labrys, études féministes

numéro 1-2, juillet/décembre 2002

 

Ampliação do quadro de análise feminista da violência doméstica masculina através do estudo da violência nas relações lesbianas.

Vanessa Watremez 

tradutora: tania navarro swain

Resumo: Estudar a violência doméstica nas relações lesbianas objetiva ultrapassar a compreensão da violência: pretende-se contribuir à compreensão das relações sociais de sexo, tendo como ponto de partida o questionamento do sistema heterossocial e das desigualdades na classe das mulheres. Percebe-se que o sistema de dominação e de hierarquia funciona além das categorias de sexo, desvelando-se assim o caráter construído dos sexos. Este texto abre também uma perspectiva que leva em conta as diferenças entre as mulheres e permite que se ultrapasse a imagem da mulher não- violenta produzida pela sociedade heterossocial. Isto significa desconstruir e interrogar o sistema que produz a hierarquização entre mulheres e homens.

Mots-clefs: violence, violence domestique, relations lesbiennes

A violência doméstica nas relações heterossexuais é um fenômeno cada vez mais estudado e os resultados da análise se difundem aos poucos em todos os níveis da população. Este clima de sensibilização abre caminho à novas interrogações e conduz a uma análise da violência nas relações lesbianas. Se a violência heterossexual foi durante muito tempo considerada como parte do domínio privado e marginal é hoje reconhecida oficialmente como problema (ENVEFF, 2000) coletivo e uma questão pública. Anteriormente, a dimensão deste fenômeno era ignorada, permanecendo invisível, um tabu, a não ser pelas denúncias feministas e universitárias. Enquanto avanços notáveis são feitos  na análise desta questão, no quadro heterossexual, começamos apenas a perceber e a analisar a violência nas relações lesbianas. Sublinharei então, aqui, as questões pertinentes a esta problemática, a partir dos resultados que até agora obtive , confrontando-os com a análise feminista tradicional. Veremos desenhar-se o sistema perturbado por este fenômeno: o heterossocial. Apoiarei minhas considerações sobre uma pesquisa de DEA[1] e outros trabalhos precedentes: « Pré-projet autour de l’élaboration d’un programme d’intervention auprès des lesbiennes actrices de violence », GIVCL, Montréal, 2001 ; « La violence domestique dans les relations lesbiennes », Equipe Simone-SAGESSE, 2001 ; e « Le modèle hétéronormatif : influences et résistances à travers les couples de femmes et les lesbiennes », UTM, 2000.

Conhecimento atual e constatações sobre este fenômeno

Esta questão tende atualmente, como vimos, a sair da sombra, desfazendo dois mitos: o estereótipo de socialização da mulher ( as mulheres são não-violentas naturalmente) e a visão idílica das relações lesbianas ( seriam relações entre iguais, fora de toda forma de poder). O tabu existe e seu objetivo é silenciar aquilo que a violência nas relações lesbianas desmascara. É necessário, portanto, desvelar este não dito.

Os primeiros estudos neste sentido restringiram-se a medir o grau de violência e mostram resultados estranhamente díspares: as violências físicas situam-se entre 11% (Chesley et al., 1992)e 59,8% (Bologna et al., 1987) do conjunto da amostragem  ; e as violências psicológicas entre 17% (Loulan et Nelson, 1987) e  95% (Bologna et al., 1987)  . Além dos vieses – às vezes insólitos – relativos aos instrumentos de medida e à constituição da amostragem, poderíamos atribuir estas disparidades a um fenômeno mais amplo: não podemos quantificar e constituir amostragens representativas das lesbianas, pois não conhecemos suas características sócio-demográficas, em razão de sua invisibilidade social .

Assim, estes estudos quantitativos não visam exatamente a medir um fenômeno social, respondendo a outras lógicas. Com efeito, quantificando este fenômeno , os estudos a que nos referimos visam legitimar ou invalidar sua existência. Colocam em evidência alguns eixos desta questão: as mulheres são tão violentas quanto os homens ou estes teriam o apanágio da violência? Voltarei a este ponto.

Outros estudos, realizados na América (Chesley et al., 1992 ; Hammond, 1989 ; Renzetti, 1989 ; Renzetti & Miley, 1996 ; Ristock, 1991 ; Ristock, 1994) ultrapassaram o tabu , inscrevendo-se em uma ótica qualitativa. Mostram a existência da realidade da violência lesbiana e permitem assim o questionamento dos mecanismos da violência em um quadro analítico mais extenso.  Entretanto, estas primeiras análises são ainda insuficientes para propor uma compreensão exaustiva do fenômeno que permita uma estratégia de auxílio às lesbianas vítimas ou atoras da violência. A importância maior destes trabalhos refere-se à desconstrução dos mitos  cercando esta forma de violência, permitindo assim que ela seja pensada. A tendência atual das ações e estudos limita-se à adoção de uma perspectiva feminista para compreender esta violência, tornando-a mais complexa com as noções de heterossexismo e de lesbofobia. (Irène Demczuk, 1995) ; mas o que se nota, antes de mais nada, é a ausência de análises do ponto de vista das lesbianas atoras da violência.

