labrys,estudos feministas número 3, janeiro/ julho 2003
Uma descida aos infernosTeresa de Lauretis Tradução: Magda Jaolino Torres Resumo Um bom número de filmes, produzidos nos anos 90, põe em campo a relação entre sexualidade e as pulsões de agressão e (auto)-destruição, que Freud já tinha notado como interseção entre Eros e as pulsões de morte. Os filmes noirs, há muito tempo existem, mas a novidade reside no fato de que as produções recentes, comerciais ou independentes, baseadas em fatos reais, insistem nas relações homossexuais, profundamente afetivas dos protagonistas, que matam por amor recíproco. Poderão esses filmes, dar um novo impulso aos feminismos a vir, assim dando o alerta contra a instituição familial heterossexual e permitir o repensar das raízes profundas das pulsões de vida e morte da sexualidade – uma sorte de descida ao inferno - ? Sim, talvez, se re-emergir Eros, catalisador das forças unificadoras de um Eu mais amplo. Palavras-chave: filmes, feminismos, homossexualidade Virá a morte e terá os teus olhos — esta morte que nos acompanha da manhã à noite, insone, surda, como um velho remorso ou um vício absurdo ............................................................. oh, cara esperança, aquele dia saberemos também nós o que és a vida e és o nada. Virá a morte e terá os teus olhos —" escrevia Cesare Pavese em 1950, poucos meses antes de suicidar-se. Quanto parece longe este cenário fantasmático de amor e morte, de silêncio e nada, de olhares que não vêem e de lábios que não se abrem, do feminismo que chegou, quase trinta anos atrás, trazendo-nos palavras e gestos, olhares de mulheres e tanta vontade de viver. Ao invés disso, agora, no fim de um século atravessado por ao menos duas ondas de criatividade política e teórica feminista, são exatamente amor e morte que se nos reapresentam em uma temática ligada sobretudo ao olhar e à expressão artística que mais vistosamente os inscreve e os transforma: o cinema. Um bom número de filmes produzidos nos anos Noventa põe em campo de modo explícito a relação entre a sexualidade e as pulsões de agressão e (auto)destruição que vão além da relação sexual em sentido estrito. Esta ligação, teorizada por Freud na complexa interseção de Eros e das pulsões de morte que está na base de todas as atividades da pessoa humana, é figurada nos filmes em uma história de amor e morte, de homicídio passional ou a sangue frio, mas que resulta de uma relação intensamente erótica. A temática não é certamente nova na história do cinema ou mesmo nas produções cinematográficas recentes, basta pensar no reflorir dos filmes noirs nestes mesmos anos Noventa. Há de novo, porém, que destas histórias são protagonistas duas pessoas do mesmo sexo envolvidas em um caso profundamente e exclusivamente afetivo, quase sempre homossexual, que matam juntas e não por dinheiro, vingança, honra e ciúme, mas somente por amor, uma pela outra. Não se trata só de filmes comerciais e big-budget como Creature del cielo (Peter Jackson, 1993), Basic Instinct (Paul Verhoeven, 1992) ou Bound (irmãos Wachowski, 1996), mas também de filmes experimentais ou independentes, produzidos fora das major, como Swoon (Tom Kalin, 1992), Fun (Raphael Zelinsky, 1994), Sister, My Sister (Nancy Meckler, 1994) e Butterfly Kiss (Michael Winterbottom, 1995). É significativo que muitos destes filmes retomem "fatos realmente acontecidos", reportados pela imprensa e comprovados por pesquisas ou documentados por averiguações de caráter médico-legais tais como as atas dos relativos processos, mas não se detenham absolutamente ao momento do processo e sobre os aspectos jurídicos, políticos ou morais do caso, limitando-se a dar-nos o desenlace e as relativas sentenças numa breve legenda final e/ou inicial. Deslocam, ao contrário, a atenção sobre a dimensão psíquica e fantasmática do delito e exploram-na através da mise en scène da relação afetiva, erótica ou explicitamente sexual entre as duas protagonistas ou os dois protagonistas. Sister, My Sister, por exemplo, revisita o delito das irmãs Papin em Les Mans, em 1933, um fato clamoroso que mobilizou a esquerda intelectual francesa de Sartre e de Beauvoir a Lacan, e do qual Genet extraiu a peça Les bonnes: duas irmãs que trabalhavam como camareiras de uma família burguesa e reacionária mataram, fazendo-as em pedaços, a patroa e sua filha. Para além da literatura em chave de luta de classe que se produzia na época, o filme de Meckler insiste sobre a relação sexual, lésbica e incestuosa, entre as duas irmãs, sobre a qual cabe à figura da mãe ausente, e faz disso o eixo lógico e psicológico do delito que parece, assim, principalmente motivado pela ameaça de uma intolerável separação do objeto de amor, brutalmente imposta pela patroa. Da mesma forma Creature del cielo, cuja