labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014

 

 A psicanálise apesar de Freud: uma releitura feminista ainda necessária

Patricia Porchat e  Beatriz Barbosa Fejgelman

 

 

Resumo:

A teoria psicanalítica freudiana acerca da sexualidade feminina gera até hoje desconforto em seus leitores. Uma releitura dessa teoria sob uma perspectiva feminista ainda se faz necessária e pode ter como estímulo a posição política de Judith Butler quanto à necessidade de aproximar a psicanálise, as teorias de gênero e os movimentos sociais. Destaca-se na problemática do complexo de Édipo nas mulheres, o complexo de masculinidade e a homossexualidade feminina, a atividade ou passividade das mulheres e a sua curiosidade sexual infantil. As repostas das psicanalistas Melanie Klein e Karen Horney a esssas questões são examinadas. Reitera-se a importância de fazer chegar à psicanálise no Brasil o enorme percurso já feito por psicanalistas francesas, inglesas e americanas.

Palavras-chave: psicanálise; feminismo; sexualidade feminina; complexo de Édipo

 

 

Em resposta à pergunta sobre a necessidade atual de ser feminista, considerando que não temos uma única identidade e que podemos transitar de um grupo a outro, de uma comunidade a outra e nos engajarmos em diferentes movimentos, Judith Butler afirmou que se considera feminista, pois há ocasiões em que a linguagem da identidade é importante e necessária para marcar um certo tipo de posição junto a outras pessoas. (Porchat, 2010: 162).

Butler enumera como situações que demandam a afirmação de uma identidade feminista a luta para que não haja mais discriminação econômica contra as mulheres, a luta pelo fim da desigualdade ou da hierarquia de gênero, pelo fim da violência contra as mulheres e pelo fim de

“[...]concepções profundamente arraigadas sobre quais são as fraquezas das mulheres ou sobre a capacidade das mulheres na esfera pública, além de tantas outras". (Porchat, 2010:162).

Afinal, posições de poder e de privilégio e segurança econômica  alcançadas por algumas mulheres não suplantam o sofrimento vivido por inúmeras outras, que experimentam variados níveis de pobreza, de escolaridade, de humilhação e de violência.

Se o raciocínio de Butler é correto, acreditamos que o meio psicanalítico é um espaço que demanda uma identidade feminista. Ora, isso ocorre menos pela desigualdade na hierarquia entre os gêneros no interior de instituições psicanalíticas, ou por algum tipo de discriminação econômica nos honorários de psicanalistas, mas por aquilo que as teorias de Freud e Lacan ainda geram de interpretações que permitem a manutenção de posturas e atitudes discriminatórias em relação às mulheres.

De maneira geral, Butler se posiciona como alguém que agencia um encontro entre a psicanálise e movimentos sociais mais amplos, políticas culturais e questões relativas às comunidades LGBTI. Preocupa-lhe a resistência desses grupos à psicanálise, que a consideram uma forma de regulação social normatizante, bem como a resistência de muitos psicanalistas ao mundo exterior, como se acreditassem estar trabalhando de modo autônomo num campo da psique completamente separado da realidade externa.

Ora, que a psicanálise possa contribuir para que os movimentos sociais possam compreender melhor o que é a identidade ou o desejo, conceitos que lhes são caros, sobre isso não temos dúvida. Que a psicanálise possa fornecer uma crítica vigorosa da normalização e da regulação social, proporcionar uma teoria da fantasia que mostre como o  poder social toma forma na psique e que, ainda, coloque em questão o corpo natural, sobre isso muitos psicanalistas engajados numa perspectiva de transformação social certamente concordam.

Mas sobre a necessidade de se dizer feminista no interior do movimento psicanalítico, a ponto de transformar definitivamente a maneira como se pensa a relação entre os gêneros,  a insuficiência ainda é o que mais se destaca. O silêncio ainda se faz escutar, paradoxalmente, talvez seja o elemento mais revelador.

Psicanalistas como Luce Irigaray, Julia Kristeva e Juliet Mitchell  tentaram há algumas décadas subverter os rumos da psicanálise buscando introduzir uma perspectiva que desse destaque à desigualdade entre os gêneros e seus efeitos na própria teoria psicanalítica. A obra de Mitchell foi saudada como uma grande contribuição ao debate feminista acerca das teorias freudianas, pois denunciava a cultura do patriarcado na apresentação assimétrica da masculinidade e da feminilidade. Irigaray, por sua vez, apostava na existência de uma subjetividade feminina diferenciada e em diferenças de linguagens entre homens e mulheres, tese que sustentou em seu doutorado acerca da diferenças sexuais e que marca sua ruptura com Lacan.

Por último, Kristeva é considerada peça chave no feminismo francês juntamente com Simone de Beauvoir, Hèléne Cixous e Luce Irigaray, embora também seja considerada como uma pensadora polêmica para o feminismo norte-americano e anglo-saxão. Certamente não é sua contribuição na luta pelos direitos das mulheres que a torna respeitada enquanto teórica no Brasil, mas sim enquanto uma pensadora da lingüística, da constituição subjetiva da criança, da abjeção e da melancolia. Irigaray jamais foi traduzida para o português e Mitchell pouca repercussão teve em terras tupiniquins. Cabe perguntar, então, de que modo o feminismo atingiu a psicanálise no Brasil? O que ecoa desse encontro? Á primeira vista, parece que muito pouco.

A presença de Judith Butler no cenário mundial como uma pensadora das teorias de gênero que promove um encontro com a psicanálise, pode ser um estímulo para reacender esse debate.  No entanto, sua crítica inicial dirigida a determinados conceitos freudianos e lacanianos, como o falo, o simbólico, a diferença sexual e a concepção de parentesco, como podemos observar em Problemas de Gênero, Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left e em Undoing Gender (Porchat, 2014), transformaram-se num grande projeto de aproximação entre sua teoria de gênero e aspectos da psicanálise que podem vir a sustentá-la.

É o que vemos acontecer em Giving na account of oneself,  quando Butler aborda a narrativa de si no contexto transferencial. Nesse espaço em particular é onde vemos se manifestar a incoerência existencial do sujeito como produto de sua constituição a partir de um outro que o inunda e subjuga com impressões  enigmáticas. (Butler, 2005:70). Lembremos que já em Problemas de gênero Butler adota como paradigma para se pensar o que é gênero, as transexualidades, os transgêneros e as travestilidade ou, como diz ela, identidades que escapam de uma matriz de intelegibilidade. (Butler, 1990/2003:39). Mas pode ser interessante aqui acompanharmos brevemente a proposta de Butler, pois a narrativa de si é uma espécie de desmontagem do gênero e a revelação do outro como condição de nossa existência. Isso não é sem conseqüências na autopercepção das mulheres.

