labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2016- junho 2017 /juillet 2016-juin 2017

 

 

A violência do dispositivo amoroso e assujeitamento das mulheres nos livros didáticos de história[1]

Susane Rodrigues de Oliveira

Resumo: Os livros didáticos de história produzem e difundem sentidos para as relações sexuais, amorosas, afetivas e matrimoniais entre homens e mulheres no passado, fazendo circular representações que põe em funcionamento o “dispositivo amoroso” que naturaliza e sustenta formas de inferiorização e assujeitamento das mulheres (seus corpos, sentimentos, saberes e culturas). A partir de uma perspectiva feminista, analisamos os sentidos constitutivos dessas representações, além de seus dispositivos, discursos, concepções de sexo-gênero, valores, interesses, modos de funcionamento e efeitos educativos na formação das subjetividades e das relações de gênero. Elegemos como fonte análise nove livros didáticos de história produzidos na última década para o Ensino Médio.

Palavras-chave: história; livros didáticos; dispositivo amoroso.

 

Os livros didáticos de história para o Ensino Médio – ao produzir e difundir sentidos para as relações sexuais, amorosas e matrimoniais entre mulheres e homens no passado, – fazem circular, entre textos e imagens, representações históricas que constroem as mulheres como corpos dóceis, amorosos, eróticos, violáveis, servis, sacrificáveis, submissos, dependentes, maternos, irracionais, fúteis e emotivos. Tais representações põe em funcionamento o “dispositivo amoroso” (NAVARRO-SWAIN, 2008) que, articulado também aos dispositivos de gênero e sexualidade, naturalizam e sustentam a inferiorização, a subordinação e as diversas formas de violência que acometem as mulheres em suas relações com os homens em nossa sociedade.

Pretendemos aqui analisar os sentidos constitutivos dessas representações, além de seus dispositivos (FOUCAULT, 1988), discursos, concepções de sexo-gênero, valores, interesses, modos de funcionamento e efeitos educativos na formação das subjetividades e das relações de gênero. Dessa forma, propomos investigar as funções e regimes de verdade dessas representações, apontar e questionar a ordem discursiva e epistêmica que orienta essa produção de sentidos, e compreender os poderes que tais enunciados atendem, ativam e põe em circulação.

Elegemos como fonte de análise nove livros didáticos produzidos para o Ensino Médio na última década, entre os anos de 2008 e 2013. Os livros de 2013 que integram este corpus fazem parte de duas coleções aprovadas no PNLD 2015, 2016 e 2017, constituindo-se, atualmente, em livros de grande repercussão e importância curricular nas escolas brasileiras. Dos três volumes únicos analisados, um deles, chamado Nova História Crítica, de autoria de Mario Schmidt, se destacou devido à grande repercussão de críticas a ele realizadas na mídia impressa no ano de 2007. Com 10 milhões de exemplares vendidos, a coleção desse autor foi lida por cerca de 30 milhões de estudantes[2].

Entendemos os livros didáticos, como elementos curriculares, de orientação e difusão de saberes históricos a serem escolarizados, como práticas discursivas – educativas/pedagógicas – que tem o poder de moldar e conduzir nossas maneiras de compreender, de falar e de se posicionar sobre os acontecimentos, sujeitos, culturas, comportamentos, instituições e relações sociais no passado.

Não se trata, portanto, de narrativas neutras, já que a história (tanto a acadêmica como a escolar) se constitui como um discurso cambiante e problemático sobre o passado (JENKINS, 2001: 52), uma forma de interpretação e estabelecimento de sentidos (SPINK, 2000: 41) que é mediada pela cultura e interesses do presente, segundo um corpo de regras socialmente autorizadas que orientam as maneiras de ensinar, perceber, julgar, pensar e agir em relação ao passado.

 Nessa perspectiva, as imagens (pinturas, fotografias, desenhos, xilogravuras, charges, iluminuras de época, dentre outras), assim como as narrativas textuais veiculadas em livros didáticos, não podem ser entendidas ou escolarizadas como meras ilustrações ou retratos fiéis do passado, já que cumprem um papel didático e importante, como registros significativos para as questões que os livros levantam.   

Devemos ressaltar que a presença das imagens nos livros didáticos é controlada e avaliada, já que os livros didáticos passam pela avaliação no PNLD que exigem, entre outros, imagens claras, precisas, variadas e adequadas as finalidades às quais foram selecionadas. Além disso, desde 1996 o Ministério da Educação apresenta, entre seus critérios de seleção de livros didáticos a serem adquiridos e indicados para as escola, o conteúdo não discriminatório em relação às mulheres (ROSEMBERG; MOURA; SILVA, 2009). Nesse sentido, as imagens e textos sobre as relações de gênero nos livros didáticos são também aspectos representativas de valores, crenças e conhecimentos autorizados pelo MEC para ensino nas escolas brasileiras.    

Nos nove livros analisados, identificamos um total de 60 imagens associadas às relações sexuais, afetivas, amorosas e matrimoniais entre homens e mulheres no passado. Tais imagens estão presentes em textos principais e complementares. Nas legendas e narrativas que as acompanham identificamos a produção de sentidos para as relações entre homens e mulheres, pondo em funcionamento uma série de dispositivos de subjetivação, especialmente o “dispositivo amoroso” que promove e naturaliza diversas formas de inferiorização, subordinação e violência que acometem as mulheres em suas relações com os homens no passado. Este dispositivo atravessa as narrativas históricas que tratam da “pré-história” aos dias atuais, reforçando uma noção ideal de amor e de relação entre os sexos.

Adotamos aqui a noção de “dispositivo amoroso” criada e difundida pela historiadora feminista Tania Navarro-Swain (2008). Baseando-se em Foucault (1988), a autora escreve que o dispositivo constitui “o conjunto de estratégias sociais e de biotecnologias de poder que produzem corpos sexuados significando-os enquanto sexo social” (2012: web). Na dimensão do saber, os dispositivos se fazem presente nas formas de visibilidade e enunciação, constituindo-se em “máquinas de fazer ver e fazer falar” (ZANELLO, 2016: 229). Segundo Navarro-Swain,

"Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres são “diferentes”, isto é, sua construção em práticas e representações sociais sofre a interferência de um outro dispositivo: o dispositivo amoroso. Poder-se-ia seguir sua genealogia nos discursos – filosóficos, religiosos, científicos, das tradições, do senso comum – que instituem a imagem da “verdadeira mulher”, e repetem incansavelmente suas qualidades e deveres: doce, amável, devotada (incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e, sobretudo, amorosa. Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo limite, de toda expressão de si "(2008: 297).

