labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014

 

"Eu sou um pouco psicóloga”: práticas da psicologia e outros saberes.

Ana Paula Müller de Andrade

 

Resumo:

Este artigo discute a produção de práticas psicológicas desenvolvidas por mulheres brasileiras, pertencentes às classes populares, que articulam saberes da psicologia com outros saberes para fazer frente as interpelações da dita “epidemia da depressão”.  Para tanto, analisa os dados de uma etnografia realizada nos anos de 2010 e 2011, nas cidades brasileiras de Joinville-SC e Barbacena-MG assim como em Torino, Trieste e Gorizia na Itália. As questões gravitam em torno da interface saúde mental e gênero e partem do reconhecimento de um saber-fazer desenvolvido especialmente por mulheres, identificado por elas como uma prática da psicologia, traduzido pela expressão: “eu também sou um pouco psicóloga”.

Palavras-chave: psicologia, feminismos, mulheres, classes populares

 

Nos últimos anos, em vários países do mundo, têm crescido os enunciados que estabelecem a depressão como um dos males contemporâneos.  A OMS tem chamado atenção também para o que define como uma dimensão epidêmica da depressão, o que é reforçado pelas estimativas de que os males de natureza depressiva atingem cerca de 120 milhões de pessoas no mundo, numa subestimativa que levaria as depressões a assumirem o segundo lugar nas causas de morbidade no mundo industrializado, na próxima década (Godoy apud Kehl, 2009:51). Tem se observado que a dita depressão parece acometer mais mulheres do que homens, o que é revelador de modos de subjetivação que instituem sofrimentos e formas de buscar alívio para os mesmos, como apontam os estudos de Sônia Maluf e Carmen S.Tornquist (2010) e Valeska Zanello e Ana Paula Andrade (2014).

Neste artigo não irei aprofundar todas as facetas da chamada “epidemia da depressão”- elas são muitas e complexas - mas pretendo discutir como ela tem disparado processos terapêuticos que combinam saberes que se aproximam tanto do campo da psicologia (como um saber-fazer contemporâneo) quanto dos feminismos. Tal discussão levará em conta as pesquisas que desenvolvi nos últimos anos em torno da interface saúde mental e gênero e que me levaram ao reconhecimento de um saber-fazer desenvolvido especialmente por mulheres, identificado por elas como uma prática da psicologia, traduzido pela expressão: “eu também sou um pouco psicóloga”.

Para as discussões aqui apresentadas, tomei como referência a análise dos dados de uma etnografia realizada nos anos de 2010 e 2011 nas cidades brasileiras de Joinville/SC e Barbacena/MG, no Brasil assim como em Torino, Trieste e Gorizia na Itália. Tal etnografia teve como objetivo fazer uma análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira a partir do ponto de vista das “usuárias” e “usuários” dos serviços de saúde mental, levando em consideração as articulações entre a política pública em torno da saúde mental e as configurações de gênero, apresentada em Andrade (2012).

No desenvolvimento do trabalho de campo etnográfico, muitas vezes me deparei com interlocuções em que mulheres se diziam “um pouco psicólogas”, especialmente em situações cotidianas onde se viam diante de demandas alheias que exigiam uma atitude “diferenciada”. Tais interlocuções se deram com mulheres que frequentavam ou já tinham frequentado os serviços de saúde mental criados a partir da aprovação da política  nacional de saúde mental - traduzida pela reforma psiquiátrica brasileira - e, por isso, tinham uma aproximação com os saberes psis. Contudo, como veremos, no exercício de ser “um pouco psicólogas” não se utilizavam exclusivamente destes saberes, mas os articulavam com outros, de caráter gendrado.

Vale dizer que o conjunto das pessoas que participaram da pesquisa eram mulheres e homens, adultas/os, pertencentes as classes populares que, não fossem os serviços de saúde mental criados desde o início da reforma psiquiátrica no país, estariam em sua maioria internadas nos hospitais psiquiátricos. Muitas delas eram egressas dos mesmos, outras, por razões diversas, ainda eram eventualmente internadas nos hospitais psiquiátricos existentes. Outras nunca tinham sido internadas em hospitais psiquiátricos e frequentavam ou já tinham frequentado os serviços de saúde mental.

