labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012

 

 

A escrita feminina e a fabricação de si: a narrativa de Ina Von Binzer

Diva do Couto Gontijo Muniz

Resumo

Trata-se de leitura em que tenho em vista apreender os modos de construção da subjetividade feminina no espaço dialógico da correspondência que compõe o livro, um conjunto de 40 cartas, escritas por Ina von Binzer à sua amiga Grete, no período de 1881 a 1883. Instiga-me buscar perceber a maneira peculiar segundo a qual Ina se constitui de forma ativa como produtora de si mesma, como ela se localiza, na ação de escrever, como sujeito que subverte a posição de invisibilidade pública e política, socialmente imposta às mulheres de sua época.  

Palavras-chave: escrita de si,  mulheres, subjetrvidade feminina

Peço-lhes que escrevam todo tipo de livros, não hesitando diante de nenhum assunto, por mais banal ou mais vasto que seja (...). Se quiserem agradar-me, podem escrever livros de viagem e aventura, e pesquisa e estudo, e história e geografia, e crítica e filosofia e ciência.

(WOOLF, 1985)

Antecipando-se à orientação dada às mulheres por Virgínia Woolf para que escrevessem “todo tipo de livros”, ação que a feminista defende como estratégia e também exigência incontornável à subversão da ordem, a uma política de localização que assegurasse às mulheres seus espaços de fala e lugar de sujeitos históricos, Ina von Binzer, em um outro tempo, o das ideologias masculinas da nacionalidade, escrevia seu livro de viagem Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Nele, a professora constrói sua narrativa acerca da experiência vivenciada na sociedade brasileira oitocentista como mulher solteira, viajante solitária, educadora estrangeira e jovem ansiosa por conhecer o mundo. No relato feito, expõe-nos, e ao mesmo tempo esconde-nos, seus modos de ver, de conhecer e de existir; ou, como precisou Rago, permite-nos acessar “seu modo de pensar o mundo, de organizar a própria vida, de fazer suas escolhas afetivas, de revelar-se ou esconder-se ao olhar do/a outro/a” (RAGO, 2007: 14).

Se são as controvérsias em torno da definição do gênero literário a que pertence o livro – romance autobiográfico epistolar, tal como definido por Carlos Roberto Ludwig (2010:. 152-165); literatura de viagem, como considerado por Miriam Moreira Leite (1984); misto de “literatura de viagem ou viagem na literatura” ou romance epistolar e literatura de viagem, na percepção de Lisânea Weber Machado (2010: 10) –, não há dúvida, porém, quanto aos diferentes modos de ler que a narrativa comporta.

Esse espaço de indistinção, de imprecisão, de mestiçagem de gêneros, no qual o texto de Ina se encontra abrigado (e também desabrigado) é justamente o que me interessa, pois, meu propósito é o de fazer uma leitura aberta e livre da narrativa da autora, desatrelada das imposições dos cânones e idéias pré-concebidas; fora, portanto, de qualquer enquadramento que todo modelo, literário ou não, implica.

A possibilidade de acessar, via leitura da referida correspondência, o modo próprio como Ina se constituiu como sujeito é ampla, considerando-se que as cartas trocadas, como assinala Marilda Ionta, “produzem uma literatura de si que tornam visíveis dois aspectos importantes: o caráter intersubjetivo/dialógico da produção da subjetividade, e exibem especialmente o estatuto ético e estético da fabricação de ‘si’”. (IONTA, 2007: 139). As cartas, consideradas, portanto, como “lugar de confidências, de exame de consciência, de afirmação para si mesma dos valores morais, espaço de reflexão sobre as ações empreendidas na cotidianeidade” (RAGO, 2007: 15). A escrita de si que delas emerge torna visíveis, e ao mesmo tempo esconde, os medos, ansiedades, certezas, incertezas, reconhecimentos, estranhamentos, desejos, sonhos, realizações e frustrações que moveram e informaram a experiência constituidora do sujeito Ina von Binzer. Sentimentos, enfim, de alegrias e tristezas, fundamentais para se compreender os seres humanos, configuradores de nossas histórias, da história da educadora alemã. Afinal, como ressalta Marilda Ionta:

“[...] a subjetividade não antecede a história, nem a vida em sociedade, mas constitui-se em rede de relações sociais, através de práticas subjetivas de relação consigo mesmo e com o outro, que podem ou não escapar das insistentes tentativas de captura impostas aos indivíduos.” (IONTA, 2007: 15)

Muito próximas de uma literatura epistolar ou pessoal (UNAMUNO, 1945: 43), as cartas escritas por Ina, sob o pseudônimo Ulla, são o espaço de reflexão e exame de consciência da jovem alemã acerca de sua experiência como professora de inglês, alemão e música junto a crianças e adolescentes de famílias abastadas do Rio de Janeiro e São Paulo. No verbete do Dicionário de Poetas e Prosadores, de Franz Briimmer, somos informadas/os que a autora nasceu em 03 de dezembro de 1856 na Província de Schleswig-Holstein, tendo falecido provavelmente em 1916. Recebeu formação escolar na Vestfalia e Bonn, submetendo-se, mais tarde, aos exames para professora em Soest. Depois da morte da mãe, morou na Prússia com a família e posteriormente partiu, por conta própria, segundo o verbete, “para a peregrinação” que a levou de “um lado para o outro” até aportar no Brasil, em 1881, onde permaneceu até 1884.

