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janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Cadeia: relatos de mulheres

Luciana Brito[1] entrevista Debora Diniz[2]

 

Meus encontros com os textos de Debora Diniz são sempre transformadores. Esses escritos fogem do pedantismo comum aos textos acadêmicos, dominados pela escrita dos machos especialistas. Debora é uma pesquisadora feminista, uma cientista engajada. Não acredita na neutralidade da ciência e, por isso, a cada escritura anuncia seus compromissos políticos. Mas o engajamento nada tem a ver com pouca sofisticação nos argumentos ou com a ausência de rigor científico – ela se lança como escritora confiável, mas aposta que há diferentes formas anunciar gestos políticos. Por isso, além da escritura de artigos e livros, já produziu sete filmes documentários, recebeu prêmios internacionais, liderou a ação no STF que descriminalizou o aborto por anencefalia e hoje lidera uma nova ação na Suprema Corte, para a garantia de direitos de mulheres em tempos de epidemia do vírus zika.

Com o livro Cadeia: relatos sobre mulheres não é diferente. Diniz vai à esfera pública com modos próprios de fazer ciência com pesquisa feminista engajada e confiável. Arriscaria dizer que há transgressão em sua escritura sobre as mulheres vivendo no presídio da capital do país. Debora atravessa fronteiras, mas cumpre os ritos e rigores da ciência. Numa alusão à alegoria da torre utilizada por Virgínia Woolf, Diniz descreveu o feminismo como “um entortador de torres do pensamento e do poder” (Diniz, 2015a:49). E é assim que a pesquisadora feminista provoca a hegemonia da ciência herdada de homens brancos.

 

Luciana . Cadeia: relatos sobre mulheres é um livro que perturba a ordem da linguagem acadêmica. Talvez por isso muitas leitoras dizem farejar algo de literatura ou poesia em sua escrita. Você poderia nos contar um pouco sobre como se desenvolveu o seu método para registro das vidas das mulheres vivendo no presídio da capital do país?

Débora . Há duas camadas de inquietações na sua pergunta: a primeira é sobre a escrita; a segunda, sobre como a pesquisa foi feita – isto que descreveu como “o registro das vidas das mulheres”. As duas podem ser entendidas como método, é verdade, mas tocam em formas diferentes de pensar, fazer ou relatar pesquisas. Queria começar pelo método do trabalho de campo, o que também descrevi como uma etnografia da cadeia, para, depois, explicar os contornos da escrita do livro.

Eu já era uma pesquisadora de cadeia quando me reinventei para este livro. Durante anos, coletei dados de prancheta, fiz entrevistas formais, conversei com as presas por formulários pré-determinados para coletar informações. Aprendi coisas importantes com essas técnicas mais tradicionais de pesquisa – a mais intrigante foi que uma em cada quatro presas em regime fechado havia passado por unidades socioeducativas de internação na adolescência. Em termos mais simples, muitas delas iniciaram o itinerário carcerário precocemente na vida – viveram pelas ruas, em reformatórios e cadeias de adolescência. Uma das presas que conheci, a história com que inicio o livro, estava há poucos dias na rua, recém-liberta de uma unidade socioeducativa, quando já foi presa como mulher adulta. Tinha acabado de completar 18 anos.

Números e perfis, ou seja, mapas da multidão, eu já os tinha na cabeça quando pedi autorização para entrar no presídio de jeito diferente. A cadeia é um espaço em que o poder encontra diferentes formas e linguagens para se atualizar e se fazer presente: um deles é pelas cores de seus habitantes. O poder cuidador da saúde veste branco; presa veste laranja; o pelotão de vigilância veste preto. Pensei até em vestir uma nova cor para me sentar no Núcleo de Saúde e ouvir as histórias de dores, sintomas e loucuras, mas quis que as presas me estranhassem, não me tomassem pelo conhecimento prévio do tempo da pesquisa de prancheta. Por isso, vesti preto. Não me fiz passar por uma carcereira, personagem que descrevo como colete preto no livro, mas queria que a cor da roupa anunciasse uma escuta diferente do jaleco branco do cuidado.

