labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014

 

Safo lésbica radical ? Notas sobre a recepção de Safo e de seus fragmentos em três textos de Monique Wittig *

 

Letticia Batista Rodrigues Leite

Resumo:

Safo de Lesbos, poetisa que teria vivido entre os século VI e VII a.C. é evocada inúmeras vezes na obra de Monique Wittig - lésbica, escritora e militante feminista materialista, cujas ações - dentre elas seus atos de escrita - avançam uma crítica radical ao “ regime de gênero” vigente. Regime que, a seu ver, é pautado em um “contrato heterossexual” tácito, responsável pela (re)produção de duas categorias que se tornaram fundamentais para a sustentação econômica, social e cultural da sociedade tal qual ela se reconfigura atualmente: “mulher” e “homem”. Propomos neste artigo, a partir da análise de três escritos de M. Wittig, expor alguns elementos que nos permitam entender a especificidade desta retomada da poetisa de Lesbos; assim como responder à seguinte questão: a voz sáfica aí evocada teria o objetivo de forjar uma figura histórica de Safo como uma espécie de lésbica radical avant la lettre?

Palavras-chave: Safo de Lesbos, Monique Wittig, literatura e recepção, lesbianidade, feminismo.  

 

Safo lésbica radical ? Notas sobre a recepção de Safo e de seus fragmentos em três textos de Monique Wittig

 Par milliers les signes se pressent, écrits à l’encre violette, marqués par l’amour infaillible, j//écris ce livre à la couleur de la lavender menace, le corps immense de m/a Sappho, tout couché entre les lignes, ses ongles tenus entre les mots, ses cheveux dans les fragments de textes, son texte, vulve, clitoris, lèvres, membranes souples, se développant au cours des pages, j//écris ce livre à la couleur de l’amour secret, infâme, glorieux, éclatant, rire, rire, larmes pressées de même que les signes du livre, sur les joues multiples, genoux brillants, poings dressés pour toutes les sales gouines (…). (Le torchon brûle, 1973: 3)

 

Feminismo e lesbianidade : observações sobre Monique Wittig e sua obra:

Entre o público brasileiro, talvez não seja exagero imaginar que Safo, ou os versos que foram atribuídos a esta poetisa e que conhecemos apenas sob forma de fragmentos, sejam mais conhecidos que Monique Wittig e sua obra, cujo aspecto é também ele fragmentário. No entanto, a poetisa grega teria teria vivido e composto seus versos entre o fim do século VI a.C. e o começo do século VII a.C.; enquanto Wittig é nossa contemporânea. Visto que essa última nasceu na França no ano de 1935, e faleceu no começo de 2003, nos Estados Unidos – país onde ela escolheu viver e trabalhar como professora universitária a partir do ano de 1976.

 Não por acaso, foi especialmente nesse último, e não na França, que seu trabalho acabou por ganhar uma notoriedade mais efetiva, sobretudo na área dos “Estudos Gays e Lésbicos”, e mais tarde no âmbito do que passaria a ser conhecido como “Estudos queer”. Os trabalhos de Judtih Butler, dentre outros, pode ser citados como exemplo desse impacto (Butler, 1990: 111-128). Além disso, não deixemos de notar que, se por um lado, na França, a primeira tese que se dedicaria inteiramente ao estudo da obra de Wittig remonta ao final de 1999 - tendo sido publicada apenas no ano de 2002 (Écarnot, 2002); por outro lado, no contexto universitário estadunidense, as primeiras teses datam de quase vinte anos antes (Reste, 1979 ; Shaktini, 1981). 

Não obstante, já em 1964 Monique Wittig havia sido agraciada na França com o Prêmio Médicis, pelo seu primeiro romance intitulado L’Opoponax. Texto após o qual ela ainda publicaria, entre outros: Les Guérillères (1969), Corps Lesbien (1973), e Brouillon pour un dictionnaire des amantes (1976), escrito em parceria com Sande Zeig.

M. Wittig foi também uma das militantes que participou da manifestação que seria considerada como o “ato fundador” do M.L.F., o Movimento de Liberação das Mulheres[1]: o depósito de uma coroa de flores em homenagem à “mulher desconhecida do soldado”, no Arco do Triunfo, em Paris, no dia 26 de agosto de 1970. Ato que fora antecipado pela publicação de um texto co-redigido por M. Wittig, sua irmã Gille Wittig, Marcia Rothenburg e Margareth Stephenson, intitulado “Combat pour la Libération de la femme”, publicado neste mesmo ano na revista L’Idiot International[2]. Movimentos que, evidentemente, fazem eco às reivindicações de maio de 1968 (Picq, 1993: 11-23), mas que também se somavam a outras tantas mobilizações e grupos de debate pré-1968. Isto é, estes atos inserem-se em um amplo contexto de debates que, em diferentes medidas, atravessavam ou não, outros movimentos sociais em curso, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos.

Assim, não causa surpresa constatar que dentro do próprio M.L.F. coexistiriam inúmeras ideias e posicionamentos políticos, por vezes contrários uns aos outros. Divergências que saltam aos olhos logo que percorremos o jornal que era produzido pelo movimento : Le Torchon Brûle, periódico que foi editado entre maio de 1971 e junho de 1973, e cujos artigos inicialmente eram publicados sem atribuição de autoria.

Pluralidade que, ademais, era gerada e estimulada pela própria forma de organização interna adotada pelo M.L.F, inspirada em grande medida por formas de organização presentes em outros movimentos sociais, sobretudo, estado-unidenses. O movimento pautava-se, assim na alternância entre a realização de reuniões gerais semanais e de grupos de consciência baseado em trocas de experiências a respeito de diversos assuntos tais como, entre outros, aborto, uso de métodos contraceptivos e sexualidades.

