labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2015 - juillet/décembre 2015

 

 

“Eu desafiaria a premissa de que o amor pode prover o fundamento da ação política, ou ser um sinal de boa política. Mas o que significaria a visão política se não amássemos essas visões? Eu estaria argumentando contra uma política visionária? Se o amor não modela nossas visões políticas, isso não significa que não devêssemos amar as visões que temos. (...) Nós precisamos estar investidos delas/nelas e, ao mesmo tempo, abertos para caminhos pelos quais elas falharam ao serem traduzidas em outros termos ou objetos que podem assegurar nosso chão no mundo. Nós precisamos estar investidos nas/das imagens de uma outra espécie de mundo e agir sobre esses investimentos acerca de como amamos nossos amores e como vivemos nossas vidas, assim como precisamos nos entregar às possibilidades no sentido de que podemos tomá-las de modo errôneo e de que o mundo em que estamos pode mudar de forma. Não há amor bom que, falando em seu nome, possa mudar o mundo na direção de um referente único para aquele nome. Mas, com resistência em falar em nome do amor, com reconhecimento no sentido de que não simplesmente agimos por amor, e compreendendo que o amor existe em certas condições, ainda que se possa senti-lo incondicionalmente, nós poderemos encontrar, talvez, uma espécie diferente de alinhamento ou conexão entre os outros que nos importam, e de quem cuidamos, e o mundo para o qual queremos dar forma(...)”. Sara Ahmed (AHMED, 2014: 141).

RESENHA do livro:

AHMED, Sara (2004, 2014). The Cultural Politics of Emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press.

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro

 

The Cultural Politics of Emotion foi publicado pela primeira vez em 2004, quando Sara Ahmed dirigia o Institute for Women`s Studies na Universidade de Lancaster (200-2003). Nas páginas iniciais, é possível observar em parte sua trajetória nos estudos feministas e queer também pelo agradecimento a colegas que contribuíram em suas reflexões sobre “afeto” e “emoção” e para a criação do Centro de Pesquisa Feminista da Goldsmiths Universidade de Londres, onde atualmente é diretora.

No livro, Ahmed analisa como as “emoções operam para modelar ‘superfícies’ de corpos individuais e coletivos”. Segundo a autora, os “corpos tomam forma justamente no contato que têm com objetos e outros corpos”. A partir de textos que circulam no domínio público sobretudo na Inglaterra, nos EUA, Canadá e na Austrália, ela observa o alinhamento de sujeitos e coletividades e explora os processos que atribuem aos ‘outros’ o lugar de origem de certos sentimentos. Longe de pretender esgotar uma análise sobre as emoções, ela procura pensar sobre o trabalho que elas fazem, ou refletir sobre como cada emoção escolhida opera. E em cada capítulo ela se serve de uma emoção diferente como ponto de partida, ou `ponto de entrada` para sua reflexão.

No primeiro capítulo, ela examina a contingência da dor: como a linguagem da dor opera por meio de sinais que remetem a histórias de injúrias sobre os corpos e, ao mesmo tempo, dissimula o trabalho que incide sobre outros corpos. A epígrafe provocadora é uma carta da organização Christian Aid sobre a importância do trabalho com parceiros internacionais para a remoção das minas deixadas pela Guerra. Nem no trecho nem na carta, a palavra ‘mina’ aparece acompanhada de uma descrição ou contextualização histórica, ela observa. A palavra e o texto parecem suficientes para evocar imagens de dor e sofrimento como um signo daquela narrativa promissora, não pelo que promove em relação à superação das dores dos outros, mas por uma espécie de ‘empoderamento’ do leitor. Na abordagem, histórias de bravura e superação da dor da perda de uma perna se deslocam entre lugares e leituras, fazendo deslocar também o sentimento de tristeza, raiva ou perda. Assim, ela observa, por um lado, como discursos de compaixão ou caridade operam em articulações significativas no jogo em que as histórias de dor produzem relações de poder que dissimulam a violência. E, por outro, demonstra como é possível entrever relações políticas e econômicas traduzidas em histórias de doação e generosidade.   

