labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet / décembre 2013  -julho / dezembro 2013

 

 

Dessubjetivando com Cindy Sherman

   Margareth Rago

 

Resumo: Esse texto explora os possíveis sentidos da produção de autorretratos da artista e fotógrafa Cindy Sherman, destacando a maneira pela qual põem em cena seu movimento de dessubjetivação, ao mesmo tempo em que acenam para uma crítica irônica e bem-humorada da cultura patriarcal, atingindo clichês e estereótipos sobre o corpo feminino promovidos pela mídia, pelo mercado e pelo Estado.

Palavras-chave: arte, feminismo, crítica cultural, dessubjetivação

 

Introduzindo

                                                                   Untitled Film Still n.21, 1978

A fotógrafa e artista Cindy Sherman, nascida em New Jersey (NY), em 1954, tornou-se mundialmente famosa por fotografar-se a si mesma em mais de cinco mil fotos. Em exposição apresentada no Museu de Arte Moderna - MOMA, em Nova York, em 2012, suas fotografias aparecem expostas em forma gigantesca, em um andar reservado a exposições temporárias, destacando-se, em primeiro plano, seu próprio corpo para expressar uma contundente crítica cultural de perspectiva feminista.

 

 Untitled 96, 1981

 

Em sendo sua própria modelo, suas inúmeras fotos visam paradoxalmente a questionar um mundo de crescente saturação visual, onde predominam representações tradicionais da feminilidade. Aeromoças, secretárias, jovens românticas, donas de casa eficientes, amantes, nobres, caçadoras, rainhas, boêmias, palhaços, socialites, são múltiplas as personagens que Sherman coloca em cena a partir das imagens do seu próprio rosto e corpo.

Untitled 458, 2007

 Mas não só de imagens românticas se constrói sua arte. Cenas de estupro, de mulheres violentadas ou mortas, valendo-se de manequins desfigurados e destroçados, expostos em meio a detritos, dejetos e líquidos repulsivos também compõem o vasto repertório dessa artista, que nos surpreende a cada imagem de si mesma.

Untitled 175, 1987

Com seus autorretratos fictícios, a artista traz ao debate questões contemporâneas fundamentais: dentre estas, opera a denúncia de um mundo em que o indivíduo deve apresentar-se na esfera pública sem emoções, sem cheiros e sem rosto, como avalia Sennett, em seu clássico livro O declínio do homem público: as tiranias da intimidade (1988). Nesse universo, as pessoas se tornam mais reservadas, inexpressivas e prudentes, atitude que, aliás, é recomendada especialmente às mulheres.  Sherman leva ao limite essa inexpressividade do indivíduo moderno, que busca proteger-se e dissimular as emoções e os sentimentos socialmente, mas que, ao mesmo tempo, é incitado a expor sua intimidade virtualmente e a inscrever-se num registro público não apenas por narcisismo ou exibicionismo, mas para poder existir num mundo da absoluta homogeneização do eu. Daí a proliferação do espetáculo de si, em nossos dias, do “show do eu”, em facebooks, blogs, orkuts, assim como do interesse pela privacidade do outro, como se constata em reality shows (Sibilia, 2008). 

No entanto, a avalanche de auto-imagens de Sherman, lançadas nos museus, revistas e outros espaços e cyberespaços, ao contrário de revelarem o próprio eu da fotógrafa, nada trazem de si. Aqui, ela é ninguém, é qualquer mulher, qualquer imagem construída, facilmente reconhecível e localizável. Seu trabalho artístico remete, portanto, aos paradoxos do individualismo da sociedade intimista ou “narcisista, em que a inexpressividade em público contrasta com a exigência de autenticidade do eu.

Especialmente forte é o contraste do ato de falar de si sem constituir uma narrativa autobiográfica, de produzir um eu fictício para expressar uma crítica social à identidade feminina e às representações dominantes do corpo feminino, valendo-se do próprio corpo, fazendo de si mesma a personagem central. Sem visar a um autodesvendamento ou a uma afirmação de si, ao contrário, dessubjetivando-se e irrealizando-se na proliferação de figuras femininas previsíveis e estereotipadas, e questionando o próprio uso da fotografia como representação fiel da realidade, Sherman manifesta, pela arte, suas críticas às formas culturais falocêntricas, e expõe suas próprias interpretações da contemporaneidade. Põe em cena as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres são trazidas na cultura, pela mídia, pelas artes visuais ou pelo cinema, e revela a natureza construída dessas representações. Todas as mulheres que encarna nessas fotos de si mesmas são caricaturas, às vezes, ridículas e grotescas, expressões dos estereótipos e da caretice de nosso mundo, especialmente quando visita os anos cinquenta, e revela o profundo tédio da vida consumista da classe média americana, algum tempo antes da eclosão da Guerra do Vietnã e do Civil Rights Movement. Essas imagens subvertem, produzem deslocamentos, denunciam as prisões identitárias, riem de nós mesmas.

