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janvier / juin 2015 -janeiro/juin 2015

 

 

Memórias de uma professora malcomportada: feminismos, crítica e cidadania como prática docente

Diva do Couto Gontijo Muniz

                                                                                               

Resumo:

O presente artigo é um exercício de memória acerca de meu percurso profissional, do ensino fundamental ao superior, como educadora, historiadora, feminista e cidadã. Nesses nossos tempos cada vez mais acelerados, sem memória, em que a experiência é vista negativamente, relembro e historicizo a construção de meu espaço de fala no mundo do trabalho como professora “malcomportada”. Trata-se de identificação engendrada em meio a uma experiência profissional comprometida com um projeto de formação cidadã que interpela a crítica feminista e uma história pensada como possibilidade e não exatidão. Compreende-se, assim, uma localização no mundo, e no mundo do trabalho, comprometida com o desafio e a tarefa educacional de promover mudanças em direção a uma sociedade cidadã; a uma cultura de respeito às diferenças e ao direito de escolha das pessoas.

Palavras-chave: professora “malcomportada”, feminismos, história, memória, cidadania.

 

No doutorado fui (...) aluno da professora Diva, em um curso com muita discussão que mexeu com toda a sala, fazendo com que nós, de alguma maneira, deixássemos a indiferença de lado e nos posicionássemos frente aos embates. Acredito que ninguém saiu imune daquele curso, um dos mais estimulantes, provocativos e inspiradores ao debate e à reflexão que já fiz na vida. (MELLO, 2014: 02)

            Diante de um reconhecimento e agradecimento públicos, como esse do aluno Ricardo Mello, seria possível a alguém, cujo percurso profissional foi construído na experiência da e com a educação formal, não mostrar-se sensibilizado? Até mesmo envaidecido? Suas palavras, Ricardo, não tenho pruridos em confessar, massagearam meu ego... Mais do que isto: elas realimentaram a velha chama combativa que me habita e me impulsiona como profissional indissociada da pessoa, ser político, que sou: mulher, historiadora, feminista, humanista, afetiva, intensa, inconformada, cidadã. Elas revitalizaram meu compromisso com um projeto de formação cidadã, centrada em uma prática docente crítica, criativa e reflexiva; ou seja, politizada, desnaturalizadora e transformadora. Elas vieram em momento oportuno, pois já me encontrava bem desestimulada, sem muitas expectativas quanto às suas potencialidades subversivas nesse contexto em que a experiência tem sido negativamente significada, identificada como entrave à imaginação criativa e criadora. Elas reafirmaram, enfim, minhas escolhas no campo da história, da educação e do feminismo como condições de possibilidades de promover mudanças em direção a uma sociedade mais justa, que inclui uma cultura de respeito às diferenças.

            Ao ser reconhecida pelo aluno como professora de um curso avaliado como “um dos mais estimulantes, provocativos e inspiradores ao debate e à reflexão”, e do qual “ninguém saiu imune”, já que “mexeu com toda a sala”, sinto-me também intimada, como toda aquela turma, a deixar a “indiferença de lado” e me posicionar “frente aos debates” (Idem, ibidem). Penso que nem tudo está perdido nesses nossos tempos cada vez mais acelerados, sem memória, em que as pessoas confundem seu conhecimento com o acessado e acessível na internet, em que a conectividade estimula a cópia sem espírito crítico; abriremos a barriga do lobo... Afinal, foi justamente, essa, a orientação que norteou minha atuação como professora, do ensino fundamental ao superior: ver e refletir sobre como as coisas aconteceram para poder mudá-las. Em meio às minhas incoerências, reconheço, porém, a coerência com esse meu compromisso com uma prática de ensino e pesquisa preocupada em criar espaços para o exercício da autonomia intelectual, da inquietação permanente, da interpelação constante. Reconheço que investi nessa prática, pensando a história não como sinônimo do passado e nem mesmo como projeto para “resgatar” um passado aleatório, que está lá, pronto para ser “revelado” pelo olhar arguto e sensível do/a historiador/a. Pelo contrário, compartilho  a concepção de uma história pensada antes como possibilidade do que como exatidão; daí descartar, aos do ofício, a inviável tarefa de fechar círculos, resgatar intenções, preencher lacunas. Como nos adverte Tania N. Swain, “os círculos não existem, as intenções são fantasias e as lacunas devem ser mostradas porque são constitutivas do discurso” (SWAIN, 2006).