Atualmente estes estudos são guiados por um certa urgência e visam propor serviços que  correspondam à realidade das lesbianas vítimas de violência, ou seja, trata-se de pesquisas/ação visando desenvolver instrumentos de intervenção social.  Estudos voltados especificamente para o processo de violência e seus mecanismos  são quase inexistentes, bem como uma análise que insira este fenômeno nas relações sociais de sexo. Os primeiros estudos a este respeito  são ainda embrionários, mas diferentes correntes neles se afrontam, deixando transparecer fortes preconceitos sobre a realidade lesbiana.

De forma geral, não têm tentado , ou ainda timidamente, definir o que esta violência traduz do sistema heterosocial. Pode-se notar que um número considerável destas análises foi realizado por mulheres heterossexuais, o que talvez explique o eixo geralmente adotado: não colocam em causa o sistema heterossocial , ainda que este se revele no tipo de violência estudada.

Colocar este sistema em forma de epígrafe já significa identificá-lo como construção social e assim questionar sua influência na própria construção da violência nas relações lésbicas, como ampliação das  relações heterossexuais.

Torna-se necessário uma reapropriação desta problemática. Este trabalho insere-se, desta forma, na linha das pesquisas traçadas pelos primeiros estudos feministas sobre esta questão e sobre a violência doméstica masculina. Assim torna-se indispensável confrontar esta análise com a da violência doméstica masculina em um quadro hetreossexual.

Paralelos com a violência doméstica masculina

 
 Contribuições do quadro de análise feminista tradicional

            A análise feminista oferece uma abertura considerável à análise da violência nas relações lesbianas, pois, contrariamente ao que se pensa, não exclui a realidade das mulheres atoras de violências, afirmando que a violência doméstica é masculina. Ao contrário, excluir esta possibilidade seria cultivar o mito atual da violência masculina. Na perspectiva da análise feminista, não podemos afirmar que apenas os homens seriam violentos, nem que as mulheres o seriam igualmente. Para poder integrar e pensar as análises nas relações lesbianas, é preciso sublinhar a distinção entre gênero e sexo. É assim, que Daniel Welzer-Lang indica que ( a respeito da violência de mulheres contra os homens):

As mulheres violentas que apresentamos são o masculino, o poder no casal, onde os homens agredidos representam o feminino. As violências que elas utilizam, tanto em seu aspecto simbólico, suas forma e sua definição são violências masculinas domesticas. O binômio da violência, a dupla definição da violência masculina doméstica e o mito que as legitima se aplicam para o conjunto das violências estudadas, em qualquer categoria social de dominantes e de dominadas: homens, mulheres, crianças. O mito da violência masculina doméstica é independente do sexo biológico  da pessoa violenta. Mas falar apenas de homens violentos é negar que as mulheres também podem sê-lo, o que seria uma das formas atuais do mito.  Isto afirma a tese sobre a naturalidade da violência dos homens e evita mostrar a violência doméstica masculina como um fenômeno social. (Daniel Welzer-Lang, 1996 : 283) >         Se a violência doméstica  está ligada  aos homens é antes de mais nada pelo fato de existir uma quase perfeita adequação entre sexo e gênero; mas antes de ser uma prática dos homens, a violência doméstica é masculina. Assim, longe de questionar a violência masculina doméstica, o desvelamento da violência nas relações lesbianas ilumina a lógica do sistema: a violência é masculina, seja qual for o sexo biológico da pessoa.

Esta perspectiva mostra que as relações sociais de sexo não são fixas e imutáveis, mas relações construídas; permite desconstruir deste modo a naturalização dos sexos. O obscurecimento da violência nas relações lesbianas sustenta a naturalização da violência dos homens. E oculta o sistema que a constrói e a sustenta. Mas a violência nas relações lesbianas permanece ainda impensável. E isto se deve à definição de feminilidade em nossa cultura: as mulheres não seriam violentas naturalmente. Veremos mais adiante a extensão deste mito.