Esse dispositivo amoroso é um dos elementos constitutivos dos dispositivos de gênero ou, como bem disse Lauretis (1994), das “tecnologias de gênero” – um conjunto de práticas, discursos e representações que constroem o feminino enquanto ser dotado de um destino biológico pronto para ser sacrificado, assujeitado e violentado por amor a outrem. Trata-se de representações que orientam, determinam, capturam, modelam e conduzem os sentimentos, as emoções, os corpos, as condutas, as opiniões, as subjetividades e as relações de gênero dentro de uma lógica de gênero binária e hierárquica, baseada na heterossexualidade normativa e na inferiorização e subjugação das mulheres pelos homens.

Os primeiros enunciados e imagens reveladores das uniões e relações entre homens e mulheres já aparecem logo no início dos livros didáticos que priorizam uma narrativa linear, cristã e eurocêntrica da história. No livro Estudos de História (FARIA, 2010: 430), as pinturas que acompanham textos sobre o criacionismo e o evolucionismo destacam as crenças judaico-cristãs, onde a mulher (na figura de Eva) é criada da costela de Adão.

A partir de uma ordem divina se estabelece um discurso fundador das relações heterossexuais e da dependência/assujeitamento das mulheres ao masculino, corpo que lhe dá origem e vida. Tal imagem é acompanhada de uma legenda que diz que “A visão criacionista da origem da vida tem inspirado muitos artistas”, o que denotado sem nenhum questionamento a sua importância e influência. De fato, há o predomínio dessa crença até o presente em nossa sociedade, embora não seja a única acerca da criação do mundo e dos seres humanos. O livro em questão, menciona rapidamente que “muitos povos inventaram histórias sobre a criação, ligadas a mitos ou a crenças religiosas”. Desse modo, menciona egípcios e maias, em menos de três linhas, para em seguida priorizar as imagens e trechos da Bíblia.

Ainda no livro Estudos de História (FARIA, 2010: 223), um exercício cita um trecho da Bíblia, e traz duas imagens desse episódio mítico – uma medieval e outra renascentista – demonstrando uma continuidade nessa crença. A preocupação educativa na abordagem dessas imagens é apenas a de fixar o modo como se deu a “criação da mulher” na Bíblia e compará-la com a representação imagética, observando traços físicos (rostos e corpos), roupas, gestos e posturas. O que importa, no livro em questão, é a diferença física entre os corpos retratados, nada é dito ou questionado sobre outras crenças, mitos e lendas, fixando-se uma visão cristianocêntrica da criação do mundo e dos seres humanos, onde o masculino surge como elemento de ordem e criação suprema. Fixa-se, assim, uma narrativa sagrada, fundadora do humano e das relações de gênero. Deus, o sagrado, é masculino e cria a mulher a partir do corpo masculino de Adão. Se as mulheres dentro dessa lógica são responsáveis pela reprodução/procriação, os homens, nesse discurso, são responsáveis pela criação primordial do humano, destacando-se a superioridade masculina no ordenamento do mundo e das relações entre os sexos.

Já no livro Oficina da História 1 (2013), as narrativas sobre a “pré-história” tecem uma associação das mulheres com o cuidado dos filhos e afazeres domésticos como algo da ordem do natural. Assim está escrito, no livro em questão:

"Os homens saíam em busca da caça e pesca, enquanto as mulheres, que cuidavam dos filhos, geralmente, permaneciam nas proximidades dos acampamentos coletando raízes, grãos e frutos, assim como defendendo as crianças e os mais velhos dos ataques de animais. (...) Complementaridade, diferenciação e relações de poder entre os sexos derivam dessa grande distinção entre os seres humanos e os primatas ." (CAMPOS; CLARO, 2013: 21)

Reforçando ainda mais a divisão sexual do trabalho e a heterossexualidade como aspectos constitutivos da “evolução” humana que começa na “pré-história”, esse livro traz na mesma página uma caixa de texto com o título “A invenção do amor”, com uma transcrição bastante descontextualizada de um livro de Elisabeth Badinter (1986) em que ela analisa um discurso sobre a “evolução do esqueleto” das fêmeas hominídeas como algo que as fez “progredir em direção à humanidade”. No entanto, a maneira descontextualizada com que o livro traz esse recorte de análise, deixa parecer que é a opinião da própria Badinter. Assim, a amamentação aparece no texto como fator natural do desempenho, dificuldades, necessidades e atuação das mulheres na história, aspecto que parece conduzir inevitavelmente à heterossexualidade e ao amor. De acordo com o texto,

"A bipedia as obrigava a segurar o lactante em seus braços ou fixá-los nas costas. Assim, elas tinham mais dificuldades em capturar animais e em prover suas necessidades e as de sua prole. Chegara o momento de fazer um acordo com os machos. O contrato sexual estava prestes a entrar nos costumes. No decorrer de gerações, a seleção operou-se a favor dos proto-homídeos, que copulavam durante a maior parte de seu mensal (...) A permanente receptividade sexual da fêmea e a copulação frontal inauguraram, segundo M. Fisher, uma das mais fundamentais trocas da raça humana: o amor ."(BADINTER Apud CAMPOS; CLARO, 2013: 20)

Nesse enunciado podemos ver a presença do dispositivo amoroso no estabelecimento de um discurso fundador de sentidos para as relações sexuais e afetivas entre homens e mulheres. Nessa ordem discursiva, o contrato sexual e o amor têm suas origens nas dificuldades e necessidades das mulheres em relação à maternidade, como uma forma de obter “vantagens”, portanto em uma dependência que acaba sendo reconhecida como natural das mulheres. Para isso as fêmeas são seres de “receptividade sexual”, disponíveis para o sexo a qualquer momento. Até mesmo o sexo e a forma de copulação não escapam a esse discurso – evolucionista e heteronormativo – que vê o amor como fundamento das trocas e relações sexuais e reprodutivas das mulheres com os homens. Desse modo, o dispositivo amoroso (NAVARRO-SWAIN, 2012), aliado também ao dispositivo materno constrói a mulher-fêmea na história como corpo materno e de cópula sexual, como corpo de necessidades e dificuldades que evoluem na medida em que buscam o “contrato sexual” e assim se tornam dependentes dos homens.