Foi assim que durante seis meses, quase que diariamente, permaneci calada, com um caderno de notas, nos gabinetes dos técnicos da saúde no presídio – perambulei por todos os jalecos branco, mas gostei mesmo da médica, da psicóloga e do assistente social. O que fiz? Ouvi e tomei notas. Me deixei provocar pelo sentido de “necessidades de saúde” em um presídio, descritas no livro como necessidades do abandono. O presídio é uma máquina de abandono, e as conversas no Núcleo de Saúde eram sobre as sofrências da vida em uma instituição destruidora do senso de pertencimento social do sujeito.

As presas sabiam que eu era uma pesquisadora e me davam pouquíssima atenção. Os minutos de atendimento eram mais preciosos que minha presença. E os valores liberais do fora – privacidade, intimidade ou sigilo – são inexistentes em um presídio. Antes de mim e sempre ao meu lado, estava sempre um colete preto vigilante para o atendimento. Além disso, a presa estava sempre algemada. Não há isso de tranquilidade do corpo ou da alma para o cuidado das dores, fosse pela saudade de um filho, pela abstinência de drogas ou por coceira no corpo.

Foi dessa forma de me lançar no presídio que provoquei a escritura acadêmica. Aquela escuta era refratária a citações, autoras, autoridades e formatos tradicionais. Por isso, escrevi no tempo dos encontros – para cada história fiz uma crônica etnográfica curta, com em torno de três páginas. Para cada crônica, uma questão permanente do presídio se registrava. É assim que Cadeia: relatos sobre mulheres descreve a multidão e a singularidade; fala do perfil da massa – a mulher jovem, com filhos e traficante – mas escuta a mulher única, seja a indígena, a avó ou a louca.

Há quem diga que o livro tem uma escrita literária, próxima da ficcional. Não era essa a minha intenção, busquei uma escrita experimental para falar do trágico. O campo dos estudos penais – isso que se chama “sociologia da punição” ou “criminologia” – é abarrotado de homens escrevendo sobre homens. Cadeia foi inventada por homens para prender homens; os manicômios e os conventos foram as instituições preferidas para sumir com as mulheres indesejadas da casa ou da rua. Eu queria buscar – se assim posso dizer – uma escrita feminista e feminina: que desafiasse a hegemonia dos homens pelo sangue, pela luta ou força das cadeias, mas ao mesmo tempo fosse potente para escutar o universo das mulheres que sobrevivem à política do abandono.

Depois de um ano do lançamento, consigo melhor entender os efeitos da escritura nas leitoras. Por um lado, o livro permitiu que pessoas diferentes me lessem, pois a distância do jargão acadêmico as convidou por outra porta de aproximação – talvez essa que descreve como literária. Mas um efeito estranho é que essa mesma porta pode dar a tranquilidade da ficção, afugentando a força documental que eu esperava provocar nos sentidos de quem me lesse. As crônicas etnográficas do livro provocam diferentes emoções em quem as lê – tristeza, mas também humor. E este último parece ser um sentimento proibido para descrever vidas anônimas. Mas há muito sarcasmo e bom humor nas cadeias (nos manicômios igualmente), e quis manter os efeitos do vivido nas histórias.

 

Luciana . Em Cadeia: relatos sobre mulheres você escreve relatos de diferentes mulheres que pertencem a uma multidão particular. São muitas mulheres jovens, pobres e negras, algumas idosas, outras estrangeiras, há também as loucas. A maioria sobrevivendo no comércio ilegal das drogas. Seus relatos são curtos, mas intensos – são registros resistências, de vidas escondidas entre as grades. Você poderia comentar como compreende a vida dessa multidão de mulheres?

Débora . Quando fiz reinício no presídio, eu estava preparada para identificar a multidão na singularidade de cada corpo adoecido do Núcleo de Saúde. Sabia pelos números que elas eram pobres, negras, traficantes, jovens e com filhos (Diniz e Paiva, 2014). Você pode me dizer que não há novidade nessa descrição; já sabemos disso por notícias ou estatísticas oficiais do governo punitivo. Talvez sim, mas como uma praticante da autoridade científica, preciso encontrar minhas próprias evidências, e o campo penal é um daqueles em que se pode confiar pouco no já dito e produzido por quem tem o poder e o interesse de encarcerar.