Esta organização daria pois origem a subgrupos que surgiram e se multiplicaram sobretudo a partir do final dos anos 1970, tais como: Féministes Révolutionnaires (que teria sido fundado, entre outras, por Monique Wittig e Christine Delphy), FHAR (Front Homosexuel d’Action Révolutionnaire, fundado em março de 1971) e Gouines Rouges - grupo lésbico fundado na primeira metade do ano seguinte com o objetivo de se distinguir dos grupos gays mistos. No entanto, segundo o testemunho da militante e historiadora Marie-Jo Bonnet, embora M. Wittig tenha desde cedo se preocupado com a falta de uma visibilidade maior das lésbicas no âmbito do M.L.F, ela não teria participado das reuniões feitas por esse último (Bonnet, 2004: 277).

Isso posto, de todo modo, talvez seja possível afirmar que os debates mais polêmicos tenham se dado em torno do tema da homossexualidade entre mulheres, ou mais precisamente da lesbiandade. Questão curiosamente designada como “Sappho l’faire”, no âmbito de um artigo intitulado “QUELQUES REMARQUES SUR L’HOMOSEXUALITÉ, qui finiront bien un jour par former un tout cohérent !”. Neste contexto, para além de uma prática erótica e/ou afetiva interpessoal, torna-se pertinente esclarecer que a homossexualidade pretendia ser uma escolha política que se apresentava “(...) como o caminho revolucionário, o objetivo em direção ao qual todas deveriam marchar, desvencilhando-se assim da necessidade que algumas ainda não haviam superado: a manutenção de relações com homens (...)” - como mostra claramente esse desabafo feito por parte de uma das militantes, ao comentar sobre um dos debates ocorridos por ocasião de um encontro promovido pelo M.L.F. no ano de 1972 (Le torchon brûle, 1973: 17. Tradução livre do original francês).

Neste contexto, alguns desacordos com o tempo oporiam Monique Wittig com relação a certos posicionamentos que caracterizariam o movimento como um todo; assim como com relação a outros assumidos apenas por algumas militantes feministas lésbicas. Um bom exemplo encontra-se nas divergências que teve com Christine Delphy, embora ambas se definissem como feministas materialistas radicais. Conflitos que, ademais, mais tarde se concretizariam na dissolução do coletivo e da revista que haviam sido criados em 1977, sob o nome Questions Féministes, dos quais M. Wittig fora uma dentre as oito membros fundadoras[3].

 A mencionada ruptura seria assim desencadeada, sobretudo, pelos desacordos relativos às relações entre as temáticas “lesbiandade”, “heterossexualidade” e “feminismo”. Divergência exposta de forma inequívoca quando da publicação do sétimo número da revista Questions Féministes, em 1980. Número esse que traria simultaneamente artigos que defendiam posicionamentos bastante conflitantes como: uma versão em francês do artigo “La Pensée straight” de Wittig (que fora originalmente apresentado sob forma de uma comunicação oral em inglês, feita em Nova York, em 1978), e o artigo “Hétérosexualité et féminisme” de Emmanuèlle de Lesseps.

M. Wittig lutaria abertamente em prol de um “lebianisme radical”. Posição política que não por acaso encontraremos em todos os seus escritos, sejam eles teóricos ou literários. De tal modo que podemos afirmar que, para que se possa entender de forma mais precisa suas propostas, convém levar em conta o conjunto de suas produções (Bonnet, 2004: 275).

 É, pois, levando-se em conta esse contexto específico no qual se dá a produção wittigiana, que buscarei procurar comprender como e porque essa autora vai também ela evocar repetidas vezes uma memória da poetisa Safo que lhe seja útil. Pretendo ainda sugerir as motivações e indicar as escolhas por intermédio das quais a autora busca, por intermédio de seus textos, dar corpo ao que podemos qualificar como uma voz “sáfica”.

 Neste sentido, é certamente pertinente tomarmos como ponto de partida uma pista dada por Elaine Marks no seu artigo “Lesbian Intertextuality”. Visto que, segunda esta autora, devemos ter em mente que: “Safo e sua ilha são onipresentes na literatura dedicada às mulheres que amam mulheres, qualquer que seja o gênero ou a preferência sexual da pessoa que escreve e independente mesmo se Safo e sua ilha encontram-se explicitamente mencionadas” (Marks, 1979: 356. Tradução livre do original inglês).

No entanto, antes deste exercício analítico, acredito que seja oportuno oferecer um breve panorama de outros atos de recepções dos fragmentos de Safo, e também das mémórias (re)produzidas em torno da poetisa. Pois, cada um a seu modo, também contribuiu para forjar uma figura histórica de Safo. O que, a meu ver, também constituirá um contraponto capaz de realçar de modo mais adequado as escolhas que marcam a recepção, os usos desta figura e de sua voz, postos em prática nos escritos wittigianos. 

 

Lesbofobia am ação : breve panorama sobre as recepções de Safo e de seus fragmentos

Sandra Boehringer e Anne-Claire Rebreyend, no verbete “Sappho” escrito para o Dictionnaire de l’homophobie, observam logo de início o fato de que Safo acabou por se tornar um símbolo atemporal da homossexualidade feminina, sobre a qual se cristalizaram diversos discursos lesbofóbicos (Boehringer; Rebreyend, 2003: 367). Lesbofobia que se deixa entrever pela particular insistência em “defender” os fragmentos da poetisa de serem interpretados como um lugar de expressão homoerótica.