            Trata-se, portanto, de um modo de ver e de praticar a história solidária ao daquela historiadora cuja proposta desafiadora é a de uma “história possível”, isto é, “capaz de criar e suscitar mudanças, de perseguir incansavelmente a diversidade para escapar à trama do unívoco, do homogêneo, da monótona repetição do mesmo” (SWAIN, 2006: 05). Ao relembrar meu percurso, reconheço-me identificada, desde o início, com essa leitura feminista do mundo. Penso que meu encontro com os feminismos ocorreu mesmo antes de conhecê-los, como militância e/ou aporte teórico; o que nos aproximou, o traço que nos uniu, foi justamente o da postura combativa e inconformada que nos abriga e nos fortalece.  Ancorada em meu tempo presente, reconheço que foi sob muitas de suas referências que fui modelando-me e, ao mesmo tempo, sendo também modelada, como profissional e pessoa crítica, questionadora, intensa, inconformada, transgressiva, feminista. Enfim, como “professora malcomportada”, para agrado/desagrado de muitos gregos e várias troianas...

            Com efeito, apesar da menina e aluna “bem-comportada” que fui (MUNIZ, 2014: 252-261), relembro que ao ingressar no magistério, com incompletos dezoito anos, fui esculpindo-me e, ao mesmo tempo, sendo também esculpida como professora “malcomportada”. Eu era aquela que perturbava a ordem escolar, pois, em meu inconformismo profissional, questionava a “monótona repetição do mesmo” no cotidiano escolar. No desejo por suscitar mudanças, priorizei uma prática docente que investia nas possibilidades de escapar do marasmo da rotina escolar e, nesta, da “trama do unívoco”. Enfrentei muitas críticas, combati o bom combate, defendi a igualdade, persegui a diversidade, o debate, a curiosidade, a reflexão, o senso de cooperação e de responsabilidade. Penso que busquei construir uma cultura de respeito ao outro. Alguma semente deve ter brotado dessa semeadura; espero que tenha dado frutos...

            Suspeito que para a maioria das diretoras das escolas primárias onde lecionei minha atitude combativa e desestabilizadora trazia-lhes, no mínimo, algum desassossego. Eu era a professora concursada e “malcomportada” que as desafiava para sair da zona de conforto em que se encontravam instaladas, baseada na rotina escolar, supostamente controlada e controlável. Eu era a professora “malcomportada” porque me recusava a repetir as mesmas e velhas técnicas pedagógicas, as mesmas conhecidas “receitas” para se fazer um insípido bolo, porém bolo. Eu era a professora “malcomportada” também, e suspeito que principalmente, porque era estudante universitária, de “esquerda”, já que aluna do curso de História da UFMG, identificado como um dos focos da oposição ao regime militar imperante. O aparato militar e policial por ele montado entre 1964 e 1984 seguia e perseguia professores e estudantes universitários suspeitos de qualquer relação ou simpatia com as ideologias tidas como de “esquerda”, fossem de origem marxista, leninista ou trotskista. Discriminada na escola primária, dela saí antes que me criminalizassem por minhas posições político-pedagógicas. Deixei-a no final dos anos sessenta, antecipando-me ao proposto no slogan do governo militar dos anos 70, que expressava sua face violenta e intolerante com a diferença, e que circulava por toda parte: Brasil, ame-o ou deixe-o! O mais desesperançoso é saber que atualmente ainda existe muita gente no país que ainda pensa e defende tal máxima. Dessa gente, libera nos domine!

