labrys,estudos feministas

número 3, janeiro/ julho 2003

 

Corpo Vivido vs. Gênero: Reflexões sobre Estrutura Social e Subjetividade [1]

Íris Marion Young

Tradução : Roberta Barbosa

Revisão : Marie-France Dépêche

Resumo

As recentes críticas desconstrutivistas das teorizações feministas e   queer   desafiam o conceito de gênero a ponto de torna-lo virtualmente inútil para teorizar subjetividade e identidade. A proposta de Toril Moi é abandonar totalmente este conceito e retomar o de corpo vivido , oriundo da fenomenologia existencial. Mas talvez seria frutífero cruzar ambos no sentido de fazer uma diferenciação sócio-histórica e institucional dos corpos e usar o gênero como ferramenta, para teorizar estruturas mais que sujeitos.

 

 

Em seu ensaio profundo e provocativo “O que é uma Mulher?”, Toril Moi argumenta que recentes teorizações feministas e  queer  conduziram-nos ao fim  de linha  da abordagem  construtivista  de gênero[2] . Enquanto as teorias feministas dos anos 70 apontavam uma diferença entre sexo e gênero, liberando ambos na teoria e na prática, as posteriores críticas feministas e  queer  questionaram, com razão, essa distinção. Ao desestabilizar ambas as categorias de sexo biológico e identidade de gênero, as recentes abordagens desconstrutivistas das teorizações feministas e  queer   abriram grandes possibilidades para se pensar a pluralidade ao cruzar identidades e práticas.

O desafio desconstrutivista  quanto à distinção sexo/gênero aumentou sua abstração em relação à corporeidade, ao mesmo tempo em que, entretanto, tornou o conceito de gênero virtualmente inútil para teorizar subjetividade e identidade.  Nessa etapa teórica,  Moi propõe que abandonemos por completo o conceito de gênero e retomemos o conceito de corpo vivido oriundo da fenomenologia existencial, como uma forma de teorizar a subjetividade sexual, sem o perigo de cair tanto no reducionismo biológico quanto no essencialismo de gênero.

Moi não está só ao propor que as teorias feministas e  queer  questionam a utilidade do conceito de gênero ainda mais profundamente do que têm feito as críticas desconstrutivistas, e eu me referirei,no decorrer dessa discussão, a outros trabalhos recentes que levantam aspectos semelhantes. Concentro-me em Moi porque sua análise da evolução de nossos problemas com gênero é muito profunda, e porque achei atraente sua proposta de que as teorias feministas e  queer  adotem o conceito do corpo vivido para preencher as lacunas deixadas pela categoria de gênero .

No entanto, achei o argumento de Moi incompleto. Enquanto ela está correta ao dizer que gênero é um conceito problemático para teorizar a subjetividade, existem ou devem existir outros aspectos das teorias feministas e  queer  que não conseguem sobreviver sem o conceito de gênero.

Refletindo sobre o relato de Moi com relação a recentes teorizações feministas e queer, descobrimos que esses aspectos – que dizem mais respeito à estrutura social do que à subjetividade e identidade – têm sido relativamente negligenciados. A opressão das mulheres e pessoas em geral, que transgridem as normas heterossexuais, ocorre através de processos sistêmicos e estruturas sociais que necessitam explicitações utilizando conceitos diferentes daqueles apropriados para descrever  os sujeitos  e suas experiências. A proposta de Moi para reconstituir o conceito de corpo vivido ajuda no entendimento destas últimas, porém, para os primeiros necessitamos uma reconstituição do conceito de gênero.

  1. A distinção entre Sexo e Gênero

As primeiras apropriações feministas, do que até então tinha sido uma obscura distinção psicológica entre gênero (referindo-se ao auto-conceito e comportamento) e sexo (como sendo relacionado à anatomia e fisiologia) foram teórica e politicamente muito produtivas. Naquele momento teórico, o  desafio à convicção de que “biologia é destino”foi um importante projeto feminista. Para argumentar sobre a abertura de maiores oportunidades para as mulheres, necessitávamos de outras maneiras para conceituar capacidades e disponibilidades de ambos os sexos, que permitissem estabelecer uma distancia entre comportamento, temperamento e realizações, e explicações biológicas ou naturais.

A distinção entre sexo e gênero serviu a essa finalidade. As feministas podiam afirmar que, claro, os homens e mulheres são “diferentes” no físico e nas funções reprodutivas, enquanto negavam que essas diferenças tivessem qualquer relevância não só para as oportunidades que ambos os sexos poderiam ter mas igualmente nas atividades que poderiam exercer. Tais regras e expectativas de gênero seraim socialmente construídas e socialmente mutáveis.

Muitas dessas teorizações feministas do início da segunda onda invocaram um ideal de igualdade para as mulheres, prevendo a eliminação dos gêneros. Este ideal que numerosas feministas teorizavam foi chamado de “Androginia”, uma condição social em que o sexo biológico não teria implicações para as perspectivas de vida da pessoa, ou nas formas de relacionamento interpessoal (e, muito importante, incluída nas mais consistentes dessas teorias, na escolha de  parceiros sexuais).  Na sociedade liberada transformada, essas pessoas andróginas não teriam formas diferentes de se vestir, de comportamento, ocupações, propensão à agressividade ou passividade associadas a seu corpo. Todos seríamos apenas pessoas com corpos diferentes. [3].

 Esse apelo a um ideal de androginia teve vida curta. Alguns dos textos cruciais das teorias feministas no final dos anos 70 e início dos 80, ao contrário, passaram a considerar as especificidades sociais e psicológicas da identidade generizada no feminino e as perspectivas sociais derivadas dos papéis de gênero.