Tal posição defensiva pode ser sem dificuldades identificada não apenas nos trabalhos feitos pelos helenistas alemães, franceses e anglo-saxões, entre o final do século XIX e o começo do século XX. Mas também, para este mesmo período, em outros domínios de expressão cultural, tais como as artes plásticas - espaço igualmente ocupado sobretudo por homens (Demarchi, 2013). Posturas coincidentes, que encontram grande parte de sua razão de ser no fato de que, um e outro, tratam-se de espaços de (re)produção cultural cujos frutos, ao mesmo tempo que são motivados, respondem a um contexto histórico especialmente marcado pela patologização ou mesmo criminalização da “homossexualidade”.

Categoria que, ademais, é (sub)produto dos saberes classificatórios sobre os sujeitos (sexuais), cuja emergência remonta aos séculos XVIII e XIX. Sujeitos estes para os quais as práticas de ordem sexual deixam de ser percebidas e avaliadas como uma dentre outras tantas, para passarem a ser tratadas como um à parte: a “sexualidade”, quer dizer um lugar privilegiado de identificação de uma suposta essência, verdade subjetiva (Foucault, 1976).

Convém também não esquecer que o século XIX seria palco de outras tantas invenções. A emergência do adjetivo feminino “lésbica” com a conotação de “homossexualidade feminina”, vocábulo que encontra traduções em diferentes línguas modernas, trata-se de um bom exemplo. Termo derivado de um nome próprio antigo: a ilha de Lesbos, onde a  poetisa Safo teria vivido; mas cuja forma adjetival feminina ao longo da Antiguidade não se referia em nenhuma medida às relações afetivas e/ou sexuais entre mulheres, mas tão somente às nascidas na ilha.

  O substantivo “safismo”, outro derivado direto do nome da poetisa de Lesbos, é outro célebre exemplo. Pois, se a forma adjetival masculina tratava-se de um vocábulo literário usado, pelo menos desde o século XIV, para fazer referência a uma métrica característica da poesia de Safo: o “verso sáfico”; no entanto, a forma nominal que emerge ao longo do século XIX, aparece com uma conotação inequívoca manifesta seja no âmbito de uma literatura médica que se dedica ao estudo e classificação das “perversões” sexuais caracterizadas como especificamente femininas (Martineau, 1905 Apud Chaperon, 2008: 145-148); seja no domínio acadêmico literário como modo de se referir à homossexualidade feminina (Murat, 2003: 418). Sintoma de que a presença de personagens e/ou de relações sáficas no âmbito da Literatura tornara-se crescente.

 Não por acaso, Nicole Albert observa que:

“Paradoxalmente, é no momento no qual os romancistas ousam dar espaço às lésbicas no âmbito da literatura popular que helenistas e filólogos buscam impor a imagem de uma Safo virtuosa. (…) Na França, a maior parte dos filólogos mostram-se tão conservadores como seus colegas germânicos ou anglo-saxões. No entanto, outros eruditos (…) defendem a perspectiva de uma Safo sexualizada, quiçá lésbica, associando-lhe a uma Antiguidade grega onde os excessos e o luxo sobrepujam as virtudes”. (Albert, 2005 : 21. Tradução livre do original francês).

 Excerto que nos permite realçar o fato de que, efetivamente, em se tratando de Safo e da sua (homos)sexualidade, o território discursivo está longe de ser unívoco. Pois, se por um lado, muito antes do século XIX, isto é, já no século XVI, a concepção de uma Safo “heterossexual” parece ter a pretensão de se firmar como predominante – o que pode ser em grande medida tomado como um eco da sua representação nas Heroides de Ovídio (I a. C.), onde Safo aparece como a autora de uma carta amorosa destinada a Faon.

 Por outro, lado é interessante reconhecer que, já no século seguinte, mais precisamente na segunda metade do século XVII, na sua edição dos poemas de Safo lançada no ano de 1660, o erudito francês Le Fèvre não hesitaria em afirmar que a poetisa amava mulheres, sem no entanto emitir julgamento algum relativo a isto (Boehringer; Rebreyend, 2003: 368). Reconhecimento que, ademais, também pode ser creditado como um outro eco da missiva ovidiana de Safo a Faon. Uma vez que, ao longo deste texto - levando-se em conta a análise da carta ovidiana/sáfica recentemente feita por Sandra Boehringer -, podemos considerar que Ovídio dá voz a uma Safo que faz questão de evocar seus amores passados por mulheres. Evocação pertinente como recurso retórico comparativo que lhe permite realçar ainda mais o valor presente do seu amor por Faon (Boehringer, 2007: 218-223).

 Além disso, é interessante ressaltar que no mesmo século XVII, algumas mulheres escritoras não hesitariam em associar seus nomes ao da poetisa Safo. Sobretudo, certo, como modo de realçar a qualidade literária dos seus escritos; sem no entanto necessariamente procurar assumir uma postura defensiva que pudesse evitar que elas fossem eventualmente associadas aos rumores relativos aos amores transgressores da poetisa de Lesbos.

