labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014

 

 

Apresentação

"Feminismos e psicologia"

valeska zanello

 

Desde as décadas de 60/70, os feminismos têm aportado várias questões para as áreas de Ciências Humanas e Sociais. Estes aportes não apenas têm insuflado novas pesquisas, como também colocam em xeque, muitas vezes, pressupostos epistemológicos antes invisibilizados. Se os impactos dos feminismos e estudos de gênero são evidentes em algumas áreas do saber tais como a Antropologia e a Sociologia, eles podem ser considerados ainda incipientes no campo das Psicologias.

Em geral, quando se pensa em estudos de gênero e Psicologias, trata-se mais da utilização da categoria "gênero", dentre outras, como fator a ser analisado em um determinado objeto de pesquisa. No entanto, entendo que os estudos de gênero, em uma perspectiva feminista, podem e devem levar a uma crítica radical das próprias teorias com as quais trabalhamos e, sobretudo, a abrir novas visadas antes inimagináveis sobre os nossos campos de pesquisa e práticas.

Neste sentido, a(s) Psicologia(s) tem um grande desafio à sua frente: explicitar os pressupostos epistemológicos naturalizantes do gênero, ainda muito presentes em grande parte de nossas teorias, seja na clínica, no desenvolvimento, nos processos psicológicos básicos ou  na área social. Se a Psicologia se constitui como um possível lugar de crítica a práticas reificadoras do sujeito e de cunho organicistas, como aqueles presentes em grande parte na prática psiquiátrica, corre o risco, por outro lado, de efetuar um processo de "psicologização", análogo em alguns pontos àquilo que critica em outros domínios.

Considero a "psicologização" uma grande via aberta para a patologização e  naturalização do gênero. Não apenas em "quadros" onde isto se dá de forma mais evidente, através de uma certa diferenciação do que é considerado padrão, mas exatamente, pelo contrário, onde isto é mais invisível, no sujeito considerado "normal", um homem ou uma mulher normal, por exemplo.

         Como clínica, gostaria de dar um exemplo, em minha área, onde isto se mostra de maneira evidente. Trata-se da maternidade.  Apesar de Badinter ter escrito seu livro, “O mito do amor materno”, há mais de duas décadas, este é um mito que sobrevive na prática psicológica, psiquiátrica e  jurídica. Vejamos a seguinte situação: uma mulher, mãe de um filho de 7 anos, procura atendimento psicológico e já na primeira sessão relata não sentir prazer nenhum em ser mãe, mostrando arrependimento por não ter abortado e muita culpa pela falta de sentimentos "maternos" pela criança.

 Como seria a escuta da queixa e do sofrimento desta mulher? Com quase 20 anos de experiência como clínica e, pelo menos 10, como supervisora, penso ser difícil que os primeiros pensamentos que ocorram não sejam do tipo: estará ela deprimida? Por que está tão desconectada de seu filho? Deve ter algum problema/dificuldade com a própria mãe/ maternagem recebida, e por aí vai. O que me interessa destacar aqui  é que em TODAS as hipóteses levantadas resta ainda um pressuposto intocado: o mito do amor materno.

 Resta uma certeza inabalada de que o "normal" é que as mulheres amem seu filho e sejam capazes de se realizar na maternidade. Chamo a atenção então para os desdobramentos na prática que invisibilidades como esta perpetuam. Sem uma escuta e um olhar feministas, corremos o risco de sermos as sentinelas da repetição e reafirmação dos valores de gênero. Neste sentido, faz-se mais que urgente que tomemos para nós, enquanto psicólogas, os aportes dos feminismos e teorias de gênero e que coloquemos em xeque nossos saberes e práticas. A esperança é que, depois deste "encontro", possamos assumir o caráter inescapavelmente político da(s) Psicologia(s).

         Participam do presente dossiê pesquisadoras envolvidas com os estudos feministas e de gênero dentro de suas práticas e reflexões nas Psicologias. Compõem o volume 10 artigos que gravitam em torno dos temas saúde mental, metodologia de pesquisa e intervenção, epistemologia da psicanálise, interseccionalidades,  análise da produção bibliográfica sobre psicologia e feminismos/gênero, saberes populares, conjugalidades e teorias do desenvolvimento. As autoras provêm de distintas Universidades brasileiras e  estrangeiras.

 

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