Vale notar que seus autorretratos trazem figuras antigas, fora de moda, ou personagens decadentes, desfigurados, algumas vezes, monstruosos em suas máscaras sociais; utilizando a estratégia da mascarada, a fotógrafa afirma o exagero do feminino, performatizando a feminilidade, como observa Cottington (2005: 78). Por um lado, elementos como cabelos despenteados, batons borrados, sobrancelhas exageradas, sorrisos plastificados, dentes amarelados, roupas decompostas em expressões congeladas compõem personagens desencontradas e ultrapassadas; por outro, o recurso a objetos como os seios de plástico da Virgem-Mãe tem como efeito a dessacralização da maternidade, considerada essência definidora da identidade feminina ao longo de séculos. Com Sherman, o mundo se transforma num enorme museu, cujo inventário é posto à mostra. Sinal de envelhecimento das formas vigentes de ser, alerta de que é preciso transformar-se, reinventar-se e produzir novos modos de existência?

Untitled 299, 1994

Vale observar que, para dar conta dessas produções, ela assume também múltiplos papéis: modelo, ela é a própria fotógrafa, mas também a maquiadora, a cabelereira, a stylist, incumbindo-se de tarefas que faz questão de realizar sozinha, criando sofisticadamente uma miríade de personagens.

 

- uma paródia pós-moderna

É possível destacar vários momentos na produção de sua obra, desde o final dos anos setenta à atualidade. Inicia com a série “Untitled Film Stills”, em que jovens românticas, estudantes ou donas de casa aparecem em branco e preto, em espaços interiores, remetendo a cenas de filmes noir, ou a conhecidas imagens holliwoodianas. Passa, em seguida, a trabalhar suas fotos como retratos coloridos, compondo uma imensa galeria de tipos sociais femininos, não tão jovens – como a socialite, a intelectual, a filantropa, a bêbada, a aristocrata decadente, a caçadora, a louca -, até chegar à série em que se serve de manequins, bonecos de plástico ou outros objetos para produzir cenas tristes, pesadas e repulsivas, evocando violência sexual, estupro, desfiguração ou degeneração corporal, até chegar à imagem da própria morte.

Untitled #250, 1992

Untitled 153, 1985

Entre 1989-1990, quando vive na Itália, Sherman compõe seus “History Portraits”, isto é, um conjunto de trinta e cinco fotografias, em que parodia obras clássicas dos grandes mestres do Renascimento, do Barroco e de períodos posteriores. Segundo suas declarações, esse trabalho não se realiza a partir do estudo dos originais nos museus, mas sim a partir de reproduções. Diz ela,

“Quando estava fazendo esses quadros históricos, estava vivendo em Roma, mas nunca ia às igrejas e museus. Trabalhava a partir de livros, com reproduções. Esse é um aspecto da fotografia que aprecio conceitualmente: a ideia de que as imagens possam ser reproduzidas e vistas a qualquer hora, em qualquer lugar, por qualquer um.”[1]

Seja como for, suas fotos – que, para alguns críticos, estão mais para pinturas do que para fotografias, tamanha a elaboração artística envolvida em sua montagem -, revelam um conhecimento bastante grande da pintura dos grandes mestres da tradição europeia, como Piero della Francesca, Botticelli, Rafael, Rubens, entre outros. Nesse sentido, longe de desprezo ou crítica aos clássicos, suas releituras poderiam ser interpretadas como uma homenagem bem-humorada à tradição.

Aliás, esses trabalhos permitem pensar a relação que a fotógrafa estabelece com o presente e com o passado, já que, a meu ver, o recurso à paródia de obras clássicas  tem por objetivo “brincar” ou “jogar” com a tradição, interrogá-la produzindo efeitos de estranhamento, assim como lançar críticas feministas à cultura sexista que persiste na atualidade, mas que tem história.