 Neste sentido, a atitude da escritora francesa Madeleine de Scudéry (1607-1701), que se auto-intitulava como “Sapho” com o objetivo inequívoco de realçar a qualidade literária da sua obra, é exemplar. Além do que, no seu romance Artamène où le Grand Cyrus (1649-53), M. de Scudéry não hesitaria em fazer figurar Safo, reconhecendo sutilmente o seu interesse erótico por mulheres. Atitude que, ademais, encontra também continuidade entre algumas escritoras inglesas ao longo do século seguinte. Escritoras que não hesitarão em se indentificarem e se congratularem entre si por intermédio de referências à poetisa de Lesbos, sem no entanto – à diferença de grande arte de seus colegas homens – mostrarem-se preocupadas em se desvencilhar dos rumores associados à Safo como amante de mulheres. (Andreadis, 1996: 113).    

Este reconhecimento explícito de Safo como uma amante de mulheres não por acaso se faria ecoar até mesmo em domínios outros, como o da literatura médica bem anterior ao século XIX. Um bom exemplo disso é encontrado no texto da tradução e atualização para o inglês, feita por Thomas Bartholin, de um tratado médico que havia sido escrito em latim, por seu pai, Caspar Bartholin, no ano de 1633: o Anatomicae Institutiones Corporis Humani. Visto que, na versão traduzida e revisada, publicada vinte anos depois do texto original, na parte em que trata do clítoris e suas (dis)funções manifestas pelas tribades e conficratitrices nomes dados às práticas sexuais entre mulheres no âmbito dos tratados médicos ainda escritos predominantemente em latim, ao longo do séculos XV e XVI, - deparamo-nos não apenas com o nome de Safo, mas também com outro célebre nome: Filenis.

Neste contexto, estas duas figuras pertencentes ao universo literário antigo, encontram-se mencionadas como nada mais nada menos que as inventoras das lascivas práticas (homos)sexuais entre mulheres. Isto disto, vale ademais notar que, bem antes de Safo, Filenes, quer ela tenha efetivamente existido ou não, trata-se nada mais nada menos não somente do mais célebre dentre os nomes de autoras de supostos manuais eróticos os quais vários textos antigos evocam; mas também de uma persona cujo nome aparece associado a cada uma das respectivas ocorrências do termo tribas - assim como do adjetivo grego que lhe é derivado(tribaké). Refiro-me respectivamente: aos Epigramas VII, 67 e 70 de Marcial (I a.C.), e ao diálogo Amores (27-29), atribuído a Pseudo-Luciano, cuja datação pelos editores resulta ainda bastante incerta - variando entre o final do II século e o início do século IV d.C.  (Boehringer, 2007: p. 277-314).   

O que, por sua vez, remete a uma constatação curiosa aos olhos modernos, hoje acostumados a associar a temática da “homossexualidade feminina na Antiguidade” à figura da poetisa de Lesbos. Isto é, ao contrário da figura de Filenes, que aparece caracterizada em um dos epigramas de Marcial como “a tríbade dentre as tríbades” (ipsarum tribadum tribas); considerando os texto antigos que chegaram até nós, Safo, por sua vez, aparece desqualificada como tribas apenas uma única vez: em um comentário que data do começo do século III a.C. (Commetum in Horati Epistulas, 1. 19, 28, 3) Exemplo que aponta para a curiosa constatação de que, se até pelo menos o século II d.C. pode-se eventualmente evocar a temática do amor entre mulheres ao falar de Safo (e já em tom reprobatório cf. Oxyrhynchus Papyri, XV, 1800, fr. 1 col. 1.16 ff.; Suda Σ 107); entretanto, ao falar dessa temática ela mesma, não era ao nome da poetisa que se costumava recorrer, mas mas sim ao de Filenes (Boehringer, 2007: p. 313).    

Em todo caso, fato notório é que a entrada da figura de Safo na cena literária encontrar-se-á séculos depois caracterizada seja por discursos que hoje estaríamos tentados a qualificar como lesbofóbicos; seja por uma simpatia e mesmo uma profunda identificação à sua fama de amante de mulheres. O reconhecimento da qualidade dos poemas que lhe são atribuídos, ou melhor do pouco que nos resta deles, ficaria porém como um ponto de discussão pacífico para ambos os lados. Do que temos exemplo, seja ao considerarmos sua recepção no âmbito das obras de Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal, 1857) e de Paul Verlaine (“Sappho”, Parallèlement, 1889), no final do século XIX. Assim como ao nos voltarmos ao começo do século XX, onde encontrarmos a figura da poetisa usada de forma outra no âmbito dos trabalhos de algumas poetisas como Rénée Vivien e Natalie Clifford Barney (Actes et entr’actes, 1910). Para ficarmos apenas com alguns exemplos de autores, cuja presença na cena literária francesa foi e/ou é ainda marcante.     

Renée Vivien escreveu versos onde não apenas a inspiração sáfica, mas também a invocação nominal de Safo encontram-se presentes. Poemas que foram reunidos em duas coletâneas : a primeira Études et Préludes, publicada em 1901 e em seguida Cendres et poussières, de 1902. R. Vivien foi também a segunda mulher a traduzir os poemas de Safo para o francês – a primeira tradução tendo sido feita por Anne Dacier, em 1681. Tradução publicada no ano de 1903 sob o título Sapho, traduction nouvelle avec le texte grec. Edição composta por um “Prefácio”e por uma “Biografia de Psappha”, ambas escritas por Renée Vivien, às quais se seguiam uma versão em prosa e a tradução em verso dos fragmentos da poetisa de Lesbos. Vale também ressaltar que o nome da autora, que até então aparecia sob a forma abreviada “R. Vivien”, vai aparecer pela primeira vez na capa desta edição. Assim, o gênero de quem a escrevera tornava-se pela primeira vez explícito: “Renée Vivien” (Vivien, 2007).