Como recurso metodológico, foram utilizadas as narrativas. Tal opção se baseou na possibilidade de compreender o processo de produção das mesmas a partir das intensas transformações que ocorreram desde o início da reforma psiquiátrica brasileira e pensar em como esse contexto e suas circunstâncias contribuem para a construção das mesmas. Além disso, privilegiou-se um diálogo estabelecido horizontalmente, em que os discursos “nativo” e “científico” tivessem o mesmo estatuto e onde preponderasse o caráter relacional e reflexivo.

Colocar as coisas nestes termos significou que, no exercício do diálogo, buscou-se estabelecer uma relação em que tanto a “pesquisadora” como as/os “nativos” se tornassem iguais, ou seja, estabelecessem uma relação de igualdade.

“[...] a relação que se impõe entre as partes envolvidas no processo cognitivo, de monológica passa a ser dialógica, alterando a própria prática da chamada entrevista com a transformação do pesquisador e de seu informante em interlocutores” (Cardoso de Oliveira, 2006:67)

Assim, minhas interlocuções com tais pessoas pretendiam buscar elementos necessários para realizar uma análise crítica da reforma psiquiátrica a partir das experiências que elas haviam vivido ou viviam no campo da saúde mental. No conjunto destes elementos e a partir da experiência de algumas mulheres com quem conversei, vi emergir a prática de “ser um pouco psicóloga” que pretendo discutir aqui.

Ouvi diversas vezes expressões como: “eu também sou um pouco psicóloga”, “com ele tem que ser assim, um pouco psicóloga”, “quando vejo que tá ruim,  sou um pouco psicóloga”, dentre outras que faziam referência às relações estabelecidas por tais mulheres no âmbito familiar, conjugal e social. Quando questionadas sobre o que seria ser “um pouco psicóloga” articulavam os saberes psis com concepções variadas de sujeito, corpo e relação com/no mundo, marcadas por uma lógica muito mais sociológica do que biológica.

Assim, o que guiará minha argumentação é o reconhecimento de um discurso frequente entre as mulheres, presente em minhas experiências de pesquisa, que articula lógicas distintas daquelas que regem os serviços de saúde mental e que dão sentido às experiências de mulheres interpeladas especialmente pelos enunciados da dita “depressão”. 

Práticas da psicologia e outros saberes.

Tal como apontado por Cristina Vianna e Glaucia Diniz (2014), a psicologia, desde sua institucionalização como ciência e profissão no Brasil, esteve marcada por seu compromisso com os interesses das elites e pela valorização de abordagens individualistas e descontextualizadas.  Contudo, dada à pluralidade de práticas e teorias que a compunham, não se isentou de assumir seu compromisso com a transformação social do país no final dos anos 70, momento em que o país vivia seu processo abertura política e democratização.

O contexto político, social, cultural da época fez emergir a psicologia social, que mesmo importada dos Estados Unidos, como sugere Robert Farr (1998), teria assumido na América Latina uma visão peculiar, tendo em vista os problemas que foi levada a examinar e a necessidade de produzir rapidamente transformações na realidade observada, através de dispositivos psicossociais de intervenção. (Campos e Guareschi, 2000:111) Para tanto, se desenvolveu a partir de aportes teóricos que partiam de uma concepção de ser humano como produto e produtor de sua realidade histórico-social (e o materialismo histórico dialético ditava as discussões) e apontava para a necessidade de superação da dicotomia indivíduo/sociedade.

Um bom exemplo do engajamento da psicologia neste momento no Brasil foi o protagonismo de muitas/os de seus profissionais no âmbito da saúde pública, especialmente no processo da reforma psiquiátrica brasileira. Tal processo, concomitante ao da reforma sanitária, colocou no centro de suas propostas uma concepção ampliada dos processos de saúde e doença, compreendidos como processos históricos, culturais e multideterminados e a ideia de que seria o sujeito e não a doença que deveria ser o centro das práticas de/em saúde/saúde mental. 

Neste sentido, provocou uma reorientação na assistência psiquiátrica no país, através da constituição de uma rede de serviços abertos e territoriais, o que garantiu o acesso das pessoas a serviços mais próximos de suas residências. Outro desdobramento deste processo foi o que Adriano Aguiar (2004) denominou de ambulatorização da psiquiatria, que estaria associado ao aumento dos diagnósticos psiquiátricos e da medicamentalização de boa parte das demandas das pessoas que acessam tais serviços.

