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                   As Irmãs Smith em Busca dos Evangelhos Desaparecidos

                                                                           Liliane Machado

Resumo:

A resenha aborda a obra Les Aventurières Du Sinai: les soeurs Smith à La recherche des Évangiles disparus, tradução para o francês do original em inglês escrito por Janet Soskice. A partir de um cuidadoso levantamento bibliográfico acerca do tema bem como de inúmeras pesquisas em fontes, tais como jornais, cartas e outros documentos que datam do período, Soskice revela-nos as admiráveis aventuras de duas gêmeas, nascidas na Escócia, que no final do século XIX, sem a tutoria de amigos e parentes e com financiamento próprio, dedicam-se às pesquisas arqueológicas em países do Oriente. Suas buscas resultam em um achado surpreendente para o período: um manuscrito de valor inestimável para os estudos bíblicos.

Palavras-chaves: Mulheres. Aventureiras. Egito. Arqueologia.

SOSKICE, Janet. Les Aventurières Du Sinai: les soeurs Smith à la recherche des Évangiles disparus. J.C Lattès, 2010.

Ao contrário do que supõe o senso comum, as mulheres que vivenciaram o século XIX não estavam todas em casa bordando, cuidando dos filhos, limpando e vendo a vida passar pela janela. Duas delas, particularmente, nascidas gêmeas, na Escócia, em 1843, na pequena cidade de Irvine, passaram para a história como as autoras de uma das descobertas mais surpreendentes da segunda metade do século XIX, um palimpsexto, contendo uma das versões mais antigas dos quatro evangelhos, escrito em siríaco, guardado no remoto Mosteiro de Sainte Catherine, situado próximo ao Monte Sinai, no Egito.

As peripécias experimentadas por aquelas que, em vida, ficariam conhecidas como as Irmãs Smith ou, simplesmente, as gêmeas, tem contornos de aventura que nos lembram, por vezes, a saga cinematográfica da personagem Indiana Jones ou os lances policialescos narrados na obra O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Com Indiana Jones elas tem em comum o feelling para descobertas inusitadas, raras, que viriam a despertar a cobiça de eminentes arqueólogos à época. Já com o enredo escrito por Umberto Eco, que se passa na Europa da Idade Média, vemos que as irmãs seriam vítimas daqueles sentimentos nem um pouco nobres que assaltam as personagens de Eco quando tentam apoderar-se do conhecimento contido em um manuscrito que possui um único exemplar.

Caso se tratasse de mulheres frágeis e inseguras, certamente, elas não teriam conseguido fazer frente aos abusos cometidos por alguns de seus contemporâneos, que tentaram de toda forma angariar os louros da descoberta afirmando que elas tinham encontrado o manuscrito por puro acaso, num lance de sorte. Detentores de títulos e prestígios acadêmicos, ao contrário das gêmeas, eles tinham todas as possibilidades em mãos para se apoderarem de suas descobertas, quando o mundo acadêmico começou a se dar conta da importância do achado para  os estudos bíblicos. Importante salientar que o mundo ocidental europeu vivia uma verdadeira febre na tentativa de encontrar novos palimpsestos, papiros e outros tesouros que fornecessem pistas sobre os primeiros anos do cristianismo na Terra.

Mas como tudo isso começou? Como foi possível que duas irmãs, nascidas em um meio burguês, de forte tradição cristã, conseguissem superar todas as adversidades impostas às mulheres para o acesso ao conhecimento e à pesquisa, tornando-se verdadeiras caçadoras de tesouros bíblicos perdidos? Essa história é narrada em detalhes na obra Les aventurières Du Sinai: les soeurs Smith à la recherche des Évangiles disparus, tradução francesa do original em inglês intitulado Sisters of Sinai: how two lady aventurers the Hidhen gospel, escrito por Janet Soskice, editado pela JCLattès, em 2010.

Ao pé da letra, a tradução do francês para o português seria As Aventureiras do Sinai: as irmãs Smith em busca dos evangelhos desaparecidos. Cientes da lentidão do mercado editorial brasileiro aconselhamos as curiosas a dedicarem-se à leitura da obra no original, em inglês, ou na tradução ora disponível, em francês, de acordo com a preferência de cada um, para apreciar o valor de uma biografia que retira do anonimato duas brilhantes representantes do sexo feminino. Os sítios estrangeiros de compra de livros são uma ótima estratégia para que efetivemos a globalização do conhecimento.