            Minha saída ocorreu também porque já concluíra a graduação e ingressei, por concurso público, no ensino secundário, correspondente ao atual ensino médio. Nas escolas aonde atuei como professora de história, mantive meu compromisso com uma formação crítica e questionadora, apesar e por conta do governo militar. Afinal, não eram, essas, as orientações emanadas das secretarias de educação desse mesmo governo e explicitadas nas propostas curriculares para o ensino de história? De minha parte, e desconfio que também na de muitos outros professores e professoras de história, procurei, efetivamente, operacionalizar os objetivos registados nos tediosos planos de unidades que eram, pontualmente apresentados à coordenação do curso: “desenvolver a consciência crítica”, “formar o espírito cívico”. É bem verdade que algumas estratégias e táticas de ação foram mobilizadas para tal nos usos que fiz das chamadas “brechas” do sistema. Elas foram operadas não pelo confronto direto e explícito, mas por meio de mecanismos e escolhas minuciosas, infinitas e sutis, incorporando a linguagem da dominação e reempregando-a para marcar minha insistência, tal como definiu Roger Chartier para se referir à “tática do consentimento” (CHARTIER, 1995: 42). Nesse sentido, continuei sendo uma professora “malcomportada”, ainda que sob o manto protetor de uma mestra “bem-comportada”.

            No final dos anos 1980, em pleno movimento de redemocratização do país, que incluiu repensar a sociedade brasileira, suas instituições, a educação, a história e seu ensino, repensei também minha vida profissional. O projeto, acalentado desde que concluí o mestrado, de ingressar no ensino superior tornou-se, então, exequível com a abertura de concursos públicos nas universidades federais, envolvidas também, é claro, naquele movimento. Tornei-me então docente do Departamento de História da Universidade de Brasília, iniciando uma nova fase em meu percurso profissional, uma relação com o campo disciplinar da história sob novas condições.

            Com efeito, liberdade de pensamento, expressão e ação foi uma dessas novas condições, ou melhor dizendo, trata-se mesmo de exigência incontornável ao exercício acadêmico em suas atividades de pesquisa, ensino e extensão. Penso que para todos aqueles docentes que, como eu, tiveram seu percurso profissional desenhado na/pela experiência de liberdade cerceada pelas práticas disciplinadoras e domesticadoras das escolas de ensino fundamental e médio, essa nova condição foi impactante. Liberdade para organizar cursos, indicar bibliografias, definir temas, recortes temporais, referências teóricas e metodológicas, desenvolver projetos de pesquisa, criar grupos de estudos, investir nas potencialidades das alunas e alunos. Enfim, liberdade para escolher e também como exigência mesma para atuar na vida acadêmica, participando, colegiadamente, dos debates e das decisões acerca das questões, atividades e iniciativas próprias daquele universo. Liberdade e autonomia, portanto, para o exercício de uma prática político-pedagógica questionadora, combativa, interpeladora e também reflexiva, criativa e cidadã, dentro e fora da sala de aula e dos espaços de pesquisa. Tive, então, a certeza de que havia encontrado finalmente meu espaço de fala e lugar de sujeito como historiadora, educadora e cidadã. Tive também um indisfarçado receio de que a “professora malcomportada” estaria, a partir dali, com os seus dias contados. Sou mesmo uma inconformada renitente; até às paredes confesso...

