labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier / juin 2015 -janeiro/juin 2015

 

História das mulheres em planos de aula: mídias digitais e saberes docentes na Internet

Susane Rodrigues de Oliveira

 

Resumo: Este artigo apresenta uma análise da inclusão da história das mulheres em planos de aula publicados no site “Portal do Professor” do Ministério da Educação (MEC) para o ensino de história nas séries finais do nível fundamental. Trata-se de uma análise atenta não só às representações das mulheres que circulam nesses planos, mas também aos saberes docentes sobre o ensino de história, a história das mulheres, os PCN’s, as noções de sexo-gênero, os recursos didáticos e as mídias digitais da internet que se articulam nessa inclusão. Assim, desenvolvemos algumas reflexões e propostas sobre as dimensões políticas do ensino de história na promoção da igualdade e fortalecimento da cidadania das mulheres, pensando, especialmente, nas contribuições das teorias feministas para o ensino de história.

Palavras-chave: história das mulheres, planos de aula, ensino de história, mídias digitais, saberes docentes.

 

Introdução

Nas últimas décadas, o ensino de história ganhou também reconhecimento e importância nas lutas pela educação e cultura para a igualdade e fortalecimento da cidadania das mulheres no Brasil. Com esse objetivo, uma das resoluções aprovadas em 2011 na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNDM, 2012: 16) recomendava “a criação de diretrizes nacionais de educação que incluam, nas grades curriculares, o ensino sobre a história das mulheres em todos os níveis e modalidades da rede de ensino” (CNDM, 2012: 16). Assim, os feminismos vêm buscando transformar profundamente a cultura, a partir de lutas que se dirigem para frentes muito diversificadas, no âmbito da política, religião, educação e, especialmente, do pensamento (Rago, 2014). Nesse processo, o conhecimento histórico (escolar e acadêmico) também se tornou objeto de lutas, críticas e reinvindicações pelos feminismos.

A partir dos anos sessenta, as demandas feministas pela história, antes de ecoarem nos espaços escolares, chegam às universidades brasileiras incidindo no desenvolvimento de produções historiográficas dedicadas à história das mulheres, tornando possível a “recuperação” do protagonismo das mulheres a partir de arquivos e fontes variadas, além de sua progressiva presença tanto na historiografia acadêmica como na escolar. Nesse movimento, os estudos feministas e de gênero, desenvolvidos no campo da história, trouxeram preciosas contribuições na promoção da crítica aos processos de produção e difusão de histórias androcêntricas, sexista, racistas, universalistas e binárias que silenciam ou desclassificam a atuação das mulheres em diferentes tempos e espaços. Historiadoras feministas vêm colocando sob suspeita os conhecimentos históricos (acadêmicos, escolares, midiáticos, religiosos, etc.) que reiteram as normas regulatórias que materializam as diferenças sexuais e que contribuem na persistência das hierarquias e desigualdades de gênero no presente.

Deste modo os feminismos e o desenvolvimento da história e historiografia das mulheres nas universidades abriram caminho para que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) (Brasil, 1998) incluíssem as mulheres nos temas propostos para o ensino de história nas séries finais do nível fundamental. Essa inclusão aparece nos subtemas dos grandes “eixos temáticos” e em conteúdos articulados com os “temas transversais”. Dentro do eixo temático “História das relações sociais, da cultura e do trabalho” consta no estudo das “relações de trabalho” em diferentes momentos da história brasileira[1] e de “povos do mundo”[2]. No eixo temático “História das representações e das relações de poder” consta no subtema “Cidadania e cultura no mundo contemporâneo”, com vistas ao estudo do “direito das mulheres, dos jovens, das crianças, das etnias e das minorias culturais” (Brasil, 1998: 49-73). Já os conteúdos articulados com os “temas transversais” fazem menção às mulheres na proposta de estudo das

"[...]imagens, representações e valores em relação ao corpo, à sexualidade, aos cuidados e embelezamento do indivíduo, aos tabus coletivos, à organização familiar, à educação sexual e à distribuição de papéis entre homens, mulheres, crianças e velhos nas diferentes sociedades historicamente constituídas ".(Brasil, 1998: 49).

Na tentativa de incorporar essas e várias outras recomendações aos currículos escolares, o MEC vem lançando uma série de programas que incidem na produção e circulação de materiais didáticos para as escolas públicas. Dentre estas iniciativas destaca-se o Programa Nacional do Livro Didático (1996) que avalia a adequação dos conteúdos dos livros didáticos aos PCN’s, com base em critérios de exclusão e aperfeiçoamento. O site Portal do Professor, dentre outras iniciativas, foi criado com esse intuito em 2008 pelo MEC, em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, com o objetivo de apoiar os processos de formação dos professores brasileiros e subsidiar práticas pedagógicas adequadas às orientações dos PCN’s, especialmente, quanto ao uso de novas tecnologias digitais no ensino.

Nos últimos anos, algumas coleções de livros didáticos, inscritas no PNLD, passaram de alguma forma a incorporar a história das mulheres aos seus conteúdos. Alguns/algumas pesquisadores/as da área de ensino de história (Cf. Silva, 2007; Silva 2014; Marques, 2006; Ferreira & Cerri, 2005) analisam as formas e efeitos dessa inclusão. As pesquisas de Cristiani da Silva (2007) e Valéria da Silva (2014), sobre as representações das mulheres nos livros didáticos de história, revelam a persistência tanto do silêncio sobre a atuação das mulheres na história, como de concepções binárias e hierarquias de gênero que indicam o predomínio de uma história androcêntrica, centrada apenas no protagonismo masculino. Essa inclusão, segundo as autoras, vem acontecendo, especialmente, nos conteúdos complementares, normalmente isolados do texto principal e em caixas de textos que aparecem no final de alguns capítulos. Essa forma de inclusão continua perpetuando a discriminação das mulheres na história, já que sua presença aparece apenas como um complemento, ou seja, como um apêndice da história geral, da “história importante” que se desenvolve habitualmente ao longo do livro, onde a rara consideração coletiva e individual das mulheres não lhes reconhece uma posição significativa na história (Valencia, 2004).

Diante dos problemas que envolvem os livros didáticos destacamos a necessidade de avaliar também outros materiais didáticos e projetos de ensino, especialmente aqueles que vêm sendo produzidos e veiculados por meio de tecnologias digitais. Assim, elegemos aqui como objeto de estudo alguns planos de aula elaborados por professores/as de história, publicados no site Portal do Professor do MEC. Trata-se de planos de aula que apresentam temáticas e objetivos relacionados, exclusivamente, ao ensino de história das mulheres, e que servem para aplicação em turmas de nível fundamental (séries finais). Estes planos são bastante representativos de como os discursos e práticas pedagógicas dos/as professores/as respondem aos PCN’s e às demandas feministas em prol da inclusão da história das mulheres nos currículos escolares. Além disso, permitem analisar não só às representações das mulheres na história escolar, mas também os saberes docentes sobre o ensino de história, a história das mulheres, os PCN’s, as noções de sexo-gênero, os recursos didáticos e as mídias digitais da internet que se articulam nessa inclusão. Desta maneira, na análise dos planos buscamos discutir suas condições de produção, saberes de referência, objetivos, metodologias, recomendações, recursos didáticos, conceitos de sexo-gênero e representações das mulheres. A partir disso, desenvolvemos também algumas reflexões e propostas sobre as dimensões políticas do ensino de história na promoção da igualdade e fortalecimento da cidadania das mulheres, pensando, especialmente, nas contribuições das teorias feministas para o ensino de história.

As análises e reflexões desenvolvidas nesse artigo se apoiam nas teorias feministas (Navarro-Swain, 2014; Rago, 1998, Scott, 1994), em alguns pressupostos da Análise do Discurso (Foucault, 2004; Orlandi, 2003), na noção de representações sociais (Jodelet, 2001) e nos estudos desenvolvidos por Oliveira (2014a), Monteiro (2007) e Pereira (2007) na área de ensino de história.