Regressando à Alemanha, morou em Berlim, a seguir em sua província natal, desposando:ouco depois, o juiz da comarca, Dr. Adolf von Bentivegni. Antes de seu casamento, já se dedicava à profissão de escritora:rojeto acalentado e efetivado com o apoio e ajuda financeira de um tio. Foram três, os livros publicados: em 1887, Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil, nomeado no verbete como “romance humorístico em cartas”; em 1894, Ciganos da grande cidade; em 1897, As sombrinhas da Tia Córdula (apud CALLADO, 1980: 08). Seu primeiro livro, não obstante referir-se ao Brasil do século XIX, somente foi traduzida para o português e publicado em 1956 pela Editora Anhembi, com tradução de Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira e prefácio de Yan de Almeida Prado. A obra foi reeditada em 1980:ela Editora Paz e Terra, com apresentação de Antônio Callado e prefácio de Paulo Duarte.

O lacônico e padronizado resumo da biografia de Ina, contido no verbete do dicionário, revela-nos aspectos pontuais de sua vida, reduzida ao nascimento, formação escolar:rofissão/ocupação, casamento e morte. Compreendem, sem dúvida, experiências configuradoras de sua história, significadas como relevantes sobretudo porque comuns a todo indivíduo, de ambos os sexos, consoante o regime de verdade da ordem patriarcal de sua época. Além delas, o verbete destaca alguns traços de seu modo singular de ser que fogem à regra, isto é, à lógica da partilha binária e desigual de gênero, que confere ao feminino o lugar da invisibilidade no/do espaço privado, ao referir-se tanto à face aventureira da jovem alemã, espécie de sôfrega andarilha, cuja “peregrinação”:or conta própria, a levou de um “lado para outro”, como ao traço igualmente inusitado, o de uma mulher que escreve, autora de três obras publicadas.

Ser escritora, autora de livros, compreendia um modo de ser e se localizar no mundo que, à época, era tratado sob o viés da excepcionalidade, condição que justificava e autorizava sua inclusão no referido dicionário. O reconhecimento e incorporação da produção de Ina no mundo da cultura e da escrita, nos domínios etnocêntricos e viricêntricos da literatura: processa-se, assim, sob a rubrica de “casos excepcionais”, da exceção que foge à regra. Trata-se de prática do campo literário que, como lucidamente expôs Ria Lemaire, tem uma longa permanência considerando que ao ressaltar que a contribuição e os escritos das mulheres, assim como as literaturas não-ocidentais, foram, até muito recentemente, excluídas do cânone e das discussões acadêmicas (LEMAIRE, 1994: 60). Como bem avalia aquela feminista:

“A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heróicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres “normais”.” (Idem, ibidem: 58. Grifo nosso).

Não por acaso, o livro Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil:ublicado na Alemanha em 1887, somente foi traduzido para o português em 1956, embora já ocorresse aqui um grande interesse historiográfico por obras de literatura de viagem. Já no prefácio, o discurso autorizado de Yan de Almeida Prado desautoriza a narrativa de Ina von Binzer. Esta é por ele criticada e depreciada muito menos por conta da postura nacionalista do intelectual paulista, que a define como “uma alemã soberba:resunçosa e tirânica, uma prussiana ou uma inimiga do Brasil” (ALMEIDA PRADO, 1956), e muito mais em razão de sua misoginia, pois, afinal, a autora era uma mulher e, o mais inaceitável, uma mulher com “afetações literárias”. Para o consagrado, e também preconceituoso crítico literário, embora o livro de Ina tivesse grande valor informativo, assegurado pelas supostas fidelidade e neutralidade de sua condição de observadora estrangeira, apresentava, porém, um “problema” estrutural, derivado dos “defeitos do sexo e da idade”(Idem, ibidem) da autora: mulher e jovem.

Literariamente rechaçada, a obra permaneceu ignorada também pelos/as historiadores/as brasileiros/as até 1984, não obstante a riqueza de suas informações e impressões sobre o país, particularmente sobre a sociedade brasileira oitocentista e a vida patriarcal nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro às vésperas da abolição. Reeditada em 1980, integrando a Coleção Literatura e Teoria Literária, ganha finalmente visibilidade no campo historiográfico brasileiro a partir daquela primeira data com a publicação de A condição feminina no Rio de Janeiro no século XIX, antologia de textos de viajantes estrangeiros organizada por Miriam Moreira Leite.