Não por acaso, a imagem que acompanha o texto é a de Adão e Eva, reforçando também o dispositivo religioso – cristianocêntrico – acerca da criação binária e heterossexual dos seres humanos. Adão e Eva são descritos como o casal primordial, misturando evolucionismo e criacionismo na mesma ordem discursiva. A humanidade se funda na relação amorosa do casal, como diz a legenda, “através do olhar carinhoso trocado entre os dois” (FARIA, 2013: 20). O sexo e o contato físico entre homens e mulheres, enquanto provas de amor são tidos como partes da “evolução” rumo à humanidade. Trata-se de uma imagem renascentista, produzida por um pintor veneziano no século XVI. Nesse livro didático, as imagens usadas para dar sentido às relações heterossexuais como forma de amor e de condição humana são provenientes de crenças religiosas cristãs que ressoam também na pintura renascentista, em um século muito distante da chamada “pré-história”. Assim, notamos os usos e abusos de imagens relacionadas aos conteúdos, na tentativa de estabelecimento de verdades sagradas e universais sobre as relações entre homens e mulheres na história.

Devemos ressaltar que não há fundamentos e indícios históricos suficientes da “pré-história” que fundamentem os sentidos do amor, da maternidade e das relações sexuais em tempos remotos (CONKEY, 2001). Os sentidos que circulam nas narrativas didáticas dizem muito mais sobre nossos imaginários, valores e concepções do presente, do que sobre o passado; dizem respeito a uma educação dos sentidos (NAVARRO-SWAIN, 2008) ou, como bem disse Sara Ahmed (2004), a uma política cultural das emoções e dos afetos em nossa sociedade.

As emoções (amor, ódio, raiva, medo, a aversão e vergonha) não são apenas estados psicológicos, mas também práticas culturais que se estruturam socialmente através de circuitos afetivos. Desse modo, as emoções e os sentimentos não podem ser compreendidos apenas como problemas de ordem psicológica e individual, já que constituem problemas de ordem cultural, política e social. A autora (AHMED, 2004) demonstra como as emoções não residem nem nos sujeitos nem nos objetivos, mas são construídas nas interações entre os corpos, nas relações entre as pessoas. Tais encontros e relações entre as pessoas são mediados por sentimentos, moldados por histórias e conhecimentos prévios.

Existe uma espécie de “aprendizagem emocional” que adotamos desde criança e que nos indica o que devemos sentir e em que momento, que emoções são boas e ruins, quais são as emoções próprias dos homens e das mulheres, e é essa aprendizagem que vai moldando, através das emoções, nossas aproximações e distanciamentos em relação a certas pessoas e objetos. O poder molda corpos e emoções, como parte de uma política cultural e patriarcal que mantém as diferenças e desigualdades de gênero na vida social.

O amor não é algo natural, a-histórico ou uma propriedade dos corpos femininos. Como bem observou Marcela Lagarde (2001), o amor é cultural e, portanto, possui historicidade, já que ganha sentidos diferentes em cada época e lugar. A problemática do amor é, portanto, política, porque tem haver com relações de poder (LAGARDE, 2001: 38).

As concepções históricas observadas nos livros didáticos encontram fundamentos em um modelo de amor atual, herdeiro do amor burguês, vitoriano e romântico que coloca a heterossexualidade como amor “natural” e

" configura o matrimônio a via legítima para a relação do amor paixão/eros para homens e mulheres. Esta via deveria culminar na procriação. (...) Neste(s) modelo(s) se encera, portanto, laços de domínio que geram desigualdades, dependência e propriedade sobre mulheres e privilégios para os homens. Para as mulheres, o amor diz respeito à sua identidade, como uma experiência vital. O amor, em nossa cultura, se apresenta como a maior forma (e a mais invisível) de apropriação e desempoderamento das mulheres". (ZANELLO, 2016: 230)

Nesse modelo tradicional de amor para as mulheres, amar é colocar o outro em um lugar mais importante na sua vida do que a si mesma (LAGARDE, 2001: 31). A sua vitalidade passa a depender desse outro a quem ela deve amar acima de tudo. Isso é o que algumas autoras chamaram de colonização das mulheres através do amor. Como bem observou Lagarde (2001: 31), nessa forma de amar, o outro te coloniza, te habita. Não somente habita entre as suas quatro paredes, mas também o seu corpo, suas subjetividades, seus desejos e pensamentos. Na colonização amorosa, uma pessoa exerce poderes de dominação sobre a outra (LAGARDE, 2001: 31).

Nesse modelo de amor romântico, as mulheres são colonizadas em um processo de educação dos sentidos que implica em uma renuncia pessoal, no esquecimento de si mesma, em uma entrega total que potencializa comportamentos de dependência e assujeitamento aos homens. É por meio de diferentes agentes educativos (escola, livros didáticos, ciência, mídia, cinema, literatura, família, igreja, etc.) que nos chegam uma série de imagens e narrativas sobre as relações amorosas e de casais, impondo tais valores hierárquicos e patriarcais.

As imagens e narrativas sobre a Grécia e Roma Antiga colaboram ainda mais na fundamentação dessa ordem discursiva heteronormativa, ao privilegiar e destacar fotografias de esculturas de corpos nus femininos identificados como “deusas do amor”. Assim, no livro Nova História Crítica, em uma caixa de texto intitulada “Os deuses do Olimpo”, a deusa Hera aparece na condição de “protetora do casamento, que, ironicamente, volta e meia é traída por Zeus com alguma mortal” (SCHMIDT, 2008: 29), denotando a fidelidade, a monogamia e o casamento como um ideal feminino. Já Afrodite é vista no texto como “linda”, numa clara associação do amor com um ideal estético feminino. As ninfas, tidas como “criaturas fantásticas que não eram imortais, mas viviam longamente”, são vistas como “mulheres lindas que se divertiam na natureza, cantavam e dançavam e podiam ter poderes especiais. Muitos deuses se apaixonaram por algumas delas, mas algumas podiam ser terríveis” (SCHMIDT, 2008: 29). Nesse enunciado podemos perceber que a beleza estética das mulheres é tida como condição para a paixão e ruína dos homens. Ainda nessa caixa de texto há uma imagem de Afrodite nua ao lado de Pã, uma espécie de sátiro, tido como “criatura grotesca e bem-humorada, com corpo de homem misturado com corpo de bicho (bode, cavalo)” (SCHMIDT, 2008: 29).

 

Fonte: SCHMIDT, 2008: 29.