Embora não sejam explicadas de forma alguma por uma diferença biológica entre mulheres e homens,, existem profundas divisões sociais nas disposições e experiências do gênero feminino e do masculino, que têm implicações para a vida psíquica de mulheres e homens, nas relações entre si, em suas inclinações para cuidar de crianças ou exercer autoridade. Nancy Chodorow, Carol Gilligan, Nancy Hartsock e outras pesquisadoras desenvolveram teorias sobre identidades do gênero feminino, como expressões da estrutura geral da subjetividade e lugar social, em modos de significação que definem as vidas e possibilidades da maioria das mulheres.[4]

Tão logo tal concepção geral sobre a identidade feminina de gênero emergiu, foi alvo de ataques como sendo “essencialista”. Esses trabalhos assumiam que a maternidade definiria a experiência da maioria das mulheres.  Falham por não indagar sobre as diferenças que raça ou posição de classe têm com relação às práticas de cuidados maternos, e presumem o que as mulheres são, ou deveriam ser, em relacionamentos com homens. Extrapolam a partir da especificidade histórica das famílias nucleares abastadas urbanas do século 20 e suas estruturas ocupacionais, ignorando as especificidades históricas e interculturais na organização da família e do trabalho. Apesar de as críticas nem sempre serem expressas da forma justa, a maioria das feministas levou essas questões a sério.

  A teoria queer forçou essa dissolução da teoria de gênero, em escritoras como Diana Fuss e Judith Butler. Já que Moi  centra-se na subversão que Butler faz da distinção entre sexo e gênero, e eu apoiarei sua conclusão em alguns aspectos específicos,  seguirei Moi nessa focalização.

Em seu trabalho Gender Trouble, Butler questionou o motivo  pelo qual as teorias feministas teriam que procurar uma identidade de gênero.  Ela argumenta que as feministas acreditam precisar dessa teoria geral de gênero para saber qual é o sujeito da política feminista. Pensam que o feminismo não tem significado enquanto movimento social transformador específico, sem levar em conta o “agente”de mudança, o sujeito a ser liberado; esse sujeito é “mulher”,  e  “gênero” é o conceito que expõe o que a mulher é. Enquanto  gênero, “mulheres” são diferentes do sexo biológico, fêmea .No entanto, Butler argumenta que a distinção feminista entre sexo e gênero retém o binarismo da complementaridade categórica estável entre macho e fêmea, o qual reproduz a lógica da normatividade heterossexual.

A própria distinção entre sexo e gênero deveria ser colocada em questão a fim de desafiar qualquer sustentação de uma distinção  entre natureza e cultura, ou qualquer concepção que se teha de de uma vida interior, correspondente à idéia de uma identidade estável de gênero . Gênero nada mais é que atuação social. As regras discursivas da heterossexualidade normativa produzem desempenhos de gênero, que as pessoas reiteram e citam; a própria sexualização dos corpos deriva de tais performances. Nesse processo de reiterada performance de gênero, algumas pessoas passam a ser constituídas como abjetas, fora do binário heterossexual. A política radical, então, consiste em perturbar os binários de gênero e brincar com as menções feitas sobre gênero.

Em resposta às reações críticas de algumas comentaristas de que suas teorias a respeito de gênero, enquanto desempenho, fazem da identidade sexual e do corpo simplesmente um produto de discurso, em Bodies that matters, Butler argumenta que a materialidade dos corpos sexuais é,  em si mesma, socialmente construída. A autora insiste em que tal produção de corpos não é “idealista”, e que a valorização do “materialismo” acima do próprio “idealismo” repousa em uma lógica binária questionável.

Moi não refuta o argumento de Butler, que aceita como sendo convincente, dados seus termos e métodos. No entanto, ela argumenta que ideais de subjetividade e sexualidade têm se tornado cada vez mais abstratos nesse conjunto de teorias que começa com a distinção entre sexo-gênero e acaba desconstruindo uma dicotomia material-ideal. Nesse ponto não está claro que problemas vividos a teoria aponta, ou como os conceitos ajudam as pessoas a entenderem e descreverem suas experiências.

Butler, com êxito,  coloca em questão a lógica da distinção entre sexo e gênero; no entanto sua teorização nunca vai além desses termos e  permanece amarrada a eles. Moi argumenta que essa linha de crítica sugere que seria muito útil se livrar de toda idéia de gênero para entender subjetividade e identidade. A teoria e a prática queer dobram os significados de gênero, com o objetivo de liberar-los das polaridades normativas de feminilidade e masculinidade  hegemônicas.

            Moi sugere que as teoristas queer e feministas deveriam abandonar totalmente o conceito de gênero.

            II. O Corpo Vivido

Como uma alternativa para as categorias de sexo e gênero, Moi propõe voltar à estrutura teórica da fenomenologia existencial sobre a  qual Simone de Beauvoir baseia seu pensamento[5]. A categoria central dessa abordagem teórica é a do corpo vivido. Moi argumenta que um conceito reconstituído do corpo vivido ofereceria às feministas uma categoria substitituva, cujo funcionamento poderia substituir o binômio sexo-gênero, sem trazer consigo seus problemas.

O corpo vivido é uma idéia unificada de um corpo físico agindo e experienciando em um contexto sócio-cultural específico; é um corpo-em-situação. Para a teoria existencialista, situação denota a produção de facticidade e liberdade. As pessoas sempre enfrentam os  fatos materiais que ocorrem em seu corpo e suas relação em um dado meio. Seus órgãos corporais têm certas capacidades de sentir e funcionam de determinados modos; o tamanho da pessoa, idade, saúde e treinamento torna-a capaz de ter força e movimento de uma forma específica  em relação a seu meio.