Resultado de uma pesquisa minuciosa em fontes, tais como jornais, correspondências, obras editadas e/ou escritas pelas gêmeas, Soskice revela-se, antes de tudo, uma biógrafa crítica e talentosa, capaz de transportar-nos, como fazem os melhores cronistas, para um período ímpar da pesquisa arqueológica. Aos poucos, vamos sendo informadas sobre as dificuldades que atravessavam os caminhos da pesquisa arqueológica desenvolvida na virada do século XIX para o XX, e sobre as relações que marcavam os estudiosos do tema, particularmente aqueles que compunham o corpo docente de Cambridge e do meio social que o circundava, ao qual as irmãs passariam a pertencer.

A secular instituição universitária inglesa, detentora de enorme prestígio mundial, vista por um prisma menos glamoroso, também pode ser descrita como um covil de homens mesquinhos, temerosos de que as mulheres entrassem em campo e roubassem-lhes o mercado de trabalho, como percebemos em alguns dos relatos que a autora publica sobre a recusa dos integrantes da universidade em concederem o título de doutora às talentosas irmãs.

Era uma vez duas gêmeas órfãs

A princípio, quando Agnes e Margareth, vieram ao mundo, não havia muito que ser comemorado, principalmente por parte do pai, que perdeu a jovem esposa logo após o parto das suas primeiras rebentas. Advogado, negociante e presbiteriano convicto, o senhor Smith parece ter encontrado forças nas suas tarefas cotidianas para seguir em frente com a vida e para cuidar das filhas. Em uma época que a religião ainda era uma atividade de prestígio social e também fonte de tranqüilidade e bem estar, o pai as educou dentro dos princípios estóicos do presbiterianismo, sem, contudo, incorrer no pecado do incentivo à ignorância, como era tão comum na sociedade européia da época.

Pelo contrário, ao perceber que ambas tinham uma grande capacidade para o aprendizado de línguas estrangeiras ele lhes propôs um desafio: levá-las para conhecer o país cuja língua tivessem aprendido. Dessa forma, as meninas, ainda adolescentes, conheceram nações como Itália, França, Alemanha e Grécia.

Paralelamente, praticavam a religião de seu pai e tinham como preceptor um jovem pastor que as instruía em teologia e outras disciplinas. O conhecimento começava a encantá-las, o que foi beneficiado pela herança que o pai recebeu de um de seus clientes e que o tornaria dono de uma considerável fortuna. Por volta dos 14 anos, foram mandadas para uma escola para moças, em Londres, para aprenderem, em suma, a tornarem-se ladies e futuras esposas.

  Ao avaliar as expectativas de vida reservadas para uma jovem daquele período, no Reino Unido, Janet Soskice observa, de maneira irônica: “que outra sorte elas poderiam esperar? As universidades lhes eram interditas e a maior parte das profissões proibidas. Uma jovem, pelo menos (talvez, sobretudo) afortunada, deveria conceder ao seu esposo herdeiros e investimento nos seus projetos, além de dedicar-lhe seu tempo, sua energia e seu dinheiro”. (Soskice, 2010, p.31).[1] Ou seja, nada de acalentar projetos individuais de qualquer estirpe. Sua vida seria dedicada a outrem, sem direito a contestações.

Quando retornam à casa paterna, aos 19 anos, na pequena cidade de Killbarchan, na Escócia, Margareth e Agnes haviam sido transformadas em ladies, e, como tais aguardavam um casamento, se possível, por amor. É o que deduz Soskice ao analisar os dois romances que Agnes publicará, posteriormente. Ambos se passam na Escócia e têm como protagonistas jovens que enfrentam uma sociedade dividida entre novos ricos, - caso delas próprias – e os herdeiros da nobreza – endividados, porém orgulhosos, a ponto de não permitirem que os que não fossem da sua estirpe pudessem adentrar a seleta sociedade. Elegantes, instruídas e ricas, faltava-lhes , todavia, partidos que fizessem jus aos dotes de ambas.

Dessa forma, elas ainda estarão solteiras quando o pai morreu em 1866. Sem possuírem parentes que se arrogassem o direito de interferir em suas vidas, elas decidem deixar Killbarchan, rumo ao Egito, mais especificamente, em direção ao Nilo e, depois para Jerusalém, em busca dos caminhos percorridos por Jesus Cristo e, claro, de conhecimentos vários. Era o início de uma vida de aventuras, que as levaria para diversos países.