A legenda da imagem diz assim:

"Escultura do século I a.C. Afrodite bate em Pã, que tinha o corpo metade homem e metade bode. A deusa protege o sexo, mas sorri maliciosamente para a criatura que apreciava fazer amor com as ninfas (algumas tinham pavor porque era considerado feio). Os deuses gregos tinham atitudes e sentimentos claramente humanos". (SCHMIDT, 2008: 29)

A ideia da existência de atitudes e sentimentos claramente humanos aparece aqui na associação das mulheres com o amor e a proteção ao sexo, enquanto os homens aparecem na figura impulsiva de Pã, desejosa de sexo.  Na imagem acima, a legenda sugere que Pã deseja fazer “amor” com as belas ninfas, enquanto a deusa do amor lhe “sorri maliciosamente”. Sua atitude não parece de repressão e proteção ao sexo. O sorriso malicioso parece mais um consentimento e aprovação, enquanto sua proteção ao sexo parece perder valor na presença de Pã. Trata-se de uma imagem, cujos sentidos impressos nas legendas, associa o sentimento de desejo sexual dos homens pelas mulheres ao “amor”. Nessa lógica, o amor dos homens se revela no ato sexual e carnal com as mulheres, já o amor das mulheres se revela na sua concessão, ao ceder e realizar os desejos sexuais dos homens. Trata-se de uma concessão que opera uma violência contra as próprias mulheres quando estas se recusam ao sexo.

Não por acaso, neste mesmo livro, em uma caixa de texto intitulada “Amor individual”, aparece uma pintura renascentista de Ticiano (1554) com o tema “Vênus e Adônis” (SCHMIDT, 2008: 139), acompanhada da seguinte legenda:

"A linda deusa do amor suplica que o jovem fique com ela, mas o rapaz mortal parece mais interessado na caça. As escolhas do amor podem ser conflituosas. Repare que os cães farejam algo estranho ".(SCHMIDT, 2008: 139).

FONTE: SCHMIDT, 2008: 139.

A imagem vem acompanhada de um texto sobre a peça Romeu e Julieta. Ao trata de mudanças em relação aos casamentos, na época de Shakespeare, ressalta que “algumas pessoas começaram a sentir que o amor poderia ser uma opção do individuo, chegando a desafiar normas sociais” (SCHMIDT, 2008: 139), e desse modo destaca também o papel da Igreja católica como primeira instituição a defender o casamento a partir da escolha livre dos noivos.

 O texto atribui à Igreja um papel revolucionário, ao instituir a possibilidade de casamentos por amor, baseados na livre escolha dos noivos. No entanto, sabemos que nem sempre foi assim, o matrimônio cristão tem suas normas sacralizadas e funciona também como um “dispositivo de sexualidade”,  no controle dos corpos e seus impulsos sexuais, estabelecendo normas para o amor e a constituição da família. Nessa dimensão religiosa, a heterossexualidade constituí a norma e a maternidade o resultado “natural” dessa relação, constituindo o destino, a redenção e a salvação das mulheres, como sua única possibilidade de poder e realização.

Na imagem da Vênus e Adônis, o sentido expresso na legenda aponta em outra direção em relação ao texto, para o desinteresse do homem em relação à mulher que na figura da Vênus se associa ao amor (no caráter sagrado de seu ser, como deusa do amor) e insisti/suplica pelo homem, sendo assim capaz de enfrentar e sofrer as escolhas “conflituosas” do amor, no desejo pelo casamento. No entanto, a imagem que acompanha o texto revela Vênus, nua, esticando seus abraços para envolver Adônis que parece estar de passagem, possivelmente indo caçar com os cães, como sugere a legenda.

Não está claro no rosto dos dois e nem na atitude da Vênus se ela “suplica” para que ele fique com ela. Mas como se trata de uma “deusa do amor”, a narrativa tende a ver e naturalizar a relação do feminino com o masculino, sempre focada na união e desejo sexual, excluindo qualquer outra possibilidade de relação que não seja a do sexo ou casamento entre homens e mulheres, e as mulheres aparecem sempre prontas e disponíveis para isso, enquanto o amor se constitui em um sentimento feminino, de ordem natural.

Não por acaso, neste mesmo livro a importância e influência da Igreja sobre as relações entre os sexos reaparece em uma imagem de casamento de negros no período colonial, cuja legenda que se inicia com a frase “Padre casa escravos” (SCHMIDT, 2008: 196).

 

Fonte: SCHMIDT, 2008: 196.

O dispositivo da sexualidade e da religiosidade católica atingia também os/as negros/as escravizados no passado, moldando suas uniões, relações sexuais e, por conseguinte, seus modelos de família. No entanto, esta mesma ordem de gênero, apesar de imposta a todos, restringe algumas identificações às mulheres negras, já que a maternidade, a fragilidade e os cuidados do seu próprio lar (filhos/marido) são negados a elas dentro da ordem escravista e de sua exploração nos trabalhos domésticos após a abolição da escravidão.

As mulheres negras aparecem em boa parte dos livros didáticos em cenas de escravidão, cuidando ou carregando os filhos de seus “senhores”, e não os seus próprios filhos. Trata-se assim de uma “colonialidade discursiva” do corpo e das relações sexuais muito difundida na história escolar, fazendo parecer tudo como parte de uma norma universal, apagando outros sentidos possíveis para as subjetividades e relações entre os sexos, negando também as desigualdades raciais que marcam as subjetividades.

Essa representação das mulheres como seres focados no amor e no casamento, que esperam incansavelmente por um homem, aparece também nas narrativas sobre a Idade Média. Um texto complementar com o título “Mulheres em destaque” faz a seguinte indagação: “E as mulheres na Idade Média¿ Analfabetas tolinhas que aguardavam o príncipe encantando?” (SCHMIDT, 2008: 90) Além de associar o analfabetismo à tolice e à dependência das mulheres pelos homens, faz um julgamento a partir do presente, sem perceber historicidade e cultura nessa atitude de espera pelo “príncipe encantando”. Isso só pode ser visto como algo incutido nas mulheres que são tolas e analfabetas, já que o texto busca destacar que as “mulheres tinham um papel social mais ativo do que é atribuído pelos clichês” sobre a Idade Média, já que escreveram livros, trabalharam como artesãs habilidosas, compuseram músicas e até chefiaram feudos.

No livro Nova História Crítica (2008), a imagem que acompanha um texto completar sobre o Brasil Colônia, intitulado “A condição feminina”, também sinaliza para esta construção subjetiva das mulheres enquanto seres “naturalmente” focados no amor e na sedução dos homens.

 

Fonte: SCHMIDT, 2008: 449.