            Não por acaso, recusei o abrigo seguro da história tradicional, dos modelos explicativos, das teorias sociais globais, e fui construindo meu espaço de fala justamente no território que se estava ainda para ser conquistado, legitimado e compartilhado pelos pares. Posição arriscada que envolveria dali para frente duros e acirrados combates em defesa de uma história pensada como um discurso construído sobre o passado e sob a perspectiva de leitura do mundo como representação. Na escolha feita, minha localização no campo da história inscrevia-se e identificava-se com o movimento ali ocorrido, de ampliação de conceitos, objetos, problemas, abordagens, perspectivas e fontes. Minha visão de mundo e de escrita da história encontrava acolhida não apenas nesse movimento de alargamento do campo, mas também no de sua crítica externa e interna, de releitura de seus fundamentos epistemológicos, de ênfase ao texto e à linguagem; enfim, de mutação, vivido pela disciplina no contexto da “virada linguística”. Afinal, se entendo que o passado conta pelo que ele significa para nós, como nos ensina Chesneaux (1995: 23), então o saber histórico tem sentido: ele nos possibilita reconhecer e compreender nossa historicidade, operar nossa localização no presente, na sociedade em que vivemos – múltipla, diversa, complexa, tensionada e desigual. Localização, essa, que inclui a exigência de nos pronunciarmos quanto ao que defender e preservar e também ao que combater e mudar.

            Sob tais redirecionamentos, deslocamentos e redefinições, vistos por muitos que não queriam ser desalojados de suas zonas de conforto como fragmentação, esmigalhamento e perda da identidade da disciplina história, é que construí meu espaço de fala, como historiadora feminista. Ele ocorreu em meio a um processo iniciado a partir de minha posição combativa e inconformada diante do mundo e operado por um fazer profissional pautado na recusa a abordagens tradicionais, presas a modelos fechados de compreensão, bem como na renúncia às “definições clássicas dos objetos históricos” (CHARTIER, 2001: 116). E, sobretudo, na escolha por uma leitura aberta e atenta à diferença, à multiplicidade e à diversidade das experiências configuradoras dos sujeitos históricos. Trata-se de um fazer que se encontra sintonizado com aquelas referências nas diversas modalidades em que é traduzido – ensino, pesquisa, produção de conhecimento, publicações, orientações, comunicações, etc. Compreende, enfim, um fazer, um modo de ver e de atuar, aberto ao novo, às possibilidades, à instabilidade das categorias históricas, assim traduzido por Maria Odila Leite da Silva Dias:

Os historiadores procuraram no seu métier armar-se de métodos diferentes de abordagens para aceitar uma pluralidade de experiências históricas, sem lhes atribuir aspectos de desintegração, de inerente desordem ou anomia. Documentar experiências diversas de vida, aceitar conjecturas sociais fragmentadas que desafiam globalidades tidas como certas, racionais, coerentes em sistemas ideológicos pré-definidos (...) ainda faz parte da construção dos conceitos como o dos social por oposição ao político ou ao nacional. Interpretar o social implica passar pelo crivo de redefinição da cidadania política. (DIAS, 1998: 58)

O desafio de historicizar as experiências históricas implicou meu enveredamento para os domínios da cultura, acompanhando o movimento de crítica interna da disciplina que questionou a lógica do sujeito e das identidades, ao enfatizar o discurso “como prática instituinte, não como mero reflexo de um suposto real” (RAGO, 1998: 88) e a história como um discurso produzido do/sobre o passado e não como sinônimo dele. Operei, assim, um deslocamento em meu espaço de fala, acompanhando o ocorrido na historiografia: dos estudos sobre os excluídos para os estudos sobre as mulheres e, destes, para gênero, sexualidade, corpo, empoderamento, subjetividades, sensibilidades, etc.

            Direta ou indiretamente, o pensamento desconcertante de Foucault inspirou o movimento de crítica interno da história e de construção de uma epistemologia feminista. As reflexões do filósofo, crítico ferino e preciso da “história dos historiadores” (FOUCAULT, 1979: 27), informam os questionamentos sobre os silêncios historiograficamente produzidos, as exclusões operantes nas práticas discursivas, as relações entre saber e poder e sua operacionalidade na produção da lógica do sujeito e das identidades sociais e culturais. Ao projetar luz sobre campos até então ignorados pela historiografia e criar expressões capazes de traduzi-los e pensá-los, ao propor a mudança do foco da análise dos fatos e eventos para a análise do discurso, dos objetos previamente dados para as práticas discursivas que os constituem como tais, Foucault “revolucionou a história”, como bem avaliou Paul Veyne (1996). Com efeito, no caso da História das Mulheres, o desafio de incluí-las na história, de lhes conferir visibilidade historiográfica, não poderia ser feito sob os termos de um saber disciplinar que até então as excluía. Na busca por categorias próprias para falar delas, suas práticas, seus desejos, seus mundos, o encontro com o filósofo foi extremamente enriquecedor (RAGO, 1995: 69-70).