 

O “Portal do Professor” e as condições de produção dos planos de aula

Com a entrada da cultura escolar nas mídias digitais da internet, a história também tem sido pedagogizada em mídias que se abrem ao clicar do mouse, ou na ponta dos dedos nas tecnologias touch screen, em forma de hipertexto, som, vídeo e imagem. Essa introdução das tecnologias digitais no ensino de história reforça ainda mais a necessidade de avaliarmos como a história das mulheres aparece nestas mídias e, especialmente, como os/as professores/as de história se apropriam desses saberes no planejamento de suas aulas.

No cotidiano escolar amplia-se a possibilidade de que os/as professores/as usem outros materiais didáticos, especialmente aqueles provenientes de novas tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), diminuindo a importância central dos livros didáticos no ensino e aprendizagem. Nesse processo a internet vem ganhando espaço, cada vez mais utilizada como elemento de apoio à aprendizagem. A disseminação do uso das tecnologias (computador, internet, TV, rádio) ampliou, de forma rápida e dinâmica, o acesso a maior quantidade de informações, impondo aos/às professores/as a necessidade de uma orientação no planejamento e realização de trabalhos pedagógicos que envolvam o usa das mídias digitais em sala de aula. Diante disso surgem na internet os portais educacionais com propostas pedagógicas inovadoras. De forma geral estes portais são ambientes virtuais que organizam e disponibilizam conteúdos que servem de apoio às práticas docentes e às pesquisas de estudantes da Educação Básica. Trata-se de poderosos veículos de produção e difusão de mídias digitais que cada vez mais atraem, fascinam, estimulam, educam e auxiliam professores e estudantes na aquisição de conhecimentos (Oliveira, 2014a).

No Brasil, o uso das mídias digitais no processo de ensino-aprendizagem vem sendo amplamente estimulado como algo positivo e capaz de produzir inovações curriculares indispensáveis aos tempos globalizados, associado fortemente ao combate a um ensino qualificado como tradicional (Costa & Gabbriel, 2014: 168). Assim a internet vem se configurando como novo lócus educativo da contemporaneidade e nesse sentido merece aqui a nossa atenção.

Enquanto os livros didáticos tratam a história das mulheres em poucos conteúdos e “textos complementares”, uma rápida pesquisa no Google revela 215.000 ocorrências de páginas dedicadas ao termo “história das mulheres” no idioma português e 20.700.000 em inglês. Nem todas as páginas referem-se ao saber histórico produzido nas universidades, embora uma quantidade considerável desse saber encontre-se disponível na forma de artigos e comunicações de pesquisas, além de estar acessível em arquivos, bibliotecas, livrarias, revistas e museus virtuais. As páginas dos portais educacionais também aparecem relacionadas nesse total, apresentando uma infinidade de recursos digitais para a abordagem da história das mulheres no ensino de história. Dentre elas, o Portal do Professor do MEC chama a nossa atenção como espaço de ampla produção e compartilhamento de planos de aula elaborados por professores/as de todo o Brasil, onde identificamos a presença de alguns planos que tratam exclusivamente de história das mulheres para o ensino médio e fundamental (séries finais). O Portal reúne em uma mesma interface na web, links que dão acesso a notícias, cursos, vídeos, blogs, softwares de jogos, modelos e sugestões de aulas, sites educativos, chats, fóruns, currículos e vários outros recursos. Na tela inicial do site encontra-se um menu (índice) de navegação que direciona para subcategorias denominadas “Espaço da aula”, “Jornal do professor”, “Conteúdos multimídia”, “Cursos e materiais”, “Interação e colaboração”, “Links” e “Plataforma Freire”.

O Portal fornece ainda um sistema de busca (consulta online) onde podemos identificar 15.165[3] sugestões de planos de aula das mais variadas disciplinas escolares e níveis de ensino da Educação Básica. Deste total, identificamos 1.424 sugestões de aula de história para todos os níveis de ensino: 701 para o ensino médio e 427 para o ensino fundamental (séries finais). No total de planos de aula de história encontramos 52 aulas que fazem menção às “mulheres” em diversas disciplinas: ciências, língua portuguesa, educação física, artes, sociologia, a maioria delas em língua portuguesa e ciências (saúde). Encontramos ainda 3 aulas com a palavra “gênero” no título, sendo 2 de ciências e 1 de história. Dentre os planos de aula de história para o ensino fundamental (séries finais) encontramos apenas 9 planos de aula que fazem menção às mulheres, sendo que 7 deles tratam exclusivamente de história das mulheres e foram produzidos por professores da área de história. Quanto ao recorte temporal e espacial das abordagens que aparecem nestes 7 planos de aula, 5 deles tratam do Brasil contemporâneo, enquanto 2 tratam do Brasil colônia. São esses 5 planos de aula que constituem aqui o nosso corpus de análise.

Ao produzir um plano de aula os/as professores/as idealizam uma situação comunicativa e todos os componentes dessa situação. O plano de aula tem a função de organizar e planejar antecipadamente uma ação pedagógica. Trata-se de um roteiro a ser seguido pelo/a professor/a que sistematiza todas as atividades que serão desenvolvidas no período de tempo em que professores/as e estudantes entram em interação. Devemos ressaltar que o plano de aula nem sempre corresponde à prática, ao que acontece no momento de sua aplicação, pois a situação de interação entre professores/as e estudantes é dinâmica e imprevisível, podendo impor adaptações ou mudanças nas atividades e objetivos programados. Entretanto, isso não retira a sua importância enquanto objeto de análise, porque revela os discursos docentes sobre as práticas pedagógicas, ou seja, o modo como os/as professores/as pensam e orientam o seu fazer pedagógico.

A prática pedagógica não é a mera concretização de teorias ou receitas, nem um simples fazer, caracterizado pela aplicação de teorias, pelo pragmatismo e a neutralidade. Ela envolve o pensamento, a reflexão e a construção de sentidos por parte dos/as professores/as. Assim, partimos do pressuposto de que os/as professores/as “dominam e produzem saberes, num contexto de autonomia relativa, numa construção que apresenta uma especificidade decorrente do fato de ser integrante da cultura escolar” (Monteiro, 2007: 13). Os/as professores/as elaboram, organizam e revelam seus discursos e práticas em um contexto escolar e social específicos, mobilizando saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das disciplinas, dos currículos, das práticas sociais, de si mesmos e da experiência (Tardif, Lessard & Lahaye, 1991). Os saberes mobilizados pelos/as professores/as são, portanto, plurais e heterogêneos.

Os planos de aula são aqui entendidos como “discursos sobre a prática” que revelam experiências e saberes docentes, assim como crenças, valores, concepções teóricas e ações que impregnam o seu fazer. Enquanto discursos envolvem e expressam teorizações, idealizações e representações, além da incorporação de normas e atribuição de significados. Para compreendê-los é necessário também considerar as suas condições de produção, as dimensões de sua exterioridade, relacioná-los à conjuntura sócio-histórica em que foram produzidos (Foucault, 1993; Orlandi, 2003).

Os planos publicados no Portal do Professor são produzidos conforme regras e padrões anunciados no próprio site. Desse modo, pertencem a uma formação discursiva específica (Foucault, 2004). O “Espaço da Aula” revela assim um conjunto de discursos produzidos segundo um corpo de regras que, institucionalmente autorizado pelo MEC, exerce certo controle e influência sobre os temas, objetivos, procedimentos e recursos didáticos indicados nesses planos.

De acordo com Foucault, a formação discursiva serve para designar conjuntos de enunciados que podem ser associados a um mesmo sistema de regras historicamente determinadas. “As regras de formação são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva” (Foucault, 2004: 43). A formação discursiva determina assim o que pode e deve ser dito. Como bem atenta Orlandi, “É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos” (2003: 43-44).

