labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012

Nômade e exploradora à sombra do deserto:Isabelle Eberhardt

Norma Telles

 

RESUMO:

Isabelle Eberhardt foi uma viajante intrépida que em sua curta vida (1877-1904) amou profundamente duas coisas, a escrita e o deserto do Saara. O que seus textos mapeiam são suas jornadas internas e externas que forjaram diálogos entre seus muitos eus, ao mesmo tempo em que mapearam suas viagens solitárias pela África do Norte.

Palavras chave: escrita de si; nomadismo; Eberhardt; viajante.

     Literature is not only a mirror;

it is also a map, geography of the mind.

          Margareth Atwood

 

Escritora, jornalista, romancista, Isabelle Eberhardt deixou também diários – que intitula Mes Journaliers - e cartas que apontam o roteiro de suas jornadas de viajante apaixonada pelo deserto e pela busca de si através da escrita. Seu projeto era criar seu próprio destino, “escrevo porque amo o ‘processo’ de criação literária; escrevo, como amo, porque este é meu destino, provavelmente. E meu único consolo verdadeiro (apud Kobak:1989:74)”.        

Isabelle Eberhardt nasceu de mãe russa, uma mulher bonita pertencente à pequena aristocracia prussiana e casada com um general do exército, depois senador e conselheiro do tzar, bem mais velho do que ela. Em 1871, a família Moeder viajou para a Suíça levando quatro de seus seis filhos e o preceptor das crianças. O pretexto da viagem foi fazerem uma estação de cura para que Mme Moeder restabelecesse a saúde um tanto abalada. Na época, o ar puro e o leite da Suíça eram a panaceia para toda “mulher um pouco fatigada, um pouco inquieta, um pouco nervosa” a quem se recomendava a altitude (Charles-Roux:1988:63).

Quando chegaram a Genebra, depois de várias etapas na longa e difícil jornada, Natalia Nicolaievna estava novamente grávida e quatro meses depois deu à luz um menino, Augustin, que seria o irmão predileto de Isabelle. Naquele mesmo ano o general Moeder retornou a São Pitesburgo onde morreu dois anos mais tarde, em 1873. Na Suíça Mme Moeder e os seus foram viver numa propriedade nas proximidades da cidade a qual deram o nome de Ville Neuve, comprada em nome do tutor das crianças. E, para embaraço de toda a família, alguns anos mais tarde Mme Moerder engravidou mais uma vez e deu à luz, em 1877, uma menina que foi registrada como Isabelle Wilhelmine Marie Eberhardt, filha natural de Nathalie Charlotte Dorothée Eberhardt, a viúva de Moerder de quem recebeu o sobrenome de solteira, e de pai desconhecido.

O matronímico que lhe foi atribuído era metade de uma identidade, uma estranheza em uma sociedade onde só o patronímico validava a pessoa. O corpo da mulher, fonte de preservação da linhagem patriarcal, torna-se potencial de desintegração da ordenação social quando engendra filhos ilegítimos. Quem seria o pai, mãe e filha nunca tornaram público, embora a filha tenha tecido algumas versões sobre seu nascimento, como aquela segundo a qual ela era o ‘triste resultado de uma violação’ cometida pelo médico de sua mãe, já falecido em 1898 quando em carta conta este episódio a um amigo tunisiano (Randau:1989:12). No entanto, para os biógrafos modernos as suspeitas de paternidade recaem sobre o tutor, depois de um período de indagações e até de hipóteses fantasiosas como a de Pierre Arnoult, em 1943, que lhe atribuiu o poeta Rimbaud (1854-1891) como pai, algo que foi comprovadamente desmentido pelos estudiosos. No entanto, o próprio Arnoult pensava ser sua hipótese um tanto quanto romanesca “mas sedutora e inofensiva” (Randau:1989:7).

Rimbaud, o poeta que escreveu: “Eu é um outro”, frase comentada e cantada por poetas, literatos, críticos em geral, como pai ficcional  de Ebhardt faz mesmo sentido poético, pois como ele, e talvez ainda mais do que ele, a jovem passou a vida indo de uma persona a outra, circulando pela multiplicidade escorregadia e vária de identidades criadas. Ebhardt também tomou o outro como expressão do desconhecido, como abertura do eu no mundo e do mundo no eu, da ruptura da homogeneidade, de rachaduras que não se emendam. Ela como ele abandonou a Europa e peregrinou pela África. E ambos escreveram. Mas cessam aqui as semelhanças gerais, pois mesmo que se diga, como já fizeram, que os dois serviram de algum modo ao colonialismo, ela não o fez a não ser em um momento específico e por razões bem explicadas, ao contrário se alinhou sempre ao lado dos locais, e sua vida e sua prosa foram bastante diferentes da do poeta. Rimbaud não era pai de Isabelle, os dois nem mesmo se cruzaram ou conheceram.

O que é certo, é que Ebehardt construiu versões de seu romance familiar, nunca admitiu ser filha do tutor, Vava, a quem queria muito bem e, além do mais, não se parecia com nenhum dos seus. Nascer sem ar de família sempre levanta suspeitas, por isso “ela estava, desde o nascimento, condenada a inquietar (Charles-Roux:1988:14)”. Inquietou, assim como toda sua família e especialmente o tutor, os serviços de vigilância na Suíça (que muito a aborreciam), inquietou a policia na França, no norte da África; inquietou os europeus do Magreb que não gostavam dela; inquietou grupos árabes, as autoridades coloniais e permaneceu uma dessas pessoas, como também o foi Rimbaud, que a escritora George Sand denominou ‘les sauvages’, uma pessoa diferenciada porque determinada a viver sua própria verdade, mesmo não conseguindo passá-la adiante, mesmo não sendo compreendida pelos demais.

O tutor das crianças, Alexandre Trophimowsky, tinha já cinqüenta anos quando a menina nasceu. Anotações sobre ele são numerosas nos cadastros da policia política de Genebra que seguia de perto os russos, imigrados ou exilados, que então vivam naquela cidade. Dados copilados nas fichas: origem armênia; provavelmente ex-padre; casado e pai de filhos, abandonara todos na Rússia para seguir com Mme de Moerder para a Suíça. Era um erudito e seguidor do anarquismo de Bakunine com quem conviveu na Suíça. Segundo este último autor as crianças de ambos os sexos deveriam ser preparadas para a vida do espírito e para o trabalho, a fim de terem chances de crescerem como indivíduos.