Hoje em dia o conhecimento a este respeito beneficia-se das pesquisas feitas sobre a violência nas relações heterossexuais, mas não existe uma simetria de análise . Seus pontos de convergência , porém,  fundamentarão a compreensão deste fenômeno. De início, as pesquisas realizadas mostram um ciclo da violência , bastante semelhante ao encontrado nas relações heterossexuais. Não pretendo detalhar este ponto, mas podemos lembrar sinteticamente seu processo: a primeira etapa ilustra o quotidiano do casal e a escalada da violência;  a segunda equivale à expressão da violência; a terceira etapa seria traduzida pela remissão; e  enfim, a quarta é qualificada como lua de mel.

A espiral da violência segue este mesmo percurso: a violência se torna cada vez mais freqüente e se  desdobra cada vez com mais força em suas diversas formas. Fala-se de patamares que marcam a agravação da violência. Enfim, pode-se apontar convergências nas conseqüências ( ansiedade, depressão, insônia, dor física, vergonha, baixa de auto-estima, isolamento, auto-controle...) e nas dificuldades para sair desta relação; algumas variantes porém são fatores específicos às lesbianas ( outing, lesbofobia interiorizada, ocultamento de opção sexual) que tornam mais complexas estas conseqüências e as razões que dificultam o fim do relacionamento.

Discutirei com mais vagar as formas da violência   ( psicológica, física, sexual, econômica, verbal, contra animais ou objetos, contra crianças, contra si mesma...) que se encontrariam nas relações lesbianas violentas – com, entretanto, algumas variantes: parece que  as lesbianas utilizam de preferência violências psicológicas que físicas.  Isto não exclui que as relações lesbianas violentas possam ser tão violentas fisicamente quanto as relações heterossexuais. Além disto, no que diz respeito à violência doméstica  um fato curioso aparece em vários estudos: as lesbianas vítimas de violências, que compunham a amostragem, seriam oriundas de uma classe social e economicamente mais privilegiada que suas parceiras. Nas relações heterossexuais, ao contrário,  o homem , ator da violência estaria apoiado  em seu status econômico e social para exercer sua violência.

Este fato permite-nos invalidar ou  sub-estimar o peso das relações de classe, de idade, de cultura ou ainda de etnia. Com efeito , poderíamos ter pensado que as relações de dominação em um quadro de lesbianismo não seriam ligadas à dominação de um gênero sobre outro, e sim à questões de ordem étnica, cultural, social ou econômica; isto nos mostra que  uma tal análise seria incorreta. Entretanto, Françoise Guay, que fez uma recensão das publicações sobre este fenômeno, sublinha que as entrevistas foram realizadas em um clima pouco propício ao desvelamento; as primeiras lesbianas a aceitarem uma participação das pesquisas eram provavelmente melhor situadas na escala sócio-econômica – fenômeno observável em numerosas pesquisas.

O quadro de análise feminista da violência nas relações heterossexuais permite-nos descobrir zonas de obscuridade na compreensão da violência nas relações lésbicas, apresentando-nos seus próprios limites. Se existe convergência quanto aos modelos de análise,  não podemos considera-lo suficiente para estudar a violência doméstica nas relações lesbianas. Enfim, este modelo de analise não é adequado pois ser lesbiana em uma sociedade heterossocial tem pesadas conseqüências. Tentemos, portanto, identificar estes limites engajando-nos nas pistas que este quadro de análise nos fornece.

Os limites do quadro conceitual tradicional

        A violência de um ponto de vista feminista é definida como a tradução do controle e do poder exercido sobre alguém.  Existem outras definições :

                “ Ela ( a violência) serve a manter e a reforçar os privilégios masculinos dados coletiva e individualmente aos homens no espaço doméstico e no espaço público: o poder do macho” ( Daniel Welzer-Lang, 1996:90)   “ As construções sociais do feminino e do masculino produzem a opressão das mulheres e a alienação dos homens e carregam nelas a violência. A análise das relações sociais de sexo mostra-nos que não há simetria entre a posição de sexo das mulheres e dos homens.”       (Daniel Welzer-Lang, 1996 : 297).

