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janeiro / julho 2005 - janvier /juillet 2005

Nosso corpo nos pertence: Uma reflexão pós anos 70

Eleonora Menicucci de Oliveira

Resumo

Este texto faz uma reflexão teórica  do avanço que as idéias feministas de " nosso corpo nos pertence" tiverem após a década de 70. Este período foi priorizado, tendo em vista a resistência a ditadura militar brasileira feita pelas mulheres, seja no presídio ou no exílio, que mais tarde vieram a compor a nova reorganização do movimento feminista brasileiro, rompendo com a insígnia da " luta geral X luta particular das mulheres". ´As mulheres organizaram-se em grupos de auto- conhecimento do corpo e recuperaram a insígnia do descolamento da sexualidade  e reprodução, configurando assim, sua autonomia  em relação à sexualidade.

Palavras chave: corpos, sexualidade, feminismo, direito de escolha

 

Falar sobre o feminismo dos ANOS 70 –até os dias de hoje-   levou-me carinhosamente a fazer uma bela viagem pelo túnel do tempo , relembrando Proust ‘ em busca do tempo perdido’...só que eu diria  em busca do tempo socialmente, sexualmente e afetivamente  conquistado, vivido e desconstruído.

Tecer o fio da meada. Costurar, bordar, tricotar, alinhavar para experimentar a roupa. São atividades tradicionalmente exercidas por mulheres em espaços domésticos e quando exercidas no espaço público são permanentemente consideradas como of¡cios de extensão da casa e quase sempre mal remunerados. Essas mulheres rebeldes se reconstruíram no feminismo, aprendendo a arte do desbravamento, da refiguração da mulher como outra de si mesma; tiveram que inventar o pensar de maneira diferente  suas próprias condições históricas; tiveram que reinventar a mãe, a jovem, a velha.

Utilizei a imagem  do trabalho  doméstico e seu correlato no mundo público para engendrar a dimensão relacional  entre o homem e a mulher na construção da DEMOCRACIA que necessita ser revisitada neste  início do terceiro milênio. A questão dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais como direitos humanos resignificam toda a história das relações de poder e dominação  entre homens e mulheres. Esta foi sem dúvida a maior e mais profunda ruptura epistemológica tanto nos costumes, mentalidades como na construção do conhecimento. É aqu, onde  o  corpo se desloca da subordinação e opressão, libertando-se para a transição processual da figura do sujeito nômades( Rosi Braidotti,1994)

            Tecer no mundo do cotidiano o fio da meada para a sobrevivência foi a experiência que possibilitou, num primeiro momento, que a mulheres feministas, coladas à ação política, começassem a tecer a noção dos Direitos Reprodutivos como direitos Humanos. Foi  neste século que  , na contramão da história,  pelo sentimento de exclusão da vida pública,  conceberam então a noção de direito  enquanto política. Além de demonstrarem, através das ações desenvolvidas na esfera do cotidiano, que a democracia  se constrói, sobretudo, a partir das relações pessoais entre os sexos. Se política  é  poder e sempre em relação a alguém‚ ela é  considerada aqui, neste texto, como luta , ora para visibilizar, ora para implementar, ora para impor uma determinada idéia ou mentalidade, enfim‚ um combate por transformações dos lugares e das subjetividades das mulheres e dos homens  na sociedade.

As conquistas existiram, mas ainda são frágeis, demonstra a história contemporânea, diante dos diferentes obstáculos a romper: os ataques masculinistas, o baquelache ideológica , a falta de vontade política.  o mito de que a igualdade já existe, como pode ser constatado em alguns  países, onde algumas mulheres dizem  que o feminismo já não é mais necessário do ponto de vista político.

Não farei mais uma história do feminismo, traçarei um pouco da história das feministas na área da saúde, a partir do enunciado de “meu corpo me pertence”.

Na década de 60, no contexto político da ditadura militar, das lutas de resistência, no vão da  chamada revolução cultural, as mulheres descobriram a pílula contraceptiva, como estratégia de liberação da sexualidade e da ruptura com a dominação masculina. Os custos sociais para o exercício  do direito à livre escolha foram altos , sobretudo para a saúde integral das mulheres.