No Portal do Professor, os planos de aula, apresentados no campo “Sugestão de Aulas”, seguem o mesmo padrão de estrutura e organização. As aulas podem ser criadas individualmente ou em equipe por professores/as inscritos/as no Portal. No entanto, para criar uma aula e publicá-la neste espaço, os/as professores/as precisam seguir um tutorial e algumas orientações (Portal do Professor: Orientações, s/d) que explica, passo a passo, como preencher, no próprio site, todos os componentes da aula: título, objetivos de aprendizagem, período de realização, pré-requisitos de aprendizagem, estratégias, recursos complementares e avaliação. Para isso o site disponibiliza uma ferramenta de edição que permite a construção das aulas dentro de um modelo e estrutura previamente definidos, onde é possível utilizar os objetos educacionais disponibilizados no próprio Portal ou de quaisquer outras fontes. Nesse espaço, criar uma sugestão de aula significa “descrever a metodologia utilizada pelo professor no desenvolvimento de um tema do currículo: seu planejamento didático, as atividades e os recursos multimídia que podem ser utilizados” (Portal do Professor: Criar aulas, s/d).

O Portal apresenta ainda recomendações de cunho pedagógico, baseadas nos PCN’s e nas teorias de ensino-aprendizagem construtivistas, tais como:

   Privilegiar estratégias em que os alunos sejam os atores principais, propondo pesquisas e debates, para que ocorra construção, colaboração entre colegas, registros e divulgação dos novos conhecimentos. · Propor atividades que possam contribuir com o desenvolvimento dos alunos nos diversos aspectos: conceituais, procedimentais e comportamentais. · Sugerir atividades relevantes que envolvam os alunos em temas de impacto social, na melhoria da própria escola, ou da comunidade em que vivem. Evitar elaborar metodologias simplesmente para o uso de recursos multimídia (vídeo, simuladores e outros), e sim, propor o uso das TIC de forma integrada ao currículo e enriquecer a dinâmica de trabalho dos alunos, são algumas das diretrizes propostas para os professores. (Bielschowsky & Prata, 2010: 8)

Dentro destas orientações os/as professores/as devem evitar aulas expositivas e assumir o papel de mediadores/as no processo de ensino-aprendizagem, tratando os/as estudantes como atores/atrizes e agentes desse processo, mais do que ouvintes. Nessa concepção os/as professores/as devem propor atividades criativas e motivadoras que possibilitem ao/à estudante “debater, construir, colaborar com os outros alunos, registrar e divulgar os novos conhecimentos”. Assim diz o tutorial de elaboração das aulas: “Mais importante que o trabalho do professor é a ATIVIDADE do aluno. Na sala de aula ou no laboratório quem trabalha é o aluno. O professor apenas orienta a atividade do aluno” (Portal do Professor: Orientações, s/d).

Ao finalizar a elaboração do plano, os/as professores/as podem submetê-lo para publicação na área pública do site. Para isso o Portal dispõe de um comitê editorial que avalia todos os planos enviados, conferindo credibilidade aos planos autorizados para publicação. As aulas não aprovadas pelo comitê são retornadas com orientações ou correções para a sua reelaboração e novo envio (Zacharias, 2013: 62). Desse modo, o Portal exerce controle sobre as publicações e participa também no processo de formação de professores/as, instruindo-os, especialmente, no planejamento de aulas que façam uso de tecnologias digitais.

 

A análise dos planos de aula

Os cinco planos de aula que selecionamos para análise foram publicados entre os anos de 2011 e 2014 no Portal do Professor. Na tabela abaixo demonstramos os títulos das aulas, seus números de acesso e data de publicação.

Planos de aula que tratam de “história das mulheres” no Portal do Professor

Título da aula

Data de publicação

Número de acessos no Portal do Professor

1.       O papel da mulher na sociedade

13/04/2011

4787 acessos

2.       A luta das mulheres pela profissionalização

22/10/2014

585 acessos

3.       “Música da mulher”: as canções e as causas femininas no Brasil

19/12/2011

5939 acessos

4.       Os direitos da mulher ao longo da história do Brasil

19/12/2011

> 2082 acessos

5.       A emancipação feminina no Brasil atual

19/12/2011

> 3667 acessos

Fonte: Portal do Portal do Professor (março de 2015). Disponível em http://portaldoprofessor.mec.gov.br/

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Os números de acesso revelam a grande demanda por planos de aula de história que tratem de temas ligados às mulheres. O que indica a importância e influência destes planos na internet como referenciais para práticas pedagógicas de inclusão da história das mulheres.

Os planos de aula têm autoria e co-autoria de homens e mulheres. Das cinco aulas identificadas, três delas (números 3, 4 e 5) tem a mesma autoria de dois homens e uma mulher (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a). A aula de numero 2 (Sousa; Faria; Rezende, 2014) também tem a autoria de dois homens e uma mulher. Apenas a aula de número 1 (Silva, 2011) tem a autoria exclusiva de uma mulher. Assim temos a participação de quatro homens e três mulheres na redação destes planos, indicando que a inclusão da história das mulheres no ensino de história é do interesse tanto dos professores quanto das professoras.

Nem todos/as os/as autores/as dos planos revelam o nível de sua formação acadêmica e dados profissionais, o que sugere que estes planos possam ter sido elaborados tanto por docentes atuantes como por aqueles/as em fase de formação inicial, já que o Portal, enquanto espaço de formação docente, disponibiliza também planos de aula orientados e produzidos por docentes e estudantes de disciplinas na licenciatura.

Os temas abordados nas aulas são selecionados a partir dos eixos temáticos propostos nos PCN’s para o ensino de história nas séries finais do nível fundamental. Deste modo se inserem nos seguintes temas: “relações de trabalho”, “nações, povos, lutas, guerras e revoluções”, “relações sociais, a natureza e a terra” e “cidadania e cultura no mundo contemporâneo”. Observamos que os/as professores/as encontram a possibilidade de incluir a história das mulheres dentro destes quatro temas, ao mesmo tempo. Não há o predomínio de apenas um tema onde se possa efetuar essa inclusão.

A partir das orientações dos PCN’s, os/as professores/as veem a possibilidade de incluir as mulheres, especialmente, nas abordagens da história do trabalho e das lutas por direitos e cidadania no tempo presente. Desta forma, quanto aos recortes temporais e espaciais privilegiados pelos/as professores/as, observamos que todas as aulas tratam do Brasil contemporâneo, especialmente no “tempo presente”. O predomínio da história do tempo presente parece associado tanto às propostas dos PCN’s, que destacam a importância da abordagem de temas que se aproximem da realidade dos/as estudantes, quanto aos estímulos, do próprio Portal, no uso das tecnologias digitais da internet em suas práticas pedagógicas.

A internet abriga uma quantidade enorme de informações e conhecimentos produzidos na contemporaneidade e, dada à rapidez, praticidade e facilidade de acesso a esses saberes, acaba por se constituir em um espaço de registro e repositório de memórias e histórias que vem servindo amplamente de apoio ao trabalho pedagógico de professores/as na abordagem de acontecimentos do presente. Assim, ao tratar das mulheres na contemporaneidade brasileira, os/as professores/as buscam exclusivamente os saberes das mídias digitais disponíveis na internet: vídeos da TV Escola e do YouTube (músicas, filmes e reportagens de TV), matérias de jornais e revistas online, textos e imagens publicadas em Portais Educacionais (Mundo Educação, Guia do Estudante, Brasil Escola), Blogs (de religiosos, historiadores, economistas, jornalistas e professores de literatura), verbetes da Wikipédia, informações estatísticas e documentos digitalizados em sites de órgãos do governo.

A história acadêmica raramente é tratada como recurso didático nestes planos. Ela aparece, especialmente, dentre as indicações de “textos complementares”, já que os saberes priorizados nas atividades pedagógicas são os saberes midiáticos. O livro didático também não parece como recurso didático nos planos analisados. Isso denota o quanto a história escolar tem características próprias ao dialogar com as

" [...]visões, textos e expressões presentes em diferentes e específicas práticas sociais” (...), que servem de referência e dialogam com o saber acadêmico na constituição do saber escolar, chegando à escola através dos diferentes meios de comunicação, dos professores e de seus pais (Monteiro, 2007: 107).

Na tabela abaixo apresentamos os objetivos da aprendizagem e a duração das atividades previstas em cada plano de aula.

Os planos de aula e os objetivos da aprendizagem

Título da aula

 “O que o aluno poderá aprender com essa aula?”