Esta definição, como todas as que se referem às correntes feministas – está ligada à dominação masculina. Quando tomamos consciência da forma como é definida a violência nas relações lesbianas, encontramos pontos comuns entre elas, mas igualmente algumas diferenças:

Uma lésbica sofre violência quando começa a temer sua companheira, quando modifica seu comportamento por causa de abusos sofridos ou do medo de abusos futuros, quando desenvolve uma consciência particular ou adota tipos de comportamento destinados a evitar a violência e isto contra seus próprios desejos e preferências. O poder e o controle podem se estabelecer sem agressão física, por meio de agressões psicológicas ou verbais. (Centre de Santé des Femmes de Montréal, 1995 : P.9)

Desta forma, assim como nas relações heterossexuais, trata-se de poder e controle que uma exerce sobre a outra. Entretanto, suas explicações e  causas não são diretamente transponíveis nos mesmos termos, pois: “ as lesbianas que são violentas com suas parceiras buscam estabelecer e reforçar seu poder sobre elas” ( como os homens em uma relação heterossexual). Assim: “ Pelo poder e controle que exercem, tentam satisfazer suas necessidades pessoais sem nenhuma referência às necessidades e desejos da outra”. (Centre de Santé des Femmes de Montréal, 1995 : p.9)

Contrária à violência masculina que é legitimada por um sistema social de dominação, a violência das lesbianas não se inscreve em um tal quadro, pois não tem legitimação social. A relação de poder estrutural, a desigualdade entre homens e mulheres não existe entre duas lesbianas que são, antes de tudo, socialmente mulheres. A violência entre elas não tem por finalidade a afirmação, a manutenção e o reforço do poder de um grupo social sobre outro. É uma dominação não reconhecida pela ideologia patriarcal. Demczuk sublinha este aspecto:

“ Do ponto de vista social, é importante notar que a violência entre lesbianas não é uma violência sistêmica: é um meio de assegurar o controle pessoal de uma pessoa sobre sua parceira. Não é sustentada e reforçada pelo casamento e pela família, pela dependência econômica, a divisão social do trabalho, a desigualdade salarial estatutária entre os sexos e um sistema judiciário tolerante com o agressor.  Não é encorajada diretamente pela televisão, cinema, pornografia. A violência dos homens sobre as mulheres, sim. ( Irène Demczu, 1993:6)

Enfim, o quadro de análise feminista tradicional não tem levado em conta a realidade das lesbianas. Podemos apontar três características para compreender a importância de seu papel e mostrar  os limites da análise feminista feita em um quadro heterossexual.

O outing ( tornar pública a homossexualidade de alguém). Uma lesbiana em uma relação de violência pode perceber ou pressupor uma ameaça vinda de sua companheira, agente de violêncai e esta ameaça pode ser expressa como tal  quando tenta obter ajuda ou fugir desta relação. O outing está fortemente ligado à lebofobia e esta última, latente, sempre pronta a surgir no quotidiano. Tende a ritmar – consciente ou inconscientemente – o dia a dia de numerosas lesbianas que são obrigadas a negociar a respeito do que podem dizer ou mostrar. Insidiosa e quotidianamente, evoluir neste quadro conduz à obliteração das restrições que impomos à nossas vidas.

Situar-se no armário ; Se o outing está ligado ao “armário”, esta própria situação de “ estar no armário” tem um papel na construção da violência. Estar no “armário” significa que as lesbianas não demonstram sua sexualidade e seu modo peculiar de vida. Não expor ou dissimulá-la, através de estratégias de recusa de toda relação e de toda situação desmerecedoras, leva ao isolamento. Retenhamos que é a sociedade lesbófoba que é responsável por este silêncio em torno de suas vidas. Um casal pode assim se inscrever neste processo de volta a si mesmo ( em nível familiar, amical , profissional...) pois “ ser dois” pode trazer a ilusão de estar protegida das agressões externas. Isto pode conduzir o casal à reclusão e/ou a uma fusão muito forte, que favorece as relações de controle, de opressão, de apropriação e de perda de individualidade. Assim se o fato de ser um casal protege da violência externa, esta violência pode aparecer em seu próprio interior.

 A lesbofobia interiorizada apresenta duas conseqüências sobre esta violência. Uma delas informa sobre as dificuldades para sair da relação violenta e a outra é explicativa da própria violência.  A lesbofobia pré-existe às lesbianas e produz delas imagens negativas, interiorizadas, antes de se dizerem ou descobrirem como tal. Estas imagens podem impedir toda identificação positiva e levar à adoção de comportamentos os mais heteronormativos, assim como algumas podem recusar uma vida a dois rejeitando toda idéia de viver plena e livremente suas relações.

Desta forma, a lesbofobia interiorizada explica a invisibilidade das lesbianas que temem os olhares dos outros, já que este olhar é também o seu próprio ( a significação que pré-existe a elas). Torna-se difícil então , nestas condições, buscar ajuda quando se está em uma relação violenta, pois teme-se o julgamento do outro- reflexo do seu próprio, como sublinhamos. A lesbofobia pode assim impedir toda forma de identificação positiva  produzindo modelos caricaturais e insultantes em termos de autorepresentação – tanto em relação à sexualidade  e afetividade, quanto no conjunto das relações com outrem. Pode-se imaginar as conseqüências nefastas destas circunstâncias. A lesbofobia interiorizada pode ir até o ódio de si, tende a se inscrever no próprio corpo. É igualmente uma maneira de pensar sua parceira em quadros lesbófobos, heteronormativos e sexistas. Ainda que as condições sociais do lesbianismo entrem na análise da violência e que estruturem a dominação, estas condições não são explicativas por elas mesmas.