Na final da década de 70, com a anistia política, retornam as mulheres exiladas e saem da prisão as ex - presas políticas, retornam as viajantes históricas. Foi um encontro mediado pelo feminismo, com tensões, conflitos e muita vontade de fazer e agir a partir de outros marcos, ou seja, o marco do prazer. As mulheres feministas da  área da saúde engendraram, na ação política, o enunciado de “meu corpo  me pertence”, e sua base foi buscada na matriz do resgate do direito ao corpo e ao conhecimento sobre ele, para terem nas mãos o destino e caminho de suas vidas.

Aqui alguns autores desconstrucionistas tiveram sua importância como Foucault, Derrida, na defesa da tolerância entre as diferenças e as diversidades individuais, num contexto em que a sociedade brasileira havia incorporado o autoritarismo político e  moral dos militares. Pautava também, nesta década, a agenda do livre exercício da sexualidade descolada da reprodução.  Uma das maiores descontruções  feministas.

É nessa década que as mulheres entram em massa para o mercado de trabalho sem deixar as tarefas domésticas, o que implicou na sobrecarga de trabalho. Reforçam a reivindicação pela re-apropriação do saber e controle sobre o próprio corpo, pondo em ação os processos de revolução molecular, cujos efeitos, vividos no plano profundo da subjetividade, irão por sua vez, desencadear o questionamento tanto das demais formas de apropriação como do excedente  na relação de trabalho, levando-as da casa para a rua em busca de sua cidadania real.

E foram tecendo a noção desse direito, enquanto política e enquanto poder.

Sempre que vamos refletir sobre o movimento de mulheres no Brasil a partir da década 70, é necessário abrir um parêntese e explicitar os diferentes movimentos de acordo com suas configurações práticas, construídas com base em diferentes interesses e necessidades.

Movimentos Populares de mulheres

As mulheres centram suas reivindicações por melhorias  das condições de vida ligadas à esfera da reprodução, Essas reivindicações organizaram milhares de mulheres em torno dos chamados movimentos populares, circunscritos à esfera da reprodução social da vida, reforçando a imagem da mulher que gera e cuida da vida .

Do ponto de vista da representação política, essas mulheres coordenavam, militavam, discutiam com as autoridades as coisas “pequenas do bairro”, e pressionavam os profissionais de saúde para um melhor atendimento nos postos, uma vez que elas ainda hoje representam em média, 80% da população que freqüenta os centros de saúde. Destacaram-se, entre esses movimentos, o de mulheres pela saúde da zona leste e sul de SP, os clubes de mães e as Associações de Moradores, movimento por creches, movimento contra a carestia; e movimento pela anistia.

O movimento de mulheres e o movimento feminista emergem no tecido social com uma heterogeneidade que combina desenhos e cores diversas e em um contexto político - histórico de final da ditadura militar, ocupando um espaço vazio de participação política, pela desorganização dos movimentos políticos tradicionais que foram reprimidos pela ditadura. Esse reagrupamento político se dá em torno dos movimentos ligados à igreja católica.

Os movimentos feministas

Os movimentos feministas reemergem, no final da ditadura militar, propugnando a recusa de uma prática  social/ política hierarquizada, centralizada verticalmente.Com o ideário da autonomia, tinham como principio de atuação a máxima “nosso corpo nos pertence”, contra o determinismo biológico que naturalizava as questões sociais de direito e contra o determinismo econômico que, ao centrar na determinação econômica a libertação da mulher, operava uma separação binária entre a esfera da produção e da reprodução.

Gerou-se a política do não, contra a opressão de sexo, a qual as teorias marxistas e os agrupamentos políticos de esquerda não haviam considerado até então. Voltava-se assim, para as questões micro, localizadas na esfera da subjetividade, do privado, do desvendamento dos lugares onde as mulheres atuavam, como a casa, o doméstico, as relações sexuais, enfim recriavam o significado do cotidiano através da possibilidade de recuperação da fala das mulheres. A prática política era a de grupos de auto-consciência, na busca de conhecer o funcionamento do próprio corpo, como um lócus de dominação de gênero e portanto de resistência e rebeldia.

Quem são as atrizes  sociais desses movimentos?

Dos movimentos  populares de mulheres, as atrizes são basicamente donas de casa, trabalhadoras, em sua grande maioria sem salário, e freqüentadoras constantes dos serviços de saúde. O exemplo de organização política mais marcante foi o Clube de mães, que nascem nos espaços da igreja, onde  articulavam  experiências e forneciam instrumentos para sua interpretação. A memória das mulheres que começaram os clubes de mães mostra em que medida a possibilidade de discutir sua vida e seus problemas, se articulava  com a idéia de igualdade e comunidade. A prática coletiva emerge da vida privada e a fala guarda a informalidade da conversa.