Tal iniciativa editorial encontra-se localizada no contexto de mudanças ocorridas no campo da história, nos deslocamentos temáticos, teóricos e metodológicos operados em seus domínios em meio aos seus movimentos de revisão, de crítica interna, de interrogação sobre seu campo, de questionamento à lógica do sujeito e das identidades (MUNIZ, 2010:. 68). Produz-se, a partir dos anos 1980-1990, no campo da história, um redirecionamento para a cultura e as dimensões da vida privada, para a leitura do mundo como representação, para as propostas desconstrutoras de inúmeras dimensões da vida social, cultural e sexual. Enfim, observa-se a “construção de um novo olhar no campo, com espaços abertos para se pensar a diferença e operar a inclusão dos excluídos, dentre estes, as mulheres”. (Idem, ibidem: 69)

Enquadrado, naquela antologia, como “literatura de viagem”, “um macrocorpus documental”(LEITE, 1984: 19), de onde se “extraiu a contribuição para o conhecimento de alguns aspectos da condição feminina” (Idem, ibidem), o livro de Ina von Binzer integra o grupo dos seis autores mais citados na seleção de temas e textos feita pela organizadora – J.B. Debret, Kidder e Fletcher, Adele Toussant-Samson, Mary R. Wright e Mauricio Lamberg (Idem, ibidem:. 23). Conforme assinala Miriam Moreira Leite, contrariamente à expectativa inicial de que as autoras-mulheres apresentassem um material mais rico em informações sobre a condição feminina em seus livros, por uma identificação com as mulheres da população visitada, isso nem sempre se verificou (Idem, ibidem:. 23). Todavia, há que se atentar, nessa evidência, também para a enorme desproporção entre o quantitativo de autoras e autores: do conjunto de livros de viagem pesquisados, 172 eram de autoria masculina e apenas 22 de autoria feminina.

Tal desequilíbrio encontra-se dentro da ordem sexista da época, pois, embora o desejo de tornar-se viajante e escritora no século XIX, particularmente em sua primeira metade, fosse projeto acalentado por muitas mulheres, apenas algumas poucas realizaram-no, já que as interdições eram muitas. Rose de Francinet, por exemplo, a primeira viajante estrangeira que aportou no Brasil, nos idos de 1817, conseguiu finalmente concretizar seu sonho porque “embarcou clandestinamente, disfarçada de homem”(Idem, ibidem: 24).

Por certo, também para Ina von Binzer não foi fácil, mesmo no final do século XIX, embarcar para o Brasil e, sobretudo, dedicar-se à escrita do livro e finalmente publicá-lo. Sua condição de alemã, professora, instruída e com cartas de recomendação para as pessoas certas na Corte e em São Paulo, certamente favorecia seu propósito de viajar, conhecer e trabalhar no Brasil, pois havia, especialmente entre as famílias abastadas, o interesse pelos serviços educacionais das européias ilustradas. Também, nessa época, muitos dos segmentos das elites viam com bons olhos a presença do/a trabalhador/a de origem européia, considerada exemplar e estimuladora do projeto de difusão do ideário da civilização e de progresso. Ao mesmo tempo, sua condição de mulher, protestante, jovem, solteira, desacompanhada, sem familiares no Brasil, desprovida de recursos financeiros e com pretensões literárias, representava sérias dificuldades não apenas para sua vinda, mas também para sua permanência. No entanto, o que importa é que Ina, a “invencível”, como ela mesma se auto-denominava, atravessou o Rubicão e veio. Veio, viu e venceu.

Todos esses confrontos e encontros, estranhamentos e reconhecimentos, tristezas e alegrias, não se encontram explicitados no impessoal verbete; no máximo, são sugeridos e/ou apontados. A leitura do livro Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil é que me permitiu acessá-los, perceber os modos de Ina von Binzer pensar e representar o mundo; de ser e de estar na sociedade; de se localizar como sujeito. Nele, estão indicados seus modos singulares de constituição ética e estética de si; dele, emerge a escrita que de si produz Ina.    

Na leitura da obra, um primeiro reconhecimento é o de que a narrativa da autora, embora singular, encontra-se conectada a uma rede discursiva que envolvia autores e autoras produtores de literatura de viagem, todos eles estrangeiros, pessoas de fora, preocupadas em observar, descrever, conhecer, significar e produzir um corpus documental sobre o país visitado; no caso, o Brasil. Tal como observado no texto de Ina, também naqueles de natureza similar, e evidenciam-se de forma mais ou menos explícita, alguns elementos comuns: a postura de estranhamento do “civilizado” e “culto” diante de uma população “atrasada” e “inculta”; de uma suposta neutralidade e uma pretensa objetividade diante do objeto observado; da presunção de maior lucidez da pessoa de “fora” na identificação dos problemas e contradições do país visitado; da consciência da missão civilizadora que a presença estrangeira representava para o país.

Enfim, tal como os demais autores e autoras de livros de viagem de sua época, Ina com eles compartilha o sentimento comum de identificação com a “civilização européia e seus padrões de avaliação dos homens (e das mulheres) e de sua produção, de acordo com o êxito ou o fracasso, basicamente econômicos” (LEITE, 1984:. 22). Com eles, a autora se identifica pelo fato de integrar, de modo mais ou menos aproximado, uma similar formação cientificista e naturalista, herdeira da “tradição rousseauniana de viajantes da ilustração” (Idem, ibidem: 25).