O tutor seguiu esses preceitos, se recusava a mandar as crianças à escola, ou deixá-las passear livremente, ficavam mais em casa devido a várias paranóias ou aos preceitos, porém receberam educação apurada, filosófica, científica e literária; ele ensinou-lhes várias línguas. A menina se expressava correntemente em russo, alemão e francês; conhecia o grego, o latim, o inglês e aprendeu árabe clássico. Em geral se vestia como os meninos - Isabelle ainda aos dezenove anos cortava o cabelo curto e usava traje de marinheiro – como aparece em fotografia famosa de Louis David - para ir até a cidade sem chamar atenção (Charles-Roux:1988:55-59).

Vivendo em uma casa freqüentada por exilados, anarquistas, membros das mais variadas sociedades secretas, indivíduos sem identidade a não ser um cognome, vindos de vários cantos do mundo, a jovem sonhava com o que estava além do jardim, “nômade eu era”, escreve em Mes Jornaliers,

“[..] quando ainda pequena sonhava ao contemplar a estrada [...] nômade permanecerei durante toda a minha vida, amante de horizontes cambiantes, de lonjuras ainda inexploradas, pois toda viagem, mesmo aos locais que mais freqüentamos e mais conhecemos, é uma exploração (apud Kobak:1989:28)”.

O nomadismo que elege como descrição de si mesma, como definidor de liberdade, aproxima-a de nós, torna-a nossa contemporânea, evoca propostas de Deleuze e Guattari sobre o pensamento e uma ciência nômades que promovem valorização contínua das próprias variáveis, preferindo o não linear, o descontínuo, o singular ao invés dos dualismos tradicionais. Essas noções embasam também formulações recentes de teorias feministas, como as de Braidotti, que afirmam a necessidade dos sujeitos tomarem metáforas diferentes das clássicas que, como é o caso de nomadismo, resgatam um senso de responsabilidade pela própria localização. A epígrafe de Atwood que encabeça este texto expressa, em outro campo, a materialidade de cartografias auto-reflexivas, reais e metafóricas ao mesmo tempo, até mesmo, como a citação de Eberthardt sugere, tornando estranhos os lugares conhecidos onde sempre é possível enxergar algo novo por outras perspectivas, outras linhas de fuga.

Os sujeitos do conhecimento aqui, como os sujeitos feministas contemporâneos, são intensos, múltiplos, móveis e funcionam como rede de interconexões não lineares, não unitárias, mas criadas e incorporadas. Vagando pelos caminhos, sem objetivos fixos, a ‘vida artificial, criada pela literatura’, como escreveu Eberhardt, é narrativa episódica, não heróica. A palavra nomadismo transmite uma sensação de processo incessante não só entre diferentes paisagens, mas, principalmente entre diferentes expressões do eu, diferentes expressões de gênero, mapas de territórios outros e desconhecidos e principalmente dos territórios interiores, como sugerido por Deleuze ou por Atwood. Errâncias que penetram convenções, hipocrisias, situações históricas. “O caminho erradio conduz ao que se conhece com menos certeza, conduz a menos conhecimento instituído, acumulado em segurança (Hillman:1975:164)”.

Atwood, ao se afastar da imagem do espelho em beneficio da imagem da cartografia, da geografia da mente, alterna de um enfoque mais passivo para outro mais ativo, o ato de colocar novos marcos e entrelaçar os vários temas sobre os quais estivemos falando: o traçado de outras paisagens por caminhos e espaços desconhecidos, ultrapassagem de fronteiras e padrões de uma dada época, linhas novas que “nos compõe, assim como compõe nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra (Deleuze e Guattari:1996:76)”. A cartografia serve de foco de aproximação ou afastamento das experiências que podem explodir linhas segmentárias em linhas de fuga no continuo espiral que envolve a criação.

O nomadismo de Eberhardt levou-a por paisagens da existência, por um itinerário interior, em um constante caminhar que foi também um percurso por múltiplas personae que criou para si e empregou em diferentes situações. Por exemplo, a de ‘Nicolas Podolinsky,’ que usou para se corresponder com um marinheiro, Edouard Vivicorsi, amigo de seu irmão Augustin em busca de informações sobre ele que havia desaparecido de casa sem deixar rastros ou endereço. Vivicorsi responde, para desespero de Isabelle, que Augustin se alistara por cinco anos na Legião Estrangeira.

Na correspondência Eberhardt assume uma identidade com registro, isto é, o Nicolas que criou se apresenta com biografia própria, como se fosse um marinheiro de Vladivostok que deixara o porto de inscrição para se fixar na Suíça “para uma estadia de três meses”, relata ela em carta ao irmão Augustin quando afinal consegue seu endereço, e prossegue, “eis a ficção que empreguei para que ele me respondesse. E ele acreditou” (apud Charles-Roux:1988:251). Esta carta ao irmão é também exemplo de uma polifonia de línguas: russo, francês, italiano, grego, latim – e formação de novas palavras que marcam todos seus textos, associando línguas vivas a línguas mortas

“[como] se desde os dezoito anos, Isabelle tivesse querido negar as fronteiras e proclamar seu direito a ultrapassagem. Ao se definir em relação a tantas línguas estrangeiras, ela não afirmava sua vontade de se subtrair ao enraizamento? (Charles-Roux:1988:258)”.

Ela precisou inventar uma escrita para si, uma língua para si, tão sem raízes como ela, por isso relacional e móvel. Por outro lado, na correspondência que mantém com o marinheiro Vivicorsi ela emprega uma linguagem totalmente diferente da sua usual, uma língua rude, violenta até, de homens do mar que se atribuíam mutuamente a denominação ‘companheiro’, usando com o outro uma linguagem popular, incorreta, cheia de erros, o que a encantava, mas que não empregou em outras ocasiões. Para obter o endereço do irmão ela se colocou no lugar do marinheiro e conversou como ele; do mesmo modo, sempre acreditou que para estudar ou observar os costumes de outros grupos seria preciso se misturar, viver com eles, e essa ideia ela colocou em prática durante suas estadias na África do Norte.