                                

Cindy Sherman, Untitled#205, 1989                      Rafael, La Fornarina, 1518

                           

Cindy Sherman, Untitled  224, 1990       Caravaggio, O jovem Baco doente, 1591-3

Sabe-se que o retrato individual adquire importância no Renascimento, saindo das antigas moedas para os afrescos e quadros, à medida que se constitui uma noção de individualidade. Segundo o famoso historiador suíço Jacob Burckhardt (1898, 2012: 52), no século IX, por exemplo, nas miniaturas, mosaicos e relevos em marfim, em que eram representados papas e poderosos, o traje oficial e a inscrição que os acompanhavam eram suficientes para reconhecê-los, enquanto o artista raramente podia vê-los de perto. Conta ele que, segundo Vasari, é a partir do século XIII que, cada vez mais, os pintores italianos passam a se preocupar com a semelhança, procurando representar as pessoas de maneira mais reconhecível, mais próxima ao natural. Assim, Francisco de Assis é considerado o “homem cuja representação pictórica revela por primeiro a vontade de exprimir uma semelhança por si mesmo significativa”, na Itália (Burkhardt,1898/2012: 52). Muito cuidadoso com a imagem absolutamente individual e inclusive com a sua mesma num autorretrato, Giotto faz retratos de personalidades célebres, ao lado de um papa, que se torna o modelo exemplar do retrato na pintura italiana (Burckardt, 2012: 57).

Na contramão dessas referenciais conceituais, a paródia pós-moderna de Sherman desconstrói e desfigura o original, a partir da utilização de seu próprio rosto e corpo. Atravessando diferentes temporalidades e, ao mesmo tempo, mantendo a forte referência do modelo original, a artista exagera em alguns traços da aparência da personagem, transforma sua expressão facial, por exemplo, ao aumentar o volume da sobrancelha, alongar o nariz e a testa, ou ainda ao adaptar as vestimentas e os ornamentos produzindo efeitos, às vezes, cômicos ou de estranhamento em relação às imagens originais.

  Assim, vemos o alongamento do nariz em Untitled 211, releitura do quadro de Battista Sforza, de Piero della Francesca, ou em Untitled 226, na apropriação do retrato de Barbara Pallavicino, pintado por Alessandro Araldi. Sua ousadia e irreverência aparecem ao colocar um proeminente seio de plástico na Madona, em Untitled #216, remetendo à Madona com a criança, de Jean Fouquet, ou no Untitled 223, que retoma o quadro de Leonardo School, Madonna Litta (1490), ou ainda, em Untitled 225, ao carregar e desfazer a feição delicada da personagem Simonetta Vespucci, de Sandro Botticeli.

                   

                Jean Fouquet, Madona e a criança, 1450         Cindy Sherman, Untitled #216, 1989   

 

 

- sentidos

Quais os possíveis sentidos dessa produção exaustiva de autorretratos reconfigurados dos mestres da tradição italiana? É claro que desde muito antes, o desejo de ser imortalizado em obras artísticas se manifestara no Ocidente, mas nem sempre havia a preocupação com a semelhança, com o “retrato ao natural”, como indicamos, a partir das explicações de Burckhardt, tal como aparecerá na pintura italiana desde o Renascimento.

Já no trabalho estético e lúdico de Sherman, é de se perguntar pelos sentidos da desfiguração do rosto e da desnaturalização/desfiguração do corpo, se assim podemos chamar a utilização de seios de plástico na figura assexuada da Santa Mãe... Problematizando os possíveis sentidos da produção dos autorretratos dessa fotógrafa, destaco a maneira pela qual visam a uma crítica irônica à cultura patriarcal, investindo contra os estereótipos promovidos pela mídia sobre o corpo feminino e questionando  o lugar das mulheres e do feminino na sociedade. Nessa irrealização de sua própria subjetividade, nessa produção de si como um outro, ou, nesse movimento de dessubjetivação, também se poderiam ler as próprias inquietações e interpretações que a autora produz de nossa atualidade, sua “escrita de si”, na acepção foucaultiana, em que aparece uma Cindy Sherman radicalmente rebelde, insubmissa e debochada.

                             

                         Untitled 146, 1985

 

- subjetividade e política

Valeria ainda pensar na dimensão política dessas imagens        questionadoras da primazia do sujeito e das narrativas que evocam. A arte aparece como uma forma de crítica à cultura, de denúncia das formas de exclusão social e de confinamento e opressão das mulheres em determinadas identidades e papéis sociais, e revela a capacidade refinada de observação da fotógrafa. Como um meio de expressar sua interpretação feminista do mundo e subvertendo a noção de que a fotografia representa fielmente a realidade, ela é capaz de construir cenas teatrais ou pictóricas que aludem a um cotidiano prosaico e entediante, como o vivido pela dona de casa, a aeromoça ou a secretária dos anos cinquenta. Outros modos de subjetivação podem assim ser vislumbrados nessa contundente crítica à normatividade social imposta às mulheres.