Soskice sublinha a incredulidade geral dos que as conheciam quando ficaram sabendo de seus planos. Segundo relata a própria Agnes: “Que consternação assumiu o nosso projeto, o qual nos levaria ao estrangeiro sem amparo masculino!”.(Soskice, 2010, p. 34).[2] Em seguida, Agnes inclui alguns dos comentários que ouviram à época: “Tu crês que elas retornarão um dia? elas vão em direção aos maometanos e aos bárbaros!”. (Soskice, 2010, p.35).[3]

Para a opinião geral, o Oriente era algo não apenas exótico, como perigoso, interdito para duas jovens solteiras desacompanhadas de uma figura masculina. Todavia, por essa época elas começariam a revelar uma determinação e obstinação nas atitudes que se ampliaria à medida que fossem envelhecendo. Realizam a viagem em companhia apenas de uma amiga mais velha e quando chegam ao Cairo providenciam o necessário para a longa jornada, rumo ao Nilo, às Pirâmides e a outros lugares que, ainda hoje, passados mais de um século, continuam a atiçar a imaginação de viajantes por todo o mundo.

A biógrafa não escamoteia as dificuldades que as irmãs enfrentaram junto a um guia desonesto. Entretanto, a experiência as tornará mais fortes e perspicazes. Um ano após a partida, retornam a Kilbarchan, mas a monótona vida burguesa, pontuada por soirées e religião, não lhes interessavaais. Decidem transferir-se para Londres, onde as perspectivas seriam mais amplas. Conhecem um professor e estudioso de grego clássico, pertencente à Universidade de Edimburgo, J. S. Blachie, e tornam-se suas discípulas. Logo, decidem ir para a Grécia, em busca dos passos de Sófocles e do apóstolo Paulo. No período que antecedeu a viagem, haviam dedicado-se às Letras, principalmente Agnes, a mais velha das irmãs, por meio da publicação de dois romances, mas a acolhida fria aos seus escritos, a fizeram decidir-se a investir em estudos e viagens.

  De volta à Inglaterra, Margareth casa-se com um antigo pretendente, James Gibson, pastor, pertencente a uma família de comerciantes ricos, tradutor e pretenso poeta, ainda que tenha lançado uma única obra, sem grandes repercussões no meio literário. Agnes, por sua vez, sem a companhia da irmã, parte novamente em viagem. Vai conhecer Chipre, o Canal de Suez e o Monte Sinai. Contrata um guia menos ardiloso e, pela primeira vez, monta em camelos e dorme em barracas sobre as areias do deserto, realizando um antigo sonho. Passa incólume pelas dificuldades da viagem, destituída das facilidades da vida na cidade, e porta-se como uma obsessiva aventureira e não como uma ladie frágil e medrosa.  De volta à Inglaterra, Agnes também se casa, com Samuel Lewis, assistente de bibliotecário em Cambridge, para onde se muda. Logo, Agnes, viúva após um longo noivado e um casamento que durou poucos anos, se junta a ela. O que se apresentava como o início de uma aparente vida pacata, logo sofre uma turbulência com a perda do marido da mais velha das gêmeas. Viúvas, elas se acham totalmente desimpedidas para seguirem com suas buscas arqueológicas, estudos de línguas exóticas, além de efetuarem publicações e traduções de ordens diversas.

  O grande momento da vida das gêmeas estava por acontecer. Viúvas, ricas, inteligentes e estudiosas, elas dirigem-se novamente para o Egito, desta vez, rumo ao mosteiro de Sainte-Catherine, um dos primeiros templos cristãos da humanidade, onde estão enterrados os restos mortais de Santa Catarina: princesa do Oriente que abraçou o cristianismo foi por isso torturada pelo marido até a morte e, posteriormente, tornada santa.

Mas, além de ser considerado um lugar de peregrinação, Sainte-Catherine despertava enorme interesse entre os estudiosos dos princípios do cristianismo por guardar em suas dependências inúmeros manuscritos e codex bíblicos, de valor inestimável, pois eram vigiados com extremo cuidado pelos monges e seu acesso difícil, quase impossível para os que não tivessem a confiança dos seus guardiões.  A conduta e as abordagens de pesquisadores que, no passado, haviam consultado os manuscritos, haviam despertado a ira dos monges, o que resultou em mais desconfiança. Um dos mais renomados foi Von Tischendorf, que pesquisou no mosteiro em busca de comprovação da autenticidade das Sagradas Escrituras, como é também conhecida a bíblia cristã.

É preciso que entendamos o que se passava à época entre os eruditos crentes - que tentavam comprovar a autenticidade dos evangelhos - na disputa com os eruditos céticos - que defendiam a tese de que os evangelhos eram uma invenção tardia, sem qualquer fundamento histórico concreto. Contribuía para a dúvida o fato de que as versões mais antigas conhecidas no período só remontavam até o século X, sem pistas de outras anteriores.