Uma outra discussão importante neste sentido foi feita por Sérvulo Figueira (1988). No texto em que discute a difusão da cultura psicanalítica entre as classes médias urbanas, na realidade brasileira e inglesa, Figueira argumenta que na realidade brasileira a intensa e extensa difusão da mesma configurou um dialeto que opera de duas maneiras.

“a)através de um modo de entender a “natureza do homem”, isto é, através de um eidos psicanalítico que gera processos cognitivos estandardizados ou conceitos e lógica para o pensamento; b) através de uma ordenação da experiência com base neste entendimento da “natureza do homem”, isto é, através de um ethos psicanalítico que gera ênfases emocionais entandardizadas[...[” (Figueira, 1988:134)

É interessante pensar se o contexto da reforma psiquiátrica, em que a ampla discussão e também difusão sobre as questões referentes à “saúde mental”, aliada à proposta de transformação cultural pode ter, de alguma maneira, instituído um certo dialeto que opera nas vertentes apresentadas por Figueira (1988), estipulando maneiras de perceber, ou seja, uma lógica para o pensamento e também uma determinada ênfase na sintomatologia, tal como descrita pelo modelo biomédico que caracterizaria o ethos deste contexto e que atingiria também as classes populares.

Na discussão que fez sobre “[...]o uso da linguagem ou dialeto médico também entre as mulheres de classes populares, que caracterizaria uma mudança significativa na percepção dos sofrimentos entre estes setores” Sônia Maluf (2010:24) argumenta que em contraponto a um modelo fisicalista, em geral presente nas políticas públicas, as mulheres destas classes articulariam outras dimensões de suas vidas, que a autora chamou de uma sociológica das narrativas. Conforme a autora:

“O que estou denominando aqui como uma sociológica da narrativa das mulheres pesquisadas é sua dimensão que vai além de concepções de corpo, pessoa e doença, abrangendo dimensões sociais e históricas de sua aflição e mal-estar.” (Maluf, 2019:44 [grifo da autora])

Não são poucos os grupos e outras atividades que ocorrem nos serviços de saúde e que instituem modos de falar de si e reconhecer as experiências no campo da “saúde mental” além é claro dos livretos, folhetos e outros materiais de divulgação que auxiliam na difusão deste modo de lidar com tais experiências e que, de alguma maneira, instituem modos de pensar, sentir e falar sobre elas. Não foi só através da expressão “eu também sou um pouco psicóloga” que pude perceber isso, mas em outras situações em que as mulheres falavam de suas experiências a partir da lógica biomédica, ainda que articulada com outras lógicas que em geral diziam respeito aos seus contextos socioculturais.

Contudo, se a lógica biológica/biomédica é parcialmente incorporada e articulada com outras, os sentidos produzidos nas práticas desenvolvidas são diversos. As práticas ganham novos significados através dos quais se aproximam do contexto cultural em que emergem.  A expressão “eu também sou um pouco psicóloga” é significativa neste sentido e demonstra como um conjunto de conhecimentos e práticas, de diferentes ordens, se apresenta como referências importantes nas práticas cotidianas das mulheres.

Juliana, uma interlocutora, ao contar sobre suas experiências de internações em hospitais psiquiátricos e de sua passagem pelos serviços abertos de saúde mental, disse:

“vou te dizer... assim ó... eu sei que esses negócios aí da cabeça da gente vem e vão embora. Se a gente se incomoda em casa, o marido briga, os filhos incomodam aí eles [os negócios da cabeça] vem. Depois, se a gente conversa, assim... entende isso aí que eles vem, fica melhor. Elas daqui [se referindo as outras mulheres que estavam no serviço]...eu já falei isso pra elas...já falei com elas...eu sou um pouco psicóloga delas aqui também.” (Fragmento de diário de campo).

A expressão utilizada por Juliana e outras mulheres, mostra como elas acionam diferentes lógicas - que localiza a aflição na cabeça (que se aproxima da lógica biológica), mas também nas relações das mulheres com o mundo, o que inclui o marido e os filhos (que se aproxima de uma lógica sociológica) - para o entendimento e alívio de seus sofrimentos, assim como para oferecer auxílio às outras pessoas.