Duração da atividade

1. O papel da mulher na sociedade

> - Identificar as lutas para o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres.

> - Identificar as transformações da participação feminina na sociedade contemporânea.

> - Reconhecer os embates travados pelas mulheres brasileiras no início do século XX em busca da igualdade de direitos (em relação aos homens) e do direito ao voto.

> 4 aulas de 50 minutos.

2. A luta das mulheres pela profissionalização

> - Conhecer a realidade de mulheres brasileiras que estão no mercado de trabalho.

> - Pesquisar sobre a realidade das mulheres trabalhadoras da comunidade e propor alternativas para contribuir com esta realidade.

> - Discutir relações de gênero quando se trata de mercado de trabalho.

> 3 aulas de 50 minutos.

3. “Música da mulher”: as canções e as causas femininas no Brasil

> - Sensibilizar-se com as causas femininas no Brasil.

> - Refletir sobre a condição da mulher em nossa sociedade.

> - Valorizar as mulheres que fazem parte de seu cotidiano.

> 6 aulas de 50 minutos.

4. Os direitos da mulher ao longo da história do Brasil

> - Analisar o histórico de luta das mulheres por seus direitos, no Brasil.

> - Refletir sobre a desigualdade de gênero em nosso país.

> - Entender a legislação em defesa das mulheres que sofrem de violência doméstica e/ou familiar.

> 6 aulas de 50 minutos.

5. A emancipação feminina no Brasil atual

> - Entender aspectos essenciais da emancipação feminina no Brasil.

> - Refletir sobre o papel desempenhado pelas mulheres em nossa sociedade.

> - Valorizar as mulheres e o seu direito de emancipação.

> 6 aulas de 50 minutos.

Fonte: Portal do Portal do Professor (março de 2015). Disponível em http://portaldoprofessor.mec.gov.br/

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O tempo de duração previsto para aplicação dos planos de aula revela que os/as professores/as se propõe a dedicar um espaço de tempo significativo para a abordagem da história das mulheres em sala de aula, ao contrário das poucas linhas de texto que os livros didáticos dedicam a essa abordagem.

Alguns objetivos de aprendizagem parecem sinalizar para uma preocupação política e social dos/as professores/as, ao propor sensibilizar os/as estudantes com as “causas femininas” no Brasil, refletir sobre a desigualdade de gênero em nosso país, valorizar as mulheres e seus direitos de emancipação e entender a legislação em defesa das mulheres que sofrem de violência doméstica e/ou familiar. Trata-se de objetivos aparentemente em sintonia com as propostas de educação para a igualdade e cidadania. No entanto, é preciso ainda considerar os recursos didáticos e suas formas de abordagem em sala de aula para avaliarmos os limites e possibilidades em torno destas propostas. 

A aula de número 1 (Silva, 2011) trata das mulheres no mercado de trabalho. Na primeira etapa busca explicar o assunto da aula através de frases que atualmente são usadas para definir o que é considerado “papel feminino” e “papel masculino”, e ditados populares preconceituosos em relação ao que é considerado “função da mulher” ou “do homem”. Na segunda etapa introduz os conteúdos por meio de um vídeo do YouTube (Guerra, 2008) que apresenta um programa de televisão onde uma psicóloga do trabalho é entrevista por uma jornalista. Além disso, a professora propõe a abordagem de um pequeno artigo acadêmico, intitulado “Emancipação da mulher – a luta pelos direitos”, de autoria de uma assistente social (Ramos, 2011), publicado no Recanto das Letras, um site de compartilhamento online de conteúdos de natureza poética, artística, informativa e educacional.

No vídeo, a psicóloga explica a redefinição do “papel da mulher” no mercado de trabalho (Guerra, 2008). A partir de concepções de gênero binárias e essencialistas, trata das mulheres no singular (“a mulher”), como se todas estivessem definitivamente em ascensão no mercado de trabalho. E assim explica as diferenças entre homens e mulheres de modo bastante generalizado, considerando que os homens são mais competitivos e que lidam com maior dificuldade com a autoridade no trabalho, enquanto as mulheres são mais dinâmicas, com perfil integrador, graças ao modo como elas integram no dia a dia diversos papéis, mantendo-se o tempo todo conectadas com filhos, empregada e casa; enquanto os homens, acostumados desde a infância com brincadeiras individualistas e competitivas, acabam se tornando menos integradores e mais competitivos no ambiente de trabalho. Nessa perspectiva, a psicóloga não leva em consideração a pluralidade de experiências e identidades que homens e mulheres vivenciam no mundo do trabalho. Não há espaço em sua fala para a emergência de outras experiências. A maternidade e as atividades domésticas são vistas como naturais a todas as mulheres, como algo que lhes imputa uma tendência dinâmica e integradora no ambiente de trabalho. Nessa concepção generalista, as mulheres jovens ou as que não possuem filhos ou não gerenciam uma casa, podem parecer menos integradoras e importantes. Mesmo tratando das capacidades e dos novos horizontes para as mulheres no mercado de trabalho, essa perspectiva ainda mantém uma compreensão das diferenças dentro de uma ótica binária que separa/aprisiona as subjetividades de mulheres e homens.

O artigo “Emancipação da mulher – a luta pelos direitos”, também trata “da mulher” no singular, embora se preocupe com uma abordagem histórica das lutas pelos seus direitos, autonomia e igualdade com os homens. Apesar de a autora (Ramos, 2011) oferecer uma visão bastante generalizada desse processo, ela menciona a importância dos movimentos feministas na inserção das mulheres no mercado de trabalho e nas conquistas do direito à educação e ao voto. Além disso, não deixa de destacar que apesar dessas conquistas ainda prevalecem muitos desafios e barreiras, impostas pelo machismo, como o predomínio dos homens em certas carreiras profissionais e a persistência da desigualdade salarial entre homens e mulheres. Trata-se de uma importante perspectiva, já que não dá por encerrado as conquistas das mulheres, permitindo que os/as estudantes reconheçam a legitimidade das lutas feministas no presente.

Após a exibição do vídeo e leitura do texto, a professora (Silva, 2011) propõe que os/as estudantes produzam cartazes. Não propõe um debate ou problematização de seus conteúdos em sala de aula. Nesse sentido, o planejamento parece muito mais atender às orientações metodológicas do Portal, ao fazer com que os estudantes produzam e socializem conhecimentos, do que promover a leitura crítica dos saberes consultados.

A aula de número 2 (Sousa; Faria; Rezende, 2014) também trata da atuação das mulheres no mercado de trabalho, mas com foco nas mulheres de baixa renda e trabalhadoras domésticas. Para isso propõe a exibição dos primeiros quinze minutos de um vídeo da TV Escola, intitulado “A formação profissional para mulheres”. Assim utiliza recursos didáticos produzidos pelo próprio MEC que tem por objetivo subsidiar práticas pedagógicas que envolvam a abordagem de temas sugeridos pelos PCN’s.

O vídeo da TV Escola traz para a sala de aula personagens que antes não teriam espaço e importância no ensino de história, como o protagonismo de mulheres negras e de baixa renda. A abordagem de suas histórias pode colaborar no reconhecimento e valorização de suas lutas por profissionalização, direitos trabalhistas e espaço no mercado de trabalho no presente. Essa inclusão das mulheres nos conteúdos escolares encontra-se também em sintonia com a Lei 11.645/08 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, a fim de combater as discriminações étnico-raciais e de promover o reconhecimento e a valorização da participação dos negros e indígenas na sociedade nacional.