Foi assim que cheguei no presídio feminino da capital do país e, nos primeiros dias, me espantei pouco. A multidão, também chamada de massa, visitava o Núcleo de Saúde em procissão. Depois de uns dias, comecei a ouvir com mais propriedade o que o senso de multidão do couro ou das rugas me gritava – por trás da estatística estava a singularidade de cada mulher. Comecei a me encantar com a avó visitadora que um dia bobeia e cai no presídio por levar drogas nas “cavidades naturais” para proteger o neto de um castigo certo na cadeia; ouvi de jeito diferente as bicudas de cadeia, como são chamadas as lésbicas, divertidas e abusadas no trato do corpo; me deixei provocar pela solidão diferente das estrangeiras.

  É certo que a agenda de preocupações do fora é também prioritária na vida da cadeia – a separação entre uma presa e seu bebê é um momento de intenso sofrimento. Acompanhei vários ritos de entrega, como o assistente social do presídio descreve o momento em que a criança, ao completar seis meses, deixa de viver com a mãe no presídio e vai conhecer outra vida sem grades. Se a criança tem vínculos no fora, ali está a avó ou a tia para buscá-la; se é estrangeira, pode ter como destino o maldito abrigo. Abrigo é palavra maldita para presa, ou porque ali viveu, ou porque o regime do gênero não a permite negociar o abandono do filho, mesmo que a maternidade não tenha sido uma escolha.

  Compreender as vidas pelas histórias exigia um esforço de atenção etnográfica, mas também de imaginação. Explico por que não quero escorregar da imaginação para a ficção. As histórias eram de mulheres com trajetórias muito diferentes da minha – uma mulher da elite intelectualizada – e não importa que passado eu tenha tido para o posto na estratificação social em que vivo hoje.

 Nenhum identificador do passado (ser nordestina, por exemplo) me aproximaria daquelas mulheres: a bandidagem é parte da vida desde o berço, o comércio da droga é a economia familiar da sobrevivência, a violência as fez fugir para a rua ou para os abrigos na infância. Ou seja, artifícios intelectuais e políticos de “lugar de fala” ou “pontos de vista” ou “vivências” não existiam como interseções entre mim e as presas – era preciso um giro de sensibilidade para a escuta de histórias tão diversas.

Neste sentido, pesquisas em cadeia exigem uma reorganização do feminismo liberal burguês – nossos cacoetes intelectuais (compartilhamento, autoridade, lugar de fala etc.) precisam ser pensados à luz da realidade daquelas mulheres, e não ao revés: o feminismo acadêmico fazendo perguntas às presas. Em presídio, perguntar se uma presa “deseja participar de uma pesquisa” é ter como resposta um “não”, pois esse é um breve momento de possibilidade de exercer o arbítrio, nem que seja pela recusa de qualquer coisa.

Isso foi algo que aprendi na chegada do presídio, ainda como pesquisadora de prancheta – os trejeitos acadêmicos de comitês de ética em pesquisa, com termos de consentimento livre e esclarecido, eram convite para o afastamento.

Não quero dizer com isso que não se devam construir vínculos e escutas para o encontro da pesquisa, mas apenas não dos modos tradicionais. No meu caso, por exemplo, o que faço é devolver o escrito para a leitura da massa – assim tenho feito na cadeia de adolescentes onde faço pesquisa atualmente. E antes de iniciar, formalmente, a pesquisa passo tempo longo na convivência mútua.

 

Luciana . No início do livro você nos conta que permaneceu por seis meses no Núcleo de Saúde. E é principalmente a partir do acontecido nos consultórios das profissionais de jaleco branco que você relata o vivido e o ouvido. Em artigo sobre suas experiências de pesquisas em cadeia você conta que escutou “necessidades e precisões” das mulheres visitadoras do Núcleo de Saúde (Diniz, 2015b). O catatau aparece como gênero de discurso típico de cadeia, mas instrumento central naqueles minutos tão preciosos na vida de uma mulher presa. Como descreveria a importância do catatau para sobrevivência dessas mulheres?

Débora . O catatau é um gênero de discurso de presídio – onde você for no país, existirá catatau em circulação: esse bilhete que atravessa a cela, supera o poder mas é vigiado por ele, e aproxima o que a prisão aparta. O catatau é sempre vigiado, repito, e nem precisa da inteligência do presídio para fiscalizá-lo: ele é monitorado pelo colete preto que o intercepta, até mesmo porque não é uma comunicação secreta, mas oficial, dos presídios.