As mulheres do feminismo são basicamente de classe média, ex- exiladas, ex presas políticas, viajantes históricas, egressas e bastardas da esquerda tradicional da década de 60-70, algumas acadêmicas, outras da nova geração pós-ditadura.

Os movimentos feministas vão desenhando um perfil mais voltada para as áreas da saúde e da violência, por serem estas espelhos mais visíveis da opressão sexual que se dá sobre o corpo e a sexualidade. Criam-se os grupos de auto-ajuda para conhecimento do funcionamento do próprio corpo, resgate da credibilidade da fala da mulher centrado na dimensão da autonomia, como um direito de decidir sobre a própria vida, e para exercer tal direito é necessário informação, para controlar as decisões que lhes dizem respeito.Criam-se uma número  enorme de coletivos de mulheres para repensar a saúde da mulher e renomear a violência doméstica, São os SOS- violência e SOS-corpo .

A grande inserção das mulheres no mercado de trabalho, na década de 70, provocou mudanças em nível das mentalidades, valores e cultura. Terreno propício para aproximação entre o movimento sindical e o movimento feminista, entre o movimento de mulheres populares e as idéias feministas. Foi quando as feministas começaram o caminho de volta para as periferias, na busca de desconstruir preconceitos contra as idéias feministas, contribuindo para criação de grupos de auto-ajuda nas periferias e mesmo no interior dos grupos de mães e associações de Bairros.

Outro aspecto foi a necessária articulação de classe e gênero, uma vez que as desigualdades de classe no Brasil se acentuavam cada dia. Ambos os movimentos sentiram necessidade de interlocução e de aproximação para dar conta da problemática das relações de  exploração de classe e opressão de sexo. Foi construída uma pratica social de  mão dupla. Proliferaram  nas periferias os coletivos de mulheres voltados para as questões de saúde, sexualidade e violência doméstica. As denúncias das mulheres referentes à agressão sexual dos maridos, à violência nos serviços de saúde, à discriminação sexual nas relações familiares e extras- familiares tomaram conta dos jornais e das ruas. As idéias feministas ligadas à saúde integral da mulher, descolando a sexualidade da reprodução começaram a tomar o tecido social.

Na década de 80, o movimento feminista alcança um de seus momentos mais importantes: criam-se grupos de auto  ajuda em todo o Brasil, onde a discussão centra-se na necessidade de propor uma política de saúde da mulher que a desvincule do materno-infantil. Surgem novos interlocutores em um contexto social e político de efervescência da sociedade civil com reorganização de diferentes sujeitos políticos, ou seja, uma ampliação do conceito de cidadania para além da esfera macro do Estado enquanto negociador.

Com as eleições de 1982, iniciam-se as primeiras negociações com o Estado para a criação dos Conselhos Estaduais da Condição Feminina, que provoca uma ruptura entre as mulheres feministas, sob a lógica  partidária. As feministas autônomas não viam nesta empreitada um caminho politicamente eficaz e correto para o movimento; as feministas petistas (PT) propugnavam secretarias de mulheres com direito a assento no secretariado e recursos próprios e as do MDB(PMDB) propugnavam os conselhos. Surge o chamado feminismo de Estado.

Em 1984,  realiza-se em Itapecerica da Serra, São Paulo, o Primeiro Encontro Nacional de Saúde da Mulher, agregando mulheres de todo o Brasil, de segmentos sociais diferentes, cujos debates centraram a discussão na questão do aborto como um direito das mulheres e na definição de ações voltadas para a implantação do Programa de Assistência Integral Saúde da Mulher, culminando com a histórica Carta de Princípios de Itapecerica, cujos objetivos programáticos ainda são considerados  válidos.

No governo Sarney, as feministas se rebelam contra o paradigma  materno-infantil que ancora o Programa Materno Infantil do MS( Ministério da Saúde), inscrevendo nas formulações do novo programa o ideário da saúde integral da mulher, centrado na integralidade das ações de saúde, na mudança de mentalidade dos profissionais de saúde em relação às mulheres e na educação como requisito básico para a cidadania e o exercício de direitos. Assim, as mulheres passaram a influir na elaboração do programa de assistência integral à saúde que foi inscrito na Constituição Federal de 1988, depois de termos realizado a 1ª Conferencia Nacional de Saúde e Direitos da Mulher. É nesta época que as feministas re-colocam a questão do aborto como um problema de saúde pública, que apesar da gravidez acontecer no corpo da mulher, a resolução e não a escolha/decisão sobre interromper uma gravidez indesejada diz respeito à toda a sociedade.