Maria Lúcia da Silveira (2000), em seu trabalho sobre os nervos entre as mulheres de um bairro da cidade de Florianópolis - SC mostra como a adoção da linguagem social pela via dos “nervos”, não se reduz a uma categoria nosográfica, mas se apresenta como elemento mediador das relações sociais e relacionado às inúmeras experiências das mulheres. Para a autora, existiriam muitas limitações do modelo biomédico no âmbito da assistência à saúde, em especial, no que se refere à apreensão de uma categoria cultural importante como os nervos.

Os nervos, tal como apresentado por Luis Fernando Duarte (1988), traduzem um modelo que abarca uma série de perturbações físico-morais e abrange diferentes dimensões da vida dos sujeitos, especialmente entre as classes populares urbanas do Brasil. O modelo dos nervos estaria atravessado pelos valores e concepções próprios desta cultura, pelas ideias que tem de perturbação, normalidade, que não podem ser considerados culturalmente apenas como físico ou apenas como moral (no sentido amplo do termo), como diz o autor.

Além disso, Silveira (2000) demonstrou como a questão dos nervos é traduzida na sua dimensão relacional e sociocultural, no sentido de que se apresenta como um elemento mediador das mulheres nas suas relações cotidianas na comunidade que pesquisou, alegando que

“Na sua multiplicidade de apresentações, usos e finalidades, pude compreender os casos dos nervos entre as mulheres do Campeche como atos ou cenas representativas de crises dentro dos dramas sociais que se desenvolvem a custa de situações relacionais, as quais demandam formas coletivas de resolver ou de reequilibrar o grupo social envolvido.“(Silveira,2000:89)

Segundo Paulo Alves e Iara Souza (1999), é no domínio das redes sociais, constituídas pelos sujeitos que é possível reconhecer como se articulam várias estratégias sobre aquilo que entendem fazer parte de seus tratamentos, em que o modelo biomédico passa a ser apenas mais uma possibilidade de interpretação.  Para os autores

"Uma imagem acerca de um tratamento [e as razões para o mesmo] tem um caráter fluido, pois não é inteiramente formada pela adesão dos sujeitos a um certo modelo interpretativo, e sim construída dentro das relações sociais. São justamente essas redes sociais, constituídas ou mobilizadas nos episódios de aflição, que servem de referência para os indivíduos e, portanto, sustentam e confirmam elaborações de imagens relacionadas a determinados tratamentos." (1999:135)

Assim, ao perceber que haviam muitos itinerários terapêuticos bem como muitos significados atribuídos as experiências de sofrimento, foi possível compreender como as mulheres criam linhas de fuga sobre prescrições advindas do modelo biomédico, através das quais escapam, subvertendo ou aderindo parcialmente seja a um regime psiquiatrizante de subjetivação e, assim, produzindo novos significados para suas experiências com o sofrimento, próprio ou alheio, seja rompendo com concepções que tendem a naturalizar e/ ou hormonizar seus sofrimento.(Andrade, 2014a)

Também foi possível perceber que nos processos desencadeados pela reforma psiquiátrica brasileira, há uma articulação de certos regimes de subjetivação (dentre eles, o gênero) que possibilitam - ou não - rupturas com os lugares hegemonicamente instituídos aos loucos e as loucas, ou seja, aos homens e mulheres que tem suas experiências no campo da saúde mental.

 

Eu também sou um pouco psicóloga

O caráter relacional e reflexivo presente na expressão “eu também sou um pouco psicóloga” é significativa no contexto das pessoas com quem conversei e demonstra que é nas relações estabelecidas entre as pessoas envolvidas no processo da reforma psiquiátrica, que vão se constituindo outras possibilidades de experimentar e se relacionar com a “loucura” e se constituir “um pouco psicóloga”.