Em meio a essa disputa, Von Tischendorf, um jovem conhecedor de siríaco, copta, árabe e grego clássico, intui que a busca deveria concentrar-se nos antigos mosteiros do Oriente e não nos do Ocidente, como era a praxe na pesquisa arqueológica. Dirige-se para a região e, após anos de pesquisa, encontra uma bíblia completa em grego que datava de meados do século IV, guardada no Mosteiro Sainte-Catherine. Dessa maneira, Von Tischendorf infringiria aos céticos uma derrota do qual, muitos crêem, eles nunca mais se recuperariam. O descobridor foi agraciado com uma série de honrarias, inclusive do próprio Papa. A publicação facsímile da obra, por sua vez, obteve várias edições sucessivas o que atestava o interesse popular sobre o tema.

  Ao saberem do achado, as irmãs Smith logo se interessaram e começaram a planejar uma viagem até o mosteiro para que pudessem dar uma olhada de perto no tesouro. Foram alertadas por um conterrâneo, também habitante de Cambridge, Dr. J. Rendel Harris, que a biblioteca do lugar, com certeza, ainda abrigaria inúmeros manuscritos relevantes. Incentiva-as a estudar o siríaco para que pudessem se preparar para o encontro com os tesouros.

Agnes fica obcecada pela ideia e começa a fazer planos para a nova viagem de aventuras. Consegue cartas de recomendação de estudiosos da Grã-Bretanha, obtém, com relativa facilidade, um visto para que pudessem visitar o Mosteiro e para lá se dirigem, portando uma tecnologia muito recente: uma câmera fotográfica para que retratassem o que fosse mais precioso, segundo suas avaliações.

  O aprendizado do siríaco, o feelling de pesquisadora, a determinação pela busca, logo dariam resultados práticos. Agnes, em uma de suas incursões à biblioteca deparou-se com um volume sem título. Ao folheá-lo, observou que se tratava de um compêndio sobre a vida dos santos, mas ao continuar a olhá-lo observou que, em algumas páginas, sobressaía uma escrita anterior, em siríaco e onde ela viu os dizeres Segundo Mateus e Segundo Lucas.

Apesar de nunca haver visto de perto um palimpsesto, lembrou-se das explicações que o pai lhe dera acerca de tais objetos: materiais de escrita, como o pergaminho, devido à escassez e ao alto preço, eram utilizados em épocas remotas duas ou três vezes, mediante a raspagem do texto anterior. O mágico é que, com o passar dos séculos, a escrita anterior poderia aparecer novamente, ao acaso, ou mediante processos químicos ou da fotografia.

         A autora consegue recriar, tal qual uma boa romancista, as emoções que Agnes experimentou naquele momento:

“[...]uma tarefa árdua aguardava as gêmeas. Um vento glacial que fez a temperatura despencar para abaixo de zero sob as tendas, à noite, a dificuldade de movimentos enquanto elas examinavam os manuscritos, sem luvas, em uma sala desprovida de janelas [...]As folhas do palimpsesto se colavam umas às outras. Assim que se tentava descolá-las, elas se desfaziam. As gêmeas conseguiram despregá-las sob o vapor da sua chaleira de campo. O conteúdo do texto mais antigo, do qual se distinguia apenas uma parte, não parecia claro. As gêmeas tomavam notas dos títulos das diferentes páginas que elas fotografavam [...] Noite após noite, elas retornavam ao seu acampamento no jardim, onde o cozinheiro preparava-lhes algo que as fizesse recobrar as forças”. (Soskice, 2010, p. 158).[4]

O monje que acompanhava Agnes e Margareth, não queria deter-se muito tempo sobre o volume, entretanto, Agnes insistiu em dar-lhe atenção e, apesar de seus conhecimentos rudimentares sobre paleografia, supôs que se tratava de escritos que giravam em torno de 697 depois de Cristo, uma raridade, portanto. Margareth efetuou cerca de 400 fotos do palimpsesto e assim munidas de provas do achado, retornaram a casa.

Ao chegarem a Cambridge e revelarem as fotos tiradas da obra, a escrita anterior revelar-se ia, lentamente. Concomitantemente, as irmãs tiveram que lidar com a indiferença de dois especialistas em siríaco, Robert Bensly e Francis Burkitt, a quem elas pediram que avaliassem os achados. Mas os ventos corriam a favor das pesquisadoras e quando, finalmente, decidem revisar a tradução de Agnès, os especialistas perdem a postura arrogante, pois se vêem diante de um tesouro.