A legenda dessa imagem diz o seguinte:

"Quadro Romântico (1865) retrata a família burguesa europeia. O macho inclina-se para a mocinha que aceita, como um dom do Céu, a vontade de seu mestre e senhor. Talvez o cachorro fosse mais autônomo. A menininha no canto ainda tem liberdade para correr, brincar e sonhar com o mundo. Por quanto tempo¿" (SCHMIDT, 2008: 449).

A atitude da mulher vista como um “dom do céu” sinaliza novamente para a sacralidade das relações e hierarquias entre os sexos, como um “presente divino” parece algo inquestionável e sem nenhuma explicação histórica. O casamento, fundamento da família burguesa, estabelece os papeis de homens e mulheres. O masculino ganha o papel de mestre e senhor. O feminino perde a liberdade e a capacidade de sonhar com o mundo, a partir de sua relação amorosa. Não por acaso, a legenda ironiza a autonomia da mulher, ao compará-la com um cachorro. O amor enquanto assujeitamento das mulheres aos homens é associado ao divino, ao mesmo tempo em que é rebaixado a uma fraqueza “natural” feminina. Nesse tipo de abordagem, os sentimentos das mulheres pelos homens perde historicidade.

Ainda nesse mesmo texto complementar, a legenda de outra imagem no canto direito, diz que “Moças de classe alta e média só iam para a rua se estivessem acompanhadas. Nada de passear sozinhas!” (SCHMIDT, 2008: 449). Um enunciado que ainda é incansavelmente repetido, impondo às mulheres sempre a companhia dos homens. Quando sós ou em companhia de outras mulheres perdem respeito e podem se tornar alvos fáceis de assédio e violência sexual, uma ideal que culpabiliza as próprias mulheres, que regula a sua presença e atuação nos espaços públicos, já que devem se apresentar em público sempre na companhia de um homem. Trata-se de sentidos que acabam também por naturalizar o assédio sexual e o estupro das mulheres como resultados da falta de companhia dos homens, já que nenhuma explicação é posta no texto. Nessa ordem discursiva, a figura masculina é protetora e as mulheres são dependentes dessa proteção. Não por acaso, o texto ainda generaliza as experiências e relações das mulheres e deduz sobre as suas práticas de resistência à dominação do marido, quando diz que:

"Em todos os grupos sociais havia mulheres que sofriam agressões masculinas, inclusive o estupro e o assassinato. Aturar caladas as amantes do esposo, levar pancadas dele, estar sempre disposta sexualmente, eis aí quase a regra do sagrado matrimônio da época. E a resistência feminina¿ Claro que havia: largar o marido, bater nele também, tratá-lo com frieza, compensar com o amor pelos filhos, arrumar amante... (...) Os pais acreditavam que as filhas teriam a existência na terra justificada pelo futuro matrimônio e pela maternidade. Apenas as moças das classes abastadas recebiam educação formal (...) Enquanto isso, convinha esperar pelo candidato a marido. Neste caso, a natureza ou as conversas com as amigas já teriam ensinado a anquinha empinada, o decote generoso, o olhar de ressaca". (...) (SCHMIDT, 2008: 449).

Embora mencione a resistência das mulheres aos maus tratados do marido ela parece fútil, superficial e sem efeito. Pois, o que parece importar nessa narrativa é a afirmação de que as mulheres por “natureza” constituem corpos de sedução, sempre à espera do marido, prontas para serem sacrificadas e violentadas em nome do “amor”.

Ao mencionar as reivindicações das mulheres no século XIX, pelo voto, instrução superior e direito ao divórcio. Afirma o seguinte:

"Entretanto, a gente não se deve enganar: a esmagadora maioria das pessoas ainda achava que o destino da mulher era o casamento e os serviços domésticos, e olhe lá. Fora desse padrão, ‘só se fosse para ser prostitua’, como diziam os conservadores" (SCHMIDT, 2008: 449).

Nessa ordem discursiva, mesmo resistindo e reivindicando mudanças, a vidas das mulheres parece impossível de modificação, mas nada é dito ou explicado acerca das razões dessa dificuldade, parecendo inevitável. Novamente as mulheres parecem tolas, burras e incapazes de modificar a situação, e no fim elas estão sempre em busca de relações amorosas com os homens, como um “dom divino”. Parece não importar as outras formas de atuação das mulheres na vida social, nem mesmo seus saberes e culturas, porque a tendência observada é a de destacar as mulheres sempre em função de suas relações com os homens.

Ainda no livro Nova História Crítica (2008: 246), a legenda de uma imagem produzida pela artista Adelaide Ducreux, que representou a si mesma como harpista em 1791, é bastante significativa ao desviar a atenção de sua obra enquanto artista para as suas relações com os homens.

Assim diz a legenda da imagem: “As mulheres aristocráticas apreciavam revelar a inteligência. Algumas, relacionaram-se com os filósofos iluministas” (SCHMIDT, 2008: 246).  Outro exemplo significativo da tolice e dependência das mulheres em relação aos homens também aparece nesse livro na legenda de uma imagem que acompanha os conteúdos sobre a Segunda Guerra Mundial, reforçando também a heterossexualidade e ingenuidade das mulheres no “amor”.

 

Fonte: SCHMIDT, 2008: 473.

Assim diz a legenda:

"A propaganda belicista exaltava o heroísmo patriótico. Antes de partir para o front, os soldados alemães davam cartões como estes às namoradas. Lindo não¿ Só faltava a moça dizer: “Meu amorzinho me dá um beijinho antes de vocês virar um cadaverzinho podre na trincheira¿" .(SCHMIDT, 2008: 473)

Novamente os sentimentos das mulheres pelos homens é depreciado na história, parecendo sinal de ingenuidade e burrice. Nada é dito sobre a dimensão política e cultural destes cartões no cenário da guerra. Assim, as relações amorosas entre homens e mulheres se configuram na narrativa didática como algo da ordem do privado e do natural, sem qualquer explicação histórica. 

Fonte: CAMPOS; CLARO, 2013: 161

Já o livro Oficina da História 1 (2013)  ao tratar de “tempo e poder” na Idade Média apresenta um subtítulo “O casamento e o amor cortês”, onde uma iluminura do casamento de D. João e D. Felipe de Lencastre, datada do século V aparece no final da narrativa. Neste texto o casamento cristão é descrito como “uma das formas de dominação social” (CAMPOS; CLARO, 2013: 161), desde os tempos medievais. Assim afirma,

"Tratava-se de restringir o comportamento sexual e controlar a reprodução da comunidade em todos os níveis. (...) O casamento estabelecia-se no cotidiano medieval como uma prática disciplinadora das diversas ordens, sobretudo da nobreza. O adultério era seu contraponto. Significava uma ofensa moral e a possibilidade da pulverização de bens, contida pelas proibições de legados e doações a amantes. Para a nobreza era necessário controlar o comportamento feminino, porta de entrada para aventuras cavalheirescas. Por outro lado, juntamente com a guerra, as alianças matrimoniais constituíam meios de ampliação das propriedades senhoriais e mesmo de incorporação de reinos e principados". (CAMPOS; CLARO, 2013: 161).