Algumas possibilidades parecem aproximar-se do caráter provisório, sempre incerto da formação do sujeito, como sugeriu Judith Butler (1997), rompendo com o que seriam os processos de substancialização e ontologização bem como, do que sugeriu esta autora fazendo referência ao proposto por Giorgio Agamben, de que:

“Existe efetivamente algo que os seres humanos são e tem que ser, mas não se trata de uma essência nem propriamente de uma coisa: se trata do simples fato da própria existência como possibilidade ou potencialidade.” (Butler,1997:145)

Outras possibilidades também parecem viáveis se entendermos o caráter complexo da subjetividade, que não se submete plenamente aos modos de subjetivação homogeneizantes. E se, de fato, a homogeneização nunca funciona totalmente e se a (nem tão) simples existência como potencialidade e possibilidade estejam dados a priori, talvez seja possível pensar em maneiras diferentes de considerar a (des)razão, de construir uma noção de sujeito e de conceber a subjetividade

“[...]como o conjunto das condições que tornam possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como Território Existencial auto-referencial, na adjacência ou na relação de delimitação com uma alteridade em si mesma subjetiva.”(Guattari, 1990:7)

Estas possibilidades/potencialidades foram apresentadas por Peter Pelbart (1993), que sugere ser necessário, no trabalho com práticas de saúde mental, apostar no potencial de desterritorialização entendido como

“[...]esse poder secreto e admirável de embaralhar os códigos, subverter as regras do jogo e transpor ou deslocar os limites, sempre de outro modo, seja através de um devir-bicha, de um devir-negro, de um devir-nômade ou de um devir-louco, e ora assumindo um rosto estranho, ora ameaçador, sacrílego, herege, criminoso ou delirante." (idem:104)

Tal como discuti em Andrade (2014b) se sobre as mulheres pesam os desdobramentos de concepções relacionadas a um suposto “sofrimento feminino”, são elas que estabelecem em suas experiências sociais movimentos de ruptura e resistência que subvertem esses regimes hegemônicos de subjetivação que tendem a capturá-las, ou como mulheres, ou como loucas, ou como mulheres loucas. São tais mulheres que subvertem a prescrição de “loucas” e passam a ocupar o lugar do/a prescritor/a já que são “um pouco psicólogas também”.

“Ser um pouco psicóloga” diz respeito ao fato de que os lugares de fala e de escuta, que configuram a conversa “diferenciada”, são circulares e compartilhados, e em geral se referem a experiências sociais comuns, nas quais um dia “a psicóloga” pode estar angustiada (precisando de escuta) e no outro, pode assumir a função de escutadora. A conversa, tão cara a quem dela necessita, pode possibilitar o alívio da angústia, tendo, assim, um valor terapêutico.

Um aspecto importante neste sentido é apontado por Gilles Deleuze (1996), a partir da ideia de Michel Foucault de que o sujeito é uma variável, ou melhor, um conjunto de variáveis de enunciado. O sujeito é um dos lugares possíveis no contexto da enunciação. Como diz Deleuze (1996:63):

“Objetar que existem enunciados ocultos é apenas constatar que há locutores e destinatários variáveis segundo os regimes ou as condições.”

No decorrer da pesquisa foi possível compreender que a identificação do sujeito com esse indivíduo enunciado em diferentes práticas discursivas não ocorre sem que sobre tais enunciados se produzam algumas resistências. Foucault (2009[1979]) havia argumentado que

“[...] o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças.” (Foucault, 2009[1979]:161 e 162)

O sujeito tal como entendido nas sociedades complexas ocidentais contemporâneas, ainda que entendido como a construção de um sujeito individualizado, não se trata de um sujeito acabado, uma vez que, mesmo que sujeitado a, como proposto por Foucault (1995), tal sujeição se dá em relações complexas de poder que estão diretamente relacionadas com relações estratégicas.

Para Foucault, são tais relações que permitem que se vislumbrem as estratégias de poder como um conjunto de meios operados para fazer funcionar ou manter um dispositivo de poder. Nestas relações de poder estão implicadas estratégias de luta e resistência. Em certo sentido, Foucault sugere que para compreender as relações de poder talvez devêssemos analisar as formas de resistência destas/nestas relações.

O fato de ser “um pouco psicóloga” resiste ao entendimento de um sujeito substancializado, já que parte do entendimento de que o auxílio dispensado se dá sobretudo na relação estabelecida entre duas ou mais pessoas e não somente sobre o entendimento/ reconhecimento e desvelamento da  psique do outro, mas sobretudo pelas possibilidades potencializadas pelo encontro de alguém que fala e outro que escuta. Trata-se, assim, de um encontro intersubjetivo, cotidiano, localizado em um determinado contexto e caracterizado por uma escuta diferenciada e qualificada, não pela especialização de um saber, mas pela qualidade da relação estabelecida.