A questão do aborto passa a fazer parte da agenda das negociações com Estado, com os partidos políticos de duas maneiras basicamente; uma para colocar em prática o direito constitucional do código penal de 1940, que permite a pratica do aborto em duas situações : risco de vida da mãe e gravidez decorrente de estupro. No entanto, prevalece a primazia da moral católica sobre os direitos das mulheres; o primeiro serviço com esta finalidade aberto na cidade de  São Paulo, sob o mandato da prefeita Luiza Erundina. Por força dos movimentos feministas, hoje são mais de 20 hospitais que oferecem este serviço..

            Nessa década, o feminismo  passa por uma reflexão que a meu ver retoma a frase de Simone de  Beauvoir no Segundo Sexo (1949) "não se nasce, se torna mulher",  quando afirma que as mulheres podem adquirir a cidadania do lugar que ocupam na sociedade , o de mãe. Mas como comenta de  Beauvoir,  o que importa é  a natureza desse lugar que as converte em cidadãs de segunda categoria. Este foi o ano da constituição cidadã e da criação do PAISM, uma das mais avançadas políticas públicas para as mulheres, com uma das maiores e profundas rupturas epistemológicas no paradigma materno- infantil , om uma nova e revolucionária  visão da integralidade da mulher.

Essa reflexão baseia-se três  fontes epistemológicas:

1-nos estudos procedentes das diversas ciências humanas quando refletem sobre os significados da diferença  sexual e seu diálogo com as ciências da saúde:

2- nos estudos gerados no campo da rebelião contra a subordinação das mulheres

3- nos movimentos feministas, que colocaram em processo de construção a noção de direitos reprodutivos e sexuais.

É, portanto, nesse sentido ‚ que a noção de direitos reprodutivos ainda em construção, mantém uma íntima articulação com a crise dos paradigmas das ciências humanas. Neste aspecto o  velho e novo tema do biológico na conduta humana sexuada, que atravessa todas as práticas sexuais, foi durante os últimos vinte anos  expulso pela porta da f rente.

 Essas três décadas foram marcadas como as décadas das ativistas rebeldes.

A década de 90

A década de 90 foi marcada pelas  Conferências Internacionais da ONU, onde a temática dos direitos das mulheres foi incorporada na agenda por força dos movimentos feministas; no entanto, ficaram quase que somente nas declarações governamentais assinadas. Pouca reverberação tiveram sob a ótica das políticas públicas que contribuíssem na melhoria da qualidade de vida das mulheres.

Nos anos 90, ampliam-se os grupos de mulheres, os coletivos feministas, tomam força política os Encontros Feministas Nacionais e latino Americanos e começam no fim de 80 os encontros internacionais por área temática, sendo o mais forte o da saúde e sexualidade das mulheres, com a realização de 7 encontros, sendo que o 8º foi realizado no Rio de Janeiro em 1997 ; em 1999 é realizado  no Brasil o Segundo Congresso Internacional Mulher, Saúde e Trabalho.

Cria-se a Rede Nacional feminista de Saúde e Direitos reprodutivos e sexuais.

As conferencias nacionais de saúde de 1992 ( 9ª conf.) já por força e pressão das feministas sanitaristas organizaram uma mesa para discussão da problemática da saúde integral da mulher ”Saúde da mulher, corpo lesado”. Em 1996, o movimento feminista de saúde e direitos reprodutivos, participou da organização nacional da Conferência, por meio da Rede nacional Feminista de Saúde e Direitos reprodutivos, com representação em 11 mesas redondas e na abertura oficial da conferencia. Um dado importante a ressaltar  diz respeito à necessária  mudança qualitativa dos/as profissionais de saúde em relação à uma das problemáticas mais polêmicas levantadas pelos movimentos feministas:  a questão do aborto.

 Na 9ª conferencia nacional de saúde levantou-se a discussão: uma feminista fez a defesa da legalização do aborto e a representante da CNBB posicionou-se contrária a esta. A legalização não foi vencedora. Na 10ª Conferência, as alianças do feminismo com o sindicalismo, através da comissão  de mulheres da CUT, permitiu  que a defesa da legalização do aborto  fosse feita por uma sindicalista e a posição contrária foi tomada por um homem da pastoral da criança. A diferença de votos foi muita pequena, podendo ser considerada uma vitória do ponto de vista cultural. Na 11ª  conferencia a proposta da legalização do aborto passou, e na 12ª  perdeu.