            Minha aproximação com o pensamento da diferença, particularmente via Foucault, foi fundamental para precisar os eixos estruturantes de meu espaço de fala. Foi sob seus questionamentos que elaborei a tese de meu doutorado – Um toque de gênero: história e educação em Minas Gerais (1835-1892) –, condição para ingressar no Programa de Pós-graduação em História da UnB e, dessa forma, ampliar minha atuação, e sobretudo meus combates, nos campos da História e dos Estudos Feministas. Nesse programa, integrei a AC Estudos Feministas e de Gênero, cuja proposta interdisciplinar exigia e abrigava não apenas historiadoras, mas também pesquisadores da Sociologia, Antropologia, Comunicação Social e Literatura. Era uma proposta nova e ousada em termos temáticos, teóricos, metodológicos e operacionais, que trouxe desconforto e desassossego aos demais integrantes do programa, incomodados com a presença de uma área “estranha” em seu ninho aparentemente bem construído com os temas, teias e tecidos reconhecidamente “históricos e historiográficos”.

Na graduação criamos – Prof. Tânia Navarro Swain e eu – duas disciplinas optativas – Estudos Feministas e Representações de Gênero e História e Historiografia das Mulheres – que, inversamente ao crescente interesse e procura das alunas pelos cursos, são ainda vistas por muitos colegas com estranhamento e até mesmo com reservas. Como se vê, nesse campo tensionado, em permanente litígio, os debates e confrontos continuaram – e ainda continuam – movidos pela nossa posição em defesa do respeito à diferença, do direito de escolha. Continuo, assim, a ser uma professora “malcomportada”, amiga e cúmplice de outra professora feminista muito mais “malcomportada” do que eu, talvez em razão de seu radical, inegociável e intenso feminismo – Tania Navarro Swain – que se aposentou, mas não abandonou o ringue, não jogou a toalha...

            A Área de Concentração Estudos Feministas e de Gênero, criada pela referida professora em 2002 e extinta em 2010, distinguia-se das demais do programa também pela sua homogeneidade teórica e metodológica, dimensão valorizada nas avaliações da CAPES, mas desconsiderada pelos nossos pares. No período de cerca de oito anos, ela respondeu pela produção de 19 dissertações de mestrado e 9 teses de doutorado, contendo apenas seis professores credenciados como orientadores, quatro destes atuantes também em outros programas de pós-graduação da UnB. Trata-se de produção acadêmica informada pelo aporte teórico produzido pelos feminismos contemporâneos em sua crítica e exposição ao que está oculto ou invisível – porque naturalizado – e que interpela diretamente a história: os processos sexuados em ação na estruturação dos saberes e das relações sociais. Evidencia-se, assim, nessa produção, a preocupação não apenas em conferir visibilidade historiográfica às mulheres, mas, sobretudo, em denunciar e expor os termos e procedimentos dessa exclusão (MUNIZ e SALLES, 2006, p. 28).