 Destaco, finalmente, o elemento da volubilidade feminina lançado pelas repetidas imagens de si mesma, encarnando diferentes figuras de mulher, com as quais obviamente não se identifica. Como se sabe, a chamada inconstância das mulheres foi frequentemente interpretada, no discurso masculino, como um sinal de sua inferioridade moral, de sua incapacidade para tornar-se uma figura civilizada e, portanto, sedentária, isto é, atada desde sempre e para sempre a uma única identidade – a da mulher-do-lar-mãe-de-família-higiênica. Ora, é exatamente nesse ponto que Sherman provoca e desestabiliza, ao repensar a inconstância das mulheres na perspectiva feminista, revelando seus outros possíveis sentidos, como lembra Norma Telles, ao trabalhar com as escritoras do século XIX (2012). Esta autora propõe pensar a volubilidade feminina na chave do nomadismo deleuziano, como o que abre linhas de fuga, permitindo às mulheres “passar por toda uma gama de cores, movimento/reconhecimento de humores, de criação de imagens muda” (Telles, 2012: 256).

Cindy Sherman desafia radicalmente o imaginário cultural, denuncia a normatividade social que por tanto tempo impediu as mulheres de conhecerem-se e definirem-se a si mesmas, e também incide sobre os códigos masculinos da arte, surpreendendo de maneira original, criativa e alegre.

 

  BIBLIOGRAFIA

BURCKHARDT, J. 2012, O retrato na pintura italiana do Renascimento. Campinas, SP:   Editora da UNICAMP; SP: FAP-UNIFESP,

COTTINGTON, D. 2005 . Modern Art. A very short introduction. Oxford, New York: Oxford    University Press,

COLLADO, A. M, 1999. “La mujer y la seducción en el universo de la representación de la   década de los 80 y 90” in Asparkía nº 10,, pp. 73-85, Universidad Jaume I.

CRUZ, Amada; SMITH, Elizabeth A. T. 1977. JONES, Amelia. Cindy Sherman

  Retrospective. New York: Tames and Hudson,

DÖTTINGER, C. Cindy Sherman. History Portraits. Verona: Schirmer/Mosel, s/d

FABRIS, A. 2003 . “Cindy Sherman ou de alguns estereótipos cinematográficos televisivos”,   Rev. Estud. Fem., vol.11, no.1, Florianópolis, jan./jun

RESPINI, E. 2012 . Cindy Sherman. The Museum of Modern Art, New York,

SENNETT, R. 1988 . O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:    Companhia das Letras,

SHERMAN, C. 2005 . Working Girl. Contemporary Art Museum St Louis, Misouri,    Decade Series,

SIBILIA, P. 2008 . O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova   Fronteira,

TELLES, N. 2012 . Encantações Escritoras e imaginação literária no Brasil do    século XIX. São Paulo: Intermeios,

_____ 2006 . “As Belas e As Feras”, Labrys, estudos feministas, n.10, jun./dez.

http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys10/livre/belafera.htm

 WEST, Shearer. 2004 . Portraiture. Oxford: Oxford University Press,

 

>imagens aqui apresentadas forma extraídas do site

https://www.google.com.br/search?q=cindy+sherman+no+moma&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=

X&ei=dP5GUvvsIoq29gT0t4DYDQ&ved=0CC0QsAQ&biw=1600&bih=791&dpr=1. Acesso em 26 de setembro de 2013

 

nota biográfica

MARGARETH RAGO - professora titular do Programa de Pós-Graduação em História do IFCH da UNICAMP; professora-visitante na Columbia University, (NY), entre 2010-2011. Publicou: Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar (Paz e Terra, 1985, 1999); Os Prazeres da Noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930 (Paz e Terra, 1991, 2008); Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo (UNESP, 2001); Foucault, o Anarquismo e a História (Achiamé, 2004); A Aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade (Unicamp, 2013). Organizou as coletâneas: Paisagens e Tramas: o gênero entre a História e a Arte (Intermeios, 2013), com Ana Carolina A. de Toledo Murgel (Orgs); Foucault: para uma vida não-fascista (Autêntica, 2009), com A. Veiga Neto; Subjetividades Antigas e Modernas (Annablume, 2008), com Pedro Paulo Funari, entre outras. Com a Dra. Tânia Navarro Swain e Dra. Marie France Dépêche, edita a revista feminista digital Labrys, Estudos Feministas/Labrys, études féministes:  http://www.labrys.net.br/ Com o Dr. Pedro Paulo Funari, edita a revista digital AULAS da UNICAMP.

http://www.unicamp.br/~aulas/

  notas

[1] http://breadandcircusnetwork.wordpress.com/2007/07/

29/cindy-sherman-her-%E2%80%9Chistory-portrait%E2%80%9D-series-as-post-modern-parody/

 

 

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