labrys,
études féministes/ estudos feministas
Por um feminismo libertário : pode-se utilizar o pensamento de Foucault? tania navarro swain Resumo: Foucault é fonte de inspiração. Sua escrita, seus conhecimentos, seu manejo da linguagem, suas idéias libertárias exercem uma atração intensa. Mas é verdade que desperta temor : os defensores dos pré-conceitos, das verdades nas quais se apóiam para melhor dominar ou excluir, são os adversários ferrenhos de Foucault. Ele, porém, não se detém em suas invectivas pois não pretende ser mestre de ninguém, nem criar teorias construídas com o cimento das verdades. Palavras-chave: liberdade, feminismos,Foucault
Foucault nos fala de liberdade. Examina a construção das amarras que compõe o social sem, todavia, pregar soluções ou caminhos incontornáveis. No cadinho da instituições do social, suas análises se debruçam sobre as práticas discursivas que ultrapassam os limites codificados do tempo, dos séculos, das redes de sentido que se embaraçam em seus próprios fios. E a liberdade se perde nesta trama que enlaça vontade de poder, preconceitos, normas, exclusões. O que é uma prática discursiva, senão um conjunto composto pelo imaginário, pelos discursos, verdades, crenças, leis, normas, estereótipos, ciência? Detectar seus fundamentos em uma configuração cientifico -social e os valores que a regem, é uma tarefa eminentemente política. Trata-se de auscultar a construção das relações sociais, em termos de liberdade e direitos Decodificar os nós que ligam o passado ao presente, encontrar as condições de produção da ordem do discurso vigente àquele momento, da circulação de verdades e seus sentidos, esta é uma das empreitadas que Foucault propõe. É o que faz a genealogia : buscar a eclosão dos saberes obscurecidos por um situação geral de forças sociais e pela interpretação que dobra à sua vontade o fio dos acontecimentos e de seus significados. Foucault assim se exprime: « Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub-recepção de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção [...] a genealogia deve ser a sua história: história das morais, das ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou de vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de faze-las aparecer como acontecimento no teatro dos procedimentos.” (Foucault, 1988 :26) Uma vez fundadas, entretanto, as categorias apresentam-se enquanto verdade e a arqueologia de Foucault não é senão a metodologia que permite desvelar sua aparição em configurações diferentes, cujo alcance é outro. Desta forma, para ele, nos discursos se encontram as fontes para tal análise, pois “[...] o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte onde ronda uma obra possível toma para si a função de autor [...] todo este jogo de diferenças é prescrito pela função autor, tal como a recebe de sua época, tal como , por sua vez, ele a modifica.” (Fouvault, 1971 :31/21) As experiências que compõem o vivido da construção do indivíduo no social estão claramente imbricadas nesta formulação. As identidades e os papéis sociais são engendrados da mesma maneira: as condições de possibilidade indicam as maneiras de ser no mundo, nos corredores estreitos das normas e dos estereótipos ou na liberdade do movimento e da criatividade. A questão da verdade é fulcral nesta perspectiva, pois são os enunciados “verdadeiros” que determinam o grau de liberdade social. É de fato o desejo de poder que controla a produção e a circulação de enunciados enquanto verdades incontestáveis e a retomada de enunciados, e para Foucault, lhes assegura um caráter de verdade. É o caso das tradições, religiosas ou de costumes, da história, da antropologia, que utilizam categorias universais ou idéias pré-concebidas como base de suas narrativas. Tais como a dominação universal e atemporal do masculino sobre o feminino. A reaparição de um enunciado em novas configurações do saber carreia novos sentidos o e a genealogia para Foucault procura estes significados, apagando a continuidade dos pressupostos enraizados. “ O sempre foi assim”. Entretanto, se as configurações sociais mudam, os poderes podem se reconstituir e de novos significados criar novas exclusões e regras limitadoras da liberdade, assim como aumentar sua dominação sobre o mundo, humano e não humano. Ora, esta retomada de enunciados dá-lhes um caráter axiomático e sua afirmação reiterada tem o papel de fundamento. Muitas vezes a tradição invocada impõe o silencio às vozes dissidentes e as apagam da memória social. É assim que um quadro de pensamento se forma e se instala, se institui em leis e normas como evidentes, como emanações da natureza. É assim também que se formulam em política, por exemplo, categorias como a direita e a