            Na produção plural dessa área de estudos, as mulheres e suas práticas, seus desejos, subjetividades e sentimentos ganham visibilidade e dizibilidade historiográficas; tornam-se inteligíveis. Estudos traduzidos em dissertações e teses revelam a presença e atuação das mulheres na vida social a partir de uma abordagem desnaturalizadora e de uma perspectiva analítica atenta às diferenças, desatrelada do sistema de pensamento essencialista e falocêntrico. Emergem, nesses estudos, histórias múltiplas e diferenciadas de mulheres, constituídas nas experiências configuradoras de sua posição como sujeitos históricos: nos espaços das escolas, do trabalho, dos movimentos sociais e políticos, das fábricas, do cabaré, do lar e da maternidade, da sexualidade, da literatura, da ciência e das artes, das instituições políticas e religiosas, das práticas de cura e arte de partejar, dos sindicatos, da política e da guerra. Trata-se, enfim, de produção que investe nas possibilidades múltiplas do campo, ao priorizar o desconhecido, a instabilidade, a multiplicidade e o inusitado das experiências históricas. Um entendimento de história comprometido com a mudança, pensada e escrita a partir de um olhar feminista sobre os documentos e sob a exigência da “descoberta de faces diversas, inusitadas, que povoaram o caminhar humano, ocultas à pesquisa pelos moldes interpretativos do patriarcado” (SWAIN, 2014: 618).

            No campo historiográfico brasileiro, se já é possível falar de uma “História das Mulheres”, trata-se de domínio cujo desenho apresenta-se similar ao norte-americano, ou seja, marcado pela “notável diversidade de temas, métodos e interpretações, tanto que é impossível reduzir tal área a uma única postura teórica interpretativa”, como bem avaliou Scott (1998:04). Em ambos os casos, não obstante os traços de diversidade, da relativamente recente configuração como domínio historiográfico, da existência de preconceitos no interior da comunidade de historiadores, e também fora dela, das tensões e contradições entre prática política e estudos acadêmicos, é possível identificar uma dimensão comum: considerar as mulheres sujeito da história, objeto dos estudos históricos, foco da crítica e dos questionamentos à cultura e às relações sociais (Idem, ibidem).

            Da invisibilidade à visibilidade que ainda se apresenta problemática – porque hierarquizada –, a inclusão das mulheres nos discurso historiográfico brasileiro compreende um movimento cujo percurso se inscreve e se intercruza com o dos feminismos contemporâneos e sua atuação crítica ao sexismo, ao patriarcado, à violência de gênero, ao uso político da diferença para instaurar desigualdades. Encontra-se, assim, ancorado em um tempo social e cultural em que se processaram profundas desestabilizações nos sistemas de pensamento que informam as leituras do social, operadas no contexto do pós-guerra. As aproximações possibilitadas com aquele entrecruzamento foram enriquecedoras para a História das Mulheres. Observa-se nessa área de estudos o alargamento de suas indagações, o aprofundamento de suas críticas e a diversificação de seus métodos de abordagens também graças ao aporte teórico produzido pelos feminismos. Trata-se de um conhecimento feminista, de uma epistemologia própria, reconhecida como Estudos Feministas, que, desde sua emergência, em suas múltiplas vias, lugares de produção e direção, se apresentam como

"[...]críticas epistemológicas dos vieses sexistas do saber e de sua pretensa neutralidade; como refutação dos modelos teóricos dominantes, propostos para pensar e dizer as mulheres e suas vidas; como interrogação sobre a condição das mulheres e sua posição na história; como escrita literária para escapar ao fechamento e à exclusão da linguagem androcêntrica; como reflexões políticas engajadas em prol de um ideal democrático e de transformação das instituições sociais que legitimaram ou atualizaram, no decorrer do tempo, a construção social e cultural dos sexos" (DECARRIÈS. 2000: 11)