Na primeira década do terceiro milênio- anos 2000- , avança a recuperação da autonomia dos movimentos feministas, com a realização da 1ª  Conferencia Nacional das Mulheres e com a Plataforma feminista, além da criação das jornadas feministas pela legalização / descriminalização do aborto. O tema do direito ao aborto retoma a visibilidade social e aponta para recuperação de uma radicalidade, central aos feminismos.

Repensar o movimento de mulheres no Brasil sob o angulo de suas práticas  provoca-me a sensação de estar, na expressão  fazendo uma arqueologia de uma problemática e de uma utopia da qual sou parte integrante, retomando a proposta da radicalidade.

Esta arqueologia seria mais no sentido de tornar visível o invisível, buscar a face oculta dos movimentos aquela que se teima em esconder e esquecer e de dar um estatuto sexualizado aos sujeitos políticos dos novos movimentos sociais, renomeando-os em homens, mulheres lésbicas, trabalhadoras do sexo, rurais, urbanas, trabalhadoras domésticas, negras, índias, deficientes, jovens e jovens idosas. Essa é pluralidade dos sujeitos nômades do feminismo.

Como militante do movimento feminista na área da saúde com as diferentes conexões interdisciplinares, sobretudo com o trabalho, creio ser apropriado recuperá-lo neste texto.

 Um recorte importante a fazer quando falamos de movimentos feministas é o do cotidiano, enquanto um espaço e tempo do social em que é possível inventar e recriar o social. Uma esfera vazia que se pode preencher com  criatividade e outras  possibilidades. O cotidiano seria uma trama tecida pela individualidade, isto é, um sujeito que nem é vontade absoluta, nem indivíduo atomizado, nem coletivo amorfo. É um espaço/ tempo social, onde todas/os e cada um tece os pontos, com a sua existência, para compor a teia e a trama das relações sociais de classe, de gênero, de raça e geração, todas transversalizadas pela mediação do poder.

Falar de movimento  de mulheres e ou feminista nos remete ao que Foucault chamou de esferas microscópicas ou microcelulares e que Guatary chamou de territórios de singularização. O que então estou dizendo? Que embora os espaços do cotidiano não sejam ocupados só pelas mulheres os feminismos  explicitaram o cotidiano doméstico como um lugar onde começa o confinamento das mulheres.

 Falar das mulheres, significa falar de suas  histórias de vida, de seus cotidianos, da relação de opressão de sexo, de suas experiências que têm um lugar e um significado, porque tem um corpo, que por sua vez designa um sexo, cujas representações  tem diferentes significados.

Como mulher aprendemos que deveríamos ficar caladas, só ouvir e não emitir opinião, postas no silêncio do apartheid sexual, mas enquanto  ativistas que transitamos nas Universidades, nas ONGs, nos sindicatos e nos mais diferentes espaços aprendemos que é necessário compreendermos metodologicamente  a teia dos significados simbólicos, a ouvir e falar; isto contribuiu para resgatar e redescobrir  a fala das mulheres a partir do seu local cotidiano, onde operam as relações de poder na esfera do parentesco ( família).

De onde falariam aquelas mulheres que só aprenderam a se calar? Os movimentos de mulheres em sua concepção ampla  ( que englobam toda uma série de configurações sociais) resgataram a fala das mulheres e deram significado de qualidade à essas falas oriundas de um espaço marcada pela exclusão dos direitos de cidadania, marcadas pelas relações de opressão de sexo.

O cotidiano das mulheres se entrelaça com o espaço doméstico e com o corpo enquanto representação social de lugar de moradia, de casa. É, portanto, sobre esses lugares de onde as mulheres resgatam suas falas, que têm uma experiência e uma vivência marcada por relações de classe, de gênero, de raça  e de  geração com atributos diversificados e caráter de representação política emergentes, que as mulheres feministas construíram um contra discurso de poder.