 Um catatau é um formulário, do tamanho de um cartão-postal, em que a presa escreve suas necessidades, urgências, precisões ou seus sofrimentos. Já li todo tipo de catatau – desde o que anunciava um suicídio (e a depender de quem o assinava, era imediatamente considerado uma mensagem verdadeira) até os de pedidos prosaicos, como sabonete ou visita.

Nem tudo o que se pede ou se escreve em um catatau terá solução. Para ser honesta, grande parte do escrito é ignorado pelo colete preto: a curadoria dos catataus que serão ouvidos e cuidados é estrita. E os critérios não são apenas as urgências em saúde para os catataus endereçados ao Núcleo de Saúde; a disciplina da presa a torna merecedora de atenção.

Disciplina é um conceito abrangente em presídio: pode compreender desde o cumprimento de ordens cotidianas, como abaixar o rosto ou andar com as mãos para trás, até a prática da depilação corporal. Ou seja, o respeito à disciplina oferece uma margem abrangente discricionária ao poder do colete preto para selecionar quem será atendida por um catatau. Como os escritos são muitas vezes mais abundantes que o acesso aos serviços, uma presa escreve muitos catataus antes de ser atendida.

Uma análise dos gêneros de escrita de presídio seria uma pesquisa riquíssima. Além dos catataus, há sempre as cartas. Correio é algo que não desapareceu das cadeias, mesmo na era tecnológica em que vivemos. Até mesmo porque nada de tecnologia é acessível a uma presa, ou melhor, a tecnologia só existe a serviço da vigilância. Ali se escreve muito, e como muitas não têm boa caligrafia ou mesmo desconhecem as letras, se ganha a vida como escriba.

 No tempo em que estive no presídio, uma carta escrita com letra bonita custava três reais. As presas com caligrafia redonda e feminina eram as oficiais para os poderes verdadeiros, como ministros do Supremo Tribunal Federal. Na época, o ministro Joaquim Barbosa era um ídolo da massa – respondia a todas as cartas. Você tem ideia do significa uma carta com envelope gigante com brasão STF chegar para uma presa? É o poder máximo reconhecendo que ela existe, não importa que o dito seja algo banal para sua sobrevivência. Mas é o fora – e com autoridade sobre a vida – endereçando-se a ela.

 

Luciana . Você descreveu o gênero como um regime político de governo da vida pelo patriarcado (Diniz, 2015a). A cadeia ainda é um espaço que reproduz o modelo hegemônico do gênero sexado masculino – a escassez de escritos de mulheres sobre mulheres presas é um exemplo isso. No livro você faz uso de uma linguagem que subverte a escrita das pesquisas no tema. Poderia nos contar como pensou a estratégia da linguagem e da escritura para falar do horror da cadeia?

Débora . Primeiro, para entender o sentido de uma cadeia precisamos pensar a partir do marco político do patriarcado. É um regime de controle dos corpos com efeitos muito específicos nas mulheres. Como já disse, a cadeia não foi pensada para prender mulheres malfeitoras, mas há uma crescente feminização dessas instituições. E, quando paramos para pensar no significado de prender mulheres, imediatamente os bem-intencionados gestores de políticas públicas se preocupam em como “prender mulheres é prender famílias”.

Por um lado, isso é verdadeiro; prender as mulheres é agarrar uma rede de dependência que se mantém à margem do presídio: os filhos, as avós, as irmãs. Mas precisamos exercitar o pensamento político sobre as consequências de um determinado regime punitivo para as mulheres – isso me obriga a enfrentar sua pergunta de frente.

 Não só os homens juristas ou sociólogos escrevem sobre os homens presos, como também o modelo de funcionamento e julgamento da cadeia pensa o universo masculino no crime e na justiça. Nunca fiz pesquisas sobre presídios masculinos, mas já fiz muitas sobre os manicômios judiciários mistos e masculinos. A avassaladora maioria dos loucos infratores no Brasil é de homens: doze para cada  mulher (Diniz, 2013).

Ao revisar os estudos sobre cadeias me espantei com duas características (e não só dos estudos nacionais, mas também dos internacionais): essa sobreposição entre mulheres e famílias – pois falar em mulheres presas era também falar das crianças deixadas no fora ou das crianças crescendo em presídios; e a ausência quase absoluta de narrativas sobre o vivido nas cadeias – as pesquisas compreendiam entrevistas esporádicas com as mulheres, fragmentos de vida, mas poucos instantâneos do real.