Explicação da violência e ampliação do quadro de análise heterossexual.

Se tomamos  a análise  da violência masculina doméstica em uma perspectiva feminista que aponta para a possibilidade de uma violência feminina, podemos aventar que a variável sexo como eixo de análise torna-se uma limitação. Não podemos fixar às categorias de sexo,  traços de caráter, papéis ou comportamentos sociais diferentes de um sexo a outro. O sexo em si não pode servir de suporte a uma hierarquia qualquer. Ao contrário, o gênero, construído socialmente, serve de suporte à esta diferenciação. Assim, o quadro teórico tradicional feminista precisa ser ampliado. Deve-se reinscrever a análise da violência em um sistema mais abrangente que é o quadro heterossocial.

O sistema heterossocial

O sistema heterossocial define e estrutura a sociedade segundo princípios e normas que lhe são próprias. Para compreendê-lo, é preciso levar em conta que a divisão social do gênero ( feminino/ masculino), engendradora das relações dominantes/dominados não teria sentido senão em um sistema que a produz. A divisão social de sexo, assim, é construída em função da divisão heterossexual do trabalho de reprodução. Desta forma, podemos qualificar o sistema heterossocial como sendo aquele que produz o gênero, para construir e naturalizar por sua vez o sexo – produzindo categorias binárias mulher/homem, homossexualidade/ heterossexualidade. Repousa sobre a bi-categorização e a bi-partição e é constitutivo da única norma possível.

Este sistema heterossocial é portanto, uma pressão social e um condicionamento à normalidade e se impõe como natural e ideal. Remete mulheres e homens ( por ele produzidos) à esta norma, modelos e grades de análises binárias assim propostas. Pensar-se  mulher ou homem é assim pensar dentro de categorias ideologicamente construídas e que nos pré- existem. Este sistema político constrói as relações desiguais entre os sexos e assim a dominação masculina.

É preciso reter que este sistema  formata mulheres e homens, os/as heterossexuais e homossexuais; que fundamenta a construção das relações sociais de sexo, tais como aparecem hoje. Com efeito, este sistema é uma  configuração recente assim como hoje se apresenta . As representações de gêneros e de  sexos não tiveram sempre o mesmo perfil, como mostra Thomas Laqueur: a passagem do modelo do sexo ao modelo de dois sexos se dá no século XVIII. A variação das definições e representações de sexo e gênero

 “ questionam a hipótese geralmente admitida de uma heterossexualidade essencial e imutável. Sustento que o termo “ heterossexual” define uma forma histórica de organização dos sexos e do prazer ligado a um época.” (Jonathan Ned Katz, 2001 : 39)

Se levamos em consideração este sistema somos informados sobre a construção da violência das relações heterossexuais e lesbianas. É preciso compreender que as lesbianas não escapam ao condicionamento e que se situam no interior do sistema binário e desigual ( que produz as hierarquias)onde desenvolvem-se e adquirem sentido as relações de dominação, de poder e de violência. O sistema heterossocial não deixa margem fora do esquema binário. O casal tradicional é assim o lócus privilegiado do controle e do poder, pois um remete ao outro e o primeiro se mede e se compara em relação ao segundo.

Do ponto de vista da violência doméstica, o sistema heterossocial inscreve as relações sociais no binarismo. Este binário é construído sobre a bipartição e a bi-categorização  e nada do que é social parece escapar à  esta hierarquização e do mesmo modo, ao poder e ao controle. Tudo que é binário é coercitivo. Enfim, neste quadro, pode-se dizer que a explicação da dominação não é apenas ligado ao masculino, mas igualmente à heteronormatividade incutida nas mulheres.

Em uma relação lesbiana haveria questões de poder e de controle decorrentes desta visão binária, construção hierárquica do sistema heterossocial. As lesbianas podem reproduzir a dinâmica das relações sociais e sexuais heterossexuais pois, como vimos, a força dos sistema heterossocial reside em sua aparência  imutável, natural e eterna de sua existência, com uma quase impossibilidade de questionamento, tanto pelas heterossexuais quanto pelas homossexuais que produz. Dizendo-o  de outra forma, Jonathan Ned Katz afirma que

“ Nosso sentido bem ancorado da heterossexualidade não se fundamenta tanto em sua longevidade ou eternidade quanto no fato de que nos prendemos firmemente a este princípio. Isto deve-se à força da estrutura social heterossexual atual e ao poder dogmático que nos impede de pensar outras disposições de sexos e outras regras da vida erótica.” (Jonathan Ned Katz, 2001 : 146), pois “ a heterossexualidade é uma tradição inventada” (ibid:117), é de construção recente.