É dessa maneira que o cotidiano passa a ser um espaço político, preenchido pelas necessidades e interesses das próprias mulheres. São práticas sociais de sexo que vão sendo adquiridas por força de uma praxis social das mulheres

 “Discursos e práticas feministas estão no ar. São herdeiros de contestação dos anos 60; questionam a redução das formas de discriminação social ao exclusivo conflito de classe, condenam as hierarquias, as estratégias que subordinam as reivindicações e épicas alvoradas revolucionárias, sempre distantes. Recuperam a participação direta em lugar da representação centralizada, os grupos da vida cotidiana antes reduzidas ao espaço privado e nele naturalizadas. Questionam a privatização das mulheres na sua vida e nas lutas”(Lobo, 1987,:.226).

A construção do conceito de direitos reprodutivos  no interior do próprio movimento, significa a ampliação da noção de cidadania como uma questão de direitos sociais para além do Estado, contrapondo a dimensão do autoritarismo social , baseado nas relações de exclusão de classe, gênero e raça.

A existência de diferentes feminismos ( sindicalista, popular, classe média) e de diferentes espaços sociais os quais incorporaram as idéias feministas nos credencia a avaliar positivamente os avanços desses movimentos. .A prática feminista possibilitou desvendar o cotidiano das mulheres e colocá-las no patamar da cidadania social.

Desenha-se como uma das questões chaves e prioritárias da contemporaneidade, uma vez que se impõe a pensá-la sob a ótica da exclusão ( privação de participar do mundo público, na concepção de Arendt ( 1983:68).) e da discriminação sexual.

Pensar a questão da  diferença enquanto reivindicação de direitos implica  refletir sobre o que a diferença designa .Para tanto, recupero a noção clássica de cidadania em relação ao Estado, para desconstruí-la e chegar a noção posta pelos feminismos, como uma Cidadania enquanto caráter de estratégia política, que expressa e responde um a conjunto de interesses, desejos e aspirações de uma parte significativa da sociedade;  imbricada à experiência concreta dos movimentos sociais; que se ancora na experiência concreta agregando uma ênfase mais ampla ao conceito de democracia plural; e estabelecendo  o nexo  constitutivo entre cultura e política, como o lugar das subjetividade.

A noção de lugares sociais constitui um código que invade a casa, a rua, sociedade, Estado, as relações sexuais, e configura-se em um apartheid sexual, social,explicitando uma cultura de exclusão, autoritária, que reproduz as desigualdades sociais em todos os níveis.

A idéia da cidadania enquanto estratégia política busca compreende:

-enfatizar seu caráter de construção  histórica;

-defini-la por interesses concretos e práticas concretas de luta: os interesses.

- interesses estratégicos, aqueles que rompem com a relação de opressão sexual e interesses práticos, aqueles que ,no cotidiano exigem as transformações imediatas;

- re- conceituar o significado da cidadania a partir das lutas políticas; no caso da  saúde, o movimento de mulheres tem construído novas práticas sociais que tem informado os novos saberes sobres a mulher e a particularidade de seu corpo e sua sexualidade.

Democracia supõe a noção de direitos e em uma sociedade como a nossa, alias com a onda global de exclusão, é necessário re-significar a noção de cidadania, na ótica da prática democrática, ou seja:

1- direito  a ter direitos ( no caso das mulheres isto é emblemático)

2- criação de novos direitos que emergem dos novos movimentos sociais e de prática sociais específicas: no caso das mulheres o conceito de direitos reprodutivos e direitos sexuais construídos no interior da prática feminista, resignificando e renomeando os sujeitos. Na esfera da saúde pública assume uma dimensão radical, por romper com o biologicismo da maternidade.

3- luta /disputa histórica pela fixação dos significados de direito e pela afirmação de algo enquanto direito ( direito à diferença e à equidade de gênero)

4- não se vincula à estratégia dominante de classe e sim aos interesses específicos e múltiplos de diferentes grupos, construindo uma proposta de  sociabilidade entre os diferentes , de ética nas relações macro e micro.(movimento de mulheres, homossexuais, portadores de deficiência, crianças, negros/as, idosos, índios) São os movimentos de identidades que apontaram novos espaços de cidadania..

5- participação dos diferentes sujeitos na construção dos novos conceitos de Direitos ( no caso das mulheres a noção de Direitos Reprodutivos, Direitos Sexuais exposição aos riscos provocados pelas condições de trabalho, participação política nos órgãos de controle social da saúde -como os Conselho Nacional de Saúde,  Conselho Estadual de Saúde, Conselho Municipal de Saúde- representação nos comitês de mortalidade materna enquanto sujeito político e social diretamente envolvido e interessado, direito à informação sobre tudo que diz respeito a sua vida em todas as esferas que se coloca no nível da Ética,etc,)

6- E por fim a dimensão da sexualização da cidadania enquanto direitos que se  inscrevem nos corpos das pessoas, mulheres e homens com interesses iguais e diferentes, interesse é tudo aquilo que interessa as pessoas.