esquerda que se disputam a posse do bem e rejeitam sobre o outro a sombra do mal. Entre o “nós”! e o “eles” se perfila a disputa pela verdade e a restrição das liberdades de expressão e de opinião. Com freqüência a tradição invocada impõe o silencio às vozes dissidentes e as apagam da memória social. De fato, uma ditadura de esquerda, como nos países comunistas- entre os quais Cuba- ou uma ditadura de direita, militar ou fundamentalista- sem esquecer as ditaduras religiosas, étnicas, em sua produção de verdades, criam campos de concentração, tanto físicos quanto ideológicos e mentais. Neste caso, de fato, não há direita ou esquerda, há apenas a imfâmia. (cité NO dans 14/2/2013-n 2519, L´étrange mansuétude, Fabius) Penso aqui em Yoana Sanchez, dissidente cubana, cuja palavra foi seqüestrada em sua visita ao Brasil, uma democracia, sob pretextos obscuros e vergonhosos que sopravam o fétido odor das ditaduras cegas do pensamento. Num país democrático, assim, é tolerada e incentivada uma partilha entre os que podem e os que não podem se expressar? Isto é um movimento conhecido de arbítrio e de imposição de silêncio aos que não pensam segundo certos cânones estabelecidos. Desde quando uma ditadura histórica como a de Cuba não pode ser criticada, ao menos por respeito às vítimas de perseguição e aprisionamento nesta ilha? Foucault também foi impedido de falar, foi mandado para longe, fora da França, pois suas aulas sacudiam a ordem do discurso estabelecido. Seus livros foram ignorados durante longo tempo pela inteligentsia , imersa no pântano de suas certezas e de seu poder de julgar, de comandar. Atualmente, novas configurações do saber deixa-nos ouvir sua voz, que fala de liberdade. Liberdade de expressão é um princípio que não pode obedecer aos interesses de grupos que pretendem esconder o totalitarismo lá onde ele se manifesta. O ato de apagar, de retirar a palavra, de impor o silencio é a imagem de um poder organizado de controle, que se exerce e contra o qual se insurge Foucault. Assim, a liberdade é vigiada, mesmo nos países democráticos e é pela crítica que os indivíduos podem agir no sentido de aperfeiçoar as configurações de saber e poder, nas quais são constituídos. A liberdade, de fato, é um bem maior da vida e as análises de Foucault esteiam esta proposição. Liberdade de ser, de viver, de se expressar, de se construir enquanto indivíduo, de escolher seus caminhos, de trabalhar, de viajar sem coerções. Toda forma de pensamento que exclui não apenas a diferença, mas também a dissidência cria quadros de poder totalitários, dobrando às exigência da “verdade” toda forma de criatividade e de subjetivação, sob ameaça e terror. Da mesma maneira, os direitos fundamentais das mulheres sobre seus corpos, dos direitos cívicos dos “diferentes” são negados diante do referente humano geral: o macho heterossexual branco, criado para melhor discriminar, explorar e excluir. O estupro, esta praga social maciça, é cada vez mais denunciada por sua vítimas o que talvez desperte a consciência desta intolerável violência: isto significa que uma mudança está se produzindo na ordem do discurso androcêntrico, já que este crime era sempre silenciado, graças à condescendência de uma sociedade masculina, crente em seu direito “natural” de apropriação das mulheres e seus corpos. Um manifesto foi assinado na França por 313 vítimas de estupro em 2012, seguido de centenas de manifestações que denunciavam as exações sofridas em todas as idades e consumadas por desconhecidos, mas sobretudo por homens da família ou próximos a ela. (NO 29-5/12/2013n.2508 p.56) Da mesma forma, o estupro institucionalizado e incentivado nas guerras, da antiga Iugoslávia ao Ruanda e à RDC, não despertam reações internacionais: para um milhar de vítimas na Síria são mobilizadas a opinião e o repúdio internacional. Afinal, trata-se apenas de mulheres violentadas, torturadas, massacradas, apesar de seu número atingir centenas de milhares. Assim, Foucault nos interpela para a crítica do social, e é o que fazem os feminismos, tão denegridos pelos que se sentem ameaçados em seus poderes de possuir e dominar. O crime de lesa majestade do qual acusa-se Foucault é portanto de por em jogo a natureza do saber e suas ingerências nas práticas discursivas, entre outras o político lato sensu. Pois, segundo ele, o solo sobre o qual se apóiam os regimes de verdade não é senão uma criação temporal e histórica. E esta é também uma proposição feminista. Foucault analisa aquilo ao qual era tabu fazer alusão. Mostra as fraquezas e os limites das ideologias desviadas pelo desejo de poder e de verdade. Pois, no fundo, todas as teorias sociais, religiosas ou políticas pregam um caminho único, a salvação pela cega adesão às