Aos homens a “aventura”. Às mulheres o “controle” de seus comportamentos. Diante de toda essa normatização e idealização do casamento, os jovens cavaleiros aparecem no texto como protagonistas de “um curioso e perigoso jogo de amor” onde as damas, mesmo casadas, são vistas como seres passivos enquanto objetos de cortejo, disputa e desejo. Os homens aparecem como seres livres e de atitude independente, que não temem as regras religiosas do casamento e correm o “risco do adultério”. As mulheres aparecem como seres disponíveis, inertes e vulneráveis ao “amor cortês”, como seres sem autonomia, como objetos de disputa de homens corajosos que não temem as regras, já que os cavaleiros “combatiam por elas em torneiros, muitas vezes com um lenço perfumado em suas lanças” (CAMPOS; CLARO, 2013: 161).

Diante desse “amor cortês” as mulheres parecem sem saída ou resistência, o texto diz assim: “o amor cortês podia se estabelecer em vários graus. A dama poderia simplesmente permitir os galanteios dos seus cavaleiros. Podia permitir um beijo. Ou, então, entregar-se ao seu amante” (CAMPOS; CLARO, 2013: 161). O texto ainda revela o consentimento dos próprios maridos em relação à admiração de suas esposas por outros, ao dizer que,

"[...] o nobre que permitia que sua esposa fosse motivo de tantas manifestações calorosas desses cavaleiros atraía-os para si. Dispunha de maior número de combatentes para suas conquistas militares. Mesmo que, na retaguarda, pudesse ver conquistada sua mulher. Se isso viesse a acontecer e o marido viesse a saber, pelas regras medievais só haveria uma saída: lavar a honra ultrajada com o sangue do conquistador (CAMPOS; CLARO, 2013: 162).

Tais histórias exaltam o protagonismo e coragem dos homens nobres medievais, associa suas conquistas militares e sua honra à posse e conquista também das mulheres. Assim as mulheres medievais ganham importância na história escolar, apenas como corpos de posse e desejos sexuais. Não há poder nesse tipo de atração que elas exercem sobre os homens, tudo parece funcionar “naturalmente”, independente do desejo e vontade das mulheres, já que tudo depende da ação dos homens, tidos como fortes e poderosos, capazes de manter o seu domínio sobre elas e sobre os homens que as desejavam. Trata-se, portanto, de narrativa que aprisiona os sentidos das relações amorosas entre os sexos na Europa medieval.

 

Fonte: SCHMIDT, 2008: 172.

Essa associação do poder dos homens com a posse das mulheres é mostrada também nas relações que eles estabelecem com as mulheres por meio do estupro e da prostituição. Na abordagem da Guerra dos Trinta anos (1618-1648), no livro Nova História Crítica, aparece a imagem acima com o título “Bravuras militares”, seguida da descrição:

“Gravura de 1653 mostra invasão de soldados franceses a um castelo alemão durante a guerra dos 30 anos: roubos, assassinatos e estupros. Alguns homens comem e bebem despreocupadamente” (SCHMIDT, 2008: 172).

Nessa cena, ao fundo, aparecem dois soldados arrastando uma mulher, enquanto outra mulher corre desesperada, no canto inferior esquerdo, tentando escapar da perseguição de um soldado que a puxa pelos cabelos. Tal imagem, ao receber o sentido de “bravuras militares” deixa claro uma associação do estupro, violência sexual contra as mulheres, como parte dessa bravura admirada e consentida numa ótica patriarcal. Não há nenhum problematização desta imagem no corpo de texto, ela simplesmente reforça a naturalização da violência sexual contra as mulheres em um cenário de guerra, ao mesmo tempo em que exalta um modelo de masculinidade baseado no domínio e violência das mulheres. Nessa narrativa opera o “dispositivo da violência” atrelado ao “dispositivo da sexualidade” que estabelece a virilidade como atributo de poder masculino que se realiza na prática da dominação sexual forçada das mulheres. O estupro aparece como algo normal, não problematizado em uma narrativa histórica que acaba sendo condescendente com a violência patriarcal. Afinal, são histórias que também acabam educando para as relações sexuais e de poder, que conduzem e naturalizam a violência sexual dos homens contra as mulheres como parte de sua virilidade e bravura.

Fonte: SCHMIDT, 2008: 542.

As imagens de homens junto a prostitutas também aparecem nesse mesmo livro didático, associadas ao poder, riqueza e diversão de homens. Essa imagem mostra, na parte de cima, homens da classe operário indo para as fábricas trabalhar, enquanto na parte de baixo, os homens burgueses se “divertem”, como diz a legenda, de terno e gravata, fumando charutos, bebendo e fazendo sexo com mulheres nuas. A prostituição é associada assim à diversão de homens que possuem riquezas, e que, portanto, tem também o poder sobre o corpo das mulheres.

Já no livro Estudos de História, a imagem de um afresco (1957-1965), intitulado “D. Porfírio e suas cortesãs”, sinaliza na mesma direção. Sua legenda diz “Porfírio Diaz foi representado no centro, com o pé sobre a constituição, cercado por capitalistas e prostitutas” (FARIA, 2010: 514). Tal imagem denota fortemente a relação entre riqueza, capitalismo e patriarcado na exploração do corpo das mulheres. Homens de riqueza e poder político são construídos como seres de poder e controle sobre o corpo das mulheres que deviam servir aos seus desejos sexuais. Novamente nenhuma problemática é lançada em torno dessa imagem, que reforça a “colonialidade” do poder e do gênero, o caráter natural dessa posição de dominação. Trata-se de imagens históricas que ao servir apenas de ilustração acabam reforçando tais atitudes como normais e inevitáveis na obtenção de poder, riqueza e desenvolvimento do capitalismo.

As narrativas sobre o Romantismo brasileiro do século XIX trazem também o dispositivo amoroso e de violência no estabelecimento de sentidos para as relações étnico-raciais e de gênero no projeto de construção da identidade nacional, na imagem de mulheres indígenas que morrem por amor aos homens brancos, no caso de personagens reais e fictícias da literatura, como Moema e Iracema. O quadro de Victor Meireles [1866], intitulado “Moema” romantiza e erotiza o corpo de uma índia morta na praia.