“Escrever é para o poliglota [aquele que não adere a nenhuma ordem simbólica ‘natural, mas traduz entre múltiplas linguagens e identidades] um processo de desfazer a estabilidade ilusória ou as identidades fixas, escancarando a bolha de segurança ontológica que advém da familiaridade com um sitio linguístico (Braidotti:2006:15)”.

            Empregar outra língua que não a materna, no caso das escritoras equivale, sugere Yaeger, “a descoberta de método alternativo para colocar em prática emoções e ideias previamente não simbolizadas” (Yaeger:1988:36). Empregar outras línguas poderia ter caráter emancipatório, assinalar o momento de transformações em que a escritora força seu discurso a destruir antigas colocações sobre o feminino e colocar outra coisa no lugar, investimento que forma um novo corpo de sons com vários registros e diferentes dificuldades sintáticas, como o emprego de uma linguagem rude, de homem do mar. Nesses jogos de linguagem um sujeito feminino múltiplo vai se construindo ao mesmo tempo em que rouba e recontextualiza palavras.

            O pseudônimo, ou a persona, Nicolas Podolinsky ela usa outras vezes: para confundir três irmãos com quem se correspondia ao mesmo tempo; ao escrever cartas, em momentos diferentes, para editores de revistas; para autoria de uma primeira novela, em parceria com Augustin, que publica em 1895 em uma revista parisiense, Infernalia: volupté sépucrale [Infernalia: voluptuosidade sepulcral]. O tema, comum aos decadentes da época, é o poder sedutor da morte, uma das obsessões da escritora. Ela descreve dois corpos estendidos sobre uma mesa de morgue, um homem e uma mulher que mesmo mortos conservam sua forma e que seriam usados em uma aula de anatomia. Ali também está um estudante, bem vivo, que diante da carne fria da moça, sente desejo e “trava uma batalha interior contra as forças obscuras que ameaçavam tomar conta dele [...] ele resistia contra os apelos sinistros da nevrose (Kobak:1988:58)”. Encorajada pela publicação, continua escrevendo e alguns meses depois outras histórias aparecem em revistas tendo como autor aquele mesmo nome inventado.

Em 1896 estabelece duas outras relações epistolares, com um autor egípcio exilado em Paris que também usava pseudônimo, para quem ela escreve em árabe clássico e se assina Mahmoud Saadi - personagem que mais tarde será sua vestimenta favorita - dizendo-se um jovem autor eslavo que se tornara muçulmano e gostaria de ir para a Argélia para aperfeiçoar seu conhecimento da língua. Para outro correspondente, um militar de Lion sediado na África, ela escreve pedindo conselhos práticos sobre o local, e nessas cartas ela se assina Nadia. Essa amizade vai durar até o final de sua vida e através dele ela conseguiu traçar um quadro acurado da região mesmo antes de ter colocados os pés em África.

Em 1897, pressionadas por vários problemas, e animadas com a presença do querido Augustin na Argélia, Mme de Moerder e a filha partem em busca de outro local para viverem. Escolhem Bône (Annaba atual), cidade preferida dos colonizadores franceses localizada na ponta nordeste da Argélia, quase fronteira com a Tunísia. Elas se estabeleceram primeiro no bairro dos europeus, mas logo em uma casa de um bairro árabe, onde ao contrário do anterior, ninguém procura se imiscuir na maneira delas viverem.

“Nos arredores de um antigo quarteirão morto, adormecido há séculos sob a sombra protetora da santa Zaouiya des Aissauuas [confraria religiosa], em uma pequena rua estreita e muito escarpada, era uma casa baixa e tosca, um pequeno cubo de alvenaria centenária, pintada todos os anos de um azul quente e coroada em cima de seu teto plano por uma velha figueira plantada no meio de um pequeno pátio mourisco, outrora cimentado e que se tornara polido, desigual. Para a rua, nada, nenhuma janela, nenhuma abertura. A porta ogival muito baixa, de pranchas espessas, bordadas de ferro e ornadas com velhos pregos de cobre, ficava sempre fechada e só se entreabria bem misteriosamente para deixar entrar ou sair um de nós [...] Havia quatro cômodos cujas portas e janelas se abriam para o pátio (apud Charles-Roux:1988:465)”.

Esta é a descrição que faz de uma casa vizinha, e semelhante, a sua. Ela estava então com dezessete anos, e ali “não me movo, não converso. Eu estudo e eu escrevo”. Escrevia, por prazer, entre outras coisas, crônicas que intitula Siluetas de África publicadas em revista em 1898, das quais citamos acima um fragmento. O trecho transcrito ilustra seu tema central: a vida cotidiana, mulheres, especialmente mulheres, e homens comuns.

Nesta mesma crônica aparece pela primeira vez, nota Charles-Roux, a personagem de Mahmoud, jovem taleb [estudante em busca de conhecimento] com a qual Isabelle se identificava e que se tornará seu novo pseudônimo. Transvestida, usando roupas masculinas de jovem estudante em peregrinação, ela freqüentava a casbah [o mercado] e logo faz amigos entre os estudantes locais. Em seis meses, conta, já falava bem o árabe popular, “para me exprimir em árabe, eu falava árabe (apud Randau:1988:33)”.

Duas mudanças são assinaladas na jovem a partir dessa estadia: a paixão pelo modo de vida dos nômades da região, então dita oriental, e pela vida religiosa muçulmana que ultrapassa o gosto inato pela cor, e o pitoresco, e se torna admiração e convicção; por outro lado, ela torna sua a simplicidade africana de vestes, alimentos e costumes. Isabelle se sentia muçulmana de nascença, e sua mãe sob sua influência abdicou formalmente da fé luterana e abraçou a do Islã, adotando o nome Fatma Manoubia.