Situar-se como “naturalista”, para quem o/a viajante não poderia ser um “simples expectador, mas deveria ser um ator de passagem, observador atento da realidade, exercitando-se diante dela a arte de pensar” (Idem, ibidem:. 25), representa um modo de ser que aflora do texto de Ina. Nas referências sobre escravidão e escravos, por exemplo – que são muitas, pois a autora trabalhou em fazendas de escravocratas e em um período de expansão dos movimentos abolicionistas – suas observações e avaliações encontram-se, como não poderia deixar de ser, filtradas pelo viés de seu olhar etnocêntrico (SLENES, 1994: 54) e sobretudo nacionalista de sua formação e localização espacial e imaginária, atravessada pelas “concepções da época como o darwinismo, o determinismo e a teoria das raças” (LUDWIG, 2010: 155).

Com efeito, para ela, a inferioridade da “raça” negra diante dos brancos dolicocéfalos explicita-se inclusive esteticamente. Assim, por exemplo, ao referir-se à “sua negra” Olímpia, descreve-a como “criatura preta e beiçuda mais horrenda que jamais usou esse nome majestoso” (BINZER, 1980: 18); ao lembrar-se do “pavor”que lhe causou uma criança negra que parecia “mais um macaco do que gente, abrindo um sorriso até as orelhas, a carapinha repugnante, um dedo de testa” (Idem, ibidem:. 22); ao comentar sobre o batismo de alguns bebês das escravas da fazenda, descrevendo-os como “pequenos horrorosos de nariz chato e cabelo encarapinhado” (Idem, ibidem: 35).  

Escravos e escravas seriam também intelectual e culturalmente inferiores em relação aos brancos por conta de sua “raça” e do regime de escravidão. Tal como seu patrão, o Sr. Rameiro, proprietário de duzentos escravos, para quem “nenhum cativo compreende a dádiva tal que a liberdade representa” (Idem, ibidem:. 22), Ina, que ao chegar ao Brasil condenava a escravidão, contraditoriamente, explicita sua anuência quanto a tal ponto de vista. Reconhece mesmo sua surpresa e satisfação ao constatar a afinidade entre os dois quanto ao modo de pensar a escravidão, não obstante tratar-se de pessoas tão diferentes. Em seu relato, a educadora alemã assinala que

“[...] tinha raciocinado dessa mesma forma e pensava que a brutalidade e a crueldade contra os escravos podiam provocar muitas vezes fatos bastante tristes, o que é fácil compreender; mas, por outro lado, não se pode exigir dessa raça que se acha escravizada há tantas gerações, concepções de pensar altamente civilizadas, nem pretender que adotem nossos conceitos sobre liberdade em relação ao homem, e de honra em relação à mulher, o que seria uma aspiração vã ou poética.” (Idem, ibidem: 38)

Poética ou não, percebe-se que a maneira como Ina von Binzer via a escravidão modificou-se após seis meses de permanência no Brasil, convivendo com uma família de escravocratas, como educadora de seus filhos e filhas. Se, na Europa, Ina imaginava existirem “fazendas onde ainda se encontram as condições horríveis da Cabana Pai Tomás (Idem, ibidem:. 37), se assim que ela chegou ao Brasil constatara que todo “trabalho era realizado pelos pretos, toda riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não trabalha”(Idem, ibidem:. 34), após curto espaço de tempo e de observação, relativiza porém o papel e as condições dos/as escravos/as e de seus proprietários. Não nos parece outra senão sua nova posição, ao reiterar a opinião do Sr. Rameiro de que os cativos “não tinham ideais”, bastava-lhes “receber bom tratamento”. A liberdade, essa idéia tão cara à jovem alemã, no que concernia aos cativos/as, ficava em “segundo plano” (Idem, ibidem:. 37).

Ciosa da liberdade para si e para os brancos civilizados, de ambos os sexos, Ina passa a compartilhar a opinião dos proprietários de escravos/as de que tal direito seria uma aspiração vã ou poética e, portanto, impensável entre os/as escravizados/as, em razão certamente dos “defeitos da raça e da condição de cativos”. A partir de convivência com os proprietários de escravos/as e também com estes e estas, a européia civilizada e culta, que inicialmente condenara “a escravidão, a falta de liberdade, a corrupção moral de muitos, a ignorância de todos” (Idem, ibidem, p. 51), passa a defender a posição de seu patrão de que a mão de obra escrava ainda não poderia ser dispensada. Afinal, na fazenda do Sr. Rameiro, os escravos e escravas eram bem tratados, sendo que ali, como em todo o país, os “pretos”, no fundo, “são mais senhores do que escravos dos brasileiros” (Idem, ibidem: 34).

A escritora/educadora finalmente, conclui seu modo de ver a escravidão ressaltando sua surpresa diante do fato de que tal “lamentável aspecto me fazia muito pior impressão na Europa do que aqui” (Idem, ibidem: 51). Ou seja, ao ver de perto as condições de vida dos/as cativos/as de algumas poucas fazendas, ela reconheceu a leitura mais ou menos romantizada que de longe fizera do regime da escravidão e construiu uma outra bastante pacificadora e perversamente generalizadora: a de que se tratava de uma instituição relativamente suave, um fardo dos brancos proprietários. Tal sentido alimentou interpretações da escravidão na historiografia que reverberaram por um bom tempo, e monárquico informando a construção da suavidade de tal regime de trabalho no Brasil colonial em relação ao praticado na colônia inglesa da América e depois república americana.