Sua pele tem uma cor particular, sua face tem determinadas formas, seu cabelo tem cor e textura singulares, cada uma com suas propriedades estéticas. Seu corpo específico vive em um contexto específico – povoado por outras pessoas, ancorado à terra pela gravidade, cercado por edifícios e ruas com uma história singular , ouvindo línguas particulares, tendo ou não tendo disponível comida  e abrigo, como resultado de um processo social culturalmente específico,  que exige dela condições específicas para acessá-lo. Todas essas relações materiais concretas da existência corporal de uma pessoa e de seu meio físico e social constituem sua facticidade.

No entanto, a pessoa é uma atora/ator; ela tem uma liberdade ontológica para construir-se em relação a essa facticidade. A/o atora/atorz humano/a tem projetos específicos, objetivos a ser atingidos, modos pelos quais deseja expressar-se, deixar sua marca no mundo, transformar o meio em que vive e suas relações. Freqüentemente esses são projetos aos quais a pessoa se compromete juntamente com outras.  Situação, então, vem a ser o modo como os fatos dessa corporificação, meios físico e social surgem à luz dos projetos que a pessoa tem. Ela descobre que seus movimentos são desajeitados em relação ao seu desejo de dançar. Vê a enorme cidade com seus mil anos de história como uma oportunidade de aprender sobre seus ancestrais. “Afirmar que o corpo é uma situação, é reconhecer que o significado do corpo de uma mulher está  preso à forma como ela usa sua liberdade” (Moi, p.65).

Como Moi propõe que a idéia do corpo vivido pode substituir o gênero, e a distinção entre sexo e gênero? Como a categoria do sexo, o corpo vivido pode se referir aos fatos específicos dos corpos, incluindo a diferenciação sexual e reprodutiva. “Mulher” e “homem” nomeiam a facticidade física de certos corpos, alguns com pênis, outros com clitóris e seios, cada um com experiências diferenciadas de desejo e sentimento sexual. Além disso, a categoria do corpo vivido não precisa fazer da diferença sexual uma diferença dimórfica; alguns corpos têm características físicas iguais às dos homens em alguns aspectos e iguais às das mulheres em outros. As pessoas vivenciam seus desejos e sentimentos em maneiras diversas que não necessariamente correspondem ao dimorfismo sexual ou normas heterossexuais.

Ademais, como corpo vivido,  as capacidades perceptuais ou motoras não são distintas da associação com a especificidade sexual, nem é o tamanho, estrutura óssea ou cor da pele. Mais importante para a proposta que Moi faz, o conceito do corpo vivido, diferentemente do conceito de sexo, não é biologístico. Não se refere a uma explicação científica objetivista que generaliza leis de psicologia e função. Uma abordagem específica para os corpos procede a um nível significativamente mais alto de abstração do que uma descrição dos corpos como vividos. A idéia do corpo vivido pode então trazer os fatos físicos de diferentes corpos para a teoria sem as implicações reducionistas e dicotômicas da categoria “sexo”.

Além disso, a idéia do corpo vivido recusa a distinção entre natureza e cultura que embasa a distinção entre sexo e gênero. O corpo como vivido é sempre enculturado: pelos fonemas que um corpo aprende muito cedo a pronunciar nos primeiros anos da vida, pelas roupas que a pessoa veste que marcam sua nação, sua idade, seu status ocupacional, e no que é culturalmente esperado ou exigido das mulheres. O  corpo é enculturado através de hábitos de comportamento distintivo para propriedades interacionais de negócios ou prazer; freqüentemente eles são específicos para localidade ou grupo.

Contextos de discurso e interação posicionam as pessoas em sistemas de valoração e expectativas que muitas vezes implicam seus corpos; a pessoa vivencia ser observada, e de certa maneira descrita em seu ser físico, ela vivencia as reações corporais de outros a ela, e ela reage a eles. Os diversos fenômenos que vieram sob a rubrica de “gênero” na teoria feminista podem ser redescritos na idéia do corpo vivido como algumas entre várias formas de hábitos corporais e interações com os outros que nós desempenhamos e vivenciamos.  Em tal re-descrição percebemos que Butler está certa pelo menos neste aspecto: é uma mistificação atribuir as maneiras de ser associadas à categoria “gênero” à algum núcleo interior de identidade de um sujeito, seja compreendido como natural ou adquirido.

Em um artigo recente, Linda Nicholson propõe similarmente que as teorias feministas e queer focam na diferenciação sócio-histórica dos corpos como vividos, ao invés de manter a distinção entre sexo biológico e corpo e gênero como historicamente variável. Para os limites em que esta distinção entre sexo e gênero permanece, a teoria feminista continua como um “fundacionismo histórico”, distinto de um reducionismo biológico. O estudo da sexualidade, da reprodução e dos papéis designados a homens e mulheres deveria consistir em ler os próprios corpos e não presumir uma distinção natureza/cultura que considera o gênero meramente cultural”.[6]

A idéia do corpo vivido então faz o papel que a categoria gênero tem feito, mas de uma maneira melhor e mais eficiente. Funciona melhor porque a categoria do corpo vivido permite a descrição de hábitos e interações de homens com mulheres, mulheres com mulheres, homens com homens de maneira que  possam atender às possibilidades plurais de comportamento, sem redução necessária ao binário heterossexual normativo do “masculino” e “feminino”. Funciona de maneira mais eficiente porque ajuda a evitar o problema gerado pelo uso das categorias gerais determinadas como gênero, “raça”, “nacionalidade”, “orientação sexual”, para descrever as identidades construídas dos indivíduos, o caráter aditivo que as identidades parecem ter sob esta descrição.