montagem baseia-se sobre as atas do processo por matricídio de duas jovens adolescentes na Nova Zelândia dos anos Cinqüenta. Fazendo uso do diário escrito por uma delas, o filme destaca a formação da sexualidade contemporaneamente e conjuntamente à formação da identidade de gênero e da identidade de classe nas duas adolescentes—identidades que se formam sobre a identificação: seja com e contra as figuras familiares, os pais; seja com figuras da cultura popular, da música ao cinema, até os reis da Inglaterra. Ao mesmo tempo, o configurar-se da sexualidade nas duas jovens como homossexualidade, mas homossexualidade que emerge em relação à heterossexualidade, enquanto instituição social; em outras palavras, os seus gestos são configurados como ato sexual em relação às imagens, às representações e aos mitos de uma cultura em que a sexualidade comporta formas de violência ou de agressões entre homem e mulher, pai e mãe, ou rei e rainha. Estes, como mostra o filme, não são nada além de fantasmas, figuras que as jovens modelam em argila muito maleável, para fazê-las os personagens de um mundo imaginário construído por elas (o quarto mundo ou reino de Borovnia); são contra-figuras inseridas numa realidade não corpórea, mas virtual que, todavia, informa de si a realidade psíquica das duas jovens e impele-as a um ato entendido como sobrevivência do seu amor a defesa do Eu. Outros filmes são ainda mais graves. Swoon [desmaio] baseia-se no famoso processo em Chicago nos anos Trinta de dois jovens de famílias burguesas e ricas de nome Leopold and Loeb que para cometer o delito perfeito assassinam um adolescente tomado ao acaso pela rua. Sobre este fato de crônica baseiam-se, também, Rope de Hitchcock, que entra no gênero policial, construído sobre o suspense e sobre a habilidade do detetive (interpretado por James Steward), e Compulsion de Richard Fleischer (1959), ao invés disso, sobre o processo e sobre a habilidade forense do advogado de defesa (o célebre Clarence Darrow, interpretado por Orson Welles). Em ambos os filmes, portanto, o interesse está em outro lugar; o delito é um pretexto e vem representado banalmente como o ato de uma mente criminosa porque doente—de vulgar Nietzscheanismo em Rope, de homossexualidade em Compulsion. E a equação entre homossexualidade, doença e criminalidade é exatamente aquilo que Swoon desmente, sem entretanto propor uma outra explicação para o delito. Inspirado por um homicídio ocorrido na Califórnia no início dos anos Oitenta, Fun [divertimento] toma o título de uma frase do diário de uma das duas protagonistas adolescentes: "Hoje fugimos de casa e matamos uma velhinha. Divertimo-nos muitíssimo". Ainda duas jovens que se conheceram numa manhã, ficam fascinadas, uma pela outra, com uma intensidade erótica e afetiva à qual não sabem dar um nome, passam horas juntas construindo um mundo secreto só delas que lhes recompensa da incompreensão e dos maltratos sofridos nas respectivas famílias e, no ponto culminante do dia, matam a primeira pessoa gentil, uma velha aposentada, que as faz entrar em sua casa porque é noite e duas mocinhas assim tão jovens pediram-lhe permissão para telefonar para casa. Acrescentaria a estes um filme italiano lançado este ano, Complici de Emanuela Piovano, baseado no romance Complice il dubbio de Maria Rosa Cutrufelli. Incluiria-o neste novo filão ou gênero fílmicos, embora as duas cúmplices não tenham, na realidade, cometido o homicídio do qual, não obstante, suspeitam-se reciprocamente, pois também neste caso é a dúvida, a suspeita de uma violência ou potencialidade homicida na outra que envolve as duas cúmplices em uma relação erótica e afetiva. Que este particular imaginário de amor e morte esteja difundindo-se também na Itália confirma-o o sucesso editorial do romance de Elena Stancanelli, Benzina, do qual se está preparando, no momento, a montagem para um filme. Que significado dar a tais fantasias que, dos fantasmas da psique individual, traduzem-se em fantasmas do imaginário social ou fantasias públicas—e vice-versa? De um lado é um alívio não se encontrar mais na frente, sobre a tela da memória, a figura patética da lesbiana máscula que após uma breve estação de amor feliz torna a mergulhar naquele “poço da solidão” [1] tornado símbolo de meio século da obra-prima de Radclyffe Hall; ou pior ainda, a lesbiana trágica do filme Immacolata e Concetta. L'altra gelosia (1980) de Salvatore Piscicelli que, repudiando a promessa do título, mata o próprio objeto de amor, nem mais nem menos, como Otelo. Por outro lado, porém, como explicar a presença de um imaginário no qual o amor entre duas mulheres, para existir, comporta o homicídio, em particular aquele de uma figura materna? Os próprios filmes permanecem ambíguos a respeito. Mesmo acusando a família e a sociedade