O plano de aula número 2 (Sousa; Faria; Rezende, 2014) propõe ainda que os/as estudantes entrevistem mulheres operárias que vivem em sua própria comunidade. Assim, pretende trazer para a sala de aulas as vozes das próprias mulheres, suas memórias e histórias. Essa proposta comporta uma perspectiva inovadora e importante ao introduzir “histórias na perspectiva das mulheres”. Ainda nesta atividade, propõe-se que os/as estudantes organizem e analisem os dados coletados na pesquisa em categorias (trabalho, desafios, obstáculos, família, amigos e reivindicação), pensem alternativas para a melhoria de oportunidades para as mulheres (cooperativas, creches para os filhos, políticas públicas, escolas profissionalizantes noturnas, etc.) e socializem, no site da escola ou em um blog criado por eles, os resultados da pesquisa, bem como as proposições para melhoria da qualificação no trabalho e da qualidade de vida das mulheres trabalhadoras da comunidade. Esse tipo de atividade apresenta uma dimensão política importante, por priorizar a memória das mulheres (nas entrevistas) como fontes de estudo e estimular a produção e socialização de conhecimentos históricos que pensem em ações que colaborem na transformação social e, especialmente, na vida profissional das mulheres.

A aula de número 2 (Sousa; Faria; Rezende, 2014) apresenta ainda uma visão ufanista em torno da inclusão das mulheres no mercado de trabalho, enfatizando apenas os aspectos atuais de suas conquistas. Desse modo, parece não deixa espaço para o entendimento dessas conquistas como resultado de um longo processo histórico. As conquistas aparecem apenas como resultado de esforços individuais, da força de vontade de cada uma delas. Nesse entendimento não há qualquer menção à atuação dos movimentos feministas, e nem discussão e entendimento das dificuldades e problemas que ainda impedem que muitas mulheres tenham condições de ingressar no mercado de trabalho de forma igualitária à dos homens. Apesar de tratar das mulheres trabalhadoras domésticas, considerando as diferenças e desigualdades entre as mulheres no mercado de trabalho, os/as autores/as do plano de aula ainda fazem uso do termo “universo feminino”, expondo uma concepção de sexo-gênero binária em torno das diferenças entre homens e mulheres. Essa concepção acaba por homogeneizar, separar e apagar a diversidade de experiências e diferenças identitárias entre as mulheres.

Dos cincos planos de aula analisados, observamos que três deles evitam o uso do termo “feminismo”. Na aula de número 3 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a) os/as professores/as dão preferência ao termo “causas femininas” ao invés de “causas feministas”, e assim acabam caindo numa dimensão muito vaga e generalista. Esse silêncio sobre os feminismos é bastante significativo. Fala-se das lutas das mulheres de forma generalizada, mas não das lutas feministas e de sua importância. Observa-se um “ufanismo discursivo da igualdade de oportunidades” que parece tornar os movimentos feministas desnecessários e obsoletos diante das conquistas das mulheres no presente. Tania Navarro-Swain, em análise de revistas femininas do tempo presente, observou que

(...) os movimentos feministas em sua prática social se veem desautorizados e desmotivados diante da afirmação generalizada de que “o feminismo acabou” e que sobretudo, o feminismo é uma prática anacrônica já que finalmente , “a igualdade já não foi alcançada?” (2001: 68).

Essa recusa aos feminismos encontra também fundamento em discursos e representações negativas que se proliferam em nossa sociedade, especialmente na mídia, onde as feministas são identificadas como mulheres feias, mal amadas e infelizes. Os feminismos, ao lado de outros movimentos sociais, vêm questionando a organização sexual, social, política, econômica e cultural de um mundo profundamente hierárquico, autoritário, masculino, branco e excludente (Rago, 1995/1996: 12), propondo a construção de relações sociais mais igualitárias. Nesse sentido, o pensamento e a prática dos feminismos vêm causando impactos na cultura, despertando a aversão e o ódio daqueles que desejam manter intactas as estruturas patriarcais de poder que excluem, inferiorizam e dominam as mulheres. Assim se proliferam os discursos que buscam apagar a força e importância histórica dos feminismos. Ficam assim os silêncios e uma enorme lacuna no entendimento da história das mulheres no tempo presente.

A aula de número 3 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a) usa a audição e leitura de letras de músicas brasileiras contemporâneas, escritas e interpretadas por homens e mulheres, que revelam diferentes concepções e características de mulheres. Os/as professores/as buscam no YouTube vídeos que trazem o áudio e a letra de seis músicas: “Ai, que saudade da Amélia” de Ataulfo Alves; “Desconstruindo Amélia” de Pitty; “Luz del Fuego” de Rita Lee & Tutti Frutti; “Todas as mulheres do mundo” de Rita Lee; “Mulher (sexo frágil)” de Erasmo Carlos e “Você, mulher você” de Ivan Lins & Trio Mocotó. As músicas da cantora Rita Lee destacam duas personagens históricas: Luz del Fuego (Dora Vivacqua) e Leila Diniz. No trabalho com essas músicas os/as professores/as agregam também outras mídias digitais que trazem informações sobre essas personagens. Para compreender quem foi Luz de Fuego recomendam a leitura de seu verbete na Wikipédia, onde é descrita como uma mulher feminista, bailarina e naturista, fundadora do primeiro clube de naturismo no Brasil (1954). Sobre Leila Diniz, recomendam uma matéria da revista Isto é que a descreve como um “terremoto a sacudir os usos e costumes da sociedade brasileira nos anos 60, quando ela se transformou no maior ícone da liberdade feminina” (online, s/d). As letras de Rita Lee comportam representações de mulheres que fugiam aos padrões de sua época, contestando valores morais e vivenciando a liberdade sexual.

Na abordagem das músicas os/as professores/as propõem que os/as estudantes identifiquem diferentes estilos musicais, as relações entre letras e diferentes visões sobre as mulheres na contemporaneidade. Trata-se de uma atividade que permite o reconhecimento das diferenças entre as mulheres e que pode se constituir num ponto de partida para a desnaturalização de concepções binárias e androcêntricas acerca do sexo-gênero. Após a audição e leitura de cada letra de música os/as professores/as apresentam um conjunto de perguntas para debate em sala de aula (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a). Entretanto, essa discussão se concentra muito mais no tempo presente, no sentido de perceber e comparar as diferentes imagens de mulheres. Não há uma proposta de reflexão ou de estudo da historicidade das representações identificadas nas músicas. A compreensão dessa historicidade é fundamental na crítica e rompimento de concepções naturalizadas e enraizadas em nossa cultura histórica sobre as experiências e identidades das mulheres. Na abordagem da música faz-se ainda necessário considerar não só a letra, mas também outros aspectos que a compõe (estilo, ritmo, melodia, arranjos, instrumentos, performance dos músicos, gravação, etc.) para entender o contexto de sua produção (Abud, 2005). Desse modo, trata-se de uma proposta de ensino que ainda carece de referenciais historiográficos e teóricos adequados. Trabalhos como o da historiadora Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel[4], sobre as representações do feminino na música popular brasileira, podem se constituir em referências importantes na abordagem da história das mulheres por meio da música.

Ainda na aula de número 3 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a), os/as professores/as têm por objetivo fazer com que os estudantes se sensibilizem com as “causas femininas” no Brasil e para isso fazem uso de mais uma linguagem alternativa, a paródia. Assim solicitam que os/as estudantes produzam paródias musicais, a partir de músicas que fazem parte de seu cotidiano e de temas que se relacionem com as “causas femininas” no Brasil. Nesse trabalho os/as professores/as indicam como referência a postagem de um Blog de Ensino de História de uma escola. Nesse exercício os/as estudantes devem reconstruir as letras das músicas, expressar suas concepções e produzir conhecimentos. Entretanto, a música exige propostas didáticas e instrumentais adequadas às suas especificidades. Enquanto veículos de representações sociais constituem “sistemas de interpretação, que regem nossa relação com o mundo e com os outros, orientando e organizando as condutas e as comunicações sociais” (Jodelet, 2001: 22). Nesse sentido, é necessário que haja também um trabalho de problematização e historicização das representações que circulam nessas linguagens, para que os/as estudantes percebam que os pontos de vistas, crenças e concepções expressas nessas linguagens são construções sociais e históricas que revelam os imaginários e práticas sociais de determinados grupos e pessoas.