Ao produzir esta resistência ao instituído, tal prática poderia ser pensada tal como proposto por Conceição Nogueira (2013), como uma psicologia feminista, que ao contrapor-se a uma perspectiva essencialista assume o gênero como uma construção social e

“[...] aspira à promoção de uma disciplina aberta à mudança, que valorize e promova a igualdade e a justiça social entre grupos e indivíduos e que seja ativa na insistência para o bem-estar quer de homens quer de mulheres de todos os grupos, o que pode conseguir.” (Nogueira, 2013:223,224)

A escuta qualificada, relacionada a uma compreensão das demandas trazidas por outras mulheres dizem respeito mais a uma condição localizada em determinado contexto e circunstância do que a uma condição natural, hormonal, ainda que essa seja a concepção predominante por parte dos profissionais.  Tal escuta também se relaciona aos desdobramentos de uma determinada configuração de gênero, presente no contemporâneo, que faz pesar sobre as mulheres práticas e discursos que vão desde a sobrecarga de trabalho (triplas jornadas) até a ideia de que elas seriam mais vulneráveis às desordens da ordem do mental.

Ao discutir o que denominou como uma sociabilidade feminina, Soraya Simões se referiu as mulheres da Cruzada São Sebastião como

“ [...] hermeneutas da convivência nesse justo sentido: ao escutarem os pequenos dramas cotidianos das que as visitam e colocarem em circulação, na oralidade praticada em suas cozinhas, suas medidas a propósito de cada tema, elas as conduzem à apreciação de um novo quadro diferente daquele presente, motivo de suas angústias e inquietações.” (Simões, 2009:63)

Para Simões (2009), a eficácia terapêutica da “conversa” se baseava, sobretudo na confiança depositada na interlocutora que, em geral, possuía uma lógica regida por credos e pela fé e também no reconhecimento da narrativa como uma possibilidade de identificação de problemas e seu reestabelecimento.

O reconhecimento de uma prática psicológica exercida por mulheres das classes populares já havia aparecido durante a etnografia realizada na cidade de Florianópolis, apresentada em Andrade, Monteiro e Tornquist (2010). No contexto daquela pesquisa encontramos várias referências ao trabalho do/a psicólogo/a como uma profissão conhecida das mulheres e buscada como apoio nos momentos difíceis. A psicóloga apareceu ali como uma personagem dedicada a ajudar as pessoas que estão passando por momentos difíceis, escutando o que o sujeito tem a dizer e buscando razões para o sofrimento, aspecto no qual se diferenciaria dos médicos, cujo trabalho – também valorizado naquele contexto – se resumiria à prescrição de remédios.

Uma das interlocutoras daquela pesquisa acreditava ter descoberto o segredo da psicóloga . Para ela o segredo estava em escutar a história inteira, permitindo que a narrativa se desenvolvesse até o final pela narradora, ao contrário das conversas com suas amigas, as quais, apesar de a escutarem, a interrompiam muitas vezes, interceptando sua fala com outras perguntas, opiniões, demandas e, sobretudo, “aligeirando” sua narrativa.

Se por um lado, a experiência compartilhada pelas amigas permite a conversa e esta é importante no alívio da angústia, por outro lado, esta se coloca em geral como truncada, se diferenciando, por isso, da escuta psicológica. Também observamos que esta teoria que chamamos de terapêutica local aparecia em outros relatos e acentuava a importância da conversa com as amigas. A conversa, tão cara a quem dela necessita, segundo as mulheres, pode possibilitar o alívio da angústia, tendo, assim, um valor terapêutico.

Tal como apresentado “o/a psicólogo/a aparece como um personagem dedicado a ajudar as pessoas que estão passando por momento difíceis, escutando o que o sujeito tem a dizer e buscando razões para o sofrimento.” (Andrade, Tornquist e Monteiro (2010: 103) Pode-se perceber, neste sentido, que ao lado da capacidade de narrar/contar/compartilhar com outras pessoas as próprias angústias, está a capacidade de ouvir e acolher a angústia alheia por parte das mulheres. O desejo de contar/narrar/compartilhar parece relacionar-se com a “plurificação da capacidade do sujeito de ordenação de práticas sociais e psíquicas” (Bezerra, 2001), ambas permeadas pelas noções e teorias sobre a angústia e suas terapêuticas por parte da comunidade.  