O momento feliz, entretanto, foi breve porque sua mãe, Natalie, cuja saúde sempre fora frágil, morre do coração aos cinquenta e nove anos, deixando a “filha em um estado de sofrimento inexprimível (Charles-Roux:1988:471)”. Isabelle nunca escreveu sobre este episódio, a não ser em carta a um amigo na qual descreve o agravamento da saúde da mãe e seu passamento, completando “Não direi nada de minha desolação. Não posso escrever sobre isso (apud Charles-Roux:1988:474)”. O desespero em que mergulhou durou meses durante os quais continuou vivendo no mesmo local, próxima ao cemitério árabe onde enterrara a mãe em “uma tumba muçulmana de porcelana branca ou azul”, com o nome Fatma Manoubia inscrito na lápide, o que mostra que romanceou também a morte materna.

Retorna à Suíça na primeira de algumas idas e vindas. Ali novas e grandes perdas a aguardam. Primeiro foi Vladimir, um irmão mais velho que se suicidou; meses depois mais alguns dias na África, mas deve retornar a Genebra porque o tutor, Vava, desenvolvera um câncer de esôfago que terminou por matá-lo em 1899. Ela e o irmão Augustin, herdeiros por testamento dele da Ville Neuve nomeiam um procurador para vendê-la, mas este homem os engana financeiramente. Isabelle que sempre lutara com dificuldades, a partir desta data passa a viver na indigência.

Afinal, volta à África, vai para Tunis onde pretendia estudar o Corão, gramática e estilo da língua para abrir uma escola não-europeia para moças, com umas cinco por classe, para instruí-las. Esse empreendimento não prosperou, mas a educação de moças foi uma de suas preocupações até o final da vida. Passou meses vagando pelo deserto, as noites em cafés ou em discussões com eruditos. Frequentava bairros de má reputação e os franceses a vigiavam, pensando que poderia ser “uma agente da pérfida Albion [Inglaterra] para semear a revolta entre os pobres e miseráveis. Bem ao contrário, ela gastava com eles o pouco que lhe restava da herança (Kupchik:1999:139)”.

Neste período escreveu bastante, leu bastante. Partiu em seguida para a Argélia, primeiro para Beja depois para Bishra. Acreditam os estudiosos de sua vida que data dessa época seu hábito de fumar kif uma mistura de ervas e haxixe que não era proibida e frequentar o bas-fond das cidades ou dos portos, hábitos que se tornaram muito arraigados e por ela apreciados. “Que embriaguez de amor sob aquele sol ardente! Minha natureza também era ardente e o sangue fluía numa rapidez febril por minhas veias inchadas de paixão (apud Kupchik:1999:138)”. 

Em agosto de 1899 seguiu para o sul, em direção ao Saara, local que iria marcar sua vida para sempre e que ela irá escolher para uma estadia mais longa depois de outra curta permanência na Europa. A região que visitou então e para a qual retornou em 1900, é conhecida como Souf em torno de El Oued, centro de grupo de oásis e de várias comunidades cuja capital, ‘cidade das mil cúpulas’, recebe o mesmo nome. Ainda na Calábria, a espera da data de partir, escreve na primeira página de um dos diários, “Estou sozinho” no masculino, uma eleição premeditada, várias vezes refere a si mesma no masculino. O uso frequente dos pseudônimos e alterações das referências biográficas, a alternância entre feminino e masculino, “termina por converter-se em sua verdadeira personalidade (Kupchik:1999:140)”. E a tal ponto convivem bem as várias personagens que Slimène, que conheceu na região e com quem se casou a apresentava assim: “esta é Isabelle, minha esposa e Mahamoud, meu companheiro”.

Na primeira estadia em El Oued ela adota definitivamente sua amada persona Si Mahamoud Saadi (ou Essadi). Parte só para o deserto, como um jovem estudante em busca de aperfeiçoamento espiritual, a procura dos marabutos, mestres eremitas do deserto, nesta região de muitas tradições. Eberheardt esboça um retrato de Mahamoud: um cavalheiro vestido de branco, turbante árabe e rosto coberto, usando no pescoço colar de contas negras e portando um grande lenço vermelho na mão que segura as rédeas do cavalo, “um filho adotivo do grande xeique branco”, uma outra ficção em torno de Mahamoud Saadi. Note-se que o nome que escolheu para a personagem predileta evoca um poeta e viajante de Shiraz que no século XIII pregava o amor, a renúncia e a arte de se governar a si mesmo. Então ela está, de algum modo, se designando como poeta e criadora da própria vida meio ao turbilhão de variações. No Souf ela retomara seu nomadismo, “a estrada, amante tirânica, embriagada de sol”.

Diz Bachelard que os humanos tem necessidade de “uma verdadeira moral cósmica, da moral que se exprime nos grandes espetáculos da natureza para poder viver com coragem a vida de trabalho cotidiano (Bahelard:1976:200)”. Ele quer dizer, continua, que toda luta precisa de um objeto e um cenário. O cenário diante do qual se coloca Eberhardt é formado por dunas de areia se estendendo por quilômetros sem fim.

“A primeira imagem da imensidão é uma imagem terrestre. A terra é imensa. Maior que o céu que é apenas uma cúpula, uma abóbada, um teto. Serão precisos meditações e pensamentos sábios para atribuir a noção de infinito à Noite estrelada, para pensar verdadeiramente, contra as imagens ingênuas, sobre o alinhamento prodigioso dos astros [...] Naturalmente o Mar é ainda a Terra, uma Terra simplificada, e, para uma meditação quase elementar, uma Terra resumida em seu atributo de imensidão (Bachelard:1976:380)”.  

Mar de dunas, costuma-se dizer do deserto, meio ao qual o conjunto de oásis com suas florestas de tamareiras e palmeiras e seus jardins, acolhe há milênios, viajantes das caravanas e nômades, oferecendo abrigo temporário para o calor e a aridez. Pequenas comunidades sedentárias, algumas poucas dezenas, se espalham pela região. Ao contemplar tal imensidão, ao penetrar no deserto, “o nômade se desloca, mas ele está sempre”, diz Bachelard, “no centro do deserto”. Isto porque, para donde quer que olhe os objetos dispersos que lhe chamam a atenção, mesmo separados, estão integrados no circulo da visão panorâmica da imensa extensão.