pela indiferença, a hipocrisia e a violência que causam o isolamento das meninas e a absoluta necessidade de amor que as leva ao delito, não por isto as justifica. Não as condenam, mas nem menos as absolvem. Fazem das protagonistas não mais vítimas passivas, mas sujeitos de desejo que agem e lutam pela própria sobrevivência psíquica e social; a resistência delas é ativa e dirige-se contra a figura que na instituição delas mais próxima, a família, não somente se faz guardiã da lei do pai, mas reflete exatamente aquela identidade de mulher, esposa e mãe, da qual tornam a fugir. Neste sentido a visão dos filmes está de acordo com o feminismo que conhecemos. Mas, tem mais. A resistência das moças, a recusa delas em identificar-se na mulher-esposa-mãe configura-se nos filmes como um excesso de afeto que leva ao delito, e este excesso vem atribuído à homossexualidade, que aparece então como alguma coisa de incontrolável que irrompe e ultrapassa os limites da sociedade civil. Talvez, também esta visão da homossexualidade feminina próxima à loucura, à psicose, prenunciadora da violência e (auto) destruição harmoniza-se com o feminismo que conhecemos e que nos trinta anos passados, no mundo ocidental, de movimento de luta e de contestação geral transformou-se em aquiescência aos valores liberal-democratas burgueses – na condição de que esses venham estendidos também às mulheres, bem entendido. Não sei se estes filmes servirão de advertência ou estímulo ao feminismo que virá: advertência para represar a sexualidade no terreno da família, da instituição heterossexual e dos direitos civis; ou também estímulo a repensá-la nas suas raízes profundas de fantasma, de inconsciente, de pulsão de vida e de pulsão de morte. Noto, porém uma coincidência que, para mim, parece um bom auspício. Exatamente há cem anos, no final de 1899 foi publicada A interpretação dos sonhos de Freud (que o editor, previdente, datou 1900). Freud, ainda mais previdente, prenuncia a sua obra, no frontispício, com a frase de Didone: "Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo”[2]. Era como se já em sua primeira formulação da psique, do Eu e da pulsão sexual se preanunciasse a intuição que estava por vir de uma força oposta às pulsões vitais: a pulsão de morte, tendente à desagregação e a reconduzir o Eu-corpo ao estado inorgânico. O auspício é que, com o novo século, também o feminismo possa empreender uma auto-análise, uma descida ao inferno, que confronte a morte que está em nós. Em todas nós, velhas e jovens, lesbianas e heterossexuais. Então, talvez, re-emergirá também aquela outra força, Eros, que tende a conjugar, a formar unidade maior do que o Eu, a criar comunidade, cultura, movimento—e tanta vontade de viver por mil anos e depois, mais mil. Roma, novembro 1999 Dados biográficos Teresa de Lauretis, nascida e educada na Itália, recebeu seu título de Doutora em Línguas e Literaturas Modernas da Universidade Bocconi em Milão. Ela ensinou o Italiano e a literatura comparativa, a teoria fílmica, os estudos do gênero e sobre as mulheres em várias universidades americanas. Atualmente, ela leciona a História da Consciência, um programa interdisciplinar de Doutorado, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Ela foi convidada como Professora Visitante por universidades do Canadá, Alemanha, Itália, Holanda e Estados Unidos. Autora de mais de cem ensaios e números livros, de Lauretis escreveu sobre semiótica, psicanálise, filmes, literatura, ficção científica, e teorias feminista e cultural, tanto em Inglês como em Italiano. Vários de seus livros aparecem em numerosas antologias e foram traduzidos em treze idiomas. Seus livros em Inglês incluem : Alice doesn´t : Feminism, Semiotics, Cinema (1984), Technologies of Gender (1987), The Practice of Love : Lesbian Sexuality and Perverse Desire (1994), e três volumes de ensaios, incluindo Feminist Studies/Critical Studies (1986). Também foi co-editora de dois números especiais de jornais, incluindo o sobre a “Queer Theory” das diferenças : A Journal of Feminist Cultural Studies (1990). Sua obra em Italiano compreende : La sintassi del desiderio : struttura e forme Del romanzo sveviano (Longo, Ravenna, 1976), Umberto Eco (La Nuova Italia, Florença, 1981), Differenza e indifferenza sessuale (Estro, Florença, 1989), Sui generis. Scritti di teoria femminista (Feltrinelli, Milão, 1997), Pratica d´amore, Percorsi del desiderio perverso (La Tartaruga, Milão, 1997) e Soggetti eccentrici (Feltrinelli, Milão, 1999). [1] Título do livro de Radclyffe Hall (NdT) [2] Literalmente: Se não puder dobrar os deuses, transporei o Aqueronte". O que poderia significar algo como "moverei céus e terras" ou "Se não puder ganhar o céu, moverei o inferno" . NdT
labrys,estudos feministas número 3, janeiro/ julho 2003 |