 

Trabalhando em psicanálise

A existência do sujeito a partir do “outro” dos significantes enigmáticos refere-se à teoria do psicanalista Jean Laplanche para quem não há um Outro no sentido simbólico, como teorizou Lacan, mas apenas os vários outros que constituem o conjunto de cuidadores adultos na vida de uma criança (Butler, 2005:70). O significante nomeia aquilo que do inconsciente nos determina. Ele resiste ao significado e passa a deslizar de modo metonímico ou metafórico, determinando atos, palavras e o destino do próprio sujeito. É o elemento primordial do discurso para a psicanálise. Ao usar a teoria laplanchiana da sedução generalizada, que introduz a idéia de significantes enigmáticos, Butler confere ao inconsciente e à linguagem um lugar de destaque na constituição do sujeito, na relação intersubjetiva e na determinação de aspectos fundamentais, individuais e sociais.

Na teoria de Laplanche, o efeito sobre a criança, ou melhor, sobre o bebê, daquilo que ele escuta sem exatamente entender, mas que lhe é endereçado, é o que tentará abarcar com a proposta de um abuso da linguagem (Laplanche, 1988).

Butler enreda a teoria dos significantes enigmáticos à questão do reconhecimento. Parte  do princípio de que ao falarmos de reconhecimento recíproco, trata-se, antes de mais nada, de um reconhecimento baseado na cegueira parcial acerca de nós mesmos, naquilo que nos torna opacos para o outro. O reconhecimento de nossa incoerência em nossa narrativa é o que dá condição de não exigir coerência do outro, de escapar à violência dessa exigência.

Pode-se então reconhecer e ser reconhecido somente sob a condição de estar desorientado acerca de si mesmo, ter falhado em alcançar uma identidade pessoal. O reconhecimento é pela ausência de identidade. (Butler, 2005: 70).  Ela se pergunta quem é este Eu e que condições tanto este Eu como o sujeito que acolhe sua narrativa, o analista, têm de saber algo a respeito da opacidade e da incoerência do analisando. (Butler, 2005: 76).

Analisar-se é desfazer o eu e reconstruir os limites que condicionam a nossa fala. Narrar é performar um ato que pressupõe um outro. Assim como gênero, narrar é relacional. (Butler, 2005:81). A imposição de ser homem é uma norma estabelecida a partir da relação que existiria entre homens e mulheres. A imposição de ser mulher é, justamente, não ser homem. Desfazer o gênero é a condição para perceber-se singular numa relação de alteridade imposta, mas igualmente perceber o outro como condição de nossa existência.

O que acontece em uma análise? Butler parece fazer uma apologia da situação transferencial psicanalítica (de certas psicanálises), pois esta legitima a ininteligibilidade do sujeito e, por extensão, deve ou deveria legitimar a ininteligibilidade de gênero. O ato performativo encontra na situação transferencial o campo da inteligibilidade e, portanto, de reconhecimento. A transferência é declarada por Butler como uma prática ética porque suporta a ininteligibilidade do inconsciente. (Butler, 2005:55). A transferência parece um dos lugares primordiais para a apresentação do sujeito estrangeiro a si mesmo. Esse estrangeiro é o outro que nos habita. O que emerge na transferência é então um resíduo de uma situação primitiva de ter sido esmagado antes mesmo da formação do inconsciente e das pulsões. O que em nós é incoerente, indizível, subversivo (no caso de gênero) vem, finalmente, do outro. É a partir dele que nos constituímos, é a ele que nos dirigimos, e é na impossibilidade narrativa, na incapacidade de articulação completa e de domínio de si, que nos reconhecemos (Butler, 2005: 71).

Como vimos, Butler se distancia de uma crítica feminista à psicanálise tradicional para nela encontrar uma teoria da constituição de um sujeito que sempre será desconhecido para si, guardando uma potência de subversão, inclusive das normas de gênero. Não acreditamos, entretanto, que a situação transferencial por si só, específica da psicanálise, seja geradora de um movimento que venha a transformar as relações entre homens e mulheres.

Tomando emprestado o que disse a própria Butler acerca da identidade feminista, sejamos feministas na psicanálise pois há ainda, especialmente no Brasil, atitudes que devem ser revistas, principalmente quando sustentadas em pressupostos teóricos tomados como inquestionáveis. (Porchat, 2010: 62).

 

Fazendo a psicanálise trabalhar

 Num dos poucos trabalhos que encontramos nessa direção, destacamos o de Mara Lago que busca mapear o debate entre feminismo e psicanálise, elencando variadas autoras e seus diferentes pontos de vista. (Lago, 2010).  No entanto, trata-se de um empreendimento solitário, embora relevante na medida em que aponta caminhos para serem aprofundados se quisermos realmente transformar o cenário psicanalítico brasileiro.

Para ser feminista e permanecer na psicanálise é preciso fazer trabalhar a teoria a nosso favor. Acreditamos que um ponto de partida ainda frutífero para essa empreitada, ao menos em relação à teoria freudiana, é tomar como disparador o célebre texto de Gayle Rubin –  O Tráfico de Mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo  e, a partir dele, reler Freud.

Rubin descreve como a sexualidade humana passa a ser um produto econômico e debate a posição do sexo feminino na sociedade. Ao retomar criticamente a elaboração do complexo de Édipo feminino descrito por Freud, destaca a fase pré-edipiana em que as crianças eram descritas como bissexuais.

Seu primeiro argumento é o de que se as crianças são psiquicamente indistinguíveis, a diferenciação entre os sexos masculino e feminino não é dada, mas sim explicada às crianças. A perspectiva de um determinismo biológico certamente não era o que Freud defendia e Rubin bem o reconhece. Não obstante, Rubin tira as conseqüências da construção social presente na obra do psicanalista. Com isso, propõe que a divisão por gênero é socialmente construída, e não necessariamente tem ligação com o sexo anatômico, pois seria possível ensinar como agir de acordo com um gênero, ou seja, pode-se ensinar como ser masculino, tanto aos meninos como às meninas. Esta idéia torna claro o que Freud muitas vezes tentou esclarecer: que as mulheres ou as meninas, não se enquadram, necessariamente, no gênero feminino e assim não podem ser usadas como sinônimos deste.