Se conceituarmos as identidades individuais como constituídas pelas diversas identidades de grupo – gênero, raça, classe, orientação sexual, e por aí vai – parece haver um mistério sobre como as pessoas são individualizadas, e como estas identidades de grupo diferentes se combinam na pessoa. Com a idéia do corpo vivido não existe tal quebra-cabeça. Cada pessoa é um corpo distinto, com características, capacidades e desejos específicos, que são similares e diferentes de outros em determinado quesito.

Ela nasce em um tempo e lugar particulares, cresce em uma família com um arranjo particular, e tudo isso tem histórias sócio-culturais específicas. que se posicionam em relação à história de outros de modo particular. O que chamamos de categoria de gênero, raça, etnia, etc, são atalhos para um conjunto de estruturas que posicionam as pessoas, um ponto para o qual retornarei. Elas não são propriamente teorizadas como identidades gerais de grupo , somadas para constituir as identidades individuais. A pessoa-indivíduo vive seu corpo único em um contexto sócio-cultural de comportamento e expectativas alheios, mas ela não precisa se preocupar em constituir sua identidade a partir de um conjunto de “pop-beads” generalizados, amarrados juntos.[7]

Através da categoria do corpo vivido, então, “Uma pessoa pode chegar a uma compreensão altamente historicizada e concreta dos corpos e da subjetividade sem se apoiar na distinção sexo-gênero que Butler coloca como axiomática”. (p.46) A idéia do corpo vivido reconhece que a subjetividade da pessoa é condicionada por fatos sócio-culturais e pelo comportamento e expectativas  alheias, de maneiras que ela não escolheu. Ao mesmo tempo, a teoria do corpo vivido diz que cada pessoa se interessa e age em relação a esses fatos não-escolhidos de maneira própria.

Considerar o corpo como uma situação... é considerar o fato de ser um tipo específico de corpo e o significado que o corpo concreto tem para o indivíduo situado. Isto não é equivalente nem ao sexo nem ao gênero. O mesmo é verdade para “a experiência vivida” que inclui nossas experiências de todos os tipos de situações (raça, classe, nacionalidade, etc.) e é um conceito bem mais abrangente que o altamente psicologizante conceito de identidade de gênero. (p.81)

III. O corpo vivido é suficiente?

Toril Moi argumenta que um conceito de corpo vivido serve melhor aos objetivos da teorização feminista do que o conceito de gênero. Ela define esses objetivos como prover uma teoria da subjetividade e do corpo, e prover uma compreensão do que signifique ser uma mulher ou um homem em uma sociedade em particular(p. 4, 36, 14).. As teorias feministas, diz ela devem se tornar um projeto que vise fragmentar e criar confusões acerca de corpos, sexo, sexualidade, diferenças sexuais e as relações de poder entre mulheres e homens, heterossexuais e homossexuais.(p.120)

Esta última frase sobre relações de poder é extremamente vaga. Dependendo de como é especificado, o escopo da teorização de relações de poder pode ir  além do que considero ênfase principal de Moi ao definir as tarefas das teorias feministas. Define-as tendo como eixo a subjetividade, na qual a pessoa é um/uma agente, atributos e capacidades que alguém teria em sua experiência, as relações com os outros que contribuem para a noção que se elabora de si (self no original N.T.) No artigo ao qual me referi anteriormente, Linda Nicholson também parece considerar que a função teórica que o conceito de gênero teria desempenhado foi da teorização da auto-identidade e da constituição social do caráter humano.

Discussões recentes questionando a estabilidade do gênero e a adequação de uma distinção sexo-gênero revelam muito bem os dilemas e a crescente abstração para qual tem se encaminhado as teorias feministas e queer , para responde-los,talvez. Estes problemas com o conceito de gênero vieram à tona, pelo menos em parte, porque o gênero pretende ser uma categoria geral, mas a subjetividade é sempre particular. A apropriação que Moi faz do conceito do corpo vivido oferece ferramentas mais refinadas para a teorização da subjetividade sexuada, e a experiência de mulheres e homens ,diferentemente situados, faz a categoria gênero mais indefinida.

Concordar com isso significa dispensar a categoria gênero, somente, entretanto, se os projetos das teorias feministas e homossexuais consistirem apenas em teorizar a subjetividade. Mas não acho que eles se resumam a isso. Os debates sobre gênero e essencialismo que Moi pretende aproximar de seus argumentos tendem, penso eu, a estreitar os interesses das teorias feministas e queer nas questões da experiência, identidade e subjetividade. Sua discussão abre caminho para questionar se outros aspectos do projeto das teorias feministas e queer têm sido obscurecidos por esses debates, para os quais um conceito de gênero re-situado pode ser ainda necessário. Nas páginas restantes deste texto quero sugerir que um conceito de gênero é importante para a teorização de certas estruturas sociais e suas implicações para a liberdade e o bem estar das pessoas.

No meu entender, as teorias feministas e queer não consistem apenas em explicar o significado das vidas das mulheres e homens em toda sua diversidade sexual e relacional. Nem são apenas sobre como os discursos constroem os sujeitos e como os aspectos estereotipados ou difamatórios de alguns desses discursos contribuem ao sofrimento demulheres e homens situados no lado errado do processo normalizador. As teorias feministas e queer são também projetos de crítica social. São esforços teóricos para identificar certas injustiças, localizar e explicar suas origens em instituições e relações sociais, e propor direções para a ação institucionalmente orientada para mudá-las. Esse último conjunto de tarefas requer que a analista, ao teorizar, leve em conta não só a experiência pessoal, subjetividade e identidade, mas também as estruturas sociais.