Concluindo....

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Gostaria de recuperar o desafio teórico / prático do movimento feminista neste início de 3º milênio, que se inscreve em feminismo da diferença e feminismo da igualdade, embora acredite que haja um vínculo estreito entre as duas perspectivas. O desafio de agregar a utopia à prática de heterotopia, que é a convivência com o /a diferente,

O que a diferença designa de certo do ponto de vista é a defesa das desigualdades de gênero; em outra ótica, porém,  a diferença emerge enquanto reivindicação na medida em que ela designa relações de desigualdades de direitos.

No âmbito da saúde, a fixação dos direitos reprodutivos, direitos sexuais marcaram a incorporação do gênero enquanto uma categoria explicativa de análise histórica, que busca dar conta da opressão de sexo. este, por sua vez, se inscreve em práticas sociais, explicitando tais direitos  como direitos humanos das mulheres

Provocou-se mudanças na concepção de saúde até então restrita à saúde materno-infantil, ampliando para saúde integral das mulheres, depois para direitos reprodutivos e agora com a emergência do vírus HIV para direitos sexuais e negociação sexual como uma das formas mais eficazes de prevenções contra o vírus.

Recolocamos os diferentes ciclos da vida das mulheres: adolescência, vida reprodutiva, climatério , menopausa e envelhecimento como uma questão de direitos humanos, principalmente como direitos sexuais e reprodutivos.

Recuperamos a luta pela legalização/ discriminalização do aborto como uma questão de direitos humanos das mulheres.

Renomeamos violência doméstica, para violência do homem contra a mulher nas esferas privadas das relações pessoais e nas esferas públicas do mundo do trabalho, da política e na sociedade em geral. A criação das delegacias de defesa dos direitos das mulheres é um exemplo disso, embora ainda tenha muito que modificar.

Criaram-se os Serviços de Atendimento às mulheres vítimas de violência sexual em todo o Brasil, com equipes multiprofissionais de atendimento, desobrigando a mulher, para ser atendida em um serviço especializado de saúde, da ida anterior ao Instituto Médico Legal e do Boletim de Ocorrência. Esse é uma das maiores e profundas conquistas no âmbito dos direitos humanos  pelas mulheres ao retirar a violência da invisibilidade que o Código penal de 1940 a colocava. O desafio é  ampliá-los, a partir de direitos conquistados.

Esses serviços possibilitam trabalhar e dar amenizar as cicatrizes deixadas no corpo das  mulheres pelos estupros, resgatam sua auto estima, seu prazer sexual, sua sociabilidade e o respeito por elas próprias.

A questão da ética é retirada pelo debate feminista da dimensão exclusiva da bioética, ou seja, dos seres que ainda não nasceram para a dimensão da vida, ou seja, daqueles que estão sofrendo os impactos das desigualdades sociais, de gênero, raça/etnia.. No caso, as mulheres estão cada vez mais diretamente envolvidas, seja pela questão do aborto, seja pela violência de gênero nos serviços de saúde, seja pela ausência total de informação sobre os riscos, as vantagens e as  desvantagens das   novas tecnologias de reprodução para a saúde das mulheres.

O maior desafio, a meu ver, que está posto para nós, feministas, é recuperar a radicalidade da utopia, com equidade de gênero, com respeito as diferentes práticas sexuais e, sobretudo construindo uma ética onde esses valores estejam na base da construção de um projeto   de sociedade.

Concluindo, sinto necessidade de inscrever gênero em um campo minado politicamente pelas relações de poder, enquanto disputa pela fixação  de significados dos direitos.

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Nota biográfica:

Eleonora Menicucci de Oliveira, Socióloga/sanitarista, Professora Dra. Livre Docente em Saúde Coletiva do Dep. de Medicina Preventiva da UNIFESP( Universidade Federal de São Paulo)pesquisadora 1C do CNPq.  Membro da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos;Membro do GT Gênero da ABRASCO( Associação Brasileira de Saúde Coletiva).Autora de vários livros e artigos publicados na área de Saúde da mulher, direitos reprodutivos e sexuais; aborto, violência contra a mulher e História do feminismo

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