A seguir, ao analisar a fase pré-edipiana, Rubin aponta algumas críticas ao  desenvolvimento “supostamente natural” das meninas na direção da heterossexualidade:

"Particularmente, as características da menina pré-edipiana desafiam as idéias de uma heterossexualidade e identidade de gênero primordiais. Já que a atividade libidinal na menina estava dirigida à mãe, sua heterossexualidade adulta tinha que ser explicada.(....) Além do mais, a menina não manifestava uma atitude libidinal “feminina”. Já que o seu desejo pela mãe era ativo e agressivo, seu acesso final à “feminilidade” tinha também que ser explicado "(Rubin, 1975/1993: 14-15).

Rubin questiona a heterossexualidade imposta socialmente, já que para Freud a primeira relação de objeto das meninas é homossexual, e portanto destrói a hipótese de que a heterossexualidade seria algo inato ao ser humano. Indaga, ainda,  a dualidade de Freud ao destacar que a relação da menina com a mãe, na fase pré-edipiana, é ativa e agressiva, enquanto menciona a “natureza” feminina como sendo vinculada à passividade. Freud não explicou como ocorre a repressão dos elementos “masculinos” da libido de modo a tornar a menina feminina e de natureza passiva.

Rubin sugere que “Se a lésbica pré-edipiana não fosse confrontada pela heterossexualidade da mãe, ela poderia extrair conclusões diferentes a respeito do status relativo dos seus genitais” (Rubin, 1975/1993: p.15), ou seja, se não fosse o controle social da heterossexualidade, poderíamos compreender melhor as escolhas libidinais das meninas. Freud teria elaborado o complexo de castração e a inveja do pênis para explicar a aquisição da “feminilidade” e com isso enfureceu as feministas.

Sobre o modo como Freud “constrói” as mulheres, diz Rubin:

Se a fase edipiana evolui normalmente e a menina “aceita sua castração”, sua estrutura libidinal e a escolha de seu objeto agora estão de acordo com o papel do gênero feminino. Ela se tornou uma mulherzinha – feminina, passiva, heterossexual.” (Rubin, 1975/1993: 47).

 Além desse caminho, considerado normal, e da possibilidade de “enlouquecer”, reprimir a sexualidade e tornar-se assexuada, resta protestar, apegar-se a seu narcisismo e desejo, e se tornar ou “masculina” ou homossexual. Elas não podem  simplesmente ser “mulheres”.

Reler Freud com os olhos de Rubin levou à investigação sobre o   desenvolvimento da sexualidade infantil na menina. Acompanhando  as evoluções na obra freudiana desta temática entre os anos 1905 a 1933, três questões se destacam: a questão da homossexualidade feminina ligada à inveja do pênis, a oposição entre  atividade  e  passividade  -  que  é  muitas  vezes  ligada  aos  gêneros masculino e feminino - e a relação entre a curiosidade sexual infantil descrita e o desconhecimento da vagina pela menina pequena.

Essas três questões, como veremos adiante, aglutinam o desconforto de algumas psicanalistas mulheres que, a partir de uma escuta diferenciada tornada possível pela especificidade de seu gênero, direcionam críticas e reelaboram a teoria de modo a restaurar às mulheres uma condição mais interessante na psicanálise.

Essa investigação abrange desde o texto inaugural de Freud sobre a sexualidade infantil: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, publicada em 1905, passando pelo período de apresentação do complexo de Édipo masculino e feminino e alcança, finalmente, a reelaboração da sexualidade feminina a partir de críticas já dirigidas a Freud por Melanie Klein e Karen Horney na década de 1920, quando sugerem a existência de uma forte relação entre a menina e a mãe anterior ao complexo de Édipo.

Façamos aqui uma breve apresentação do complexo de Édipo feminino em Freud, abrangendo os textos principais que tratam desse assunto, entre 1923 e 1933, de modo a organizar posteriormente nossos comentários: o complexo de Édipo feminino, diferentemente do masculino, depende do abandono pela menina do objeto original, a mãe, para tornar o pai seu novo objeto. Para explicar essa mudança de objeto, Freud volta à pré-história da relação edipiana feminina e da descoberta da zona genital. Essa descoberta é, para ele, ocasional e a masturbação, a princípio, não está vinculada às relações objetais.

Freud cria então hipóteses dos motivos para a desilusão da menina com a mãe, como, por exemplo, quando a mãe deixa de lhe dar leite, ou por outros desapontamentos e proibições de prazer impostos à filha. Essa teoria falha, pois o sentimento de falta e incompletude em relação à mãe ocorre também com o menino e este a mantém como objeto apesar destes fatores. Assim, foi necessário buscar um fator específico que fizesse a menina abandonar seu vínculo com a mãe. Esse fator para Freud é o complexo de castração.

As meninas responsabilizam sua mãe pela falta de pênis nelas e não a perdoam por terem sido, deste modo, colocadas em desvantagem”. (Freud, 1931/1996: 124).

 

A menina se sente injustiçada e passa a ter inveja do pênis, o que para Freud, marcará seu desenvolvimento e até a formação de seu caráter de forma permanente.

"A menina castrada sente uma ferida narcísica por sua incompletude que resulta em um sentimento de inferioridade. Ela então, troca sua hipótese de não ter um pênis por causa de uma punição pessoal, de que ela não foi merecedora do pênis, e passa a compreender que esse é um caráter sexual universal. Passa a desprezar o “sexo inferior”, assim como os homens, e inveja a posição deles. Ou seja, a menina, para Freud, desloca a inveja do pênis por ciúmes geral dos homens, querendo ser um deles."(Freud, 1925/1996:282).

O desejo de ter um pênis da menina se transforma, posteriormente, no desejo de ter um filho, tomando assim, o pai como novo objeto de amor e a mãe como objeto de ciúmes. Com isso, Freud conclui uma grande diferença da função do complexo de castração com relação ao complexo de Édipo nas meninas e nos meninos. Enquanto, nos meninos, o complexo de castração destrói o complexo de Édipo, nas meninas ele introduz ao complexo de Édipo. Essa diferença se justifica, pois supostamente o complexo de castração inibe a masculinidade e incentiva a feminilidade.