            Não obstante a notável e visível expansão ocorrida na área, evidenciada nos inúmeros livros, artigos, teses e dissertações, revistas especializadas, grupos de pesquisa, áreas de concentração nos programas de pós-graduação, dentre seus vários produtos, o preconceito permanece. Ele se expressa na resistência e mesmo recusa da comunidade quanto à legitimidade dos estudos e do conhecimento produzido por e sobre as mulheres. A história continua sendo soletrada no masculino. Tal postura inviabiliza a ampliação do debate, circunscrevendo-o, talvez mais intensamente do que ocorre em outros domínios/áreas da história, ao circuito feminista e /ou simpatizante. Essa restrição é preocupante, não apenas pelo fechamento no próprio campo, mas principalmente porque indica a inclusão diferenciada e desigual das mulheres no discurso historiográfico. Elas ainda são percebidas e reconhecidas na comunidade como tema/objeto/sujeito menos importante; ou seja, são significadas diferenciada e desigualmente no discurso historiográfico. Trata-se de hierarquização que explicita a violência simbólica praticada no campo da história em relação às mulheres: primeiramente, pela exclusão; depois pela inclusão diferenciada e desigual. Não é outra, senão, essa, a dimensão da violência de gênero operante no discurso historiográfico e nas práticas de ensino, pesquisa e de escrita da história (MUNIZ, 2010: 71).

            Preconceito, estranhamento, fechamento, e distanciamento são atitudes que presencio, denuncio e enfrento no cotidiano acadêmico em função de uma atuação posicionada, isto é, comprometida com o meu espaço de fala como feminista que sou. É bem verdade que os acirrados confrontos, disputas e embates dos anos 90 encontram-se atualmente mais ou menos amainados, apaziguados. Todavia, para ser respeitada e autorizada tenho ainda que “provar” duplamente minha competência, sobretudo nos domínios da dita história “convencional”, escrita com H maiúsculo, pensada e praticada no masculino, centrada no sujeito universal, isto é, masculino, branco, cristão, ocidental, heterossexual. Perturbo e provoco as turmas, trazendo-lhes certa inquietação e desassossego, quando lhes pergunto sobre a exclusão, a ausência das mulheres naquelas narrativas mestras. Em meio aos risinhos e piadinhas de alguns alunos, não deixo também de sentir-me perturbada quando constato a recusa e constrangimento, até mesmo mal-estar, que muitas alunas manifestam quando faço tal interpelação. Ou elas se sentem acuadas, não autorizadas a falar; ou, então, não querem sair das suas zonas de conforto, de cumplicidade e anuência com aquela ausência, justificada pelo argumento da cientificidade, de uma história supostamente neutra, impessoal e não-posicionada.

            Esse receio e essa recusa igualmente me estimulam e revigoram meu compromisso com um projeto de formação voltada para a transformação da sociedade, particularmente das relações entre mulheres e homens. Interpelada que fui e sou pela crítica feminista, é sob ela que tenho lidado com outras questões do campo historiográfico, não apenas aquelas especificamente relacionadas às mulheres e ao gênero. Como, pioneira e lucidamente, ressaltou Said, os estudos feministas, como os estudos étnicos ou anti-imperialistas, promoveram um deslocamento radical de perspectiva ao assumirem como ponto de partida de suas análises o direito dos marginalizados de falar e representar-se nos domínios políticos e intelectuais que normalmente os excluem e usurpam suas funções de significação e representação (SAID, 1990).

Denunciar e expor como essa exclusão e usurpação foram e são operadas, são objetivos e desafios que norteiam minha atuação profissional e desenham minha identificação como professora “malcomportada”.  Não vejo isso como um rótulo, mas como tática performática que me aproxima e também me distancia das pessoas no/do espaço acadêmico. Afinal, ninguém abraça os feminismos impunemente. Nem inutilmente. Assim seja!

 

Referências bibliográficas

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Nota biográfica:

Diva do Couto Gontijo Muniz é doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP), professora Associada da Universidade de Brasília, com atuação no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História, nas áreas de História do Brasil Império, Historiografia do Brasil, História e Historiografia das Mulheres e Ensino de História. Suas atividades de ensino, orientação, pesquisa e publicação priorizam os seguintes eixos: cultura histórica, experiência, representações, identidades, mulheres e poder. Autora do livro Um toque de gênero: história e educação em Minas Gerais no século XIX (2003) e co-organizadora dos livros Nação, civilização e história: leituras sertanejas (2011) e Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas (2005).

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