Sei que há múltiplas razões para esse silêncio, e a mais importante delas é a imensa vigilância e a burocracia para se realizar uma pesquisa em presídio, mas também estou convencida do pouco interesse sobre as questões de crime e castigo no feminismo brasileiro. Temos uma agenda burguesa para nosso feminismo, e mulheres bandidas estão distantes da realidade do feminismo acadêmico.

Foi assim que me deparei com diferentes camadas de dificuldade: uma delas era fazer uma pesquisa diferente das que eu mesma vinha fazendo com prancheta ou entrevistas; outra era sobre como me desviar da rota majoritária de escritos sobre presídio, em que a tônica é dada pela teoria e não pelo vivido. Eu queria alcançar a miudez da sobrevivência, o irrelevante para a resistência, pois ali é que estaria a vivência da cadeia por mulheres pobres e marginalizadas desde a infância.

Por isso não bastava um método original – e aqui vale uma pausa: ao mesmo tempo que foi um método original, esse é também o sonho de um positivista que crê ser possível haver ciência nas humanidades: em nada intervir, só observar como uma “mosca na parede” – era preciso também uma escritura particular.

O resultado é uma escrita seca, como diria Graciliano Ramos, sem firulas, colada ao vivido, com a linguagem da cadeia entremeando as crônicas etnográficas. Há periferia nordestina nas gírias, invenções e transgressões da língua culta, mas há palavrório sedimentado como típico de cadeia. Comecei lendo os catataus: só quando o catatau supera as diferentes barreiras do colete preto é que uma presa saí da massa e se transforma em paciente do jaleco branco. Minha vontade era ter chamado o livro de “Catatau”, mas Paulo Leminski antecedeu as presas na criação. Além disso, a editora Civilização Brasileira julgava o título exótico demais para um leitor inocente sobre cadeia.

 

Luciana . Você descreveu o feminismo como “um conjunto de modos e ver e mover-se para resistir e modificar o poder patriarcal” (Diniz, 2015a: 51). Como apresentaria o modo de vidência e escritura que realizou no livro sob uma perspectiva da epistemologia feminista?

Débora . Há um fotógrafo de guerra chamado René Burri, pupilo de Henri Cartier-Bresson – sua característica no fotojornalismo foi jamais ter registrado os horrores da guerra pelo óbvio do corpo morto, mutilado ou ensanguentado. Burri dizia ser pouco sensível retratar uma guerra pela previsibilidade: essa foi uma lição que me acompanhou nos estudos sobre presídio.

A linguagem hegemônica é masculina, senão policial, nos relatos sobre os presídios. Não digo que não existe horror e tortura nos presídios, isso é fato no Brasil. Mas o desafio era mostrar o óbvio – o desamparo de quem sobrevive nessas instituições do abandono – de uma maneira a encantar quem me lesse. Sem encantamento não há aproximação.

Descrevo esse modo de ver e me mover no presídio como um mergulho na epistemologia feminista: como falar do caráter totalitário e horrendo das cadeias sem antes pensar a escritura? Os números sobre as violações de direitos, reconheço, são fundamentais para mover a burocracia sobre o justo, mas tinha dúvidas se é esse o primeiro passo que a cadeia demanda para as políticas de reconhecimento. Ao escrever de outro modo, e comprometida com o feminismo que faz entortar torres, meu objetivo era ampliar nossas formas de apreensão do real – as histórias são de mulheres concretas, sobrevivendo pelo miúdo da existência.

 

Luciana . Eu poderia descrever que sua tese no livro Cadeia como: presídio é uma máquina do abandono habitada por mulheres refugiadas. Faz sentido? Você poderia falar sobre como compreende a tecnologia punitiva do poder da segurança para o controle de corpos e vidas das mulheres?

Débora . Sim, abandono não é apenas no sentido de esquecimento ou ser deixada de lado. Mas é não fazer parte do bando. Uma mulher presa é uma bandida – e gosto de fazer uso das palavras proibidas, algo muito feminista no meu pensamento; tal como no nome “Marcha das Vadias”, as palavras precisam ser reapropriadas no seu poder escandaloso. Ali vivem as bandidas banidas do espaço social. Não são enclausuradas porque perigosas, mas porque várias camadas de precarização da vida – como a pobreza, a cor, a violência – já as afastaram do bando. A bandidagem só facilitou a justificativa do regime punitivo para aprisioná-las. Não é o tipo penal do Código Penal (até mesmo porque para a vasta maioria delas é esse o crime: comércio ilegal, tráfico de drogas) que a bane da vida social: o banimento é anterior e antecede ou acompanha a bandidagem.