Integrando a rede discursiva dos naturalistas, artistas e escritores que vieram ao Brasil, na trilha aberta por Alexander von Humboldt (1789-1859), Ina foi, como os viajantes da sua época, igualmente mobilizada pelos temas e objetos caros àquele viajante-naturalista e seu propósito de fazer o mapeamento físico, humano e lingüístico das regiões visitadas. Todavia, o interesse da viajante estrangeira restringiu-se a referências, geralmente esparsas e raramente específicas, sobre plantas, pedras, animais, pássaros e insetos vistos e revistos em suas andanças pelo eixo Rio de Janeiro/São Paulo.

Os insetos, ela deles fugiu, ou eliminou-os como fez com as baratas na casa de praia em Santos; ou, já bem “abrasileirada”, (Idem, ibidem: 56) como ela mesma se definiu, displicentemente ignorou-os, como fez com as formigas que com ela dividiram o pedaço de bolo que comia ao retirá-los dali e, sem nenhuma repudia, continuar a comer a fatia que lhe coubera do lanche oferecido no intervalo da viagem do Rei a Petrópolis (Idem, ibidem: 56).

A flora tropical, cuja expectativa de conhecer era há muito tempo objeto de sua “fantasia romântica” (Idem, ibidem:. 19), não mereceu da autora nenhum mapeamento e/ou classificação científicas. As inúmeras espécies observadas – palmeiras, bananeiras, laranjeiras, caneleiras, amendoeiras, cajueiros, romanzeiras, algodoeiros –, não obstante espalharem “por toda parte seus perfumes” (Idem, ibidem: 28) e provocarem nela, no início, “embriaguez e admiração” (Idem, ibidem:. 28), depois de algum tempo perderam, para ela, seu encanto. A confissão que de que “não posso me entreter com essas primorosas; não as reconheço, nem elas a mim” (Idem, ibidem:. 29) indica-nos que, seguramente, as ciências naturais, particularmente a botânica, não eram temas de seu interesse ou predileção, nem sequer o caminho por ela escolhido para melhor conhecer o país.

Esse mesmo efeito de desencantamento deu-se em relação aos animais, para quem veio para cá com a ilusão de aventura nas selvas e de luta com animais ferozes, mas que acabou não vendo “nenhum tigre” e nem mesmo nenhuma “cobra gigante” (Idem, ibidem:. 17). A observação e a descrição dos recursos minerais das regiões visitadas restringiam-se à coleta de vários tipos de pedras, recolhidas sem qualquer intenção classificatória, mas com o único propósito de formar a “famosa coleção” de todo viajante que se preza. Era, essa, uma prática comum entre os viajantes naturalistas e da qual Ina não abriu mão, buscando ser incluída entre aqueles, reconhecida na comunidade como tal. Até mesmo em relação aos pássaros “exóticos” que, idilicamente habitavam seu imaginário antes de vir para o Brasil, particularmente seus papagaios, o sentimento foi o mesmo: o de desencanto e mesmo de irritabilidade. Depois de certa convivência com vários deles na Fazenda São Francisco/RJ, ela declara-os seus “inimigos mais íntimos” (Idem, ibidem:. 20), identifica-os como aves insuportáveis, sobretudo os papagaios. Estes, admirados lá da distante Alemanha, tornaram sua permanência e seu trabalho na fazenda uma experiência plena de aguras pela algazarra que faziam, pois

“[...]tagarelam, gritam, grunhem, chiam, vociferam o dia inteiro, com uma persistência que me deixa exasperada, se as máquinas de costura em conjunto com outros onze passarinhos e os balaios, já não bastassem para tornar-me louca furiosa. “ (Idem, ibidem: 20)

Embora aborde, de modo genérico, e às vezes humoristicamente, alguns temas/objetos e algumas práticas recorrentes nas narrativas dos viajantes-naturalistas, um reconhecimento e uma identificação que se pode fazer quanto ao seu modo de ser e de ler o mundo, é o de que Ina, decididamente, não se deixou capturar pelas imposições do discurso das Ciências Naturais, seus princípios científicos, procedimentos de investigação, métodos de observação, descrição, análise e produção de conhecimento. O interesse da autora, sem dúvida alguma, localiza-se reconhecidamente na área das Humanidades, envolvendo a política, os usos e costumes da sociedade, trabalho, relações sociais, escravidão e educação. É com olhar sociológico que a autora desenha, como bem assinala Antônio Callado, “uma espécie de álbum de fotografia da classe abastada brasileira” (CALLADO, 1980: 07) e, ainda, indo um pouco mais além, “um curiosíssimo depoimento da vida patriarcal do século passado”, como precisou Paulo Duarte (1980:. 11).