Por fim, Freud supõe que o complexo de Édipo feminino deve ser lentamente abandonado e reprimido ou seus efeitos podem persistir durante a vida mental normal das mulheres. Diferente dos homens, nas mulheres não há um processo rígido de internalização da instância paterna para a criação do superego. Isso, para Freud, explicaria uma divergência quanto ao senso ético dos sexos, no qual as mulheres teriam maior dificuldade de separar a razão da emoção. Pode-se ver isso em sua fala:

"Os traços de caráter que críticos de todas as épocas erigiram contra as mulheres – demonstram menor senso de justiça que os homens, que estão menos aptas a submeter-se às grandes exigências da vida, que são mais amiúde influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de afeição ou hostilidade – todos eles seriam amplamente explicados pela modificação na formação de seu superego que acima inferimos." (Freud, 1925/1996: p. 286)

Após examinar os aspectos destacados, retornaremos à questão do superego, para a qual Melanie Klein encontrou uma solução à altura do comentário freudiano.

 

Homossexualidade  feminina e inveja do pênis

No primeiro de seus três ensaios sobre a sexualidade, Freud descreve as pessoas invertidas, que teriam como objeto uma pessoa do mesmo sexo. (Freud, 1905/1996) Divide os invertidos em: absolutos (sempre foram invertidos), anfígenos (tem como objetos ambos os sexos) e ocasionais (dentro de determinadas situações tornam-se invertidos). A inversão não é de caráter totalmente inato, tendo certo caráter adquirido. E chega à conclusão de que explicar a inversão apenas por seu caráter adquirido não é suficiente, assim como não apenas pelo seu caráter inato.

Freud procura entender os diferentes posicionamentos apenas dos invertidos masculinos. Eles se dividem entre os que tentam se aproximar de uma posição mais feminina (desde semelhanças físicas até atributos anímicos) e os que são mais viris, mas que têm o primeiro tipo como objeto sexual, alguém do mesmo sexo, porém com atributos femininos. Tenta, assim, sempre manter uma complementaridade entre opostos feminino e masculino. A inversão feminina é menos elaborada por Freud. Ele descreve apenas que as invertidas ativas exibem características somáticas e anímicas de homem e anseiam por um objeto sexual feminino, deixando claro que seria necessário um conhecimento mais estreito para revelar uma variedade maior de invertidas.(Freud, 1905/1996:138)

A pouca exploração da homossexualidade feminina é notada também no Fragmento da análise de um caso de histeria, texto publicado no mesmo ano dos Três Ensaios, em 1905. Neste texto, Freud relata a análise de Dora, uma menina de dezoito anos que supostamente seria apaixonada pelo marido da amante de seu pai, Sr. K. Porém apenas após o termino da análise, Freud cogita que Dora na verdade gostava da Sra. K (amante de seu pai e sua grande amiga e confidente). Com relação a essa hipótese de um amor homossexual de Dora, Freud declara ser um caso muito comum na adolescência, logo antes de um primeiro amor por um homem, mas também acentua que:

"Nas mulheres e moças histéricas cuja libido sexual voltada para o homem é energicamente suprimida, constata-se com regularidade que a libido dirigida para as mulheres é vicariamente reforçada e até parcialmente consciente." (Freud, 1905b/1996: 38)

Além desse comentário, Freud nada mais acrescenta acerca da homossexualidade  feminina, embora a descoberta do amor de Dora pela Sra. K tenha relevância para o caso, por exemplo, no que diz respeito à questão transferencial. Essa ausência de comentários e explicações sobre a sexualidade feminina é marcante nos textos de Freud. Mesmo em seus textos específicos sobre o desenvolvimento sexual das mulheres e a feminilidade em geral, ele sempre demonstra sua dificuldade e estranheza para falar sobre o assunto. Além disso, se limita a discutir as mulheres apenas no que é influenciado por sua sexualidade, e apesar de ser um meio abrangente, recomenda que:

"Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar- lhes informações mais profundas e mais coerentes." (Freud, 1932/1996:134)

Apesar das dificuldades de falar sobre a feminilidade e de pouco se deter sobre a homossexualidade feminina, Freud elabora o “complexo de masculinidade” como uma saída da menina para o complexo de castração por meio de uma formação reativa da inveja do pênis.

A menina, após se entender castrada e inferior aos meninos, tem as três diferentes saídas, comentadas por Rubin: a renúncia à sexualidade de modo geral, a normalidade, que seria tomar o pai como objeto e alcançar a forma feminina do complexo de Édipo e, por último, afirmar-se masculina até um período tardio, na esperança de voltar a ter um pênis ou recusar o fato de ser castrada, acreditando possuir um pênis e portando-se como homem.(Freud, 1925/1996).

Em Sexualidade feminina afirma que o “complexo de masculinidade” pode resultar até em uma escolha de objeto homossexual, mas no ano seguinte comenta que raramente a homossexualidade feminina seria a continuação direta da masculinidade infantil. (Freud, 1931;1932/1996). Ele parece não chegar a uma posição definitiva sobre o assunto. O complexo de masculinidade traz uma indagação: a inveja do pênis poderia levar à homossexualidade? 

Freud estabelece também uma relação entre a masculinidade e a predominância da sexualidade clitoriana, o que pressupõe uma relação do clitóris como um pequeno pênis, e uma posição mais ativa. O complexo de masculinidade pressupõe, ainda, uma supervalorização do pênis, em que as mulheres se sentiriam tão inferiorizadas por sua ausência, que chegariam ao ponto de se desvincular da realidade e acreditar ter um pênis realizando assim o seu desejo.

Por último, vale comentar que as três saídas do complexo de castração para a menina parecem insuficientes para abranger toda a complexidade feminina que ele mesmo diz não compreender por completo, como vimos acima. Com essa teoria, por exemplo, as mulheres homossexuais com características “femininas”, assim como as mulheres heterossexuais com uma posição mais ativa, não são contempladas.

 

Atividade e passividade

O tema da relação entre atividade e passividade na sexualidade é igualmente abordado pela primeira vez nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (Freud, 1905/1996). Freud busca compreender os diferentes objetos e alvos sexuais que sejam compatíveis com as diferentes pulsões sexuais para que esta encontre satisfação de modo descarregue a tensão e encontrar alívio. Freud desconstrói a idéia de uma ligação rígida e necessária entre pulsão sexual e objeto. (Freud, 1905/1996:129). É isso, aliás, o que torna a teoria freudiana da sexualidade capaz de explicar todas as formas de manifestação da sexualidade humana sem qualquer tipo de determinismo biológico. A satisfação de uma pulsão pode ser vinculada com diversos objetos, sendo eles aceitos pela sociedade ou não. O alvo sexual ou o meio para a satisfação dessa pulsão é o que traz o questionamento das posições ativa e passiva. Freud considera como alvo sexual tanto a união de genitais (masculino e feminino) designados ao coito, quanto qualquer outra maneira de satisfação sexual total, cujo exercício resulte em descarga e alívio da tensão sexual, como por exemplo, sexo oral, anal, a exibição, o olhar,  as relações sádicas e masoquistas.