 

Fonte: SCHMIDT, 2008, p 364.

A legenda dessa imagem traz o seguinte enunciado:

“Para os românticos brasileiros, o índio era o símbolo da pureza, do idealismo e dos valores de um passado que teria sido ‘belo’ e ‘natural’. A índia morta representa a luta entre a natureza e a civilização” (SCHMIDT, 2008: 364).

Esta imagem retrata um evento verídico descrito em Caramuru, um poema clássico de Frei José de Santa Rita Durão, datado de 1781, onde o protagonista é Diogo Álvares Correia, um náufrago lusitano que se transformou em líder dos tupinambás e teve relações com a índia Catarina Paraguaçu e sua irmã de Moema. No final ele abandona Moema, embarcando apenas com a Catarina Paraguaçu para o continente europeu, onde ela seria batizada e os dois se casariam. Moema, apaixonada por Diogo, deseja continuar ao seu lado e acaba morrendo afogada ao tentar alcançar o seu navio em alto mar. Sua morte por amor a um homem branco, conquistador europeu, ganha beleza, erotismo e naturalidade nessa imagem. A entrega de sua vida por amor e desejo pelo homem branco marca não só as mulheres, mas especialmente os indígenas como corpos dóceis e sacrificáveis, por amor e devoção aos homens brancos, e assim elas são capazes de renunciar à sua própria cultura.

A história que informa essa imagem revela ainda que as mulheres, mesmo irmãs, viram as costas uma para as outras, elas abandonam suas irmãs, mesmo em um momento de sofrimento e morte, tudo isso para seguir o marido. Em uma relação que promove violência, dor e morte às mulheres. Não por acaso essa imagem é também associada à passagem da natureza para a civilização em uma narrativa evolucionista, patriarcal e eurocêntrica.

Os sentidos em torno do quadro “Moema” conseguem concentrar no corpo feminino/indígena a reflexão histórica acerca do destino de um povo e de uma cultura. Moema aparece para melhor desaparecer e morrer como a “heroína ancestral” de um mito fundador da nação brasileira. Essa visão “romântica” funda também identidades, estabelece o lugar do indígena, a partir de uma feminização de sua cultura, que por amor deve ser sacrificada em prol da cultura e valores do masculino/colonizador. Assim, observamos o dispositivo amoroso atuando também ao lado do dispositivo de racialização, imbricados em narrativas de poder que fundam a nação e estabelecem o lugar de cada povo e cultura na história.

No livro História 2 (2013), a morte por amor também aparece nas narrativas sobre a corte imperial brasileira, especialmente sobre o casamento de Dom Pedro e Dona Leopoldina.

 

Fonte: VAINFAS; FARIA; FERREIRA; SANTOS, 2013: 77.

A legenda da imagem diz que os dois

"[...] se casaram por procuração, em 1817, sem nunca se terem visto. Leopoldina chegou ao Brasil junto com a ‘missão francesa’, formada por naturalistas, desenhistas e pintores. Sua irmã, Maria Luiza, era a segunda esposa de Napoleão Bonarte. Mantiveram correspondência constante, e grande parte das cartas indicavam o amor que Leopoldina tinha pelo marido e o sofrimento que ele lhe causava com seus casos amorosos". (VAINFAS; FARIA; FERREIRA; SANTOS, 2013: 77).

Nada mais parece importar na vida política de Leopoldina. Os acontecimentos que levam à sua morte marcam o seu protagonismo histórico como mulher que não suportou as constantes traições do marido, chegando a adoecer e morrer. Uma morte anunciada por ela mesma em suas cartas direcionadas à irmã. Nada é dito sobre as humilhações e maus tratos físico que sofreu também por parte de Dom Pedro. Nas páginas seguintes encontramos, nesse mesmo livro, um texto complementar com o título “A Marquesa de Santos” (VAINFAS; FARIA; FERREIRA; SANTOS, 2013: 156), que trata de Domitila, a “amante mais famosa” de Dom Pedro. Trata-se de uma narrativa em tom novelesco, mais interessada nas relações extraconjugais do imperador com inúmeras mulheres. Tais relações parecem não afetar a imagem do imperador e nem a de seu governo, mas tem forte impacto na vida dessas mulheres que parecem dependentes e apaixonadas por ele. Destaca-se a riqueza, os títulos e as regalias – as “vantagens” – que a Marquesa obteve dessa relação. Como amante é vista como “inescrupulosa e aventureira”, uma concepção fundamentada na ideia de casamento como instituição sagrada e cuja manutenção as mulheres devem zelar permanentemente. Aquelas que abalam essa ordem são assim desqualificadas socialmente.

Nessa ordem discursiva os homens podem ter relações extraconjungais, sem que isso afete sua honra ou desqualifique suas práticas, já que nessa concepção está incutida também o dispositivo da sexualidade que constrói os homens como seres de virilidade que carecem permanente de sexo, muito mais do que as mulheres, e que por isso há uma tolerância e até um consentimento em torno das relações extraconjugais dos homens como forma de demonstração de poder viril. Não por acaso, o texto trata como “boatos” as histórias de que Leopoldina

"[...]faleceu devido ao desgosto provocado pelo escandaloso romance do marido, principalmente porque a sua morte ocorreu pouco depois do reconhecimento da filha ilegítima e da concessão do título de Marquesa de Santos, em 1826, para desagradar aos Andradas, pois Domitila era inimiga declarada deles ".(VAINFAS; FARIA; FERREIRA; SANTOS, 2013: 156).

Assim, percebe-se que o assujeitamento das mulheres ao amor conduz também à violência, rivalidade e ódio entre as mulheres, uma violência simbólica como a da traição e rejeição pelo marido que é capaz de levar uma mulher ao adoecimento mental, físico e à morte. Nada é dito sobre os casamentos como arranjos políticos da nobreza, já que muitos deles eram até de “fachada”. Nada é dito sobre a violência física que as mulheres sofriam de seus maridos, e nem sobre os poderes e atuação política dessas e amantes mulheres no governo. A narrativa apenas confere sentidos à morte de Leopoldina e dando destaque às relações extraconjugais do imperador como o fundamento do sofrimento da imperatriz.