Com sensibilidade, ironia, espírito crítico, humor e constante mordacidade, Ina traça, sob a lente de seu modo europeu de ver, um retrato do modo de ser dos brasileiros e brasileiras, particularmente os da classe abastada com quem conviveu mais de perto. Reconhece-se, em meio à sua perene prevenção no julgamento dos usos e costumes da sociedade brasileira oitocentista e à sua indisfarçada má vontade com o país que ela visita e que abriga o imigrante europeu, a expressão de seu estranhamento e não de sua soberba ou presunção. Trata-se, afinal, de sentimento provavelmente comum a todo/a estrangeiro/a, expatriado/a de sua terra natal, privado/a de suas redes de relações e afetos, desfamiliarizado/a com o novo que cotidianamente o/a desafia e o/a confronta. Diante de seus sentidos “civilizados”, incomodava-lhe, sobretudo, tanto o ruído incessante provocado pelo movimento de pessoas, máquinas e animais na cidade do Rio de Janeiro, bem como o das fazendas, vistas e tidas na literatura e no imaginário social como locais de silêncio e de tranqüilidade. Nestas, o concerto desconcertante de sons provocados pela tagarelice de escravos e escravas, trabalhadores livres, crianças, donas-de-casa, pelo barulho ensurdecedor das ferramentas, máquinas, tambores, matracas, pianos e pela algazarra de animais e pássaros domésticos, exasperava-na a ponto de quase a “deixarem louca” (Idem, ibidem: 23).

Além do mais, desagradavam-lhe práticas usuais, vistas por ela como “incivilizadas”, dentre eles, como o “vício repelente do cigarro”; a mania de cuspir dos brasileiros; as brincadeiras com os “limões de cheiro” no carnaval; os fogos das festas de São João; o hábito de as mulheres dormirem nas alcovas, “cafuas escuras, úmidas e sem ventilação”; as formas de cumprimento entre mulheres da chamada “boa sociedade”, com os “infalíveis dois beijos das senhoras” (BINZER, 1980: 40). Acrescente-se, em seu estranhamento, o seu encontro com os hábitos alimentares locais. Ela praticamente passou fome, até que finalmente entregou os pontos, ou, como ela mesma confessa, não sem alguma culpa, ter “abrasileirado-se”, isto é, ter assujeitado seu paladar germânico ao da culinária nativa, rendendo-se finalmente ao

“[...]feijão preto e seu inseparável bolo de fubá sem sal, o angu; (...) à farinha de milho e de mandioca que vêm a mesa em cestas de pão e que os brasileiros misturam com feijões de caldo; (...) à carne de carneiro seca pelo sol, com a qual nos regalam freqüentemente ao almoço. “(Idem, ibidem:.25)

Não obstante esse “abrasileiramento”, fruto, sem dúvida, não apenas das circunstâncias, mas também de escolhas pessoais, Ina, que se intitulava “a invencível”, mantém-se, porém, vencida como educadora, desalentada em relação às suas perspectivas como preceptora em um país onde não se conferia valor à educação. Reconhece, desiludida, que diferentemente de sua “cara e linda Alemanha”(Idem, ibidem:. 51), país onde seus habitantes são “rigidamente educados”(idem, ibidem: 60), aqui tudo lhe parece solto, superficial e negligenciado, principalmente a educação das crianças, livres e também libertas. As crianças eram malcriadas e voluntariosas, principalmente aquelas de famílias ricas; já as libertas, nem sequer eram objeto de preocupação no que tange à sua escolarização. Seus alunos e alunas não demonstravam interesse pela aprendizagem do idioma alemão e da música, comportavam-se em relação a ela, de modo distante e empertigado, como as três irmãs que ela apelidou-as de “a Santa Inquisição”, ou “endemoniados demais”, como os filhos com nomes romanos do Sr. Martinho Prado Jr. O certo é que na relação entre mestra e discípulos/as o estranhamento foi recíproco e o distanciamento também.        

Não por acaso, Ina registra indignada o pouco apreço pela profissão de educadora no Brasil, evidenciado nos baixos salários, na escassa demanda pelos serviços e na inferiorizada posição no mercado de trabalho. Significativamente, a oferta de tais profissionais nos anúncios no Jornal do Commercio encontrava-se localizada no setor “de anúncios de pretos fugidos e vendas de escravos”, apesar e por conta da exigência expressa de “imensa capacidade e inúmeras perfeições” (Idem, ibidem: 67), como ela ressalta com indignação e mordacidade. Reconhece-se finalmente como “péssima professora” (Idem, ibidem:65), pois seus métodos pedagógicos, pautados na cartilha do austero alemão Borman, não funcionavam com as crianças brasileiras, que nada aprendiam com ela e não a entendiam. Triste e frustrada, confessa sua incapacidade de “habituar-se” aos moldes liberais, frouxos e imprecisos do ensino brasileiro, por conta de sua rígida, consistente e disciplinada formação.