No final do plano de aula os/as professores (Ribeiro; Turini; Silva, 2011a) indicam importantes links com conteúdos complementares: o “Guia dos Direitos da Mulher no Brasil” do Cfemea, a “Cartilha de Direitos Básicos da Mulher Trabalhadora em Educação” da Fitraebc e a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (França/1791). Trata-se de fontes históricas produzidas por instituições e mulheres envolvidas diretamente nas lutas, mas que infelizmente não ganham espaço e importância adequados na aula, já que entram apenas como links complementares, que provavelmente nem sejam consultados pelos/as estudantes.

A aula de número 4 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011b) propõe uma abordagem histórica dos direitos das mulheres, destacando o processo de conquista do direito ao voto nos EUA e no Brasil, além da participação feminina na política brasileira (especialmente nas eleições, no Senado, no Congresso Nacional e nos partidos políticos), as leis de cotas para presença de mulheres nos partidos políticos e a lei Maria da Penha. Quanto aos recursos didáticos, o plano de aula indica uma matéria publicada no site do Ministério Público Federal (MPF), intitulada “O voto feminino no Brasil” que menciona o movimento sufragista das mulheres no final do século XIX e primeira metade do século XX, destacando as manifestações, os jornais e os panfletos feministas, além de datas e nomes de mulheres que estiveram na liderança destes movimentos na Inglaterra, Brasil e EUA. Os/as professores/as indicam também a abordagem de um dicionário virtual, um artigo da Revista Espaço Acadêmico, um documento digitalizado da Lei Maria da Penha e um texto do IBGE Teen que apresenta cronologicamente as principais conquistas das mulheres no Brasil e no mundo. Essa aula apresenta uma concepção importante, a de que “as mulheres fazem história” por meio da conquista de direitos políticos, especialmente, do direito ao voto e atuação política nos EUA e Brasil. Dentre os planos de aula analisados, este é o único que oferece maior destaque e importância aos movimentos feministas nas conquistas de direitos para as mulheres.

Assim, a aula de número 4 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011b) sinaliza para uma perspectiva histórica mais ampla a respeito da atuação e conquistas políticas das mulheres na contemporaneidade. Entretanto, ao se manter informado pelos saberes históricos midiáticos, não consegue se desvencilhar do ensino de história tradicional – assentado em sequências de informações factuais e cronológicas relacionadas a tempos e espaços que podem ser desconhecidos pelos/as estudantes. Os recursos didáticos apresentam marcos históricos das lutas das mulheres no campo da política, mas numa perspectiva cronológica e linear que simplesmente expõe datas, nomes e acontecimentos de forma fragmentada e descontextualizada. Isso faz com que os estudantes lembrem somente dos marcos cronológicos, formulando ideias vagas e genéricas, tornando-se incapaz de relacionar tempos distintos e compreender em profundidade essas lutas. O ideal é que se trabalhe em sala de aula com recortes temáticos, estabelecendo relações entre o passado e o presente, sem negligenciar a temporalidade. Assim o ensino de história pode servir de ferramenta para que os/as estudantes possam se orientar e intervir no mundo em que vivem.

Após a leitura das fontes, os/as professores/as (Ribeiro; Turini; Silva, 2011b) indicam a aplicação de um pequeno questionário descritivo, com perguntas e respostas mecânicas que não instigam o questionamento e interpretação dos textos. Ao final, propõe que os/as estudantes desenvolvam uma redação sobre “As mulheres na luta por seus direitos no Brasil”, que deve ser socializada em sala de aula, num mural, jornal ou blog da escola ou da turma.

Atividades pedagógicas de produção e socialização de conhecimentos pelos/as próprios/as estudantes são importantes na formação escolar para a cidadania crítica. Entretanto, observamos novamente que os/as professores/as conduzem essas atividades sem a preocupação com os conhecimentos pesquisados e assimilados pelos/as estudantes. A pesquisa na internet, algumas vezes é orientada dentro de alguns sites, mas nenhuma atividade orienta as formas de leitura e apropriação da massa de conhecimentos confrontados. Nesse sentido, as propostas de introdução das tecnologias digitais no ensino de história, que orientam os planos de aula do Portal do Professor, apesar de inovadoras quanto aos recursos didáticos, não trazem nenhuma inovação quanto às suas formas de abordagem em sala de aula. Ainda permanece a reprodução e a cópia de conhecimentos produzidos em outros espaços. A interpretação desses saberes ainda é conduzida na forma de perguntas e respostas mecânicas, em questionários que simplesmente exigem dos/as estudantes uma atenção quanto à descrição e repetição de enunciados. Esse tipo de relação que professores/as e estudantes estabelecem com os saberes históricos que circulam na internet denota a aceitação, autoridade e caráter de verdade que os saberes históricos midiáticos vêm assumindo na cultura escolar. Nesse sentido, não basta só agregar ao ensino de história novos saberes sobre as mulheres, é preciso também repensar as suas formas de abordagem em sala aula para considerar a historicidade, os regimes de verdade, as crenças e as práticas sociais que sustentam seus discursos e representações.

Já a aula de número 5 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) expõe objetivos bem amplos e generalizados que sinalizam para uma perspectiva histórica homogeneizadora e universalista da atuação das mulheres. Seus autores propõem a leitura e debate de três charges e uma matéria de revista (online). Na análise da primeira charge, o objetivo é que os/as estudantes “tomem consciência do fenômeno da emancipação feminina”. Entretanto as atividades propostas sinalizam para a formação de uma “consciência” incapaz de pensar historicamente essa emancipação, especialmente em suas articulações com questões socioculturais, políticas e econômicas.

Charge nº. 1 – Plano de aula “A emancipação feminina no Brasil atual”

Fonte: Disponível em http://n.i.uol.com.br/monkeynews/08charge.jpg. Acesso em 11 de dezembro de 2011.

 Diante da charge os/as professores/as (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) solicitam que os/as estudantes descrevam o que veem na imagem, e que digam qual a “mensagem desta charge”? Nessa perspectiva de abordagem, observamos que os/as professores/as carecem de referenciais teóricos e historiográficos adequados ao tratamento de imagens. Os referenciais da história cultural poderiam subsidiar esse trabalho de leitura e interpretação da charge, para que não fique apenas na simples descrição ou no exercício de desvendamento de uma mensagem “por trás” da imagem. Nesse sentido, o trabalho de historiadoras como Rachel Soihet e Cíntia Lima Crescêncio[5] sobre as representações das mulheres em charges poderiam se constituir em importantes referenciais para os/as professores/as.

A aula de número 5 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) carece ainda de referenciais sobre as condições produção da charge. Nem a autoria e data de produção é revelada, já que o link de acesso conduz a uma página onde a charge aparece de forma isolada, o que dificulta saber qual o contexto de sua procedência na internet. Não há também nenhuma menção às características e especificidades das charges.

A charge faz referência ao tempo das cavernas, à “pré-história”, sugerindo a inversão da imagem tradicional de um homem arrastando uma mulher pelos cabelos. Nessa inversão, é uma mulher quem subjuga o homem, arrastando-o à força. Trata-se de uma imagem bastante problemática e preconceituosa que pode oferecer uma “conscientização da emancipação feminina” como um retrocesso histórico, em referencia à “pré-história”, ou uma simples inversão de poderes. Essa imagem também remete a vários preconceitos e receios em relação aos feminismos. Reproduz um ponto vista que teme, condena e desclassifica a “emancipação feminina” como uma forma de dominação e violência contra os homens. Nesse sentido, a imagem e sua forma de abordagem em sala de aula, não colaboram no entendimento da complexidade e historicidade que envolve o processo de emancipação das mulheres no Brasil. Ou seja, não colaboram no entendimento dessa emancipação como um processo de luta pela igualdade, justiça social e harmonia nas relações entre os sexos, como uma busca pela igualdade e não pela superioridade e domínio em relação aos homens. A imagem acaba mantendo as relações de sexo-gênero dentro de uma lógica binária e hierárquica que naturaliza a existência de um polo dominante e outro dominado.

Charge nº. 2 – Plano de aula “A emancipação feminina no Brasil atual”

Fonte:

 http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=38676  Acesso em 11 de dezembro de 2011.