Na análise das imagens e textos aqui apresentados percebemos o modo como os livros didáticos de história constroem as subjetividades e relações amorosas entre homens e mulheres, educando não só a cultura histórica, mas também os sentimentos das mulheres pelos homens, integrando e reforçando uma ordem discursiva cristã, patriarcal, evolucionista e colonialista sobre o passado. A naturalização da heterossexualidade, da maternidade e do amor como definidor do ser das mulheres e de suas relações com os homens, opera também uma violência simbólica de negação e silenciamento da diversidade e de outras formas de existência para as mulheres no passado.

Não propomos aqui a exclusão de tais imagens dos livros didáticos, porque constituem parte importante da cultura histórica que de alguma forma ainda exerce força no presente. Tais imagens, e os textos que as acompanham, formam o pensamento histórico dos estudantes, constituindo-se em fundamentos da vida presente, orientando as subjetividades e as relações entre homens e mulheres no tempo. Se bem exploradas enquanto documentos históricos em sala de aula, as imagens permitem leituras e reflexões críticas acerca do contexto histórico em que foram produzidas e difundidas, ou seja, permitem o entendimento da historicidade do amor e das relações entre os sexos no Ocidente.

Para que o ensino de história contribua na igualdade entre os sexos e no fim da violência contra as mulheres, é necessário empreender uma desnaturalização de comportamentos e relações humanas que a história nos mostra como dados e não como construções. Assim é necessário pensar em seus efeitos políticos e na historicidade dos corpos, das relações e dos sentimentos/emoções (AHMED, 2004), e na abertura para futuros possíveis. Nesse caminho podemos ensinar “histórias do possível”, daquilo que foi ocultado e silenciado nas dobras de uma ordem discursiva sexista, racista, cristã e colonialistas das relações entre os sexos. Revelar a historicidade da produção de sentidos para as relações sexuais, afetivas, amorosas e matrimoniais das mulheres com os homens no passado, questionando o seu caráter sagrado, natural, universal e imutável, constituí um compromisso político na produção, difusão e ensino de histórias que eduquem para a transformação das relações humanas.

 

Referências bibliograficas:

Livros didáticos

BOULOS JÚNIOR, Alfredo. 2011. História & Cidadania. Vol. Único. 1ª ed., São Paulo: FTD.

CAMPOS, Flávio de; CLARO, Regina. 2013. Oficina de história 1. Ensino Médio. 1ª ed., São Paulo: Leya.

_____. 2013. Oficina de história 2. Ensino Médio. 1ª ed., São Paulo: Leya.

_____. 2013. Oficina de história 3. Ensino Médio. 1ª ed., São Paulo: Leya.

FARIA, Ricardo de Moura. 2010. Estudos de História: Ensino Médio. Vol. Único, São Paulo: FTD.

SCHMIDT, Mario. 2008. Nova História Crítica. Vol. Único Ensino Médio. 1ª ed., São Paulo: Editora Nova Geração.

VAINFAS, Ronaldo; FARIA, Sheila de Castro; FERREIRA, Jorge; SANTOS, Georgina de. 2013. História 1. Das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. 2ª ed., São Paulo: Saraiva.

_____. 2013. História 2. O longo século XIX. 2ª ed., São Paulo: Saraiva.

_____. 2013. História 3. O mundo por um fio: do século XX ao XXI. 2ª ed., São Paulo: Saraiva.

 

Bibliografia:

AHMED, Sara. 2004. The Cultural Politics of Emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press.

BADINTER, Elisabeth. 1986.  Um é o outro. Relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

FOUCAULT, Michel. 1988. História da sexualidade I: a vontade de saber. 11ª ed., Rio de Janeiro: Edições Graal.

JENKINS, Keith. 2001. A História repensada. São Paulo: Contexto.

LAGARDE, Marcela. 2001. Claves feministas para la negociacion en el amor. Managua: Puntos de Encuentro.

LAURETIS, Teresa de. 1994. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.

NAVARRO-SWAIN, Tania. 2008. Entre a vida e a morte, o sexo. In: NAVARRO-SWAIN, Tania; STEVENS, Cristina (orgs.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Ilha de Sta Catarina: Editora Mulheres, pp.285- 302.

_____. s/d. A construção das mulheres ou a renovação do patriarcado. Disponível em: <http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/renovacao%20patriarcado.htm>. Acesso em: 11 out. 2012.

ROSEMBERG, Fúlvia; MOURA, Neide Cardoso de; SILVA, Paulo Vinícius Baptista da. 2009. Combate ao sexismo em livros didáticos: construção da agenda e sua crítica. Cadernos de Pesquisa: revista de estudos e pesquisa em educação, São Paulo, v. 39, n. 137: 489-519, ago..

SPINK, Mary Jane P.; MEDRADO, Benedito. 2000. Produção de sentidos no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. SPINK, Mary Jane P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 2ª ed., São Paulo: Cortez.

ZANELLO, Valeska. 2016. Saúde mental, gênero e dispositivos. In: Magda Dimenstein; Jader Leite; João Paulo Macedo; Candida Dantas (orgs.). Condições de vida e saúde mental em assentamentos rurais. 1ed., São Paulo: Intermeios Cultural, p. 223-246.

NOTA BIOGRÁFICA

Susane Rodrigues de Oliveira tem graduação em História (licenciatura) pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCeub, 1997), mestrado (2001) e doutorado (2006) em História pela Universidade de Brasília. É professora Adjunta no Departamento de História da UnB na área de Teoria e Metodologia do Ensino de História. Orienta mestrandos e doutorandos na linha de pesquisa “História Cultural, Memórias e Identidades” do Programa de Pós-Graduação em História da UnB. É uma das coordenadoras do Laboratório de Ensino de História da UnB.

 

 

NOTAS

[1] Este artigo é uma versão mais ampla do texto publicado no livro “Mulheres e violências: interseccionalidades” (2017).

[2] Segundo a Revista Época, Schmidt vendeu no Brasil cinco vezes mais que O Alquimista, de Paulo Coelho, e quatro vezes mais que O Código Da Vinci, de Dan Brow.

Cf. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG79463-6014-490,00-O+MISTERIO+DO+PROFESSOR+SCHIMIDT.html.

No ano de 2007, essa coleção havia sido rejeitada pelo Ministério da Educação, sob a alegação de que continha erros conceituais, falhas de informação e incoerência metodológica. Porém, em 2008 o volume único para o Ensino Médio acabou sendo incluída no PNLEM e distribuído livremente para escolas públicas, por uma medida do governo federal que garante livros didáticos gratuitos para o Ensino Médio

(Cf. http://ftp.fnde.gov.br/web/livro_didatico/pnlem_2008_historia.pdf f).

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2016- junho 2017 /juillet 2016-juin 2017