A raiva é a emoção a que ela se refere no segundo capítulo: a raiva distribuída e figurada nos corpos – do casal multirracial, da criança molestada, do estuprador, dos estrangeiros. São corpos que encarnam a ameaça da perda do trabalho, da pureza de sangue, da posição social, do dinheiro e da pátria ou nação. Para a autora, a fantasia da impureza e da violação precisa funcionar e, ainda que não resida em um sujeito ou objeto específicos, ela significa enquanto circula entre relações de diferenças e outros deslocamentos. Assim, ela explora como sujeitos, objetos e signos engendram economias afetivas em suas dimensões materiais, sociais e psíquicas e, se elas não se instalam clara ou definitivamente nos corpos/objetos que habitam, certamente envolvem processos de ‘materialização’ (Butler) e de `intensificação` (Ahmed). Ela percorre discursos de instituições públicas (do Partido Conservador Britânico e dos “crimes de ódio”) para exemplificar a ligação política entre a linguagem do ódio e a superfície dos corpos. E demonstra como nesses textos estão construídas relações de sentido e violência entre a ‘nação hospitaleira’, que oferece asilo e modela o outro, e os sujeitos - o asilado, o estrangeiro, no jogo de produção de identidades fixadas pelo sexo, a religião ou a cor da pele. Os sentimentos de injúria são convertidos em raiva, assim como os corpos e as palavras também são modelados pela raiva para justificar ações e persuadir grupos, partidos e nações.

O que nos provoca medo? Quem tem medo de quem? Reconstruído na epigrafe de Fanon (1986), o medo dá início à reflexão sobre como esta emoção também opera em/por meio dos corpos. Corpos, portanto, são lidos ao mesmo tempo como objetos, sujeitos ou subjetividades. Segundo Ahmed, o medo estabelece distâncias, relações e proximidades entre corpos e tal diferença pode ser lida em suas superfícies. A relação entre medo, ansiedade, perda ou morte de um objeto e o ordenamento de um espaço corporal e social são eixos de sua análise no capítulo. A medida dessa distância envolve particularmente a repetição insistente de estereótipos e, por outro lado, o medo faz encolher o espaço do corpo e restringe a mobilidade social. Ela reflete sobre o papel do medo para a manutenção do poder e explora como as narrativas de crise operam para estabelecer normas de segurança social no presente, centradas na figura do terrorista internacional.

A performatividade do desgosto é o título do capítulo em que ela apreende a construção de corpos de que se desgostam, ou melhor, causam sentimentos de recusa, repugnância ou aversão. Nessa análise, ela aprofunda o conceito de performatividade de Butler, ou “o poder do discurso de produzir efeitos através da reiteração”. Se tal processo depende da repetição ou da iterabilidade para se realizar, também sugere que a repetição de convenções passadas pode ser cortada ou descontinuada em relação a seus contextos estruturantes de significação. Ela enfatiza a historicidade dos signos e dos processos de significação para observar relações entre signos, formas e convenções, assim como o trabalho nem sempre explícito de engendramento dessas relações. Certos sentidos se aliam, grudam, fixam-se, saturam certos corpos, e não outros, impregnando neles fortes sentimentos socializados de desgosto, termo cuja tradução se avizinha mais ao sentido de recusa, repugnância, ou pelo menos, desaprovação. A leitura reiterativa desses sentidos, que designam certos corpos e sentimentos como abjetos ou repugnantes, opera para impregná-los desse sentimento, e construí-los socialmente dessa forma, como efeitos e também signos de uma verdade naturalizada e compartilhada.

A vergonha é a ‘ponta de entrada` para Ahmed inquirir o discurso de conciliação do governo australiano em relação às injustiças cometidas contra os aborígenes no passado. Neste capítulo ela aborda experiências vividas de vergonha e também atos do discurso que constroem a vergonha nacional e a reparação. Interessante, particularmente no capítulo, a possibilidade de se estabelecer paralelos entre a experiência pós-colonial do ponto de vista da crítica inglesa da cultura e a política de reparação produzida no Brasil em relação às desigualdades raciais e ao passado escravocrata. O reconhecimento, ao lado da vergonha, aparece nos discursos de países colonizadores (3a UN Conferência sobre o Racismo na África do Sul/2001) como formas de construção da nação ou de uma nova postura em relação ao passado, à escravidão e ao colonialismo. Desculpas, arrependimento, e também a recusa ou rejeição, fazem parte deste rol de emoções que, aos olhos da autora, articulam sentimentos outros, tais como culpa, orgulho, pesar e arrependimento no âmbito dos encontros individuais e intercorporais. Tais emoções articulam corpos e coletividades contornados por meio de expressões que os materializam, veiculam, e dão sentido aos grupos, à sociedade civil nacional ou internacional na orquestração das nações.