Assim, quem contempla essa imensidão “toma posse de toda a terra (Bachelard:1976:379)”. A imaginação tem uma dimensão de bravura cósmica porque age como um meio que faz viver as imagens em um espaço que não é nem interior nem exterior, onde se misturam figuras de dentro e figuras de fora. Então o “cosmos não é mais um espetáculo, ele se torna um mundo de formas e de forças cuja ressonância em nós, através de imagens, nos insufla a vida e nos engaja em participação integrativa (Wunenburger:1991:1)”. As imagens cósmicas são simplesmente a percepção que sujeito e objeto trocam de localização e formam um nó firme que não pode ser desfeito.

"No deserto, grãos de areia, arestas de pedras, protuberâncias de rochedos, mas também a estridência do vento, ou musica dos passos, são levados à incandescência para se tornarem traçados de arquiteturas e de acontecimentos que sustentam o solo de nosso ser [...] Seguindo, como Roger Caillois, as figuras de pedra, nós acedemos a uma ordem que é o contrário do exposto, do visível, da escritura que sutura nosso ser [...] o tecido do universo é continuo, ele não tem ponta (Wunenburger:199:4)”.

O deserto pelo qual cavalga Eberhardt, ou melhor Muhamed Saadi, não é o dos anacoretas cristãos, embora ela vá em busca de eremitas e místicos do islã, o deserto que explora é a multiplicidade concreta do poder ser. Como se tivesse encontrado uma porta de entrada para a paisagem que lhe revela então uma total polissemia de manifestações enredadas a partir de outra percepção e que pode levar ao rompimento das amarras com o eu e à transfiguração de si.

Anota Eberhardt em seus diários que à noite no deserto, quando sopra um vento quase frio, nas dunas pode-se ouvir um murmúrio semelhante ao do mar e sente-se uma enorme tristeza sem razão alguma.  Ela escuta o mesmo murmúrio mais uma vez:

“[...]tudo está silencioso na noite azul, a folhagem rija das folhas de palmeira assobia misteriosamente no vento perene do Souf, que vagamente soa como o vento no mar (Eberhardt:2003:64)”.

E, como são maravilhosos o nascer e o por do sol!

“Oh Saara, Saara ameaçador, que esconde sua alma escura e bela em um vazio árido a desolado! Oh sim, eu amo esse pais de areia e pedra, este pais de camelos, homens primitivos e planuras de sal vastas e traiçoeiras (Eberhardt:2003:59)”.

Nesta região Eberhardt conhece Slimène Ehnni, um soldado árabe do regimento Spahi, antigo regimento turco que fora apropriado pelo exercito francês. O vínculo entre eles não pode ser conhecido a não ser por alguns poucos amigos chegados, devido ao delicado equilíbrio das relações entre europeus e comunidades locais que pouco tempo antes haviam se rebelado. Eles então se encontram à noite, dormem ao relento, cruzam “as areias brancas como a neve que parecem quase translúcidas ao luar”, passam pelo muro do cemitério cristão, que dá uma impressão lúgubre, sobem uma pequena colina e encontram o jardim em um vale escuro, um jardim de flores delicadas, frutos e ervas aromáticas. 

“Sob a luz azul-esverdeada da lua parecem diáfanas, como plumas delicadas e frágeis [...] a água é clara e fresca (Eberhardt:2003:63)”.

Eles se deitam sobre a areia e quando a aurora se anuncia retornam lenta e cuidadosamente para a cidade adormecida.

Isabelle se muda para uma casa no antigo bairro judeu de El Oued com uma empregada, Khalifa, um odenança, uma cabra e o cavalo que comprou com um dinheiro enviado pelo irmão e batizou de Souf, em homenagem a região. Slimène vai ao seu encontro sempre que consegue. A tranquilidade é interrompida por bebedeiras coletivas, incluindo os criados, que culminam em arruaças e a moça se prometendo levar uma vida mais sóbria.

Kobak em anotação aos diários diz que a vida com Slimène satisfazia Isabelle sexual e intelectualmente. “Slimène é o esposo ideal para mim que estou fatigado, cansado e farto da solidão que me rodeia” escreveu ela em carta ao irmão Augustin. Porém a união com Slimène, secreta na medida do possível, somada aos seus hábitos masculinos e ao seu anti-convencionalismo provocavam escândalo tanto em parte da comunidade islâmica quanto na ocidental. No geral, porém, sua vida era calma e simples, desejava fundir-se com a paisagem e as “gentes do Souf, cavalgar seu cavalo pelas rotas dos oásis, ensimesmar-se na religião [islâmica] e amar Slimène (Kupchik:1999:142)”. O espaço privilegiado por Isabelle era mesmo o deserto:

“Montei Souf esta manhã para ir até as dunas e jardins que estão entre a estrada para Touggourt e a de Debila. Trilhas íngremes conduzem ao topo das dunas que do alto contemplam jardins profundos lá em baixo”.

“Choveu na noite passada; a areia estava úmida e amarela e desprendia um odor agradável, fresco, levemente salgado”. 

 “Nas encostas monótonas cresce um singular tipo de sedum suculento, verde claro e espigado. Nos jardins, as cenouras e pimentas parecem tapetes verdes brilhantes em baixo de palmeiras que soltaram toda aquela poeira cinza (Eberhardt:2003:73)”.

Ela e Slimène muitas vezes cavalgavam até a colônia anarquista deTarzout que ficava a quarenta quilômetros de Ténès, local onde moravam. A colônia fora fundada por volta de 1888 e ali Isabelle que frequentara meios anarquistas em Genebra reencontrava libertários que lhe agradavam (Randau:1989:136).

Em Mes Journaliers Ebehardt ela menciona esses passeios e mais tarde escreveu uma novela “L’ anarchiste” e um romance, Trimardeur, publicado após sua morte, nos quais também faz referência a esses grupos. Neste último caso o próprio título inscreve a noção uma vez que trimardeur quer dizer vagabundo, no sentido de errante, semelhante ao personagem interpretado por Charles Chaplin. E mais, no século XIX era palavra muito usada pelos anarquistas para simbolizar seu pensamento, apontando para a ideia de sempre expandir os limites, de não se fixar, de ir de lá para cá.