determinações seja de um partido, de uma crença ou de um raciocínio, todos marcados pelas condições de produção variáveis e freqüentemente reconduzidas. Não é ocioso falar de condições de produção, pois o pensamento, assim como os atos materiais estão mergulhados em uma rede de sentidos que se instituem e são por eles instituídos, em uma coreografia de possibilidades que resulta em uma configuração social dada. O poder, diz Foucault, não provém de um só e único ponto. Define-o como sendo « [...] um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado.» (Foucault, 1988: 248) E este é o caso do patriarcado, poder masculino de apropriação de tudo que é considerado ou associado ao feminino e que se converte à medida das conquistas de direitos das mulheres, continuando assim a dominar. Foucault se interroga : « [...] no fundo, será que o sexo, que parece ser uma instância dotada de leis, coações, a partir de que se definem tanto o sexo masculino quanto o feminino, não seria ao contrario algo que poderia ter sido produzido pelo dispositivo da sexualidade?” (Foucault, 1988:,259) É este tipo de crítica que, pelo seu poder de destruir as evidencias e os sentidos fixos, traz mudanças na ordem do discurso. É em torno da desnaturalização dos sexos, isto é, da desconstrução discursiva / social de uma pretensa “natureza” humana que os feminismos contemporâneos insistiram e sacudiram os regimes de verdade estabelecidos. A filosofia, a psicanálise, as ciências biológicas, sociais, as religiões fizeram do sexo a matéria do bem e do mal, do superior e do inferior, daquele que fala e daquela que deve ser mantida em silêncio. Uma vez estabelecida a “natureza” não é difícil argumentar sobre esta base, pois o saber histórico, temporal, transmuta o transitório e pontual em verdade incontestável. Eis aí uma face do bio-poder ao qual se refere Foucault, que cria, “na carne” as instancias de dominação. Monique Wittig detecta as condições de produção da divisão binária do humano que ela denomina « la pensée straight » , ou seja, “o pensamento heterossexual” como base das relações humanas de maneira a- histórica. Isto se torna sistema onde as práticas discursivas agrilhoam o pensamento à seu fundamento : o “natural”, baseado sobre os órgãos genitais. Um sistema portanto político pelo seu alcance social e econômico na divisão do trabalho e na importância atribuída ao humano dividido em dois. Diz ela: Pois estes discursos fornecem da realidade uma versão científica onde os humanos são dados como invariantes, intocados pela história, não atingidos pelos conflitos de classe, com uma psique individual idêntica por ser programada geneticamente” (Wittig,, 1980::46) E acrescemta : « Tendo sido posto como princípio evidente [...] a relação inexorável da pensée straight se dispõe a uma interpretação totalizadora da história, da realidade social, das culturas e das sociedades, da linguagem e de todos os fenômenos subjetivos”.(idem, 49) Em suam, estes saberes construíram as idéias de “natureza”, e de “essência” dos seres humanos segundo os valores, os enunciados da tradição, recobertos de uma nova cor, segundo as condições de produção e de possibilidade de seu tempo e de sua memória. Mas a procriação permanece como o valor maior que ordena a relação heterossexual como sendo a verdade do humano. Ocasião para fazer do masculino o centro do universo. E reter a liberdade das mulheres quanto a seu corpo, seu destino, suas aspirações. Foucault analisa, deste modo, as tecnologias que dão ao sexo e à sexualidade um valor e um sentido, como se fosse o núcleo e a base da existência, onde a heterossexualidade teria direitos irrevogáveis. A luta contra o casamento gay que deu ocasião a manifestações enormes no início do ano na França ( março / abril 2013) é um exemplo significativo. Adrienne Rich comenta, neste sentido : “ Mas a incapacidade de ver na heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas que constitui o racismo são mantidos por um conjunto de forças, que compreendem tanto a violência física quanto a falsa consciência” (Rich, 1981 :31-32 ) Teresa de Lauretis, outra referencia teórica feminista, analisa as tecnologias de gênero que instauram as divisões sociais e estabelecem os lugares de fala e de ação dos indivíduos segundo o valor atribuído a seu sexo biológico.. Para Foucault, a criação e o controle dos corpos sexuados pelo biopoder produziram a figura da “população”, cujo objetivo era de preservar a vida: entretanto, na atualidade, o frenesi pelo sexo enquanto instancia maior da vida não faz senão instalar a morte como meio maciço de controle. Rosi Braidotti considera que o bio-poder, assim como a necro-política são atualmente as duas faces da mesma moeda: não é a racionalidade