De seu mirante privilegiado – interior das casas das famílias abastadas e como professora/preceptora de seus filhos e filhas – Ina desenha, com traços firmes e precisos, um retrato da sociedade brasileira da época, “alguma coisa que se pode definir como civilização sem cultura” (Idem, ibidem: 74). De seu lugar social, ancorada em suas referências culturais e nacionalistas germânicas, nossa autora, em meio a suas alegrias e tristezas, constata que, no caso do Brasil e dos brasileiros e brasileiras, a exterioridade é o que conta:

“Não se encontra profundidade em parte alguma; e mesmo que procurem adquirir a cultura alemã em todos os campos da ciência, tudo ficará somente em superficial imitação, enquanto não o fizerem com a mesma perseverança, aplicação e seriedade dos alemães. Não se aproximam de nós por irresistíveis afinidades internas e cada vez mais me convenço e os próprios brasileiros se convencem que de coração inclinam-se mais instintivamente para os franceses outros povos latinos, mesmo quando se deixam empolgar pelo respeito alemão e pela energia inglesa.” (Idem, ibidem: 70)

Em meio aos relatos de suas agruras e sucessos, recusas e acolhimentos, desilusões e ilusões, o reconhecimento dos sentimentos de solidão, desamparo e exílio, escondidos de muitos e revelados à amiga Grete e na escrita de si que emerge de suas cartas. Até a ida para São Paulo (20/03/1882) constituem a temática recorrente de sua correspondência, seu espaço para o exame de consciência costumeiro onde Ina confessa sentir-se “tão só, tão indiscutivelmente solitária” (Idem, ibidem: 46), “tão desamparada e afastada do mundo” (Idem, ibidem:. 47), desejosa por “ver, ao menos, um alemão” (Idem, ibidem:. 48), angustiada a ponto de, às vezes, “chorar de desespero” (Idem, ibidem:52), ciente de que “ficaria mais tranqüila se tivesse um apoio qualquer nesse país estrangeiro” (Idem, ibidem: 51). Como se vê, são confissões de suas fragilidades, inseguranças e medos, um ato de coragem de expor-se, de revelar seu modo de ser, justamente na contramão dos traços de soberba, presunção e tirania identificados por Almeida Prado no retrato que constrói de nossa escritora aventureira.

A mudança para São Paulo aparece com um divisor de águas na vida da destemida jovem: ali, com o apoio direto do cônsul alemão, Sr. Hawpt, ela teve a “sorte” de ser contratada para atuar como professora em casa de “uma boa família” e na própria cidade, “o melhor lugar do Brasil para educadoras” (Idem, ibidem: 76). Mas, principalmente, foi ali, em São Paulo, que ela sentiu-se “como no céu” (Idem, ibidem: 73), pois conhece e estreita relações com duas jovens alemãs – Fraülein Meyer e Fraülein Harras – , com uma educadora alemã mais velha do que ela e ainda, e mais particularmente, com o solícito e gentil engenheiro inglês Mister Hall. Finalmente, foi em tal cidade que ela passou a freqüentar com certa assiduidade a residência dos Schaumanss, alemães como ela, em cuja casa “encontra-se gente de todas as partes do mundo e conversa-se sobre todos os assuntos” (Idem, ibidem: 75).

Razões de sobra tinha nossa estrangeira, vulgo “mestra” Ina, este “animal pródigo” – como causticamente se auto-denomina, pois no Brasil, aquele título é percebido como inferior ao de professora – para se sentir bem em São Paulo. Afinal, ali tudo lhe “parecia cor de ouro em comparação com as experiências brasileiras” (Idem, ibidem:.72-75) até então vivenciadas; foi o território paulista o espaço onde os sentimentos de solidão e isolamento desapareceram em meio às redes de solidariedade, interação, amizade e companheirismo tecidas na convivência com estrangeiros como ela, de ambos os sexos. Também foi ali, em São Paulo, que, como nos contos de fadas, ela encontrou o amor...

As experiências boas e ruins vivenciadas por Ina no Brasil são objeto de confidências, de exame de consciência, de reflexões sobre ações as cotidianas empreendidas, relatadas nas cartas dirigidas à Grete, possivelmente uma amiga imaginária, já que se trata de destinatária sobre a qual não se encontra nenhuma referência. Por certo, tal amiga foi invenção de Ina, uma persona por ela criada no isolamento do exílio para falar de si, estabelecer uma relação dialógica e também dar vazão às suas pretensões e não “afetações” literárias. Engenhosamente, nossa educadora recorre a esse hábito cultural da sociedade moderna, como modo singular de construção de si, de “escultura de si na amizade e na escrita epistolar” (IONTA, 2007:. 137).

Escrever cartas a uma amiga, falar de si, dos outros e do mundo que a cerca, percebido como estratégia de afirmação individual, de ocupação de seu espaço de fala e lugar de sujeito na sexista ordem social de sua época. Escrever, como ato político de exercício de poder, de expressão de liberdade, autonomia e criação ante o intenso processo de racionalização, disciplinarização e generização a que se encontrava assujeitada, dentro e fora do Brasil. Escrever, como verbo de localização, que expressa seus modos de ver, sentir e de existir. Como bem atenta Marilda Ionta, ao refletir sobre a relação sujeito/objeto, em seus diálogos com Deleuze (1992),

“[...]é impossível uma administração total da vida humana, um agenciamento completo das subjetividades pelos poderes, pelo sistema. No modo de produção capitalista de subjetividade entrelaçam-se forças de territorialização (tendência do sistema) com forças de desterritorialização (forças de criação, de inventividade). Esses fluxos escalonam-se, trabalham, reconfiguram-se uns em relaçao aos outros.” (IONTA, 2007:134)

Inventividade e criação, finalmente, um último e principal reconhecimento que fazemos do modo de ser e de ver de Ina von Binzer, a partir da leitura de seu livro. O exercício de autonomia e liberdade na fabricação de si mesma revela-se não apenas nas experiências vividas e por ela repensadas e relatadas, mas também no modo singular como constrói sua narrativa e a si própria.