Ela seguia a lentidão da estrada equivalendo ao langor amoroso, no deserto lia as pedras e os grãos de areia. Ao mesmo tempo em que amava a errância, ela amava também “a regularidade imutável do muezim, assim como o aspecto fechado das casas árabes [...] protegendo a intimidade dos habitantes (Kobak:1988:110)”. E escrevia para jornais locais e assim ganhava a vida. Logo foi acusada de motivos subversivos, de se “travestir em homem indígena”; falava-se de influência de marabutos. Ela refutava as acusações através do jornal para o qual escrevia. Durante um período eleitoral ficou mesmo proibida de retornar a Ténès onde se fixara. Neste mesmo período foi iniciada na confraria sufi dos Qadrigya, a mais antiga da Argélia.

“A dificuldade é que havia outros além da Qadrigya [...] Outros cultos, comandado alianças de tribos rivais, que desaprovaram por princípio as atividades dela (Bowels:2012:11)”.

Em janeiro de 1901, depois de vencer uma enfermidade e ainda fraca, conversava entretida em uma reunião de notáveis religiosos, quando foi atacada por um homem que lhe desferiu golpes de sabre. Ela sentiu um duro impacto na cabeça e em um movimento reflexo se levantou para tentar alcançar sua adaga; recebeu então mais dois golpes no braço. Ebhardt ficou muito ferida, não morreu porque uma corda, como varal, estendida a sua frente amainou o golpe desferido em sua cabeça.

As autoridades conseguiram prender o assassino logo reconhecido como, Abdallah Mohammed bem Lakhdar, mas os motivos do atentado permaneceram obscuros. Dizem alguns que o homem pertencia a uma confraria rival, a Tidjania, outros que ele pertencia a grupos ortodoxos que não suportavam a intrusão da moça em assuntos de religião; ela, por seu lado, sempre acreditou ou que ele pertencesse a confraria rival ou que por detrás do assalto a sua pessoa estivessem as autoridades francesas.

Isabelle foi levada para o Hospital Militar Francês em El Oued. Estava fraca fisicamente e seu humor oscilava entre a sensação de sua vida ter ganho um sentido e a de abandono à beira do desespero, nota Kobak. Eberhardt escreve:

“A longa e insone noite de inverno parece infindável neste silêncio mortal. Está escuro e sufocante aqui nesta minúscula e estreita ala de hospital. A lâmpada noturna na parede perto da janela lança uma luz fraca na decoração abatida: paredes úmidas com moldura amarela, duas camas brancas de exercito, uma pequena mesa preta e prateleiras para guardar livros e garrafas. Um cobertor do exercito esconde a janela [...] Tudo é silêncio. Enquanto isso, eu estou aqui sozinha e definho. Minha cabeça ferida, despedaçada queima. Todo o meu corpo atormentado pela dor. E não encontro um modo de acomodar meu braço ferido. Ele me dá muita dor e desconforto e parece terrivelmente pesado [...] Sinto dor não importa o que faça; um tipo de dor nauseante. Pensamentos negros e terríveis despontam em minha mente doente e febril (Eberhardt:2003:87)”.

Ela recorda em detalhes os acontecimentos daquele ‘dia fatal’ e entre tantas outras considerações afirma a percepção de solidão absoluta. Porém, com o raiar do dia, surge também uma ponta de otimismo e ela antevê a possibilidade de sua alma de novo, conhecer a serenidade. Deixou o hospital antes de estar totalmente curada e ao vagar pelos lugares conhecidos ela os enxerga então sob uma lente escura: “As dunas agora tem uma aparência de desolação, não daquele modo fascinante, misterioso que eu costumava apreciar; não, elas estão mortas (Eberhardt:2003:91)”. 

O julgamento causou comoção e Eberhardt, que testemunhou, teve uma atitude inesperada, defendeu o acusado que fora condenado a prisão perpétua. Ela lutou pela diminuição da pena, escreveu para autoridades e conseguiu que a condenação a prisão fosse de dez anos. Acreditam alguns biógrafos que a atitude dela em defesa de seu quase assassino tenha a ver não só com o significado que sua vida adquiriu para ela própria, mas principalmente com uma tentativa de não se deixar usar pelos franceses para algum surto de repressão às comunidades locais.

De qualquer modo, aproveitando-se do alarde em torno do caso, as autoridades francesas a deportaram, expulsaram aquela russa de sobrenome alemão que frequentara anarquistas e na Argélia vivia envolvida com os indígenas; que não só levantava tantas suspeitas, como também críticas ao seu comportamento tido como escandaloso e, acima de tudo, que tanto os incomodava. Em Batna, para onde seguiu em caravana para encontrar-se com Slimène, ela leu muito e escreveu longas páginas sobre o amor ao pensamento e a beleza da arte. Partiu em julho de 1901. Mais uma vez precisou se vestir de homem, pois só tinha dinheiro pagar uma passagem de quarta classe em navio para Marselha, e nessa classe mulheres não podiam viajar. Transvestida ela retorna à Europa e do mesmo modo regressa uma semana depois para comparecer ao julgamento e testemunhar.

De novo em Marselha. Afinal Slimène consegue ser transferido para um regimento ali sediado, para servir os últimos seis meses que lhe restam de exército. Eles se casam e tendo esposado um francês naturalizado, Isabelle readquiriu o direito de viver em território francês. “Durante estes últimos dias tenho ansiado de novo pelo deserto, com uma intensidade tão aguda que quase machuca

[...] Oh, ser livre agora, nós dois, estarmos em boa situação, e partir para nosso país! (Eberhardt:2003:150)”.

Eles retornam à Argélia em janeiro de 1902, desembarcando em Bône, ali aonde Isabelle chegara ao Magrebe pela primeira vez. Ela registra,

“Por fim se realizou o sonho de regressar do exílio e estamos aqui mais uma vez, baixo o grande sol eternamente jovem e luminoso, na terra amada, no imenso Azul murmurante, cujas extensões desertas ao entardecer recordam as do Saara já mais próximo, a uma jornada daqui e que, se Deus e Djilani nos ajudarem, voltaremos a ver ainda este ano que começou de modo tão reconfortante. Oxalá este ano seja o começo da vida nova, do sossego tão merecido e desejado! (apud Kupchik:1999:165)”.