Todos os alvos sexuais citados trazem uma relação de atividade e passividade, mesmo que em alguns mais aparentes que em outros. Atividade e passividade constituem uma dualidade que pode ainda ser encontrada em outros aspectos como o biológico - homem e mulher, e o gênero - masculino e feminino. Apesar de se preocupar em especificar que o feminino não se restringe apenas às características exclusivas das mulheres, e nem o masculino aos homens, durante seus textos algumas vezes passa a utilizá-los como sinônimos.

O contraste entre atividade e passividade comporia a base de características universais da vida sexual. Além disso, ambas as formas, ativa e passiva, se encontram juntas na mesma pessoa, ainda que uma delas se desenvolva com maior intensidade. Nos Três Ensaios, Freud relaciona as meninas com uma posição passiva. Para ele, as meninas ainda cedo já teriam um maior recalcamento sexual. Logo nas pulsões parciais, elas prefeririam a forma passiva. Freud acentua, porém, que

“[..] a libido seja descrita no texto como masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo” (Freud, 1905a/1996: 207).

 Neste caso ele coloca como sinônimos masculinidade e atividade.

As posições ativa e passiva estão presentes também nas relações do complexo de Édipo. As diferenças entre os sexos, durante o complexo de Édipo, vão se mostrando já nas supostas relações de desejo de cada um. Desde pequena, a menina para Freud, já se coloca em uma posição passiva em que quer ser desejada e se considera aquilo que seu pai ama acima de tudo. O menino, por sua vez, é suposto tendo uma posição ativa de possuidor do objeto de desejo, considera a mãe como sua propriedade. Freud mistura assim gênero e posições ativas e passivas. Essas posições seriam estabelecidas desde as primeiras relações de afeto, no entanto, não têm suas origens explicadas e tampouco podem ser inatas. (Freud, 1923/1996).

Apenas dois anos mais tarde, Freud acentua a orientação dupla, ativa e passiva, do complexo de Édipo no próprio menino e explica que em uma constituição bissexual, o menino também desejaria tomar o lugar da mãe como objeto de amor do pai.  (Freud, 1925/1996)

Freud se dedica também a descrever uma dupla posição, ativa e passiva na menina em relação a uma suposta mudança de sua zona sexual dominante. Para ele, as meninas têm como zona dominante o clitóris, e desde pequenas podem apresentar uma masturbação nesta região. Na puberdade, a menina se utiliza da excitação do clitóris para efetuar uma transferência desta excitação para a vagina anteriormente “anestesiada”. Quando essa transferência é bem sucedida, sua zona sexual dominante passa a ser a vagina. Abandona a zona do clitóris completamente, que simbolizava uma masculinidade infantil por envolver uma posição mais ativa. (Freud, 1923/1996:161). Aqui, observamos uma junção dos conceitos de atividade e masculinidade e de zonas sexuais com atividade e passividade.

Freud, em 1925 ainda vê como condição necessária para o desenvolvimento da feminilidade a eliminação da sexualidade clitoridiana. Além disso, se refere com estranheza ao ato feminino de tão violentamente abrir mão desse prazer masturbatório, o que se explicaria por um sentimento de humilhação narcísica ligada à inveja do pênis. Para ele, a menina jamais poderia competir com o menino neste quesito, e então desiste de tentar e torna-se finalmente. (Freud, 1925/1996: p. 284).

Em 1931, em seu texto Sexualidade feminina, Freud retoma essa duplicidade na menina, porém por um enfoque do seu objeto de desejo. Ele resgata as duas zonas sexuais importantes na menina, a vagina e o clitóris, porém determina que a vagina em si é feminina e o clitóris é análogo ao pênis e portanto masculino. Assim, ela passaria por duas fases, a primeira masculina, durante o período pré-edípico em que a mãe é seu objeto de desejo, e posteriormente, no complexo de Édipo, ela trocaria de objeto sexual, da mãe para o pai, e passaria para uma fase feminina.

 Neste texto, Freud contradiz sua antiga posição de que a zona do clitóris era abandonada por completo  e elabora que, nesta segunda fase, a feminina, a função do clitóris pode persistir de uma maneira secundária. Mas Freud diz não compreender qual seria então a sua função. (Freud,1931/1996;236).

Apesar de tomar o cuidado de diferenciar os conjuntos masculino e feminino de ativo e passivo, em trechos como os descritos acima, Freud, acaba por misturá-los e os coloca como simples sinônimos. Além disso, não explora o fato de que essa passagem de fases na menina também representa uma troca de sexualidade, de homossexualidade para heterossexualidade, como vimos acima. Outra questão importante a ser levantada, é que em seus textos, transparece como destino mais adaptado para as mulheres o de aceitar uma suposta feminilidade que lhes é esperada.

As críticas de Melanie Klein e Karen Horney obrigam Freud a voltar-se para a fase pré-edípica da menina, caso quisesse entender as relações ativas e passivas desta perante sua mãe.(Freud,1931/1996;1933/1996). Conclui que ambas coexistem. No começo desta relação, a mãe supre todas as necessidades da filha, que a aceita passivamente, mas logo esta começa a interagir ativamente com a realidade, porém, imitando comportamentos aprendidos. A menina passa, por exemplo, a brincar de boneca com uma posição ativa, mas também feminina, em que ela cuida da boneca, o que também demonstra uma exclusividade da ligação com a mãe.

A mãe vira um modelo de como agir para a menina, tanto para seus comportamentos passivos, quanto para comportamentos ativos com essa mãe. Freud menciona como um comportamento passivo na menina, as lavagens intestinais que eram realizadas por suas mães. Por outro lado, os comportamentos ativos dela com a mãe eram constantes e junto surgiriam desejos intensos, culminando na masturbação do clitóris, durante a qual, para Freud, a menina provavelmente pensa na mãe. Com a chegada de um irmão, a menina chegaria até a desejar ter feito esse nova criança com a mãe. Freud não deixa claro, porém, como a menina abandonaria sua posição ativa, ou o quanto uma posição ativa seria contraria à feminilidade. (Freud, 1931/1996).

