. Em: Joana Pedro e Cristina Wolff (org.) Gênero, feminismos e ditaduras no cone sul. SC: Editora Mulheres. Swain, Tania. Desfazendo o “natural”: a heterossexualidade compulsória e o continuum lesbiano. Disponível em: http://tanianavarroswain.com.br/brasil/rich.htm. Acessado em: 05/05/2010. ___. 2006. Entre a vida e a morte, o sexo. Labrys. Estudos Feministas (Online). N. 12. ___. 2002. Feminismo e lesbianismo: quais os desafios? Labrys, Estudos Feministas (Online). Número 1-2. ___. Afinal o que é lesbianismo? Disponível em: http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/o%20que%20%E9%20lesbianismo.htm. Acessado em:05/05/2010. Vieira, Priscila Piazentini. 2010. Escrita de si e parrhesía: verdade e cuidado de si em Michel Foucault. Revista Aulas/Unicamp. Dossiê Estéticas da Existência. Vidal, Paloma. 2004. A história em seus restos: literatura e exílio no cone sul. SP: Annablume. Wittig, Monique. 2006. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Barcelona: Egales. nota biográfica: Susel Oliveira Pesquisadora Colaboradora do Departamento de História/Unicamp. Esse artigo compõe parte da pesquisa de pós-doutoramento financiada pela FAPESP . [1]Palestra de Danda Prado no evento "O Segundo Sexo: celebração dos 60 anos da obra de Simone de Beauvoir", realizado no dia 05/09/2009 na Casa das Rosas, em São Paulo. [2] Editora fundada pelo pai de Danda, Caio Prado Júnior, em 1943. [3] Simone de Beauvoir. O segundo sexo (RJ: Nova Fronteira, 2009). [4] Danda Prado. Entrevista à autora gravada em 20/04/2009. [5] Danda Prado. Entrevista à autora gravada em 20/04/2009. [6] Danda Prado. Esposa, a mais antiga profissão(SP: Brasiliense, 1979). [7] Entrevista à autora gravada em 20/04/2009. [8] Tema que analiso mais detalhadamente em “Subterrâneos da liberdade: mulheres, militância e clandestinidade”. Revista LABRYS (N. 15, 2009). [9] Entrevista à autora gravada em 04/07/2009. [10] Entrevista à autora gravada em 03/07/2009. [11] Entrevista à autora gravada em 05/10/2009. [12] Danda Prado. Em: Paulo Teixeira Iumatti. Caio Prado Jr.: Uma trajetória intelectual (SP:Brasiliense, 2007), p. 130. [13] Rubens Paiva havia sido deputado federal pelo PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – até 1964 quando teve seu mandado cassado e precisou pedir asilo político na Embaixada da antiga Iugoslávia, até conseguir sair do país. Antes do golpe militar, Rubens Paiva tinha participado de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou as atividades do IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática –, órgão que recebeu financiamento direto dos EUA para auxiliar a preparação do golpe e financiou, entre outras coisas, palestras e escritores que difundiam a ameaça do “perigo vermelho”. A CPI descobriu e denunciou militares que haviam recebido dinheiro do IBAD e, para muitos, Rubens tornou-se alvo da repressão já a partir desse episódio. Logo após o golpe, ele permaneceu exilado por nove meses e após esse tempo decidiu retornar ao Brasil, onde dirigiu o Jornal Última Hora até janeiro de 1971, quando foi levado para o CISA – Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica – e depois para o DOI-CODI/RJ. [14] Para mais detalhes, ver: “Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil” (SP: Imprensa Oficial, 2009), p.225. [15] Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (SP: Imprensa Oficial, 2009), p.225. [16] No dia da prisão de Rubens, a casa da família ficou ocupada pelos policiais – Marcelo, filho menor do casal conseguiu avisar os vizinhos através de um bilhete. Eunice permaneceu por doze dias incomunicável e quando saiu viu o carro do marido no pátio interno do quartel. Mesmo assim, a versão oficial dada pela ditadura foi a de que Rubens havia fugido. Ela não mais o encontrou: até a década de 1990 ele era mais um dos inúmeros desaparecidos políticos: “tivemos o atestado de óbito só em 1996, depois da Lei dos Desaparecidos. As informações até hoje estão sendo montadas. É uma morte que não pára nunca de acontecer”, diz Marcelo Rubens Paiva (http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/05/420591.shtml). [17] Correspondências. Arquivo pessoal de Danda Prado. [18] Rita Moreira. Depoimento à autora gravado em 16/05/2010. [19] Rita Moreira. Entrevista à autora em 16/05/2010. [20] Rita Moreira. Depoimento à autora gravado em 16/05/2010. [21] O relatório do DOPS do retorno de Danda Prado está disponível no Arquivo Público de São Paulo. [22] Entrevista à autora em 19/12/2009. [23] Para maiores informações sobre o histórico do Centro da Mulher Brasileira, consultar pesquisas e artigos de Raquel Shoiet.
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