Em outros textos articulei um conceito de estrutura social direcionado especificamente ao projeto de dar um valor institucional às origens de injustiças e em resposta ao dilema que emerge ao afirmar-se que indivíduos compartilham identidades de grupo.[8] Estruturas denotam a confluência de regras institucionais e rotinas interativas, mobilização de recursos e estruturas físicas, que constituem os dados históricos em relação aos quais os indivíduos agem,relativamente estáveis ao longo do tempo. Estruturas também conotam as conseqüências sociais mais amplas que resultam da confluência de ações individuais dentro de relações institucionais dadas, cujas conseqüências coletivas não carregam, freqüentemente, a marca de nenhuma intenção de qualquer pessoa ou grupo.

Alexander Wendt distingue dois níveis de tipos de estruturas, os níveis micro e macro. Microestruturas se referem à análise estrutural da interação. A padronização de práticas e rotinas interativas, as regras que os atores seguem implícita/ explicitamente e as fontes e instrumentos que eles mobilizam em suas interações podem ser todos considerados estruturas. As estruturas de gênero são muito importantes para as interações nesse nível micro-estrutural. Ao sugerir que as teorias sociais feministas complementam a ênfase dada à subjetividade e identidade dando uma atenção renovada às estruturas sociais, estou entretanto, mais interessado com o que Wendt denomina nível macro-estrutural, envolvendo “múltiplos resultados realizáveis” [9]

Quer dizer, a teoria social que deseja compreender e criticar as restrições impostas sobre indivíduos e grupos que os deixam relativamente presos e limitados em suas oportunidades em relação a outros precisa antever em larga-escala as conseqüências sistêmicas das operações de muitas instituições e práticas que produzem resultados que restringem algumas pessoas de maneiras específicas ao mesmo tempo em que habilitam outros. Macroestruturas dependem de interações micro-estruturais para sua produção e reprodução, de acordo com Wendt, mas sua forma e as maneiras pelas quais elas restringem e habilitam não podem ser reduzidas a efeitos de interações particulares.

As estruturas sociais posicionam os indivíduos em relação a trabalho e produção, poder e subordinação, desejo e sexualidade, prestígio e status. O  modo pelo qual uma pessoa é posicionada nessas estruturas é determinado tanto em função de como os outros tratam-na/no dentro de vários arranjos sociais como a atitude que ela/ ele assume. Todo indivíduo ocupa posições múltiplas na estrutura, e essas posições se tornam diferentemente salientes dependendo do arranjo institucional e da posição de outros neste arranjo.

Do ponto de vista da teoria social crítica, a principal razão para se importar com as estruturas é relativa à explicação da constituição e causas da desigualdade social. Algumas pessoas pensam as relativas restrições em sua liberdade e bem estar material como sendo um efeito cumulativo das possibilidades de suas posições sociais, quando comparado a outros , cujas posições sociais permitem maiores opções ou acesso mais fácil a benefícios.

Grupos sociais definidos por casta, classe, raça, idade, etnia, e, claro, gênero, nomeiam identidades subjetivas menos que eixos de tal desigualdade estrutural. Elas nomeiam posições estruturais cujos ocupantes são privilegiados ou desfavorecidos em relação uns aos outros em razão da aderência dos atores às regras e normas institucionais e a busca de seus interesses e objetivos dentro das instituições. Uma consideração estrutural oferece uma maneira para compreender a desigualdade de oportunidades, opressão e dominação, que não busca individualizar os executores, mas considera, ao invés, que todos os atores são coniventes na sua produção, em grau maior ou menor.

Nancy Folbre conceitualiza tais questões de desigualdade social em termos de “estruturas de restrição”. [10] Estruturas de restrição incluem conjuntos de distribuição de bens, regras, normas, e preferências que concedem mais liberdade e oportunidade de benefícios a uns do que a outros. Restrições definem os limites de opções disponíveis para os indivíduos, ou os custos de se buscar algumas opções ao invés de outras.  Tempo e dinheiro são bens básicos. As leis funcionam como restrições importantes, mas as normas culturais também. Elas impõem um “preço” à não-conformidade. Preferências podem ser restrições quando entram  em conflito umas com as outras. A configuração de bens, regras, normas e preferências particulares criam as restrições que definem grupos sociais baseados em gênero, classe, raça, idade e outros. Assim, o fazer parte do grupo “mulheres” é produto de uma configuração ampla de diferentes fatores estruturais.

Para descrever e explicar algumas das estruturas e processos que criam diferentes oportunidades e privilégios na sociedade contemporânea, penso que não podemos ficar sem o conceito de gênero. As teorias feministas e queer precisam de ferramentas conceituais para descrever as regras e práticas das instituições que presumem papéis diferentes para homens e mulheres e/ou que estimam mmulheres e homens unidos em relações íntimas.  Precisamos de ferramentas para compreender como e porque certos padrões na alocação de tarefas ou reconhecimento de status permanecem persistentes de modo a limitar as opções de muitas mulheres e da maioria das pessoa,s cujas escolhas sexuais e íntimas desviam das normas heterossexuais.

Uma importante mudança conceitual ocorre, entretanto, ao se compreender o conceito de gênero como uma ferramenta para teorizar estruturas, não apenas sujeitos. Não precisamos, assim, atribuir uma identidade de gênero única ou compartilhada a homens e mulheres.