 

Curiosidade sexual infantil

A curiosidade sexual infantil é o terceiro elemento que vimos destacar-se na análise da sexualidade feminina como produto de uma leitura que, ao que nos parece, toma como ponto de partida um olhar inequivocamente masculino. Ao descrever a sexualidade infantil, Freud apresenta a curiosidade como fator determinante para iniciar a exploração sexual e autoconhecimento. Seria através dessa curiosidade infantil que as pulsões parciais se formariam. E posteriormente motivaria atividades com certa independência de suas zonas corporais que propiciam prazer, através da exploração do meio em que a criança vive. (Freud, 1905/1996).

Se num primeiro momento, quando Freud elabora a teoria da sexualidade, (Freud, 905/1996) ele chega a pensar que o interesse sexual das crianças provinha do questionamento acerca de onde viriam os bebês, ele acaba por concluir que o motor da investigação infantil realmente vem da diferença entre os sexos.(Freud,1925/1996). A questão da existência de diferentes genitais, para Freud, se elabora em uma relação de presença ou ausência do genital masculino. Os meninos se perguntam, por exemplo, porquê alguns têem e outros não? Se as meninas teriam então perdido um pênis que possuíam? Como? E por quê? Isso os faria temer a perda de seu próprio pênis também. Nas meninas, a  diferença, ou “ausência”, e a conseqüente inveja do pênis, transpareceria  no complexo de masculinidade. Essas teorias sexuais infantis, apesar de muitas vezes errôneas, seriam um reflexo da própria constituição da  sexualidade através da busca pelo saber. (Freud, 1925/1996).

Ao mesmo tempo em que Freud escreve sobre as curiosidades infantis, tanto de conhecimento de suas zonas erógenas quanto na observação do órgão sexual de seus colegas de sexo oposto, ele expõe sua idéia de que as meninas até certa idade não teriam o conhecimento de suas vaginas. Elas desconheceriam por completo sua vagina, órgão “verdadeiramente feminino”, para Freud. (Freud, 1931/1996:236).

Ora, isso parece contradizer sua teoria da curiosidade exploratória infantil, em que algum momento, as meninas acabariam por explorar seu corpo e achariam a tal zona “adormecida”. Além disso, a curiosidade exploratória infantil também pode ser entendida como uma ação ativa da menina, que na fase fálica faz igualmente descobertas sobre o seu corpo. Outro questionamento vindo dessa curiosidade sobre os diferentes corpos seria de que se as meninas têm inveja do pênis por ser um órgão externo, por que os meninos não teriam inveja de alguma outra parte do corpo das mulheres, como o seio materno? 

Quem responde a essa pergunta é Melanie Klein. Sim, dirá ela, os meninos invejam os órgãos de fartura e de receptividade de suas mães (Klein, 1928/1996:219). Klein elabora uma primitiva fase de feminilidade vivida por ambos os sexos, como veremos adiante. Ela critica a teoria edípica de Freud, mas discute mais especificamente a sexualidade feminina a partir de 1922, quando assistiu ao VII Congresso da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), em que participou das primeiras discussões sobre a questão, a partir das críticas de Karen Horney aos textos de Freud. (Roudinesco, 1998: 431).  Klein defende que o complexo de Édipo ocorre mais cedo, no final do primeiro e início do segundo ano de vida como conseqüência da frustração sentida com o desmame, e que as fases do desenvolvimento não são linearmente ultrapassadas, mas se fundem umas com as outras. (Klein, 1928/1996). Veremos como ela problematiza e responde a alguma das questões que levantamos.

 

Respostas a Freud

Klein afirma que logo no primeiro ano de vida, apesar de haver uma primazia da oralidade no desenvolvimento libidinal, as crianças de ambos os sexos teriam sensações e tendências genitais assim como desejos e fantasias uretrais e anais, voltados tanto para o pai como para a mãe. Além de propor, assim, o conhecimento inconsciente da menina de sua vagina através dessas sensações, e quebra com a concepção de Freud de fase fálica, em que as crianças tinham o conhecimento apenas do pênis.  Além disso, Klein acrescenta que: “A masturbação vaginal no início da infância é bem mais freqüente do que se acredita” (Klein, 1945/1996: 457) e, portanto, haveria sim uma curiosidade exploratória na menina que a faria tomar conhecimento de seu próprio órgão genital.

Outra ruptura com Freud é que para Klein as crianças mudam diversas vezes seu objeto de desejo e com quem se identificam, passando da mãe para o pai e vice-versa. Essa mudanças ocorreriam por diversos motivos, entre eles raiva e culpa. Para ela a raiva que a menina sente pela mãe que não lhe deu um pênis é apenas um reforço para uma das mudanças de objeto, diferente de Freud que considerava esse o grande motivo para a menina escolher o pai como seu objeto amoroso. (Klein, 1928/1996:222).

Tanto a menina quanto o menino deixariam de ter a mãe como objeto de desejo inicial, já que ambos mudam algumas vezes de objeto de desejo. A causa mais importante, para Klein, para o abandono da mãe e a opção pelo pai como objeto é a privação do seio materno no desmame. Ela retoma a idéia de Freud da frustração da menina com a mãe pelo desmame e não por ela não ter recebido o pênis da mãe. Freud havia abandonado esta teoria pois a frustração com o desmame ocorria com ambos os sexos, e para ele apenas a menina deixava de ter a mãe como objeto, o que Klein discorda.

Como o menino também se identifica com a mãe e tem o pai como objeto de desejo, Klein, desenvolve o que chama de fase da feminilidade. (Klein, 1928/1996:219). Com o surgimento das tendências edipianas nas crianças de ambos os sexos, a curiosidade infantil e as pulsões sádicas se voltam principalmente para o corpo da mãe. Começa então uma identificação com a mãe, que formará essa fase da feminilidade. É aqui que vemos Klein posicionar os meninos numa relação de falta e ausência que, por não estar presente na teoria freudiana, custou caro ao movimento psicanalítico no que tange a relação entre os gêneros.