e a universalização da noção de direitos humanos, mas um exercício do poder que é “[...] a soberania irrestrita do direito de matar, estuprar e destruit a vida de outrem. » (web, 2013, labrys ) Isto seria a necro política em um esquema de globalização. Para esta autora, “Globalização é relativa à militarização do espaço tecnológico e social. É também a respeito da globalização da pornografia , do tráfico e da prostituição de mulheres e crianças, num comércio brutal da vida humana. È igualmente sobre a feminização da probreza e do crescente aumento do analfabetismo feminino, assim como o desemprego estrutural de amplos setores da população, especialmente jovens. (Braidotti, 2013,Web,labrys), labrys) Braidotti estima assim que : “Tendo em vista que a política econômica do capitalismo global consiste em multiplicar e distribuir diferenças para o benefício do lucro, isto produz vagas de genderização e sexualização, racializaçaõ e naturalização de múltiplos “outros”.(Braidotti, 2013,Web,labrys), É assim que a necro política gera a morte de uns para melhor assegurar a dominação de outros, graças a um movimento sinérgico que estrutura o exercício do poder. Disto decorre que a opressão do patriarcado sobre as mulheres se encontra reforçada e a violência torna-se um meio maciço de controle, como o estupro apregoado enquanto arma de guerra. A categoria « população » segundo a autora se compõe em múltiplos grupos sob diferentes denominações, refugiados, terroristas, rebeldes, manifestantes ou “normais”. As guerras étnicas são fratricidas e levam às vezes à verdadeiros genocídios como em Rwanda nos anos 1990, ou na Iugoslávia, ou a exterminação de milhões de pessoas no pós guerra em campos de concentração soviéticos e chineses. Era e é ainda a morte ideológica gerida pela fome, pela guerra, pela prisão. A necro política é finalmente uma guerra civl global, como sublinha Braidotti. (idem) As configurações atuais desta necro política, com o patriarcado como ponto de apoio, inauguram um uma inversão de gênero quanto à crimes e abusos . É assim que se explora os raros casos de violências cometidas por mulheres como sendo atos comuns e corriqueiros, com o objetivo de criar uma partilha das responsabilidades sociais na brutalidade que devasta o mundo. Além disto, os traços maléficos ou perversos atribuídos ao feminino pelos discursos religiosos, científicos, pela mídia, retomam um vigor inesperado pois, finalmente, se as mulheres são mortas ou violentadas é bem culpa delas mesmas, de sua “natureza”. Mentira, traição, luxúria, provocação, são traços habitualmente colados às mulheres mas que agora aparecem no imaginário social em papéis ativos de violência e abuso. Temos aqui o dispositivo da sexualidade retomado pelo patriarcado e a necro política para assegurar aos homens o poder e o dever de corrigir as mulher por todos os meios, feminicídio, estupro, ácido, mutilições múltiplas. O aborto seletivo que elimina os fetos femininos na China criam um desequilíbrio entre os sexos que hoje é estimado em torno de 100 milhões de mulheres a menos que o habitual nos nascimentos. E isto representa hoje um mercado imenso, pois os chineses compram mulheres nos países vizinhos, principalmente no Vietnam. Mais lucro para os exploradores e dos homens. Na Índia, além do aborto seletivo, as meninas nascem nos prostíbulos e são criadas como futura carne a consumir, sem mencionar a venda das mulheres no mercado do casamento. O etnogenocídio toca em primeiro lugar as mulheres : as revoluções que exigem direitos humanos esquecem ou seqüestram os direitos das mulheres, tais como as “primaveras árabes”. No Egito, as manifestações de rua eram ocasião para o estupro coletivo das mulheres que acreditavam poder reivindicar também seus direitos de cidadania. Os jornais no Brasil pouco mencionaram este fato. Onde foi parar a indignação ? Foucault nos convida a mudar os regimes de verdade. E a lutar pela liberdade. É um desafio aceito pelos feminismos, os verdes os anti especistas. Mudar a face do mundo, é pensar um outro mundo. Talvez sem gêneros, em que o sexo não seja definidor de importância e de valor. Um mundo livre.
Referências Michel Foucault . 1988 Microfísica do poder. RJ: Graal ________ 1971,L´ordre du discours, Gallimard:Paris Nouvelle Observateur, 29-5/12/2013, n.2508 p.56, Paris Nouvelle Observateur, Laurent Fabius L´étrange mansuétude,14/2/2013,-n 2519, Paris Monique Wittig. La pensée straight, Questions féministes, 7, février 1980, Paris: éditions tierce Adrienne Rich. Nouvelles Questions féministes ,mars 1981, éditions tierce, Paris Rosi Braidotti. (web, 2013, labrys, estudos feministas, études féministes,n.23 www.labrys.nte.br
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