Meu próprio esforço em responder às críticas das primeiras teorias feministas encaminhou-se na direção de teorizar o gênero como um atributo de estruturas sociais mais do que de pessoas. Em “Gender as Seriality: Thinking About Women as a Social Collective” (Gênero como Serialidade: Pensando Mulheres como um Coletivo social), trabalho com re um conceito da filosofia tardia de Sartre, sua idéia de séries. [11] Gênero, lá sugiro, é melhor compreendido como uma forma particular de posicionamento social dos corpos vividos em relação uns aos outros, dentro de instituições e processos históricos específicos que tem efeitos materiais na ação e reprodução de relações de poder e privilégio entre si. Sob esta ótica, o que significa dizer que indivíduos são “generizados” é que todos nós nos encontramos passivamente agrupados de acordo com essas relações estruturais, de maneiras muito impessoais para fundar identidades. Propunha, naquele texto, que existem dois eixos básicos de estruturas de gênero: uma divisão sexual do trabalho e a heterossexualidade normativa. Acrescento agora, na mesma ótica deBob Connell um terceiro eixo, hierarquias generizadas de poder. [12]

A estruturação de trabalho e ocupações por gênero é um aspecto básico de todas as sociedades modernas (e muitas sociedades pré-modernas), com conseqüências de longo alcance na vida dos indivíduos quanto àss restrições e oportunidades que encontram. O cerne de uma divisão generizada do trabalho nas sociedades modernas é a divisão entre trabalho “privado” e “público”. Um aspecto da estrutura básica dessas sociedades é que os trabalhos de cuidar –  de pessoas, suas necessidades corporais, seu bem-estar emocional, e a manutenção de seus lares – se situa primeiramente no trabalho não-remunerado na privacidade dos lares. Enquanto tem-se visto em décadas recentes algumas mudanças na alocação do trabalho entre homens e mulheres, este cuidado não-remunerado com as pessoas e com a casa ainda recai primeiramente sobre as mulheres.

As operações da sociedade como um todo dependem da performance regular deste trabalho, ainda que ele permaneça relativamente pouco notado e lhe atribuam pouco valor. As pessoas a quem este trabalho é atribuído tem pouco tempo e energia para dedicar-se a outras tarefas e atividades às quais podem dedicar-se aqueles menos comprometidos com as tarefas acima mencionadas. A divisão generizada do trabalho persiste aparentemente porque as pessoas coletivamente não desejam organizar serviços públicos de investimentos extensos que assumam responsabilidades mais coletivas sobre o trabalho do "privado". Apesar de muitas mudanças significativas sobre noções de gênero e ideologia nas sociedades contemporâneas, tem-se visto poucas mudanças nesta divisão básica do trabalho. Na verdade, as políticas econômicas neo-liberais através do mundo tem o efeito de restringir esta divisão onde ela poderia ter sido mais solta.

As teorias sociais e políticas feministas nos últimos vinte anos documentaram dúzias de maneiras pelas quais essas estruturas generizadas restringem as oportunidades daquelas pessoas responsáveis pelo trabalho não-remunerado de cuidar, a maioria mulheres. [13] Elas trabalham mais tempo que os outros, e são dependentes de outras pessoas para a provisão de suas necessidades, o que as faz vulneráveis à pobreza e ao abuso. Pesquisadoras feministas também documentaram como esta estrutura básica fundamenta divisões ocupacionais no trabalho público, remunerado de acordo com o gênero.

Quando as ocupações envolvem cuidados elas tendem a se tornar femininas. Porque muitas mulheres organizam suas vidas de trabalho público em relação às responsabilidades do cuidar, apenas um número relativamente pequeno de ocupações as recebe bem, o que ajuda a manter baixos os salários nesses cargos. A estruturação dos trabalhos privado e público ao longo destas linhas exibe as hierarquias generizadas do status e poder, sem mencionar a retribuição financeira.

Poder-se-ia pensar que as conseqüências estruturais de uma divisão sexual do trabalho descrevem primeiramente as sociedades industriais ocidentais. Teorizadas em nível de generalização categórica, entretanto, estruturas similares descrevem muito bem numerosos países menos desenvolvidos, especialmente na vida urbana. Como algumas intelectuais feministas do desenvolvimento argumentam, por exemplo, tanto as políticas governamentais quanto as políticas de organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, implicitamente se apóiam na crença de que o trabalho doméstico não-remunerado é infinitamente expansível, e que as donas-de-casa estão disponíveis para assumir as responsabilidades e atender às necessidades de seus familiares quando a pouca comida chega ao mínimo, gastos com a escola aumentam, ou clínicas de saúde estão fechadas.

Uma explicação estrutural da divisão sexual do trabalho recusa ue esta divisão do trabalho tenha o mesmo conteúdo em sociedades diversas. É um recorte teórico que indaga se existem tarefas e ocupações usualmente executadas por membros de um sexo ou de outro, e /ou se as normas sociais e produtos culturais da sociedade tendem a representar certas tarefas ou ocupações como mais apropriadamente executadas por membros de um sexo ou do outro. Para qualquer sociedade, tanto hoje quanto no passado, a resposta é usualmente sim, mas há, entretanto, variações consideráveis entre elas sobre a quais ocupações o sexo está associado, as ideologias freqüentemente legitimando essas associações, quantas tarefas são  classificadas por sexo, e que implicações essa divisão sexual do trabalho tem para a distribuição das riquezas entre as pessoas, seu status relativo, as limitações e oportunidades que condicionam suas vidas.

Um segundo eixo de estruturação de gênero na nossa sociedade é a heterossexualidade normativa. Esta estruturação consiste nos diversos fatos ideológicos e institucionais que privilegiam a união heterossexual. Isso inclui a forma e as implicações de muitas instituições legais, regras e políticas de organizações privadas ao alocar posições e benefícios, a estruturação da educação formal e da mídia de massas seguindo estas normas , bem como as suposições que as pessoas fazem em suas interações com outras.

Juntos, tais fatos sociais constroem estruturas com conseqüências diferenciadas na vida de diversos homens e mulheres, com toda sua variação de inclinação sexual e de desejo, e muitas vezes produzem grandes sofrimentos e sérias limitações em sua liberdade. O sistema normativo da heterossexualidade restringe, de maneira significativa, as vidas de homens e mulheres, com suas várias inclinações sexuais e de desejo, motivando alguns a ajustar suas vidas de acordo com a maneira que, acreditam, trará recompensas materiais e aceitação; outros entalhar suas vidas nas lacunas das relações sociais às quais seus desejos e projetos não se ajustam, ou contra elas abertamente se rebelam.