Entretanto, fato é que os discursos lesbofóbicos eles mesmos jamais cessariam, para muito além dos debates em torno de Safo e de seus fragmentos. Nós os identificamos mesmo em algumas manifestações produzidas por militantes do M.L.F (Flamant, 2007: 15). Não surpreende, pois, que no âmbito universitário francês, apesar de todas as mudanças trazidas pelos esforços de inscrever as mulheres na História, a primeira tese a introduzir a temática das relações afetivas e sexuais entre mulheres seria defendida apenas no ano de 1979, sob a orientação de Michelle Perrot. Trata-se da obra escrita pela historiadora Marie-Jo Bonnet, que seria publicada pela primeira vez em 1981 (Un choix sans équivoque), e reeditada anos depois sob o título Les Relations amoureuses entre les femmes du XVIe au XXe siècle. Neste sentido, vale ainda ressaltar que, na França, o primeiro curso universitário dedicado explicitamente à homossexualidade remonta ao recente ano de 1998 – curso que, se certamente não era o primeiro a bordar a temática, foi formalmente o primeiro a trazer o tema explicitado no nome dado à disciplina (Gaspard, 2007: 232).

Quanto às pesquisas desenvolvidas na área de Antiguidade grega e romana, ainda na França, um livro inteiramente dedicado à temática da homossexualidade feminina seria publicado apenas no ano de 2007 (Boehringer, 2007). Trabalho que é resultado da pesquisa de doutorado feita por Sandra Boehringer : L’homosexualité féminine dans le discours antique : les relations sexuelles et amoureuses entre femmes dans la construction culturelle et les représentations littéraires des catégories sexuelles grecques et romaines. Tese cuja defesa ocorrera no ano de 2003, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, sob a orientação de Luc Brisson (Leite, 2013).

Não causa surpresa que com os progressivos ingressos das mulheres (incluindo a temática do amor entre elas) na historiografia, Safo aos poucos passe a ser reivindicada como a figura histórica que teria pela primeira vez deixado traços capazes de enunciar e fazer ouvir uma “voz feminina” e/ou a expressão do homoerotismo feminino na história (Leite, 2009). Partindo desta perspectiva, encontramos Édith Mora afirmando sem hesitação, no capítulo de introdução que precede suas traduções dos poemas da poetisa de Lesbos, publicada em 1966, que Safo representaria “(...) a única voz feminina, a única percepção emitida por uma mulher que temos acerca de um mundo que não conhecemos que pelo intermédio dos homens” (Mora, 1966: 10. Tradução livre do original francês).

A historiadora Marie-jo Bonnet, por sua vez, no entanto insistiria sobretudo na hipótese de que os fragmentos de Safo representam a primeira “voz lésbica”, cujo apagamento teria se dado em decorrência do fato de que o que chamamos hoje de lesbiandade provoca medo, tendo sido por isto “(...) julgado como imoral, intolerável e inaudito desde o século que se seguiu à morte da poetisa (...)”(Bonnet, 2004: 23. Tradução livre do original francês). Desaparecimento que, no entanto, não coincide com o quadro que Sandra Boehringer oferece-nos como resultado de suas análises sobre a presença de Safo e dos discursos acerca das relações entre mulheres, ao longo dos períodos ditos arcaico, clássico e helenístico. Mas ao contrário, uma vez que essa pesquisadora observa que:

Excluídas do campo sexual, mas associadas a uma forma de erotismo durante o período arcaico, objeto de silêncio no período clássico, por serem desconsideradas como parte do campo social (e, por conseguinte do sexual), as relações sexuais entre mulheres passariam a ser percebidas de outras formas durante o período helenístico. No entanto, apesar da distância temporal destes textos, suas naturezas distintas e das transformações que acabamos de indicar, podemos destacar duas constantes presentes nos discursos gregos: a ausência de condenação moral relativa às relações entre mulheres em si e a indistinção referente às duas parceiras envolvidas.” (Boehringer, 2007: 205. Tradução livre do original francês).

Ademais, não é excessivo sublinhar que, de acordo com as análises feitas por esta autora, avaliações de fato explicitamente negativas relativas à temática das relações entre mulheres são relativamente tardias quando consideramos o conjunto dos discursos gregos e romanos antigos. Elas remontam aos primeiros séculos de nossa era e, ainda assim, sua carga negativa encontra justificativas e particularidades que devem ser analisadas no contexto discursivo e cultural em que elas emergem. Pois só assim podemos ser capazes de mensurar de modo mais sensato seus respectivos valores culturais e, sobretudo, morais, quanto à sua representatividade para uma dada época. 

Isto dito, podemos finalmente passar à análise da imagem de “Safo”, assim como da “voz sáfica” que podemos encontrar, ao longo dos três textos de M. Wittig já mencionados: Le Corps Lesbien, Brouillon pour un Dictionnaire des Amantes e “Paradigmes”. Escritos que foram escolhidos, uma vez que acreditamos que aí, a (voz da) poetisa Safo manifestada repetidas vezes,  passa a excercer a função de uma “(voz) lésbica” paradigmática.

 

A Safo de Wittig : inversão, desvio e transgressão ?

 

Começamos por insistir que a ideia da existência de uma “voz feminina” em nenhuma medida condiz com as concepções defendidas por M. Wittig. Conceito, entretanto, defendido por autoras qualificadas como “feministas diferencialistas” tais como Hélène Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray - ademais conhecidas no âmbito de certos meios universitários, sobretudo estado-unidenses, como as representantes de um « French feminism » (Skinner, 1993).