A charge de número 2 segue também a mesma tendência da primeira e reforça ainda mais essa concepção generalizante e negativa da “emancipação feminina”. As relações entre os sexos também são concebidas e naturalizadas como relações de poder, onde sempre deve haver um polo dominante/ativo e outro dominado/passivo. Não há uma abertura para o “possível” nas relações entre os sexos, para outras formas de relação não baseadas na dominação e exploração de um pelo outro, fora da ótica binária e hierárquica.

Charge nº. 3 – Plano de aula “A emancipação feminina no Brasil atual”

Fonte:

http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=38676

 Acesso em 11 de dezembro de 2011.

A charge de nº. 3 retratar uma mulher sobrecarregada com tanto trabalho, agindo com habilidade e equilíbrio, tal qual uma malabarista, entre atividades domésticas, maternais e profissionais. Nesse sentido, as três charges parecem não revelar aspectos positivos da emancipação das mulheres, apenas apresentam problemas e desigualdades como consequências dessa emancipação.

Além do trabalho com as três charges, os/as professores/as (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) indicam uma atividade com o título “Emancipação da mulher reflete-se na configuração familiar”, onde se propõe analisar uma entrevista publicada na Revista Donna (2011), com o diretor de uma associação pela participação de pais e mães separados na vida dos filhos. Nessa entrevista a “emancipação feminina”, entendida como a saída das mulheres dos lares, aparece como responsável pelo fim dos casamentos e o consequente abando dos filhos. Na análise da entrevista os/as professores/as lançam perguntas que priorizam a repetição e afirmação das ideias apresentadas no texto. Destacam-se as implicações da emancipação das mulheres de forma generalizada na economia e na família, como o abandono da maternidade. Desta maneira, as lutas feministas ganham uma conotação perversa e egoísta, como responsável pela destruição dos lares e pela sobrecarga de trabalho enfrentada pelas mulheres. Nada é dito ou questionado sobre as razões históricas que operam essas mudanças, ou seja, não há uma preocupação em descrever os processos e transformações que dão conta da emergência do número de divórcios no Brasil e da necessidade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Novamente ressaltamos que as representações que circulam nas mídias digitais necessitam ser historicizadas em sala de aula. Para um entendimento da construção de imagens negativas que circulam na mídia acerca dos movimentos feministas, indicamos os artigos de Tania Navarro-Swain (2001) e Margareth Rago (1995/1996).

Na atividade 4, intitulada “Emancipação feminina levaria nações pobres ao desenvolvimento”, os professores (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) novamente usam fontes jornalísticas, dessa vez do Jornal Nação Z. Trata-se de uma matéria que reforça a importância estritamente econômica da emancipação das mulheres. A igualdade de gênero no mercado de trabalho parece se justificar apenas por uma questão de desenvolvimento econômico e enriquecimento do país, desconsiderando-se os interesses e necessidades das próprias mulheres.

De modo geral o plano de aula número 5 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) não apresenta um reconhecimento das diferenças entre as mulheres, já que não menciona indígenas, negras e pobres, oferecendo uma imagem generalizada da situação vivida por mulheres da classe média como sendo a de todas as mulheres no Brasil. Não há uma proposta de discussão dos significados da “emancipação” para as próprias mulheres. Além disso, os/as professores/as deixam a opinião de historiadoras e acadêmicos sobre essas questões para os textos complementares. Dentre eles aparece uma matéria da Folha de São Paulo (online) com a opinião da historiadora Fabrícia Pimentel sobre as cotas para mulheres nos partidos políticos. Assim, os saberes históricos acadêmicos aparecem apenas nos links para a busca de conhecimentos complementares, diferente dos saberes midiáticos que são colocados no centro do processo pedagógico. Deixo claro que não estamos cobrando aqui a simples inclusão da historiografia feminista em sala de aula, cientes da complexidade que envolve a didatização dos conteúdos escolares, mas apenas considerando a sua possibilidade de subsidiar os/as professore/as em uma abordagem histórica das mídias digitais em sala de aula.

Não por acaso, para finalizar a aula de número 5 (Ribeiro; Turini; Silva, 2011c) os/as professores/as propõe um debate sobre a “emancipação da mulher no Brasil”, onde “um grupo ficará responsável por defender os aspectos positivos da emancipação feminina e o outro, por argumentar os aspectos negativos da emancipação, especialmente para as próprias mulheres”. Trata-se de uma atividade pedagógica que pode reforçar a competição, discórdia e oposição entre homens e mulheres, ainda mais tendo por base as mídias extremamente preconceituosas que devem ser abordadas durante a aula. Trata-se de um debate que, vazio de conhecimento histórico, só perpetua as desavenças e desentendimentos em torno da emancipação das mulheres. Esse tipo de debate e as atividades desenvolvidas com as charges e os textos jornalísticos, mantém a discussão no campo das opiniões dos/as estudantes e professores/as e transita no campo do senso comum, nas opiniões e preconceitos difundidos nos meios de comunicação, explorando opiniões que não passam de ponto de partida, de problemáticas ou situações complexas, a partir das quais os/as professores/as deveriam conduzir os/as estudantes a uma análise histórica.

Algumas reflexões e propostas

Os planos de aula analisados apresentam alguns objetivos bastante amplos e generalizados no entendimento da atuação das mulheres no tempo presente. Nesse sentido, suas propostas de atividades e recursos didáticos não conseguem abarcar questões tão amplas e complexas como as “lutas para o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres”, “o histórico de luta das mulheres por seus direitos no Brasil”, “os preconceitos e imposições às mulheres na história do Brasil”, “as transformações da participação feminina na sociedade contemporânea” e “o papel desempenhado pelas mulheres em nossa sociedade”. Propostas de ensino deste tipo acabam por reduzir a atuação das mulheres a uma perspectiva histórica homogeneizadora e universalista, que dificulta o entendimento da diversidade de atuações e perspectivas das mulheres em torno do trabalho e das lutas por direitos políticos no passado e no presente.

É nessa perspectiva também que os/as professores apreendem as identidades e experiências das mulheres em uma ótica binária e hierárquica que classifica e opõe os corpos em femininos e masculinos, tratando a divisão sexual do trabalho, as relações de poder e a heterossexualidade como normas universais que regem as relações entre os sexos. É nesse sentido que alguns/algumas professores/as fazem uso de termos como “mulher” (no singular), “universo feminino”, “condição feminina” e “causas femininas”. Como bem disse Navarro-Swain,

A “mulher” não existe e na performatividade dos discursos, ao enunciarmos este singular, estamos retomando a representação e a imagem do feminino essencializado, unívoco, ancorado em seu corpo e seu útero, razão maior de sua existência. Se os feminismos apontam para a multiplicidade do ser mulher, da instituição do feminino em formações históricas e específicas, é intolerável esta repetição do refrão sobre “a mulher”, “condição da mulher”, “espaço da mulher” (s/d).

 Essa concepção opera ainda com a oposição sexo/gênero, atribuindo ao “gênero uma característica de construção social enquanto delega ao sexo o status de algo biologicamente dado” (Gandelman, 2003: 211). Trata-se de uma concepção que, apesar de ainda predominante no discurso de algumas feministas, acaba deixando o sexo de “fora da cultura e da história, sempre a enquadrar a diferença masculino/feminino” (Idem: 211), caindo naquilo que Linda Nicholson (1999) chamou de “fundacionalismo biológico”, por não questionar o caráter construído da oposição feminino versus masculino. Essa noção de gênero aponta para a perpetuação da naturalização das diferenças, por meio de uma concepção que distancia as relações de gênero das relações de poder, apagando a historicidade das subjetividades e relações de gênero. Enfim, os planos de aula analisados não rompem em definitivo com o biológico e continuam a dar um tratamento essencialista às distinções de feminino/masculino.

