labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

 

Rupturas e..

Anos atrás, Françoise Collin, de modo sucinto e preciso, sugeriu que deveríamos superar a solidariedade amnésica que excluía as mulheres - da História, das Artes e do Pensamento Ocidental - e reparar essa injustiça. Mas, sobretudo, reparar a lacuna teórica decorrente dessa situação. Pretender ou exigir que as mulheres sejam levadas em conta modifica o que se estuda e também o que é relevante investigar, ao mesmo tempo em que politicamente desafia a segmentação disciplinar existente. As forças de liberdade de um texto ou de imagens dependem dos deslocamentos de perspectiva e interpretações realizadas.

As escritoras, pintoras, escultoras, musicistas, devedoras do alfabeto  masculino e das tendências artísticas de suas respectivas épocas, cercadas de obstáculos por todos os lados, ainda assim puderam encontrar seu traço singular, pontos de vista próprios, situações alternativas, multidirecionais; identidades flexíveis, metamorfoses constantes; outras configurações; novas sendas a serem traçadas nos mapas. A verdadeira busca filosófica exclui que se possa dar a última palavra ou a última pincelada, tocar a última nota, dar um fim a obra das artistas ou aos ensaios das críticas e aponta sempre para novas aberturas, novos saberes, novos prazeres.

Nesse caminho, de ruptura em ruptura, incontáveis estudos das últimas décadas acabaram por formar montanhas de palavras e imagens, entre alguns picos de brilho teórico, que alteraram o cenário usual. Inúmeros fios, como mostrei em outro texto, se tornaram sugestões e foram aproveitados. São fios que agora nos são comuns, tributários de várias disciplinas e campos do saber que trouxeram à tona artistas esquecidas; reconstruíram tradições; desconstruíram representações convencionais, fragmentaram binarismos e categorias essencialistas, traçaram leituras divergentes sem se misturarem ou unificarem.

Rupturas também aconteceram através do questionamento a respeito das relações mantidas por mulheres reais, enquanto agentes históricos, com o conceito normativo de “Mulher”, produto do discurso hegemônico. Esses debates implantaram a ideia de pluralidade, mostraram que a noção de identidade fixa deve ser abandonada. Foi preciso ainda, seguindo a sugestão de Virginia Woolf, indagar das dificuldades da artista mulher em seu processo de auto definição que necessariamente precede toda criação e busca de valores estéticos.  

Hoje existem várias aproximações possíveis para se indagar das mulheres e das artes, das artes das mulheres, dos feminismos nas artes, tanto as derivadas da história, da filosofia e da fortuna crítica, quanto de inúmeras intervenções acrescidas por décadas de reflexões feministas. Estas reflexões, no entanto, não dizem respeito somente às mulheres, pois abrangem noções centrais nos campos de estudo assim como questões de desigualdades na sociedade e a construção das subjetividades. Esses estudos logo se abriram em leque, mostrando diversos enfoques, diferentes metodologias, e particularmente no caso das literaturas, várias precursoras, em todas as épocas, em todos os lugares. Constatou-se então que a luta para pertencer aos cânones oficiais das artes não era desejável e que a questão para os marginalizados não é a substituição de quem o que está nos cânones, no caso a autoridade do homem branco, mas a mudança de paradigmas.

 

...e Cartografias

A preferencia pelas cartografias sugere uma ruptura com a ideia de tempo linear, o histórico dos fatos encadeados. As cartas náuticas, porque viajar é preciso, as terrestres onde nos movimentamos, ou as celestes - pois quem pode viver sem uma paisagem como pano de fundo? - são modelos para reconfigurar a ordenação do sensível bem como o das relações estabelecidas na formação do conhecimento. A produção artística como um trabalho de bricolagem aqui se coloca como montagens, desmontagens e remontagens de seres, coisas, lugares e tempos.  As cartas exibem a noção de tempo descontínuo e não linear no qual se justapõe, de maneira não usual, obras de arte de várias épocas. Em vez de tempo história, geografia e espaço. A exposição rejeita assim a narrativa como uma sequência ordenada de eventos que se sucedem e se mostra como ideia relacional de espaços multidimensionais que reconfigura, redistribui os elementos e derruba fronteiras.       

Hoje, acredita-se, que as unidades básicas do conhecimento são “concretas, corporais, incorporadas, vividas”. Conhecimento diz respeito ao estar situado e sua singularidade, história e contexto, não é um “barulho” que encobre uma configuração abstrata, uma essência. O concreto não é um passo rumo a uma outra coisa: é tanto onde estamos quanto o como chegamos aonde estamos indo.

A identidade, nesse conjunto de ideias nunca será fixa, mas sempre frágil e sujeita a modificações, incorporações ou metamorfoses. Assim também a subjetividade que se forma, cria-se e transforma-se. E os fragmentos podem sempre ser rearranjados em incontáveis e infindáveis bricolagens. Eles podem ser combinados e recombinados, para abrir novos caminhos através de brechas e veredas estreitas, até dos labirintos, como quer  Atwood para quem a arte, da escrita “tem a ver com escuridão e com um desejo, ou talvez uma compulsão, de entrar no labirinto e com sorte  iluminá-lo e trazer alguma coisa de volta”.

Identificar contextos onde as mulheres pensaram que as artes eram doadoras de poder, em que falaram de seu prazer e encontravam prazer no movimento de gerar alguma arte, ou conquistar novos territórios; são temas que continuam abertos em nossas análises e teorias e se fazem presente na seleção de textos que aqui se apresenta.

Norma Telles

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016