Klein defende que especialmente os meninos durante a fase da feminilidade, tem tendências de roubar e destruir os órgãos sexuais da mãe que estão ligados à fecundação, assim como seus seios, a fonte do leite. Os meninos invejam os órgãos receptivos. Com isso Klein cria um paralelo entre a falta dos órgãos receptivos nos meninos e a falta do pênis nas meninas:

"Assim como no complexo de castração das meninas, no complexo de feminilidade dos meninos há no fundo o desejo frustrado de possuir um órgão especial. As tendências de roubar e destruir estão ligadas aos órgãos de fecundação, gravidez e parto que o menino presume existirem na mãe, assim como à vagina e os seios, a fonte do leite, cobiçados como órgãos de receptividade e fartura desde o tempo em que a posição libidinal é puramente oral. "(Klein, 1928/1996:. 219).

O corpo da mãe, para Klein, tem uma grande importância. Este corpo é objeto de desejos e fantasias das crianças, e ao mesmo tempo símbolo de castração. A centralidade que o pênis do menino tinha no complexo de Édipo para Freud é voltada para o corpo da mãe na teoria de Klein. Ela rompe com a idéia de que a curiosidade infantil vem da diferença entre os sexos, e propõe que viria da inquietação com o corpo materno.

Apesar de Klein sugerir várias alterações às construções freudianas no sentido de igualar os sexos, como o complexo de feminilidade e a inveja dos órgãos internos femininos, ela afirma que a menina ainda cria diferentes ansiedades e frustrações em comparação ao menino. Isso ocorre pois o menino possui o pênis, órgão exterior e concreto, enquanto a menina possui o útero, órgão interno, que apesar de lhe dar a chance de ser mãe, essa ainda é uma realidade longínqua.

Mas os meninos também criam uma ansiedade diferente que diz respeito à tendência de exibir uma agressividade excessiva, acompanhada por uma atitude de desprezo e de arrogância, além de ser uma atitude  anti-social e sádica, sendo, na opinião de Klein, uma forma de lidar com o que não sabem e não possuem. (Klein, 1928/1996:220).

Ainda em Klein encontramos uma resposta à problemática colocação de Freud acerca do superego nas mulheres, como mencionamos no início do exame da sexualidade feminina. Lembremos que Freud se refere a uma menor rigidez na formação do superego das mulheres, levando-as a  demonstrar menor senso de justiça que os homens, a estarem menos aptas a submeter-se às grandes exigências da vida, e serem freqüentemente influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de afeição ou hostilidade. (Freud, 1925/1996).

Klein propõe que o superego se forma anteriormente ao que foi proposto por Freud, mas ainda como resultado do complexo de Édipo, que para ela também se inicia precocemente. O superego seria formado por imagens dos dois pais que “devoram, cortam e mordem” a criança. A explicação para esse superego tão rígido na infância é que a criança primeiramente quis “devorar, cortar e morder” o seu objeto de desejo no início do complexo de Édipo. Com a introjeção deste objeto a criança passa a temer ser punida por ele. Os sentimentos de culpa vêm como resultado da introjeção dos objetos edipianos, logo este sentimento é produto da formação do superego. (Klein, 1928/1996).

Freud leva em conta a proposta de Klein e concorda que a origem da agressividade seria muito primária na criança, que direcionaria esta agressividade “contra a autoridade que a impede de ter suas primeiras – e, também, mais importantes – satisfações”, ou seja, os próprios pais. (Freud, 1930/1996: 133).

Freud concorda também que essa agressividade que a criança gostaria de exercer passa a constituir posteriormente o seu superego e conclui que à severidade do superego da criança de forma alguma corresponde a severidade com que ela foi tratada. Não obstante a aceitação das idéias kleinianas, retoma no ano seguinte seu pressuposto de que o superego nas mulheres é menos rígido e tem como efeito traços de caráter dominados pela emoção em detrimento da razão.

As mulheres, para Klein, se posicionariam perante a sociedade de maneira completamente contrária ao que Freud propõe. (Klein, 1928/1996:225). Elas teriam a capacidade imensamente altruísta de deixar seus desejos de lado para se dedicar a tarefas éticas e sociais. Além de terem uma grande habilidade de autosacrifício, seriam muitas vezes o exemplo de extrema bondade para seus filhos. Assim, ela defende que as mulheres em suas relações sociais tem um bom discernimento para tomar decisões e são capazes de realizar grandes feitos. (Klein, 1928/1996).

 As idéias de Klein não apenas complementam as de Freud como ela mesma defende, mas trazem críticas positivas à posição das mulheres tanto no seu desenvolvimento sexual, mas também em sua relação à sociedade. Lembremos que o ano é 1928 e a positividade que Klein consegue enxergar é, aparentemente, somente a partir da idéia de um altruísmo, bondade e autosacrifício. Ainda assim, reitera o discernimento feminino para decisões e grandes realizações.

Como última resposta a Freud, vejamos a tentativa de Karen Horney de dar conta do complexo de masculinidade e da homossexualidade feminina.

Sua crítica, como era de se esperar, se dirige inicialmente à questão da inveja do pênis. Karen Horney enfrentou o pai da psicanálise em 1922, no já citado congresso internacional, ao questionar o complexo de castração feminino em que todas as mulheres sofrem, mesmo que de diferentes maneiras, por inveja do pênis. Nos anos que se seguiram publicou uma série de artigos acerca da sexualidade feminina. Segundo ela, a inveja do pênis pressupõe uma desvalorização do sexo feminino e um descontentamento das mulheres com o seu sexo que, do ponto de vista da própria Horney, era inadmissível. A se levar em consideração o ponto de vista freudiano,

“[...] que leva à afirmação de que a metade da raça humana está descontente com o sexo atribuído a ela e pode superar esse descontentamento somente em circunstâncias favoráveis”,  chega-se a uma situação bastante insatisfatória. (Horney, 1923/1993: 38). Podemos acrescentar ainda, que chegamos a uma situação patética.

Mas apesar de questionar a unanimidade e a centralidade da inveja do pênis e o mal estar das mulheres com relação ao seu sexo, Horney tenta compreender os fatores que levariam a menina a sentir essa inveja.