O sexto capítulo, Em nome do amor, título em alusão à poetisa e ensaísta norte-americana Adrienne Rich, traz uma reflexão sobre coletividades reunidas e ampliadas por meio de redes sociais, que, em nome do amor, da proteção de indivíduos e da nação fazem proliferar sentimentos de ódio e ações criminosas. Auto-nomeados como ‘grupos de amor’, tais grupos de ódio se identificam como sujeitos sob risco, e o amor é invocado não apenas como uma motivação ‘pelos outros’ e ‘pela nação’, mas torna-se uma espécie de propriedade particular de um grupo em torno de um ideal. Em diálogo com Freud, Kristeva, Lacan e Butler, ela examina o processo de identificação e idealização e a reiteração do ideal nacional. Entretanto, interessa a ela não apenas compreender o papel do amor quando é apropriado por discursos radicais que, contra alguns outros, alegam a defesa de ideais de fraternidade e patriotismo, mas em discursos do multiculturalismo que sugerem expandir o amor para incluir os ‘outros’.  Ela questiona a ‘benevolência’ assim como os ‘bons sentimentos’ e ‘imagens’ de amor em relação aos pobres, excluídos sociais, ou sujeitos construídos em corpos abjetos e critica movimentos análogos àqueles conhecidos pelo discurso religioso ou liberal da caridade.

Nos dois últimos capítulos, talvez os mais contundentes do livro, ela aprofunda essas questões do ponto de vista das políticas queer e feministas. Em Sentimentos Queer, ela enfoca como a heteronormatividade afeta a superfície dos corpos, na medida em que as normas e orientações na direção do objeto sexual ideal e da reprodução do corpo e da cultura definem ações, encontros, lugares, histórias mais ou menos confortáveis, autorizadas ou legitimadas. Sentir-se habitante de um corpo que falha ou recusa-se a reproduzir esse ideal entre as normas e afetos no interior das famílias queer, a importância do reconhecimento em políticas públicas – particularmente em relação ao luto queer que foi manifesto no episódio do 11 de setembro -, são objetos de análise. Para além do desconforto e do reconhecimento social, ela observa que se a dor tem efeito constritivo ou constrangedor sobre os corpos (Cap.1), os prazeres tendem a expandi-los e podem permitir aos corpos conquistar espaços. Assim, ela observa como o prazer em relações sociais e sexuais não reprodutivas podem funcionar como um distúrbio político em uma economia afetiva organizada em torno do princípio de que o prazer é apenas um incentivo ou recompensa pela boa conduta social.

A expectativa queer é que a remodelação dos corpos, por meio da prática de prazeres que são interditados, possa se ‘imprimir’ diferentemente sobre as superfícies dos espaços sociais, criando a possibilidade de formas sociais que não são ou foram constrangidas pelo imperativo do casal heterossexual. Ela acrescenta, prazeres queer não são apenas resultados de encontros de corpos na intimidade sexual. Corpos queer reúnem espaços, por meio do prazer de se abrirem a outros corpos. Essas reuniões envolvem formas de ativismo nas ruas, bares, nos clubes, nos lares. A esperança das políticas queer, ela acrescenta, reside na ideia de que estar próximo aos outros, de corpos estranhados, marcados, excluídos, interditados pode promover diferentes modos de vida com os outros. Essas possibilidades não dizem respeito a estar livre das normas, ou estar fora dos circuitos de troca do capitalismo global.  É a não-transcendência de sujeitos queer que permite que esses corpos ajam e existam. A esperança queer não é, portanto, sentimental. Ela é afetiva justamente em face da persistência de formas de vida que estão negativamente atreladas ao ‘não’, e procura a crítica e a ‘não-repetição’ para enfrentar a persistência de normas e valores que tornam queer certos sentimentos.

Em Ligações feministas, último capítulo, Ahmed refirma a crítica feminista e anti-racista e contesta pressupostos fundamentais do pensamento e da ação: por exemplo, a compreensão binária do humano e do social que compreende mente-corpo, razão-emoção como dimensões apartadas. Ela nos convida a pensar em formas políticas que pretendem contestar normas sociais em termos de emoções, compreendidas como “pensamentos materializados em corpos” (embodied thought). A emoção não é aquilo que está fora do pensamento ou do impensável. A partir das emoções vividas e refletidas – a raiva que sentia pelo fato de que ser menina parecia significar o que ela não podia fazer; a dor que sentia diante de situações de violência; o amor, amor pela mãe (e pelas mulheres) cuja capacidade de doação deu-lhe inclusive a vida; a admiração, capacidade de espanto ou desnaturalização que pode fazer aquilo que é ordinário tornar-se surpreendente; a alegria de poder fazer diferentes as formas de conexão com os outros e perceber que o mundo pode assumir novas formas; e a esperança, que orienta cada momento de recusa e que estrutura o desejo por mudança diante da turbulência que decorre do sentimento de abertura para o futuro –, ela afirma a necessidade de exercitar a crítica. Apesar da dificuldade de se superar simplesmente as emoções, e de se sentir indiferente em relação às histórias de violência, injustiça e desigualdade, as emoções são cruciais para nos mostrar como as transformações podem ser difíceis. Difíceis, mas viáveis, ela insiste, se investirmos na releitura das experiências de dor, raiva ou desconforto, na desnaturalização de objetos e categorias do pensamento que nos parecem dados e não construídos, pensando em seus efeitos políticos, se investirmos no contato com outros corpos, nas ligações dos feminismos, no movimento e na historicidade dos corpos e das emoções, e na abertura para futuros possíveis.