A intenção era levar uma vida simples; ela retoma suas vestes de homem árabe, de dia visita mestres eruditos, à noite fuma kif, se mistura ao bas-fond. Viaja, a pé e a cavalo, sempre próxima da terra. Escreve crônicas para o jornal Akhbar, escreve muitas outras coisas e suas novelas e relatos começam a ser publicados.

Em 1904, se une a uma missão junto a tribos nômades na fronteira com o Marrocos, mas depois de seis meses, com malária, paludismo e provável infecção por sífilis, retorna para ser tratada em Ain Sefra. Logo, e por conta própria, deixa o hospital e vai para sua casa na parte baixa da cidade. Alguns dias depois, acontece uma grande tempestade, um dilúvio; águas torrenciais descem das montanhas fazendo transbordar o oásis, engolem casas e matam muita gente. Isabelle morreu afogada dentro de sua casa.

“Ela estava vestida como Si Mahmoud, os braços apertados em cima da cabeça em um gesto final de defesa (Kobak:2003:200)”.

Os soldados do general Lyautey, seu amigo, resgataram manuscritos dispersos, cobertos de lodo. Parte de sua obra só foi recuperada anos depois quando um escritor, René Doyon, comprou os manuscritos de uma mulher em Bône que dez anos antes os havia adquirido de Slimène. Ele, embora estivesse em casa com Isabelle, não morreu na enchente e sim de tuberculose em 1907, enquanto Augustin, o irmão querido, se suicidou seis anos mais tarde.

Lyautey comentou que não sabia o que amava mais em Isabelle, “se a mulher de letras, o cavalheiro intrépido ou o nômade endurecido. (Kupchik:1999:145)”. Essa nômade acampada, como escreveu, no “deserto da vida, da qual não passava de uma marginal”, teve sem duvida uma vida rica:

“Enquanto sob a luz do sol submerge sua condição feminina no fervor religioso, durante as noites se transveste e se funde na barafunda dos cafés da casbah. Embriagada de kif, licor ou palavras, seduz aos homens mediante sua androginia (Kupchik:1999:138)”.

Ela própria percebia e discorria sobre o caráter dual de sua vida, “vivo duas vidas: uma cheia de aventuras pertence ao deserto, e outra, calma e tranquila, é devotada ao pensamento e distante de tudo [...] (Eberhardt:2003:41)”. Acreditava que quem a visse pensaria que era “cínico, dissipado e debochado” [masculino no original], mas isto porque ninguém enxergava seu eu verdadeiro que era puro e sensível, que se erguia sobre as humilhações nas quais se chafurdava  (Eberhardt:2003:23).

Nos escritos de Eberhardt ao invés de um Oriente fantasioso, de jardins perfumados povoado por odaliscas lânguidas se espreguiçando ao sol, ou  haréns, como acontece em pinturas de Gérôme ou Delacroix, ou em livros de Loti ou mesmo Flaubert, que buscavam, nos retratos mais fantasiosos do Oriente sugerir prazeres fortes, o mundo de Eberhardt, que viveu prazeres esses prazeres, foi o de uma realidade dura, privações, parcos estipêndios como jornalista, mas de resistência física, abandono sensual, paixão por regiões imensas e fascinantes.

Desde o inicio de suas anotações a ideia de governar a si mesma, de se conhecer, eram centrais. Registrou:

“Há em mim coisas que não compreendo ainda, que mal começo a compreender [...] E esses mistérios são bastante numerosos. No entanto, eu me estudo com afinco, gasto minha energia para colocar em prática o aforismo estoico: ‘Conheça-te a ti mesmo’. Esta é uma tarefa difícil, atraente e dolorosa. O que mais me incomoda, é a prodigiosa mobilidade de minha natureza e a instabilidade verdadeiramente desoladora de meus estados de espírito, que se sucedem uns após os outros com uma rapidez inaudita. Isto me faz sofrer e não conheço outro remédio a não ser a contemplação muda da natureza, longe dos homens, face a face com o grande Inconcebível, só e único refúgio das almas que sofrem (apud Kobak:1988:74)”.

Esse trecho de Eberhardt foi retirado de uma carta que escreveu ao amigo tunisiano Abdul Wahab antes de partir pela primeira vez para a Argélia, ainda com a mãe, e é precioso pelas informações que dá sobre si mesma, pela clareza com a qual se observa, pela escolha que faz do preceito estoico que, intui, pode ajudá-la a sondar os mistérios de seu ser, instável e móvel.   

 Michel Foucault discorre longamente em vários de seus livros, principalmente os da década de 80, não só sobre os estoicos como sobre o ‘conheça-te a ti mesmo’. A noção do cuidado de si, acredita, fundou a necessidade de conhecer-se a si mesmo e constituiu principio base que caracterizou quase toda a cultura grega, a romana e a helenística, embora, sem dúvida, a noção tenha se alterado no transcurso do tempo, até ser esquecida depois de ter sido central por quase um milênio.

E foi esquecida devido ao que o autor denomina “momento cartesiano”, com muitas aspas, ressalva, no uso do termo. Este momento teria atuado de duas maneiras para o esquecimento; requalificou filosoficamente o ‘conheça-te a ti mesmo’ e desqualificou sua contrapartida, o ‘cuidado de si’. No primeiro caso requalificou filosoficamente o preceito, instaurou o ponto de partida das reflexões na origem como evidência que se dá à consciência. Além disso, “coloca a evidência da existência própria do sujeito no princípio de acesso ao ser”, não mais sob forma de prova da evidência, mas como certeza da existência, o “que fazia do ‘conhece-te a ti mesmo’ um acesso fundamental à verdade (Foucault:2004:12-29)”. A distância entre o ‘conheça-se a si mesmo’ das filosofias da Antiguidade e dos séculos posteriores é imensa.