Nesta, as forças de territorialização entrelaçam-se com as de desterritorialização em seus modos de ler e representar o mundo, os outros e a si própria. Não por acaso, sua narrativa transita, imprecisa, entre o gênero da literatura de viagem e o romance epistolar e/ou autobiográfico. Ela nos fala objetiva e subjetivamente da fauna, flora, economia, população, política, usos e costumes e também subjetiva e objetivamente de seus sonhos, projetos e expectativas, de seus sentimentos de medo, solidão, saudade, irritação, amor e amizade. A própria estrutura do livro orienta-se por aquele entrelaçamento: é uma narrativa de viagem e é também uma narrativa romanceada, “uma literatura de viagem e uma viagem na literatura”...

Trata-se de narrativa cuja singular imprecisão não exclui, porém, a dimensão comum de um romance convencional, estruturado sob tal ordenamento, ao contemplar um início – o desejo de aventura, as expectativas criadas, a chegada no Brasil, as primeiras desilusões e dificuldades – , um meio – a construção de uma rede de solidariedades e de amizades – e um fim – o encontro “inevitável”com o “príncipe encantado”, Mr. Hall, a corte, o noivado e o final feliz. Ina constrói, assim, um relato romanceado, entremeado com literatura de viagem, em um interessante jogo criativo em que a autora insinua, nega, sugere, esconde e revela aqueles fios condutores da trama tecida. Pitadas últimas de ironia e humor temperam a narrativa final: a heroína Ina é salva em sua luta, não contra o dragão ou a bruxa malvada, mas com uma prosaica e tropical melancia, pelo seu amado, o cavaleiro Mr. Hall.

A face romântica da “prussiana” Ina von Binzer transborda no enredo construído, disseminado na narrativa da “viajante naturalista”. Talvez essa mestiçagem seja sua nota mais marcante, sobretudo porque sutil, quase dissimulada em meio aos demais relatos. Como não deixar de ver no livro de Ina, em seu ato de escrever, a expressão de seu modo singular de construir-se, de conduzir-se, de criar saídas do estado de submissão e invisibilidade a ela imposto pela sua localização no sistema sexo/gênero? Como não deixar de ver também em seu livro a operacionalidade das forças de territorialização, os efeitos do “dispositivo amoroso” de que fala Tânia Navarro Swain (2006), que assujeita Ina ao modelo de “verdadeira mulher”, que a constrói como corpo-em-mulher cuja razão de viver e de ser, “fundamento identitário”, é o amor e o casamento?

Referências bibiiográficas

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______. 1956. Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. São Paulo: Anhembi,.

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LUDWIG, Carlos Roberto. 2010. Meus romanos: relatos de viagem e diferenças culturais na obra de Ina von Binzer. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo. Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História, Novembro.

MACHADO, Lisânea Weber. 2010. O romance epistolar de Ina von Binzer: um documento de interculturalidade brasileira-alemã. Dissertação de Mestrado em Literaturas Estrangeiras Modernas. Porto Alegre: UFRGS/IL/PPG Letras.

MUNIZ, Diva do Couto Gontijo, 2010. Mulheres na historiografia brasileira: práticas de silêncio e de inclusão diferenciada. In: STEVENS, Cristina et.al. (orgs.). Gênero e feminismos: convergências (in)disciplinares. Brasília: Ex Libris.  

RAGO, Margareth. 2007 .Apresentação. Podemos ser amigas? In: IONTA, Marilda. As cores da amizade: cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. São Paulo: Annablume/FAPESP

SLENES, Robert. 1994. Lares negros, olhares brancos. In: CORREIA, Mariza (org.). Colcha de retalhos. Campinas: UNICAMP.

SWAIN, Tânia Navarro. 2006. Entre a vida e a morte, o sexo. Labrys. Brasília/DF, jul./dez., n.10. Disponível em: www.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/livre/anahita

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Nota biográfica

Doutora em História pela Universidade de São Paulo, professora Associada da Universidade de Brasília, com atuação no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História, nas áreas de História do Brasil Império, Historiografia do Brasil e História e Historiografia das Mulheres. Suas atividades de ensino, orientação, pesquisa e publicações priorizam os eixos temáticos: cultura histórica, experiência, identidade, mulheres e poder. Autora do livro Um toque de gênero: história e educação em Minas Gerais no século XIX. Coordenadora do Laboratório História e Historiografia do Brasil do Departamento de História da UnB.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012