Nova excursão ao Mosteiro tornou-se necessária e, desta vez, as gêmeas foram acompanhadas de Burkitt, Bensly e Harris, que as ajudariam na condução das pesquisas. Agnes, por sua vez, descobriu um método químico para revelar os textos anteriores do palimpsesto.

À medida que a equipe avança em suas análises, o valor da descoberta de Agnes amplia-se. O palimpsesto guardava não dois, mas os quatro evangelhos. Ademais, a antiguidade do texto copiado e sua proveniência importavam mais que a datação do mesmo: fim do século II, ou seja, uma época muito próxima do cristianismo das origens, um feito espantoso para a arqueologia bíblica da época.

Disputas e intrigas

Iniciou-se então uma série de desentendimentos entre os membros da equipe. Como podemos imaginar, numa época em que a opinião e o trabalho das mulheres eram tão desvalorizados, logo os dois estudiosos de siríaco tentaram arrogar para si todos os méritos do achado. Às irmãs Smith tentaram impingir o mérito da sorte, da casualidade, e não da perspicácia e sagacidade que elas já haviam demonstrado, particularmente Agnes, que desde o primeiro momento em que viu o manuscrito percebeu tratar-se de uma preciosidade. Não fossem seus olhos argutos, o tal manuscrito poderia encontrar-se, até hoje, escondido em meio à poeira, destinado ao eterno anonimato.

Felizmente, elas não se curvaram à prepotência masculina – a qual, para piorar, vinha incensada pelas glórias da academia – ao contrário, ambas mantiveram-se firmes e defenderam seu achado até o final da existência. Agnes seria recompensada pelas suas pesquisas recebendo o título de Doutora de várias instituições acadêmicas de renome àquela época, oriundas do Canadá, Alemanha e outras: entretanto, nunca obteria qualquer título de Cambridge, instituição à qual estiveram ligadas a maior parte de suas vidas. Soskice revela que algumas iniciativas esparsas nesse sentido foram tentadas por um ou outro membro, mas rechaçada pelo conselho em sua totalidade.

Como avaliar a atitude de tais eminências, senão como o medo da concorrência com as mulheres? E como classificá-la senão como a mesquinhez sórdida que atacava a maioria dos sábios de então e muitos dos atuais? O fato é que a autora traz para os contemporâneos uma história fortemente marcada pelas relações assimétricas entre os gêneros. Após o término da leitura, não é difícil tecer conjecturas sobre outros talentos como os delas que foram apagados pela história e que precisam, urgentemente, ser revelados. Só a pesquisa histórica feminista é capaz de tal empreendimento.

O trabalho desenvolvido por Soskice é um exemplo a ser colocado como paradigma. A autora acompanha as vidas de suas biografadas até a sua velhice, narrando encontros que elas tiveram com personalidades ilustres da época, seus hábitos incomuns, como a prática diária de esportes, bem como a continuidade de suas pesquisas em uma idade bastante avançada, perto dos 80 anos. As gêmeas ainda fariam várias outras viagens ao Oriente, um verdadeiro paraíso arqueológico à época. A obra também inclui fotos de Agnes e Margareth, em casa ou em plena aventura pelo Sinai. O melhor é que, doravante, não serão mais sombras da História, mas protagonistas de valor reconhecido.


 

[1] Quel autre sort pouvaient-elles espérer ?. Les universités leur étaient fermées et la plupart des métiers, interdit. Une jeune femme, même (ou peut-être surtout) fortunée, se devait de donner à son époux des héritiers en investissant dans les projets de celui-ci son temps, son énergie e son argent. Tradução livre.

[2] Quelle consternation a soulevé notre projet de nous rendre à l’étranger sans escorte masculine. Tradução livre

[3] « Tu crois qu’elles reviendront un jour? Elles vont chez les Mahométans et les barbares ». Tradução livre.

[4] « Une tache ardue attendait les jumelles. Un vent glacial, qui fut chuter la température au-dessous de zéro sou les tentes la nuit, les ankyloserait pendant qu’elles examinent les manuscrits, nans gants, dans une salle dépourvue de fenêtres (...)les feuilles du palimpseste collaient les unes aux autres (...) Dès qu’on tentait de les séparer, elles s`effritaient. Les jumelles en détachèrent tout de même quelques-unes à la vapeur de leur bouilloire de camp. Le contenu du texte le plus ancien, dont on distinguait á peine l ´encre, ne semblait pas clair. Les jumelles prirent note des tires titres des différentes pages à mesure qu ‘elles photographièrent (...) Soir après soir, elles regagnaient leur campement au jardin, où le cuisinier leur préparait de quoi reprendre des forces ». Tradução livre.

 

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