Cheshire Calhoun argumenta que a subordinação gay e lésbica é diferente quanto às limitações estruturais na vida de mulheres e pessoas "de cor", por exemplo. Enquanto as estruturas de subordinação feminina ou o racismo institucionalizado confinam as pessoas percebidas como pertencentes a certas categorias a certos lugares ou posições, Calhoun argumenta que pessoas transgressoras das normas da heterossexualidade não possuem lugar algum nas políticas de cidadania, sociedade civil, ou esferas privadas. As estruturas de heterossexualidade normativa limitam lésbicas e gays  ao impor sua invisibilidade. [14]

Uma valoração institucionalizada de certas associações particulares de virilidade ou masculinidade condiciona hierarquias de poder restringindo possíveis ações de pessoas menos resitentes a mudanças. Posições e práticas de violência institucionalizada e organizada são mais importantes aqui – forças militares e policiais, sistemas de prisão, etc. Em geral, a estruturação das instituições estatais, corporações e outras burocracias , em hierarquias de status e autoridade na tomada de decisões, conferem a algumas pessoas liberdade e privilégios significativos; essas pessoas são comumente homens, que desta forma limitam, restringem e subordinam outros, inclusive a maioria das mulheres e muitos homens. Hierarquias de poder generizadas se interseccionam com a divisão sexual do trabalho e a heterossexualidade normativa de muitas formas e reproduzem a idéia de prerrogativas dos homens sobre os serviços das mulheres e uma associação da masculinidade heterossexual com a força e o comando.

Quando se descreve estruturas sociais como generizadas não é necessário fazer generalizações sobre mulheres e homens nem é necessário reduzir as estruturas de gênero variantes a um princípio comum. Uma divisão ocupacional generizada do trabalho pode codificar fortemente certas ocupações como femininas e outras como masculinas, e esses códigos podem ter implicações de longo alcance para o poder, prestígio e retribuição material que cada um possa usufruir. Não surge daí a questão, entretanto, a respeito do que fazem a maioria dos homens ou mulheres para ganhar a vida. Reconhecer as estruturas da heterossexualidade normativa poderia resultar em teorizações sobre a pluralidade de gênero, regras e práticas variáveis que criam expectativas a respeito da interação sexual entre mulheres e homens , relações  de adultos e crianças, estética social, relações das pessoas em situação de trabalho, entre outras, que não compartilhariam a lógica comum e que podem estar em tensão umas com a outras, sob alguns aspectos.

Estruturas de uma hierarquia de poder generizada diferenciam homens uns dos outros de acordo com os papéis e arranjos sociais, e não simplesmente diferenciam homens e mulheres. A coisa mais importante a respeito da análise é compreender como as regras, relações e suas conseqüências materiais produzem privilégios para pessoas cuja manutenção lhes interessa, ao mesmo tempo em que limitam as opções dos outros, causam privações em suas vidas, ou deixam-nos vulneráveis a dominação e á exploração.

Neste artigo eu concordei com a proposta de Toril Moi  que a categoria fenomenológica existencial do corpo vivido é um conceito mais rico e mais flexível para teorizar a experiência socialmente constituída de mulheres e homens do que os conceitos de sexo ou gênero. O corpo vivido é particular em sua morfologia, similaridades materiais e diferenças dos outros corpos, Argumentei, além disso, que esta proposta não deve significar a dispensa da categoria gênero, mas ao invés disso, confinar seu uso a análises de estruturas sociais com o propósito de se compreender certas relações específicas de poder, oportunidade e distribuição de renda. Uma questão óbvia se levanta a este ponto, como é a relação dos corpos vividos com estas estruturas.

Outra razão para utilizar o conceito do corpo vivido é que pode ser produtivo para as teorias feministas e queer , é precisamente porque pode oferecer uma maneira de articular a vivência das pessoas, em seus posicionamentos nas estruturas sociais , às oportunidades e limitações que se produzem. Não tenho espaço aqui para desenvolver o sistema para tal articulação, e esboçarei apenas algumas linhas nesta direção .

Estruturas de gênero, eu disse acima, são historicamente dadas e condicionam a ação e consciência dos indivíduos. Elas precedem e seguem esta ação e consciência. Cada pessoa vivencia aspectos das estruturas de gênero como facticidade, como dados sócio-culturais com os quais ele ou ela deve lidar. Cada pessoa encara a questão do que vestir, por exemplo, e as opções de vestimentas e convenções derivam de muitas estruturas de busca de lucro, distinção de classe e ocupacional, distribuição de pagamentos, normatividade heterossexual, espaços e expectativas de ocasiões e atividades , as possibilidades de conformidade e transgressão que carregam.

Não importa quão limitadas sejam as escolhas ou os recursos para atuar, cada pessoa toma as possibilidades limitadas que as estruturas de gênero oferecem à sua maneira, formando seus próprios hábitos como variações dessas possibilidades, ou ativamente tentando resistir ou refigurá-las. O gênero como estruturado é também vivido através de corpos individuais, sempre como resposta pessoal experienciada e não como um conjunto de atributos que os indivíduos tem em comum.