Rejeição wittigiana que aparece explicitamente quando a autora faz crítica a outro conceito: o de “escrita feminina”. Desaprovação evidenciada em um artigo de 1982, intitulado “Le point de vue universel ou particulier” (texto inicialmente publicado como prefácio do livro La Passion, de Djuna Barnes), onde logo de início ela questiona:

“[…] o que significa este ‘feminino’ de ‘escrita feminina’ ? Ele remete a ‘a-mulher’. Este adjetivo acaba por fundir, assim, uma prática (o ato de escrever) com um mito, o mito de que existe ‘a-mulher’. Porém ‘a- mulher’ não pode ser associada com o ato de escrever, pois ela é uma ‘abstração imaginária’ e não uma realidade concreta (...). ‘Escrita feminina’ trata-se pois da metáfora naturalizante de um fato político brutal: a dominação das mulheres e, como tal, ela engrossa a estrutura sobre a qual a ideia de ‘feminilidade’ expande-se: Diferença, Especificidade, Corpo/Fêmea/Natureza.” (Wittig, 2007: 89. Tradução livre do original francês).    

Isto posto, arriscamos avançar uma primeira conclusão: para M. Wittig, os fragmentos de Safo jamais poderiam ser percebidos como enunciadores de uma voz “diferente”, porque “feminina”; o que curiosamente a aproximaria das conclusões defendidas, entre outros, pelo helenista Claude Calame. Visto que, no seu estudo sobre o conjunto dos discursos amorosos produzidos pelos helênicos durante o período dito arcaico, este pesquisador mostra que “na esfera linguística e poética, a diferença de gênero parece se apagar. Pois ao falar sobre os efeitos de Eros, homens e mulheres adotam a mesma linguagem”. (Calame, 1996: 71; Tradução livre do original francês).

Outro traço que nos aparece como uma evidência, ao ler esse excerto wittigiano que acabamos de reproduzir, é o fato de que, para a autora, a escrita é compreendida como um ato, um ato político. Ao escrever ela coloca em ação um projeto político bastante claro. Trata-se de uma crítica radical a um contrato que, a seu ver, regula a nossa sociedade: o contrato social da heterossexualidade[4], cujos produtos mais eficazes parecem ser as noções de “Mulher” e de “Homem”. “A-mulher”, no entanto, existe apenas no âmbito de um “regime de gênero” – que defino assim para fazer eco ao conceito proposto pela pesquisadora V. Sebillotte (Sebillotte-Cuchet, 2012) – que é sustentado por uma heterossexualidade normalizada que impõe uma série de prerrogativas.

Foi, portanto, seguindo esta mesma lógica que M. Wittig concluiu uma comunicação intitulada “La Pensée straight” (1978) – e que em seguida seria publicada em francês e inglês sob forma de artigo (1980) – com uma declaração que acabaria por se tornar célebre: “As lésbicas não são mulheres” (Wittig, 2007: 61. Tradução livre do original em francês). Pois, elas rompem com as premissas basilares do contrato social vigente: elas não se relacionam sexualmente com homens, a priori elas não se reproduzem, e tampouco tendem a reproduzir os sistemas de pensamento e econômicos heteronormativos. Nesta perspectiva, é que propomos avançar a hipótese de que, invocada no âmbito do projeto wittigiano de escrita, “Safo” aí só poderia incarnar a persona de uma “lésbica radical”, cuja voz hoje enunciada por meio de alguns fragmentos é intencionalmente interpretada e transcriada como uma “voz lésbica” (Snyder, 1997).

Deste modo, cabe não esquecer o fato de que “Safo”, sua voz, sua memória, são elementos de uma cultura grega historicamente (re)construída e no mais das vezes valorizada pelo Ocidente. Posição que, consequentemente, investiu a poetisa e suas composições de uma autoridade cultural nada desprezível, da qual também M. Wittig vai saber se servir (Marks, 1979: 359). Pois, para legitimar sua proposta política – veiculada também pelos seus atos de escrita - onde a lesbiandade seria (re)significada como uma inversão, um desvio, uma transgressão positiva, essa autora não hesitará em usufruir da figura de Safo, assim como dos fragmentos a ela atribuídos.

Não por acaso o nome desta poetisa seria evocado pelo menos 22 vezes ao longo do livro Le corps lesbien. (Omin)Presença que, um único parágrafo desta obra, é capaz de atestar amplamente:

  “J/e Prie Sappho celle qui plus que la lune a luisance parmi les constellations de notre ciel. J//implore Sappho à voix très haute. J/e demande à Sappho la très puissante de faire à ton front comme au m/ien les signes de son étoile. J /e sollicite Sappho la très souriante de faire passer sur toi comme sur m/oi les souffles qui font pâlir quand nous regardons le ciel et que le soir vient. J/e m/e mets debout alors à côté de toi face à la mer. J//attends que viennent les comètes dans des éclairs fuligineux, elles sont là grâces en soient rendues à Sappho, elles sont tombées les pierres de son étoile, celles qui ont marqué le haut de ta joue à hauteur de la tempe d’un sceau violet tout comme la m/ienne, gloire à Sappho pour aussi longtemps que nous vivons dans ce continent noir”. (Wittig, 2004 [1973]: 58. Eu destaco).