O sistema heterossocial é constitutivo da violência nas relações lesbianas e heterossexuais, já que organiza as relações hetero e homossexuais.

Suas manifestações e cristalização na violência

 O estereótipo da não- violência feminina

O sistema heterossocial funciona através de uma complementaridade hierárquica entre as mulheres e os homens e é deste modo que as mulheres seriam destituídas de violência: seriam naturalmente doces, gentis, dóceis. Isto contribui à invisibilidade e ao tabu que existe em torno desta problemática. Transgredir este tabu leva-nos a desconstruir o estereótipo da não-violência feminina ( suporte desta hierarquização) e a levar em conta as diferenças entre as mulheres.

Mostrar uma heterogeneidade na classe das mulheres é incompatível com a lógica do sistema heterossocial; é mostrar a construção social das classes de sexo, que nos aparece então particularmente frágil e artificial. É questionar a evidência da naturalização dos sexos. Crer na homogeneidade da classe das mulheres é ser essencialista e naturalizante; é sustentar o sistema heterossocial que produz esta classe. É aí  que a problemática da violência lesbiana perturba. Em um outro plano, este estereótipo encontra-se nas relações lesbianas, mantendo a ilusão que este tipo de relacionamento, já que entre mulheres, não poderia ser violento.  Assim é criado o mito das relações idílicas entre as lesbianas.

A ideologia do amor associada ao papel feminino tradicional

A ideologia do amor – construto heterossocial recente na história (Pascale Noizet, 1996)- condiciona socialmente as mulheres, prescrevendo-lhes o modelo do amor de fusão ( equivalente à abnegação) e a dedicação aos outros ( sinônimo de altruísmo) . As lesbianas não escapam inteiramente a esta influência ,  a única valorizada socialmente. Em paralelo, a socialização das mulheres valoriza sua dependência em relação a outrem. A violência pode servir à diferenciação dos sexos:  sabendo que  autonomia é proscrita para as mulheres e que, ao contrário, a dependência ( econômica, sexual, física, social), a abnegação e a fusão lhes são sem cessar inculcadas e ensinadas, a violência pode ser buscada, tolerada e mesmo necessária, para enquadrar a parceira que tenta adquirir uma certa autonomia. Esta violência serve a reafirmar à outra seu lugar e seu papel de mulher. Protege os interesses patriarcais e sustenta, desta forma ,o sistema que a produz e a torna possível. Interiorizando a organização do sistema heterossocial, as lesbianas agentes de violência buscam sustentar esta ordem, pensada como positiva. A autonomia re-valorizada  entre as mulheres e em suas relações poderia servir de base à relações não-violentas.

A necessária complementaridade dos gêneros e o casal tradicional de lesbianas.

Em um quadro heterossocial, a complementaridade é necessária; quotidianamente se reafirma de maneira prescritiva. O sistema heterossocial  cristaliza- se através do casal tradicional binário que se apresenta como modelo universal de organização das relações entre os sexos e como o único válido e desejável nas relações amorosas. Este modelo  inscreve-se na complementaridade. É redutor e tradicionalmente baseado nas relações de dependência, de fidelidade, de subordinação, de dominação e de apropriação.

As relações de dominação no seio do casal são assim ligadas à reprodução do sistema heterossocial: dentro e através de uma perspectiva binária da sociedade espera-se atingir esta complementaridade tão desejada. As relações do casal são assim construídas na busca deste objetivo. A violência serve , neste caso,  a reafirmar a necessária complementaridade do casal binário e a naturalidade do sistema heterossocial. E como as lesbianas não são imunes ao condicionamento e às influências do sistema heterossocial, podem ser levadas a reproduzir estes esquemas. Tal política de desigualdade rege as relações heterossexuais e, por transposição, homossexuais. As lesbianas herdam , deste modo, a violência da cultura do sistema heterossocial.

Categorização e invisibilidade das lesbianas

O processo de invizibilização  das lesbianas – por questionar a naturalidade do sistema heterossocial – e a lesbofobia são fontes de isolamento em relação à família, amigas/os e às vezes à comunidade lesbiana. Os laços com a “ comunidade” ( o pertencimento a um grupo de referência) permitem um certo apoio em algumas dimensões da identidade pessoal. Individualmente e em uma relação a dois, estar afastada desta “ comunidade” significa perder o reconhecimento, apoio e auxílio; ou seja, uma perda de contacto com a sociedade.