O conceito de habitus de Pierre Bordieu oferece uma interpretação de como as estruturas sociais generalizadas são produzidas e reproduzidas no movimento de interação dos corpos. Especialmente em seu entendimento de estruturas de gênero, entretanto, a compreensão que Bourdieu tem da relação das estruturas sociais em relação a seus atores e experiência, conceitua essas estruturas como muito rígidas e a-históricas. [15] Pode ser mais frutífero desenhar uma teoria do corpo vivido como aquela de Maurice Merleau-Ponty, mas conectando-a mais explicitamente do que aparece em seu trabalho, a como o corpo vivencia suas posições em estruturas sociais na divisão do trabalho, hierarquias de poder e normas da sexualidade. [16] Ademais, sob a influencia de tal teoria de como os corpos vivenciam suas posições estruturadas,  pode-se achar que uma teoria de gênero desconstrutivista  tal como a de Judith Butler aparece não como a teoria da determinação ou constituição dos sujeitos generizados, mas como uma teoria dos movimentos variáveis dos corpos habituados a reagir, reproduzir e modificar estruturas.

Biografia

Íris Marion Young é professora de Ciência política na Universidade de Chicago, onde é afiliada ao Centro de Estudos de Gênero e ao Programa de Direitos Humanos. Seus livros mais recentes são : Intersecting Voices:  Dilemmas of Gender, Political Philosophy and Policy (Princeton 1997) e Inclusion and Democracy (Oxford 2000).



[1] A vir, Ratio, 2003

[2] Toril Moi, “What is a Woman?” em What is a Woman and Other Essays (Oxford: Oxfford University Press, 2001)

[3] Para uma exposição do ideal andrógino, ver Ann Ferguson, “Androgyny as an Ideal for Human Development,” em Sexual Democracy: Women, Oppression and Revolution (Westview: Allen and Unwin, 1991).

[4] Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering (Berkeley: University of California Press ); Carol Gilligan, In a Different Voice (Cambridge: Harvard University Press, 1982); Nancy C. M. Hartsock, Money, Sex and Power (Longman, 1983)

[5] Sonia Kruks fornece uma leitura do existencialismo de Simone de Beauvoir que tenta responder aos quebra-cabeças contemporâneos de “identidades políticas’ na teoria feminista. Ela também propõe compreender de Beauvoir como desenvolvendo o conceito do corpo vivido útil para a teoria feminista, e ela argumenta que as interpretações de de Beauvoir falharam ao estimar muito aquilo que foi influenciado pelo conceito de Maurice Merleau-Ponty do corpo vivido, ver Kruks, “Freedoms that Matter: Subjectivity and Situation in the Work of de Beauvoir, Sartre and Merleau-Ponty,” em Kruks, Retrieving Experience: Subjectivity and Recognition in Feminist Politics (Ithaca: Cornell University Press, 2001), pp. 27-51.  Debra B. Bergoffen também recomenda um retorno à Simone de Beauvoir como uma saída para os quebra-cabeças da teorias de gênero a que as teorias feministas e queer chegaram. Ver Bergoffen, “Simone de Beauvoir: Disrupting the Metonymy of Gender,” em Dorothea Olkowski, ed., Resistance, Flight, Creation: Feminist Enactments of French Philosophy (Ithaca: Cornell University Press, 2000), pp. 97-119

[6] Linda Nicholson, “Interpreting Gender,” The Play of Reason: From the Modern to the Postmodern (Ithaca: Cornell University Press, 1999), pp. 53-76.

[7] er Elizabeth Spelman, Inessential Woman:  Problems of Exclusion in Feminist Thought (Boston:  Beacon Press, 1988).

[8] Ver Inclusion and Democracy (Oxford: Oxford University Press, 2000), especialmente Capítulo 3; ver também “Equality of Whom?  Social Groups and Judgments of Injustice,” Journal of Political Philosophy, Vol. 9, no. 1, March 2001, pp. 1-18.  Lá eu construo uma definição de estruturas sociais sobre idéias de Peter Blau, Anthony Giddens e Jean-Paul Sartre primeiramente.

[9] Alexander Wendt, Social Theory and International Relations (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), Capítulo 4.

[10] Nancy Folbre, Who Pays for the Kids? (New York: Routledge, 199 ), especialmente Capítulo 2.

[11] Em I.M. Young, Intersecting Voices: Dilemmas of Gender, Political Philosophy and Policy (Princeton: Princeton University Press, 1997).

[12]  R.W. Connell, Gender and Power (Stanford:  Stanford University Press, 1987).

[13] O livro de Nancy Folbre, citado acima, é uma excelente análise das operações destas limitações em vários países na Europa, Ásia e América Latina, bem como nos Estados Unidos.

[14] Cheshire Calhoun, Feminism, the Family, and the Politics of the Closet: Lesbian and Gay Displacement (Oxford: Oxford University Press, 2000).

[15] Ver por exemplo, Pierre Bourdieu, The Logic of Practice, Richard Nice, trans.,  (Stanford: Stanford University Press, 1990), especialmente Capítulos 3 e 4. A própria Toril Moi explora as implicações da teoria de  Bourdieu para a teoria feminista; ver “Appropriating Bourdieu: Feminist Theory and Pierre Bourdieu’s Sociology of Culture, “ Capítulo 3 de What is a Woman?  Livro de Bourdieu, La Domination Masculine (Paris: Editions du Seuil, 1998) assume que ele pode generalizar sobre estruturas de gênero em grande parte por suas observações da sociedade Kabyl no Norte da África.

[16] Nick Crossley argumenta que a reconstrução da teoria de sociabilidade e hábito de Merleau-Ponty pode melhor servir a teoria social do que o conceito de habitus de Bourdieu porque a conceitualização de Merleau-Ponty dá mais espaço à liberdade e às diferenças individuais. Ver Crossley, “The Phenomenological Habitus and Its Construction,” Theory and Sociey Vol. 30, 2001, pp. 81-120; ver também “Habitus, Agency and Change: Engaging with Bourdieu,” trabalho apresentado em conferência na Philosophy of the Social Science,  Academia Tcheca de Ciência, Praga, Maio de 2001.