Horney elabora a hipótese de que as meninas primeiramente desejam urinar como os homens. Este desejo é explicado por três componentes: o primeiro envolve o erotismo uretral e uma fantasia de onipotência que são associados ao jato de urina dos homens, os quais podem controlar seu alcance e direção. O controle para urinar simbolizaria também um controle que o menino tem de suas ações e de seu corpo, enquanto a menina não teria o controle de seu próprio corpo e nem ao menos o acesso a ele. O segundo fator que corrobora com a inveja do pênis é a visibilidade do órgão masculino que satisfaz a pulsão escópica do menino e sua curiosidade. (Horney, 1923/1993:39)

Além do desejo de observar o próprio corpo, a menina sentiria falta de exibi-lo. Por último, Horney propõe que a menina faz uma associação majoritariamente inconsciente a partir do fato do menino poder segurar seu órgão genital ao urinar  com o fato de assim obter uma espécie de licença ou permissão também para se masturbar. (Horney, 1923/1993: 41). As meninas, por não terem nenhuma ocasião em que podem se tocar e explorar o próprio corpo, mais dificilmente encontram autossatisfação, pois, se sentem privadas deste prazer.

Horney assim sugere uma explicação para a pouca masturbação feminina, que por tanto tempo foi um mistério para Freud. A menina, além de ter menos visibilidade de seu órgão sexual, e não poder manipulá-lo ao urinar, compreende que não lhe é permitido se masturbar assim como se tocar. Além disso, as meninas se sentem injustamente proibidas de fazer algo que os meninos podem, simplesmente por sua diferença anatômica.

 Como vemos, Horney ainda se baseia em uma diferença anatômica para explicar o diferente desenvolvimento entre os sexos. Ainda assim, sua perspectiva mostra uma curiosidade infantil pelo corpo e um desejo de atividade em relação ao órgão genital que Freud buscou negar nas mulheres.

Uma vez explicada a inveja do pênis pelo desejo de urinar como os homens, Horney se pergunta se essa inveja deve realmente ocupar o papel central no complexo de castração e procura outros fatores seriam determinantes para o desenvolvimento da menina. (Horney, 1923/1993:42). Aqui começa sua tentativa de elaborar uma resposta para a masculinidade e a homossexualidade nas meninas.

Sua clínica, mas também sua história pessoal levam-na a analisar a relação das meninas que não apenas querem ter um pênis, mas querem também ser um homem, e relata que em seu passado elas tiveram uma fixação muito forte pelo pai. (Roudinesco, 1998: p.355). A partir desta relação conclui que o desejo narcísico de possuir um pênis é, na verdade, apenas uma expressão do desejo da menina pelo pai, ou então do desejo de ter um filho do pai. Horney transfere o foco da inveja do pênis para a relação de amor da menina com seu pai e sua desilusão. A menina passa a ter inveja da relação da mãe com o pai e dos filhos que esta pode ter com ele.

Para Horney, essa inveja do filho que a menina queria ter com o pai é deslocada para um possível irmão ou amigo e então para seus respectivos órgãos sexuais. Assim, a inveja do pênis é secundária à inveja de ter um filho do pai. Com isso Horney retira a inveja do pênis de seu pedestal, lugar justificado na teoria freudiana pela maior visibilidade do órgão masculino, que criava a impressão de apenas os meninos possuírem um órgão genital.

A partir da desilusão em relação ao amor paterno, haveria duas saídas para o complexo de castração: na primeira a menina deixa de ter o pai como objeto de desejo e passa a identificar-se com ele. Muitas meninas que demonstram um desejo de ser um homem ou parecer-se com um, na verdade, gostariam de ser igual ao próprio pai. Horney relaciona a identificação da menina com o pai com uma possível homossexualidade nas mulheres.(Horney, 1923/1993: 49).

 Ela retoma a proposição freudiana de que a identificação da menina com o pai, em seu desenvolvimento, seria uma das bases para se manifestar a homossexualidade. (Freud, 1920/1996). Concorda com Freud que, sem exceção, em todos os casos em que ocorre uma maior fixação no complexo de castração, se tem uma tendência mesmo que em diferentes graus à homossexualidade.

Porém, Horney, traz como uma segunda saída para a identificação com o pai, uma regressão narcísica, em que a menina se compreenderia como um homem sem necessariamente desejar outra mulher. Vemos aqui um diálogo estabelecido com a idéia freudiana de complexo de masculinidade em que Horney, de certa maneira, separa gênero de sexo. A menina pode se identificar com o pai e, nesse sentido, ser “masculina” sem fazer uma escolha de objeto homossexual.

 

Conclusão

Reler Freud não é apenas deparar-se mais uma vez com as suas grandes descobertas. Reler Freud hoje é fazê-lo desde alguma perspectiva que nos move e nos atravessa, como o próprio inconsciente. Ser feminista na psicanálise é incomodar-se e deixar-se afetar por atitudes ou por palavras – escritas ou proferidas - que reiteram a desigualdade entre os gêneros em variadas circunstâncias. As críticas feitas por mulheres que não se sentiram bem representadas por uma visão masculina da natureza das mulheres, levaram estas mesmas mulheres a buscar em suas experiências clínicas, acadêmicas e na própria história, novas respostas para o desenvolvimento sexual  mulheres e os espaços que ocupam na sociedade.

A sociedade muda, mas a relação que muitas e muitos psicanalistas têm com as teorias de Freud e de Lacan é de ordem dogmática. Nesse sentido, promover um percurso teórico pelas psicanalistas mulheres, assumidamente feministas ou não, é uma forma de fazer a psicanálise trabalhar a seu favor. Independentemente do sucesso obtido por Klein ou Horney em nos convencer em relação aos diversos aspectos da sexualidade feminina, trata-se de “escutar” as autoras em seu desconforto perante uma teoria que, por vezes, consideraram misógina. É esse desconforto que continua a estimular a aproximação entre a psicanálise e as teorias de gênero.

 

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Nota biográfica:

Patricia Porchat.Psicanalista. Professora do curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Bauru) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual (Mestrado profissionalizante) da UNESP/Araraquara. Pesquisadora da Universidade de São Paulo e membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP), da USP. Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Psicanálise: Clínica, Teoria e Cultura, da UNESP. É autora do livro Freud e o teste de realidade (2005), pela Casa do Psicólogo/Fapesp e do livro Psicanálise e Transexualismo: Desconstruindo Gêneros e Patologias com Judith Butler (2014), pela Editora Juruá. É membro do GT Psicologia e Estudos de Gênero da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia (ANPEPP). Coordena o Projeto Escutando a Diversidade (UNESP/Bauru).   Email: patriciaporchat@fc.unesp.br

Beatriz Barbosa Fejgelman.Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Bauru). Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Psicanálise: Clínica, Teoria e Cultura, da UNESP. Participa do Projeto Escutando a Diversidade (UNESP/Bauru). Pesquisa gênero, sexualidade feminina e psicanálise.  

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014