Soraya Fleischer, Carmen Tornquist e Bartolomeu Medeiros , atentam para a importância da dimensão popular nos estudos de saúde, por entenderem que

“[...] grande parte do repertório das práticas e dos conhecimentos terapêuticos não oficiais mantiveram sua vitalidade e relevância, seja em termos de resistência ativa, como os movimentos e lutas que atravessam a história da homogeneização da biomedicina, muitos deles de cunho religioso (Foucault, 1982), seja nos processos de persistências mais fluidas e sutis, porém bem eficientes, que têm circulado entre outros grupos sociais, além dos subalternos.” (Fleischer, Tornquist e Medeiros (2009:13) “

Luis Antonio Baptista também destaca:

“[...] a relevância das pequenas invenções tecidas na cotidianidade como práticas micropolíticas; micro não no sentido de menor, mas indicando uma outra dimensão da luta política; a micropolítica dá-se num campo de forças onde insurgem fatos menores, banais, questões desprezíveis, desacomodando idéias ou modelos alheios ao inacabamento e à contingência das práticas humanas.” (Baptista, 1999:117)

Entendo que o reconhecimento dessas práticas micropolíticas, exercidas por mulheres em seus cotidianos, em suas relações sociais, familiares, conjugais e singulares, é necessário para refletir sobre os efeitos da produção de conhecimento da psicologia e dos processos de transformação nos quais ela tem se engajado.

Considerações finais:

Existe - como era de se esperar em um processo complexo como o da reforma psiquiátrica brasileira - uma multiplicidade de saberes e fazeres que tem consolidado espaços de abertura e resistência aos saberes instituídos até então e, assim, demonstrado a possibilidade e a necessidade do redirecionamento da assistência psiquiátrica no país. (Andrade, 2010 e 2014a)

A prática de “ser um pouco psicóloga” entre as mulheres, além de representar a multiplicidade de significados e itinerários terapêuticos possíveis nos processos de sofrimento, demonstra o potencial de ação, subversão e resistência das mesmas frente a regimes hegemônicos de subjetivação tais como fazem supor o crescimento dos enunciados de depressão e, até mesmo, uma suposta epidemia.

Frente às interpelações advindas destes enunciados, tais mulheres fazem deslocamentos importantes para a subversão de concepções naturalizantes, ontologizantes ao se imporem como prescritoras, escutadoras e “um pouco psicólogas”. Acionam, em tais deslocamentos, saberes próprios da psicologia, mas também saberes outros, produzidos em suas experiências de vida que, não raro, exigem o enfrentamento de sofrimentos de toda ordem.

Assim, tais mulheres ao se identificarem como “um pouco psicólogas” protagonizam processos reconhecidos como terapêuticos, seja para outras pessoas como para si próprias. A terapêutica é constituída de uma atitude diferenciada e de uma escuta qualificada, cuja importância maior está na qualidade da relação e menos na especialidade do saber.

“Ser um pouco psicóloga” é reconhecer-se como sujeitos relacionais, é resistir e subverter concepções que tendem a subjugá-las, naturalizando seus sofrimentos e desconsiderando o contexto dos quais eles emergem e nos quais buscam auxílio.  Nesse sentido, “ser um pouco psicóloga” é contribuir para o debate e a produção de saberes no campo dos estudos feministas e de gênero.

 

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ZANELLO, Valeska e ANDRADE, Ana Paula Müller de (orgs). 2014. Saúde Mental e Gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba: Editora Appris.

Mini biografia:

Pós doutoranda na Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, com doutorado sanduíche na Università degli Studi di Torino – Itália (2012). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Contemporâneo - Transes, da Universidade Federal de Santa Catarina, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT/CNPq) e do Grupo de Pesquisa de Saúde mental e Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pelotas. Tem experiência e atua na área de Saúde Mental, Gênero, Modos de Subjetivação, Psicologia Social, Desinstitucionalização e Reforma Psiquiátrica.

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juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014