A invizibilização , que pode ser traduzida por uma vida social recôndita, não é propícia às relações sociais e ao  desenvolvimento  da sociabilidade  lesbiana. Estar amputada de um grupo de referência não permite integrar modelos positivos de relações lesbianas; esta situação pode contribuir ao aparecimento de relações violentas e aumentar os riscos de dependência. Outras manifestações aparecem como  fonte de violência, tais como as pressões da comunidade lesbiana  para se manter uma vida de casal e as dificuldades de encontrar parceiras em um meio restrito e clandestino.

Pistas de ampliação da análise das relações sociais de sexo

Para além dos pontos desenvolvidos acima engajemo-nos em outra via de análise: se as categorias de sexo e gênero não são estáticas e sim construídas, podemos pensar que as mulheres transgridem os lugares que lhes são atribuídos e que as lesbianas , agentes de violência, usufruem de uma mobilidade social de sexo , possível em nossas sociedades. (Danièle Combes, Anne-Marie Daune-Richard et Anne-Marie Devreux, 2002) Isto significa que existem relações sociais e portanto de dominação no interior das próprias categorias de sexo.

Neste quadro, a violência lesbiana deve ser pensável, já que  não é mais possível associar a violência à um sexo ( ainda que seja hoje incontestável que as violências sejam produzidas contra as mulheres pelos homens; mas lembremos que isto se dá porque vivemos sob um modelo social de dois sexos , que realiza uma adequação entre sexo e gênero); discutir esta questão, entretanto,  não questiona a análise do sistema hierárquico e de dominação; ao contrário, é este que a produz.

Este sistema não funciona apoiando-se sobre os sexos, mas faz com que pareçam naturais para sustentar sua ordem; admitir o inverso seria continuar enclausurada em uma visão essencialista e não construtivista.  Pensar a violência entre lesbianas  é pensar  a construção social do sistema heterossocial. Assim não se poderia suportar sua ruptura, pois este sistema se  fragmentaria na indefinição das categorias de sexo, já que há uma independência do gênero em relação ao sexo. Em conseqüência, o desenvolvimento das mobilidades sociais de sexo ou as transgressões dos gêneros não colocam em questão o sistema, ele se transforma apenas; trata-se sempre de uma mobilidade dentro de uma perspectiva heterossocial e de uma mobilidade no interior do casal binário tradicional.

Nicole-Claude Mathieu já nos havia apontado estudos etnológicos que levavam em conta o reforço do sistema heterossocial  pelas transgressões de gênero. Por exemplo, com o estudo sobre os Gimi, ela nos mostra uma forma de transgressão das mais típicas, na qual não existiria senão um sexo e dois gêneros ( o modelo de sexo único de Thomas Laqueur). Na análise sobre os berdaches, que tinham relações sexuais com uma pessoa do mesmo sexo, mas do gênero oposto, verificamos que “ a bipartição do gênero ( a diferença heterossocial) é suficiente para caucionar  a norma heterossexual “(NCM., 2002 : 74.75) Ou ainda,  os Azande do sul do Sudão, estes guerreiros celibatários que podiam se  casar com jovens adolescentes  tomados como esposa: estes “ casamentos [...] atestam a preeminência do gênero heterossocial ( isto é, da bipartição hierárquica das tarefas e funções na divisão do trabalho, da qual faz parte a sexual) e expressam perfeitamente que a inversão do sexo não é obrigatoriamente uma subversão do gênero” (NCM, 2002 : 75). E se havia reprovação no caso das mulheres, podemos, entretanto, notar a existência de tais relações, onde elas “ [...] tinham às vezes um comportamento de marido e mulher: o ‘ marido’ podia bater na ‘ esposa’, por exemplo [...]” (NCM, 2002 : 75)

O sistema heterossocial pode continuar a perdurar pois repousa sobre categorias de gênero e revela claramente, desta forma, sua particularidade de ser: a hierarquia pré-existe ao sexo, não há uma predominância do sexo sobre o gênero, em seu fundamento não há dois sexos que construiriam dois gêneros. É esta hierarquização que preexiste e que produz a diferença dos sexos,  em sua base (Christine Delphy, 2001). E inversamente, uma mescla dos papéis de sexo ( as lesbianas podem assim manifestar comportamentos violentos) não significa o fim da hierarquia e da dominação, mas sim uma transformação do sistema. Há uma interdependência entre o sistema heterossocial  e a violência.