Eberhardt, educada na cultura clássica grega, indica a seleção da noção antiga, estoica, para a qual o ‘cuidado de si’ era central como se constata na leitura de Epíteto. Porém, não era somente entre filósofos que a noção era importante, o principio da necessidade de “ocupar-se consigo mesmo tornou-se, de modo geral, o princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que pretendesse, efetivamente, obedecer ao principio da racionalidade moral (Foucault:2004:12)”.

Tornou-se mesmo, por sua extensão e penetração, um fenômeno cultural de conjunto acredita Foucault. O princípio se refere a uma atitude geral, isto é,

“certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo [...] uma certa forma de atenção, de olhar para dentro de si mesmo [...] designa ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Daí uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história a cultura, da filosofia, da moral, da espiritualidade ocidentais) será bem longo. São, por exemplo, as técnicas de meditação, as de memorização do passado; as de exame de consciência, as de verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao espírito,etc.(Foucault:2004:14-15)”.

A prática de si devia não só formar, mas também, e principalmente, corrigir algo, um mal, que já estava lá. O relato que Isabelle faz ao amigo a partir do princípio estoico contempla, além de outros pontos que destacamos, a possibilidade de ajudá-la no trato com a “prodigiosa mobilidade de sua natureza”, como escreveu, que a incomoda, ou ao menos a intriga. O cuidado de si é forma de vida particular, distinta de outras vidas, não é lei universal válida para todos. “Implica sempre em uma escolha [...], isto é, uma separação entre aqueles que escolheram esse modo de vida e os outros (Foucault:2004:139)”. Retomando o registro de Eberhardt citado acima, percebe-se que o ‘conheça-te a ti mesmo’ como o entendeu tornou-a sujeito de enunciação de um discurso verdadeiro, como diz Foucault, não confessional, tentando encontrar-se através da arte de viver. 

Faziam parte dos exercícios do cuidado de si: o deslocamento do olhar e da curiosidade para os segredos naturais, para a história escrita por historiadores; retirar-se para o campo e contemplar um espetáculo calmo. Exercícios também eram feitos para a memória, ao caminhar, para poder se concentrar e decifrar-se (Foucault:2004:270). E a escrita, nos séculos I e II, já era parte integrante, e importante, dessas práticas, prolongando e reativando as leituras e se constituindo como elemento de meditação. Era preciso temperar a leitura com a escrita e vice versa; a leitura recolhe, então seria preciso disto fazer um corpus, e era a escrita assegurava a constituição de cada um. “De sorte que o exercício de ler, escrever, reler o que se tinha escrito e as anotações feitas, constituía um exercício quase físico de assimilação da verdade e do lógos a se reter (Foucault:2004:432)”.     Passou-se então para um regime que pretende que se saiba como dizer a verdade sobre si mesmo.

As anotações de Eberhardt que formam os Mes Journaliers não são uma autobiografia, não preenchem os critérios que a definem. Eles se aproximam mais da escrita de si como descrita acima. A começar pelo título: journalier em francês se refere ao pagamento a quem trabalha por dia (jour), por extensão, é o que se faz a cada dia. Ela não traça uma sequência linear dos dias, mas entremeia citações de outros autores, comentários, crônicas, pensamentos e sensações próprias e descrições de paisagens.

Cita seus autores favoritos: Baudelaire, Edmond Goncourt, Loti e Tolstoy, entre outros. Expressa lamentos, sofrimentos, jamais confissões, arrependimentos. Múltiplas figurações se cruzam, dialogam, há tensão entre os parágrafos através dos quais é possível perceber a constituição do sujeito através de práticas de liberdade, como na Antiguidade, e também sua gradual transformação através de estilos e preferências particulares.

Eberhardt perambulou pela escrita, pelos jogos de palavras assim como pelo deserto durante suas errâncias por regiões por onde sempre amou vagar, usando as vestes dos beduínos, suas roupas igualitárias. Nas mais de duas mil páginas que escreveu, ela deu voz aos pobres, aos que em geral não aparecem na literatura, aos apanhados entre duas culturas. Ela deixou entrar embriaguez, drogas, orgias; o cotidiano e experiências místicas. Porém, ela era também uma europeia, “estava tão cônscia do impacto da vida árabe sobre a sensibilidade europeia como estava do impacto do colonizador sobre os algerianos nativos (Kobak:2003:13)”. Esta “andrógina do deserto, amazonas do Saara, nômade coração de ouro, correspondia aos sonhos de Oriente que assombravam os europeus do começo do século XX (Kobak:1988:287)”.

Em seu itinerário singular, no entanto, foi também pioneira em vários campos como lembra Kobak. Por exemplo, foi a primeira mulher a escrever sobre o efeito sedutor, mas aniquilante, das regiões sul do deserto. Ela escreveu: “minha ideia de me dirigir para o deserto tanto para satisfazer minhas necessidades tanto de aventura como de paz exigiram coragem, mas foram inspiradas (Eberhardt:2003:74)”. Ela foi também uma das primeiras mulheres que se conhece a exercer a profissão de correspondente de guerra, quando acompanhou os franceses na campanha do Marrocos.

Durante sua vida Eberhardt atravessou inúmeras turbulências históricas, como o despertar da Rússia emergindo da autocracia czarista; a convivência com libertários; sentiu as tensões que opunham os europeus e os colonizados; a imposição da noção de progresso em uma única direção; a luta das nações contra o domínio estrangeiro. Mas sua verdadeira viagem, ao contrário de vários contemporâneos, foi uma aventura interior seguindo as errâncias externas, vagando pelas veredas da “geografia da mente” entre um eu e outro, um gênero e outro, indo “do mundo moderno ao antigo, da estreiteza mental e material aos grandes espaços, da culpabilidade à redenção, da angustia à paz. E também do mistério ao mistério (Kobak:1988:292)”.   

 

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Nota biográfica:

Norma Telles, bacharel em História pela USP, Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP onde foi professora entre 1978-2006. Pesquisadora independente trabalha a obra da escritora Maria Benedita Bormann que pode ser encontrada no site www.normatelles.com.br. Publicou Ronda das feiticeiras (2007), “Bestiários” (2008), “Escritoras, escritas, escrituras (2009)”, “A escrita como prática de si” (2009), “Retratos de mulher” (2010), “Memórias do fundo do poço” (2011).

 

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