Por isso, falo do presídio como máquina de abandono: não faço ironias ao dizer isso, pois é claro que aquela não é uma instituição reabilitadora, mas produtora de mulheres abandonadas. Não falo “produtora de criminosas” – esse me parece um possível caminho de interpretação, mas não é essa a potência do presídio: elas já conhecem o crime quando chegam ali; entretanto, é na institucionalização que viverão o abandono.

O sucesso do encarceramento corresponde à força da marca deixada na mulher. Mas quem é a abandonada? A mulher sem rumo, sem projeto de vida senão o retorno à bandidagem, e o retorno ao presídio, ou seja, a presa com múltiplas entradas na cadeia. A reincidência não é uma verdade sobre o sujeito criminoso, mas sobre o sucesso da instituição prisional – a cadeia não foi feita para deixar o indivíduo regenerado ou livre da mão punitiva, mas para amplificar o poder policial na trajetória da mulher por toda a vida.

A última crônica do livro conta a história de Biscoito, uma bandida banida – na verdade, desconheço qual tenha sido seu tipo penal. Ela caminhava pelo presídio, nos arredores do prédio, como uma louca descabelada. Não a tinha como uma presa ou ex-presa, mas como uma louca de rua. Um dia conversei com Biscoito na rua e mais adiante a vi na massa. Quem era ela? O fracasso do presídio – a máquina do abandono não pode produzir mulheres como Biscoito, que vivem na vizinhança do presídio e desejam a prisão como vida possível.

 O abandono é bem-sucedido quando produz essa mulher que cai na cadeia por um malfeito, mas faz de tudo para se livrar da cela. Por isso, a fuga é um sinal de resistência importante sobre o funcionamento da máquina institucional. Em pouco tempo, está ali de novo e assim vive a vida. Desejar a cadeia é a falência da máquina do abandono.

 

NLuciana . No livro você conta a história de cinquenta encontros. Se pudesse escolher apenas uma das “histórias de mulheres no miúdo” (Diniz, 2015c: 10) para testemunhar a sobrevivência no regime político do abandono, qual seria? 

Débora . Essa é uma pergunta difícil e sempre depende do dia, do que estou pensando como questão decorrente desse livro e da experiência do presídio. Como, neste momento, faço uma etnografia na cadeia de papel, a cadeia para adolescentes no Distrito Federal – ou, em termos mais corretos para a lei, unidade socioeducativa de internação para adolescentes em conflito com a lei –, a história de Ana, a primeira do livro, é como se eu as visse no futuro.

De quase todas as meninas que conheci em Santa Maria, nome santo para a cadeia de adolescentes da capital do país, o destino se organiza em três possibilidades, com combinações possíveis entre elas: cadeia na vida adulta, gravidez ou morte. A combinação é ser uma presa grávida. Não exagero: todas que conheci, em um ano, como meninas sentenciadas, tiveram esse destino – e não é porque sejam bandidas naturais, caso alguém possa ainda imaginar essa hipótese lombrosiana, mas porque as forças de precarização da vida não se alteraram uma vez que elas foram presas ainda meninas. Ao sair da internação, encontram a mesma vida, a mesma família na economia da droga, a mesma quebrada à espera de mais uma vendedora.

Referências

Diniz, Debora. 2013. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres; Editora Universidade de Brasília.

Diniz, Debora; Paiva, Juliana. 2014. “Mulheres e prisão no Distrito Federal: itinerário carcerário e precariedade da vida”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol.111, pp.313-328.

Diniz, Debora. 2015a. “Feminismo: modos de ver e mover-se”. In: Gomes, Patricia; Diniz, Debora; Santos, Maria Helena; Diogo, Rosália. O que é feminismo?, vol.1. Lisboa: Escolar Editora.

Diniz, Debora. 2015b. “Pesquisas em Cadeia”. Revista em Direito GV, vol.11, n.2, pp. 573-586.

Diniz, Debora. 2015c.Cadeia: relatos de mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.


 

[1] Luciana Brito é doutora em saúde coletiva pela Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.

[2] Debora Diniz é antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.

 

 

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