A segunda edição traz ainda um apêndice, espaço em que Ahmed repensa a própria trajetória desde a elaboração do livro, entre 1999 e 2003. Ali ela localiza teórica e politicamente as principais questões que mobilizaram suas reflexões desde então, aproximações e distanciamentos construídos com/entre diferentes perspectivas disciplinares, bem como aspectos que foram retomados e aprofundados em outras obras elaboradas no período de dez anos entre a primeira publicação e a reedição. Este é outro espaço substantivo de discussões no livro, em que, do mirante de sua experiência hoje amadurecida, ela aprofunda temas, discute problemas, afina conceitos e reafirma referências relevantes em sua análise, entre eles os estudos sobre os afetos; a “virada afetiva”; a (in) distinção entre afeto e emoção; experiência; tecnologias de raça e gênero; tradução e subalternidade; a socialidade das emoções; “contágio”; cidadania; corpos, sujeitos, objetos estranhos, estrangeiros, (des) confortáveis, perigosos, (in)felizes. Se, para ela, os livros são como “pedras do caminho”, ou estações provisórias de uma jornada intelectual, ali encontram-se algumas dessas pedras expostas no trabalho de uma constante lapidação.

Nesta aventura da emoção desdobrada em páginas e capítulos, a dor, a raiva, o medo, a vergonha, a aversão, o amor não são sentimentos que alguém tem, mas apreendidas criticamente como construções que criam impressões das/nas superfícies dos corpos. Ao perseguir as histórias das emoções que circularam em discursos individuais e sociais, Ahmed observa como mundos são modelados nos corpos, e como os corpos foram e são construídos como efeitos de emoções e histórias coletivas. Corpos que, por sua vez, se tornam objetos, com seus efeitos. O livro convida a uma jornada pelo pensamento ocidental e ao diálogo com antigos, modernos e pós-modernos, entre eles Aristóteles, Descartes, Machiavelli, Hobbes, Hume, Locke, Heidegger, Kierkegaard, Nietzsche, Spinoza, Marx, Wittgenstein, Durkheim, Sartre, Elias, Freud, Lacan, Laing, LaCapra, Damasio, Bhabha, Fanon, Said, Deleuze, Barthes, Derrida, Foucault –, rediscutidos na perspectiva do debate feminista – Grosz, Braidotti, Lauretis, Butler, hooks, Irigaray, Jagger, Kristeva, Spivak, Lorde, entre outras.

Ahmed reconstrói relações históricas entre os corpos, as emoções e a linguagem, e problematiza territórios de sentidos, deslocamentos e (não) pertencimentos. Nessa jornada, as emoções emergem como atos do discurso que envolvem sensações, sentimentos e se exprimem na e pela pele. Identidade, raça, gênero e nação atravessam as reflexões como categorias de análise e também como dimensões problemáticas em uma abordagem encarnada, questionadora, instigante e intrigante, que procura e explicita suas ferramentas de análise; que perscruta uma metodologia para abordar a complexidade de temas difíceis, sofridos, caros para a sociedade contemporânea, tais como política, cultura, terror, migração, reparação, reconciliação, conhecimento, dominação, exclusão, sexualidade, diferença... E emoção...

"The Cultural Politics of Emotion", de Sara Ahmed, publicado em segunda edição, 2014, Edinburg University Press (publicado originalmente em 2004).

Sara Ahmed é Diretora do Centro de Pesquisa Feminista, onde também atua como Professora de Estudos Culturais e Raça no Department of Media and Communication da Universidade de Londres Goldsmiths. Outras obras de sua autoria: Differences that Matter: Feminist Theory and Posmodernism (1998); Strange Encounters: Embodied Others in Post-Coloniality (2000); Queer Phenomenology: Orientations, Objects, Others (2006); The Promise of Happiness (2010); On Being Included: Racism and Diversity in Institutional Live (2012) e Wilful Subjects (2014).

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro – Professora Adjunta do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, atua nas áreas dos Estudos Feministas, Culturais, História do Brasil e da África. Participa dos grupos de pesquisa: GEFEM/UnB, NEGUEM/UFU, NEPHISPO/UFU. No momento, desenvolve pesquisa pós-doutoral vinculada ao Department of Media and Communications em Goldsmiths University of London, sob a supervisão de Sara Ahmed, com o apoio da CAPES.

 

 

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