Além disso, como este breve excerto permite entrever, M. Wittig compõe um verdadeiro texto-hino repleto de imagens de uma cultura grega dita clássica, assim como de referências bíblicas, particularmente do livro “Cântico dos cânticos”. Alusões cujos exemplos são abundantes ao longo de todo o texto, e que a cada vez são feitas de modo marcadamente subversivo (Bourque, 2006). Contudo, aqui ressaltaremos apenas alguns elementos cuja inspiração remonta aos fragmentos da poetisa de Lesbos, sejam eles tomados como modelo formal, seja como fonte principal de inspiração poética. Isto, no intuito de reafirmar a ideia de que M. Wittig acaba por compor uma espécie de “texto bíblico segundo Safo” (Écarnot, 2002: 72).

 A chamada “Ode a Afrodite”, assim como o fragmento 31 que começa pelos versos “Parece-me ser par dos deuses””(Voigt, 1971) , sem dúvidas trata-se de uma dessas referências sáficas tomadas de empréstimo por Wittig, e especialmente privilegiadas no seu Le corps lesbien. Texto ao longo do qual os efeitos físicos devastadores causados pelo desejo erótico são (quase) mortais, como o são no caso deste fragmento sáfico que acabo de citar - em que a voz poética, enunciando em detalhes físicos os efeitos causados pela presença também física da amada, dá voz à proximidade da sua morte ((...) e bem perto de estar morta pareço eu mesma”).  

 Assim, de modo a tornar um outro aspecto destas inspirações sáficas presentes na obra de M. Wittig mais amplamente mensurável; aspecto perceptível por meio do excerto wittigiano citado acima: o tom de ode/hino no qual a figura invocada é Safo, reproduzimos a seguir uma tradução da dita “Ode a Afrodite”. Hino no qual a enunciadora, que fala em primeira pessoa e faz-se nomear por sua interlocutora direta (Afrodite), como “Safo”, é quem mais uma vez invoca a voz e a presença da deusa do amor:       

De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite,

filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:

não me domes com angústias e náuseas,

veneranda, o coração,

mas para cá vem, se já outrora –

a minha voz ouvindo de longe – me 

atendeste, e de teu pai deixando a casa

áurea a carruagem

atrelando viste. E belos te conduziram

 velozes pardais em torno da terra negra –

rápidas asas turbilhonando céu abaixo e

 pelo mar éter.

De  pronto chegaram. E tu, ó venturosa,

Sorrindo em tua imortal face,

Indagaste por que de novo sofro e por que

de novo te invoco,

e o que mais quero que me aconteça em meu

desvairado coração: “Quem de novo devo persuadir

(?) ao teu amor? Quem, ó

Safo, te maltrata?

Pois se ela foge, logo perseguirá;

e se presentes não aceita, em troca os dará;

e se não ama, logo amará,

mesmo que não queira”.

Vem até mim também agora, e liberta-me

 dos duros pesares, e tudo o que cumprir meu

coração deseja, cumpre; e, tu mesma,

sê minha aliada de lutas.

(Fr. 1, trad. do grego por Ragusa, 2005: 424-426)

Vale notar ainda que há um outro aspecto que, intencionalmente ou não, também aproxima os textos wittigianos dos poemas atribuídos a Safo tais como eles sobreviveram até os nossos dias: seu estado ‘em fragmentos’. Os textos wittigianos são também eles construídos, e neste caso intencionalmente, como uma espécie de colcha de retalhos composta por diversos fragmentos culturais. Fragmentos de uma cultura ocidental repleta de (pois em boa medida construída por) inter-ditos, dentre os quais encontramos fortes traços de rejeição social (também) às lésbicas que, por sua vez, enquanto sujeitos ativos passam agora a criticar, a renegar, a denunciar o sujeito que esta cultura (re)produz: pretensamente acabado e unificado, ilusório-construto que nada mais é do que fruto de um contrato social arbitrário. Território social onde, consequentemente, as lésbicas não poderiam se constituir que como sujeitos cindidos. Sujeitos que M. Wittig buscará representar em seus escritos, por intermédio dos pronomes pessoais e (adjetivos) possessivos em primeira pessoa assim grafados: “J/e”, “J//e”, m/e,“m/oi”, “m/ienne”.

Neste sentido, nunca é demais lembrar ainda uma vez que, até recentemente, as lésbicas pouco haviam se beneficiado de elaborações de memórias, assim como de outros espaços de produção socio-cultural, como é o caso da historiografia que é muitas vezes (re)produzida. Assim, talvez seja justamente isto, que o vazio que informa o verbete “Sappho”, no Brouillon d’un dictionnaire des amantes, deseja mostrar, testemunhar, manifestar sutil, mas categoricamente (Wittig, 2011 [1976]: 188).

 Além disso, apesar deste vazio marcante, e no intuito de talvez em parte preenchê-lo, é necessário destacar que Safo encontra-se presente ao logo de todo o dicionário. Seu nome é mencionado em ao menos 11 verbetes[5] que compõem este léxico produzido por/para “amantes” (que o são as autoras e talvez suas leitoras). Safo torna-se então, nada mais nada menos do que a amante paradigmática. O que aliás é explicitado logo de início pelo verbete “Amantes”, visto que aí as amantes são assim definidas :

“As amantes são aquelas que, sentindo um desejo violento e mútuo, vivem/amam (...) seguindo o que dizem os versos de Safo (…)” (Wittig, 2011 [1976]: 14. Tradução livre do original francês. Eu destaco).