A inclusão da história das mulheres nos planos de aula vem ocorrendo, especialmente, por meio de temas do presente imediato, ou seja, por meio do estudo de acontecimentos recentes como o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e as lutas pelas conquistas de seus direitos. A partir de problemáticas contemporâneas que envolvem a constituição da cidadania, os/as professores/as escolhem os conteúdos de suas aulas. No entanto, as ações das mulheres no tempo presente emergem nas aulas de forma desconexa, fragmentada, descritiva e deslocada da realidade dos processos históricos que lhes dão sentido. Ao incluir o presente na sala de aula esses/as professores/as tendem a abandonar o passado como objeto privilegiado da disciplina história, anulando a importância das relações que o presente mantém com o passado. Trata-se de perspectiva que não permite que os/as estudantes “olhem para o presente como resultado das injunções políticas que se deram no passado” (Pereira, 2007: 162).

Os/as professores/as tendem a abordam o tempo presente como uma tentativa de prender a atenção dos estudantes e de tornar o conhecimento significativo e interessante, ao aproximá-lo de sua realidade imediata. Nesse sentido, parece que a inclusão da história das mulheres nos “conteúdos significativos” do tempo presente parece se justifica muito mais em razão de uma metodologia de ensino, tida como inovadora, do que em razão de princípios políticos.

Os saberes históricos provenientes das grandes mídias digitais são as principais referências para os debates travados em sala de aula. As mídias digitais podem contribuir para a inteligibilidade do tempo presente. Entretanto são fundamentais as perguntas, os métodos e instrumentos de análise que orientam as suas formas de abordagem em sala de aula. O espaço da aula de história, diferente de outros espaços, como o da mídia, deveria ser espaço de crítica e questionamentos que possibilitassem a desconfiança intelectual em relação às evidências e ao senso comum que circulam na escola, nas conversas dos estudantes e nos meios de comunicação e informação. Desse modo, “ensinar história é ensinar um método, um jeito de olhar para o passado e para o próprio presente” (Pereira, 2007: 160), isso implica mostrar aos/às estudantes o caráter histórico dos saberes que circulam nas mídias digitais, nos livros didáticos e nas falas dos/as professores/as, para que percebam os conhecimentos como resultados de escolhas políticas que se dão no presente. É dentro dessa perspectiva que o ensino de história poderá se tornar instrumento de análise dos acontecimentos que envolvem as mulheres e as relações de gênero no tempo presente, pondo à disposição da sociedade outras formas de olhar para o passado, e isso, evidentemente, tem implicações políticas mais favoráveis ao reconhecimento e legitimação das lutas dos movimentos feministas e de mulheres no presente.

No entanto, o trabalho de historicização das mídias digitais em sala de aula exige dos/as professores/as tempo e preparação. Ao se propor abordar acontecimentos do presente os/as professores/as precisam ser capazes de ensinar sobre eles, assumindo também o papel de historiadores/as para estabelecer relações, compreender o contexto histórico e refletir sobre o que os acontecimentos do presente (como o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e as lutas por direitos políticos) têm representado na história das mulheres e das relações de gênero no Brasil.

Essas questões reforçam a necessidade de maiores investimentos na formação de professores/as capazes de converter o ensino de história em uma ferramenta poderosa para que os/as estudantes possam não só compreender melhor o mundo em que vivem, mas também atuar na sua transformação e melhoria. Para isso é importante discutir nos cursos de formação inicial e continuada de docentes não só os conteúdos e os métodos de ensino, mas também os princípios políticos das ações pedagógicas e o modo como o ensino de história pode ser usado na construção e desenvolvimento de uma forma de pensar o mundo e as relações humanas fora dos eixos de dominação, poder, hierarquia e divisão sexual. Podemos formar professores/as que usem o ensino de história como uma ferramenta política que contribua na educação para a igualdade e fortalecimento da cidadania das mulheres.

Nesse sentido, as teorias feministas, introduzidas no ensino de história e nos currículos de formação de professores/as, podem orientar perspectivas e práticas pedagógicas que promovam a historicização e desnaturalização de concepções binárias e hierárquicas de sexo-gênero, que deem visibilidade à multiplicidade de experiências e identidades das mulheres em diversos tempos e espaços, e que permitam o entendimento das práticas sociais, regimes de verdade e relações de poder constitutivas do conhecimento histórico (escolar, acadêmico, midiático, etc.). As teorias feministas (Rago, 1998) nos propõe uma maneira de pensar e viver no mundo, bem como de pensar a história e o ensino de história, fora dos estereótipos e dualismos (feminino/masculino), em busca do “possível” nas relações humanas, da “infinita possibilidade de agenciamentos sociais e a variedade possível de formações e sistemas em suas expressões eventuais”, abrindo-se para a diversidade, para “aquilo que não está necessariamente ancorado nas representações sociais do presente, construídas em torno de uma ‘natureza’ toda poderosa” (Navarro-Swain, 2012 apud Oliveira, 2012: 10).

Planos de aula

SILVA, Marinalva Rodrigues Viana. O papel da mulher na sociedade. Portal do Professor: Espaço da Aula. Publicado em 13/04/2011. Brasília: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=30763> Acesso em: 12 mai. 2015. 

SOUSA, Klenio Antonio; FARIA, Elizabet Rezende de; REZENDE, Leandro. A luta das mulheres pela profissionalização. Portal do Professor: Espaço da Aula. Publicado em 22/10/2014. Brasília: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=58046>.  Acesso em: 12 mai. 2015. 

RIBEIRO, Getulio; TURINI, Leide Divina Alvarenga SILVA, Elmiro Lopes da. “Música da mulher”: as canções e as causas femininas no Brasil. Portal do Professor: Espaço da Aula. Publicado em 19/12/2011a. Brasília: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=38677>   Acesso em: 12 mai. 2015. 

RIBEIRO, Getulio; TURINI, Leide Divina Alvarenga SILVA, Elmiro Lopes da. Os direitos da mulher ao longo da história do Brasil. Portal do Professor: Espaço da Aula. Publicado em 19/12/2011b. Brasília: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=38675>.    Acesso em: 12 mai. 2015. 

RIBEIRO, Getulio; TURINI, Leide Divina Alvarenga SILVA, Elmiro Lopes da. A emancipação feminina no Brasil atual. Portal do Professor: Espaço da Aula. Publicado em 19/12/2011c. Brasília: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=38676>  Acesso em: 12 mai. 2015. 

Referências bibliográficas

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Nota biográfica

>Susane Rodrigues de Oliveira é professora adjunta no Departamento de História da Universidade de Brasília na área de Teoria e Metodologia do Ensino de História. Possui graduação em História pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (1997), mestrado (2001) e doutorado (2006) em História pela Universidade de Brasília (2006). É autora do livro "Por uma História do Possível: Representações das Mulheres Incas nas Crônicas e na Historiografia", publicado pela Paco Editorial em 2012. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5973203155533160.


 

[1] “(...) trabalho de mulheres e crianças na agricultura, na indústria e nos serviços urbanos, nas atividades domésticas, etc.” (Brasil, 1998: 61). 

[2] “(...) trabalho das mulheres e das crianças na indústria inglesa; agricultura, comércio, indústria, artesanato e serviços urbanos na África e Ásia” (Brasil, 1998: 62).

[3] Estes números são baseados em pesquisa, realizada no mês de março de 2015, no sistema de busca disponível dentro do Portal do Professor (www.portaldosprofessor.mec.gov.br).

[4] Cf. MURGEL, Ana Carolina Arruda de Toledo. A musa despedaçada: representações do feminino nas canções brasileiras contemporâneas. Labrys (Edição em Português. Online), v. 17, p. 1-15, 2009. MURGEL, Ana Carolina Arruda de Toledo. Entre Capitus, Gabrielas, Tigresas e Carolinas: o olhar feminino na canção popular brasileira contemporânea. Labrys. Estudos Feministas (Edição em português. Online), v. 11, p. 3, 2007.

[5] SOIHET, Rachel. Preconceitos nas charges de O Pasquim: mulheres e a luta pelo controle do corpo. In: Artcultura, Uberlândia, v. 9. n. 14. pp. 39-53, jan-jun., 2007. CRESCÊNCIO, Cíntia Lima. Nos caminhos do riso: possibilidades metodológicas para análise de charges publicadas durante a segunda onda dos feminismos no Brasil (1970). Historiæ, Rio Grande, 3 (2): 133-146, 2012.

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier / juin 2015 -janeiro/juin 2015