Com efeito, imaginemos uma sociedade que não seria organizada pelo sistema heterossocial: esta sociedade não seria mais construída sob valores masculinos ou femininos, mas apresentaria  outros valores: não produziria  a ideologia do amor romântico, não prescreveria  as relações humanas sob o modelo do casal tradicional  binário; assim, não seria mais possível a violência nas relações binárias, pois estas não existiriam mais.

                                                              *        *          *

Se o fenômeno da violência entre lesbianas não fosse observável, isto significaria que as mulheres não seriam violentas naturalmente e que as relações lesbianas seriam idílicas. Isto seria assumir as relações sociais de sexo e adotar um olhar essencialista e naturalista. Vemos que o tabu existente em torno desta problemática  visa não alterar o sistema heterossocial. Assim, o estudo da violência nas relações lesbianas coloca em evidência suas incoerências mas a violência não funciona, neste caso, como um questionamento deste sistema, produto heterossocial. E se a mobilidade social de sexo é um marco na evolução das relações sociais de sexo, não  é sintoma de seu fim.  Atesta, no melhor dos casos,  derrapagens e  transgressões de gênero em uma visão moderna de relações sociais de sexo , iluminando os mecanismos do sistema heterossocial.

Percebemos portanto, aqui, que o gênero funciona independentemente do sexo, que a hierarquia pode encontrar sua legitimidade em outros planos e se inscrever novamente em um modelo de sexo único. Pode existir um sexo ou nenhum, permanecem, porém, dois gêneros e assim a binariedade dos gêneros pode também fazer perdurar a hierarquia e o sistema heterossocial. O círculo fecha-se desta forma e isto nos revela o caráter construído deste sistema que funciona fora das categorias de sexo , apresentadas como naturais e sobre as quais se fundamenta o próprio sistema.

      Referências

. Centre de Santé des Femmes de Montréal. 1995. Démystifions la violence entre lesbiennes. Centre de Santé des Femmes de Montréal.

. Collective Lesbienne de l’Ontario. 1998. Une violence doublement invisible. CLO.

- Combes, Danièle ; Daune-Richard, Anne-Marie et Devreux, Anne-Marie. 2002. « Mais à quoi sert une épistémologie des rapports sociaux de sexe ? », in Hurting, Marie-Claude ; Kail, Michèle et Rouch, Hélène. Sexe et genre, De la hiérarchie entre les sexes. Ed. CNRS.

. Côté, Caroline. 1997. La violence dans les relations amoureuses chez les lesbiennes. Université Laval : Mémoire, Ecole de service social.

. Delphy, Christine. 2001. L’ennemi principal. Tome 2 : Penser le genre, Coll. Nouvelles questions féministes, Syllepse.

-.Demczuk, Irène. 1993. La violence entre femmes ; une violence non-systèmique. Article soumis pour publication à la revue Voir en réaction à l’article de Navarro. Non-publié.

. Guay, Françoise. Nov. 1999. La violence conjugale chez les lesbiennes. Une recension critique. CRI-VIFF, Coll. Etudes & Analyses.

. Laqueur, Thomas. 1992. La fabrique du sexe, Essai sur le corps et le genre en Occident, NRF essais, Gallimard.

Mathieu, Nicole-Claude. 1991. L’anatomie politique, Catégorisations et idéologies du sexe. Côté-Femmes.

. Ned Katz. Jonathan. 2001. L’invention de l’hétérosexualité. EPEL.

. Noizet, Pascale. 1996. L’idée moderne d’amour, Entre sexe et genre : vers une théorie du sexologème. Ed. Kimé,  Coll. Sociétés.

. Welzer-Lang, Daniel. 1996. Les hommes violents. Indigo & Côté-femmes éditions.

Biografia

Vanessa Watremez é doutoranda em sociolgia na l'Université de Toulouse le Mirail, ligada ao Laboratório de Pesquisa da Equipe Simone/Sagesse, onde iniciou suas pesquisas sobre relações sociais de sexo. Em  Montréal aprofunou suas pesquisas no GIVCL (Grupo de Intervenção em violência conjugal lesbiana) . Trabalha atualmente para a criação de grupo francêssemelhante . Paralelamente ,organizou debates (13ème festival de Cineffable à Paris.) e escreveu folhetos de sensibilização sobre a violência lesbiana na França. Participou da organização do atelier «Lesbianisme/Féminisme» no 30  Colloque International des
Recherches Féministes francophones (Toulouse, 2002)



[1] Diplôme d´études approfondies, obtido em etapa que precede  a defesa da tese de doutoramento. NT