Safo reafirma-se ainda como a amante paradigmática se levarmos em conta a sua  presença igualmente significativa em duas das seis entradas que compõem um artigo publicado em inglês cerca de dois anos após o Brouillon: “Paradigmes” (Wittig, 2007 [1979]). Nessas duas entrada consecutivas : “Lesbianisme” e  “Lesbiennes”, a poetisa de Lesbos será qualificada como uma escritora tomada como representante singular do que M. Wittig define como “a mais formal das representações da cultura lésbica” manifesta no passado remoto. Segundo M. Wittig, ainda que o que resta dos textos de Safo pouco nos permite afirmar com certeza, isto porém não nos impede de considerá-los como produtos de uma “sociedade de resistência”, “anti-heterossexual”. O que a seu ver, poderia ainda explicar o forte e predominante silêncio e/ou rejeição relativos a essa cultura e suas produções.

Desse modo, M. Wittig não hesitará em propor que Safo e seu  “círculo” possam ser tomados pelas lésbicas e feministas de seu tempo como:

 “[...] um modelo único de uma cultura de mulheres não dominadas, uma cultura que existiu fora do campo social heterossexual, onde os indivíduos praticavam uma subjetividade que não era de forma alguma marcada por uma função reprodutiva suposta como sendo especificamente feminina”. (Wittig, 2007 [1979]: 84. Tradução livre do original francês).

Ora, para rebater esta leitura expressa acima, bastaria retomar algumas das observações feitas ao longo da segunda parte desse artigo, que coloca em questão sobretudo a ideia de que os poemas de Safo teriam sido rejeitados e/ou silenciados desde a Antiguidade. Premissa cuja ilegitimidade torna-se evidente, visto que em inúmeros comentários antigos – que datam pelo menos desde o I século a.C. – encontramos sobretudo elogios à qualidade da poesia sáfica. Além, disso, o fato mesmo que os poemas atribuídos a Safo - cuja composição remonta muito provavelmente ao VI século a.C. – tenham sobrevivido por muitos séculos antes de serem fixados sob forma escrita, tornam pouco plausível a hipótese de que o “círculo poético” de poetisa tenha funcionado como uma instituição à margem da sociedade lésbica.         

Isto dito, poderíamos pois afirmar que todo e qualquer pressuposto wittigiano acerca de Safo confirmam o fato de que não sendo esta autora uma especialista na área de Estudos Clássicos, ela tenha sido levada a levantar hipóteses historicamente contestáveis? Poderíamos também dizer que, demasiadamente preocupada com seu próprio projeto político, ela tenha acabado por sustentar presupostos históricos excessivamente ingênuos? Talvez. Mas suspeito que se trata, sobretudo, de uma escolha sáfica que opta por interpretações e atos de escrita politicamente bem informados, que reivindicam uma criatividade capaz de inverter, desviar e transgredir (re)produções socio-culturais.  

         

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Nota Biográfica:

Letticia Batista Rodrtigues Leite possui licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2006) e mestrado em História Cultural pela mesma instituição (2009). Atualmente é doutoranda (Bolsista CAPES - Doutorado Pleno) - Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (Orientadora: Dra: Violaine Sebillotte Cuchet. Tutor no Brasil: Dr. Pedro Paulo Abreu Funari). Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia grega antiga (crítica e recepção), memórias, identidades, críticas feministas, estudos de gênero e sexualidades, homo(lesbo)erotismo.


 

[1] No que diz respeito à denominação “M.L.F” convém ressaltar que: « Avant que les médias ne le siglent M.L.F. après l’action spectaculaire de l’Arc de triomphe en août 1970 (…), c’est le terme ‘Mouvement’ qui avait la faveur des féministes pour désigner le Mouvement de Libération des femmes en France. Suffisamment englobante, cette auto-nomination devait permettre de résister à toute nomination venue de l’extérieur et éviter une appropriation restreinte et non-représentative des multiples tendances féministes françaises ». (Bourcier, 2007 : 27, nota 15)

[2] O título original do artigo era: “Pour un mouvement de libération des femmes”.

[3] Entre elas: Colette Capitan Peter, Christine Delphy, Emmanuèlle de Lesseps, Nicole-Claude Mathieu et Monique Plaza. Vale ainda destacar, que a revista existe ainda hoje sob o nome que passou a ser usado a partir do ano de 1981: Revue Nouvelle Questions Féministes – publicação retomada sob a égide de Simone de Beauvoir, Christine Delphy, Claude Hennequin e Emmanuèlle de Lesseps.  

[4] Faz-se aqui referência ao artigo « À propos du contrat-social ». Texto que foi apresentado primeiramentre na forma de uma comunicação oral, como parte do programa do encontro Rencontres internationales sur les cultures gay et lesbiennes, organizada pela Revues parlées do Centro Georges Pompidou, entre os dias 23 e 27 de junho de 1997.      

[5] Ver, entre outros, os seguintes verbetes: “Anactoria”, “Atthis”, “Damophyla”, “Erinna”, “Gamme”, “Gongyla”, “Graal”, “Latone et Niobé”, “Pleistodika”.

 

 *Este artigo é uma reelaboração e tradução feita a partir de uma primeira versão escrita em francês, intitulada « Sappho lesbienne radicale ? Pour une étude de la fonction d’une voix saphique mise en acte dans l’œuvre de Monique Wittig », que foi apresentada oralmente no Séminaire International en Résidence (06, 07 et 08 juin 2013) – Épineuil (Yonne) : « INVERSION, DÉTOURNEMENT ET TRANGRESSION : GENRE ET PRATIQUES SOCIO-POLITIQUES DANS L’ANTIQUITÉ GRECQUE ET ROMAINE ». A tradução é de minha autoria e inteira responsabilidade. 

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juillet /décembre / 2014  -julho/dezembro 2014