labrys, estudos feministas / études féministes
janeiro / julho 2005 - janvier /juillet 2005

 

AS FILHAS DAS LAVADEIRAS

Maria Helena Vargas da silveira

(2002)

1 - As Mulheres Na Minha Vida Tiveram Grande Valor*

    Sandra Beatriz da Silveira

Meu nome é Sandra. Tenho muito envolvimento com as questões da mulher, com enfoque racial, sendo este o meu trabalho.

Sou oriunda de família pobre, mas todo meu estudo, eu sempre estudei em escola pública, aconteceu graças a minha mãe Iracema. Apesar de ter só, as séries iniciais, ela via nos estudos uma forma de ascensão, era mesmo um sonho, pois achava que aquilo que ela não conseguiu ter, os filhos teriam, se estudassem.

Continuando, vou falar um pouco de meu contexto familiar: pai, mãe, ambiente de minha infância...

Meu pai se chama Lauro da Silveira, tem 63 anos, está aposentado, nasceu na cidade de Guaíba e, atualmente,  mora na Barra do Ribeiro. Meu irmão se chama Paulo Roberto Moraes da Silveira, tem 45 anos, casou-se muito jovem e já é avô. Eu sou tia avó.

 Minha Infância foi bastante unida com meu irmão e minha mãe, sempre juntos, uma união de amor. Foi uma Infância muito pobre, pobre mesmo. Tive essa felicidade de vivenciar a união para enfrentar as necessidades, hoje posso considerar  assim, mas na época  não possuía esta visão.

Meu pai era comerciante, mas se envolveu com política muito cedo, sem ter uma base, uma melhor compreensão, sem contar com um respaldo para se proteger mais e, em decorrência de situações políticas, ficou um bom tempo foragido. Meu pai tinha pouca escolaridade, mas escutava notícias pelo rádio, lia muito, foi um idealista, com pouco conhecimento do mundo letrado e acadêmico tinha apenas a experiência de vida. Pensava em transformar a vida dele e a dos outros. Lutava pela justiça social. Considerado comunista, precisava viver se escondendo para não ser preso.

Minha mãe era dona de casa e quando meu pai esteve foragido é que começou a lavar roupas, profissão que havia aprendido com a minha avó.

Lavava muitas trouxas de roupas e ganhava pouco dinheiro. Cada trouxa vinha acompanhada, às vezes, da metade de uma barra de sabão de soda. Nem sempre a patroa mandava o sabão.

Morávamos em Porto Alegre, porém a minha mãe, neste momento em que meu pai ficou foragido, precisou sair da capital e foi para a cidade de Cachoeira do Sul, onde deixou os filhos e voltou para Porto Alegre para lavar roupa e mandar dinheiro para a alimentação das crianças. Todos da família eram pobres.

Os parentes, em Porto Alegre, moravam próximos uns dos outros, no Quarto Distrito, perto da Avenida Presidente Roosevelt. Depois fomos morar na vila Aliança, hoje Parque São Sebastião. A Vila Aliança era precária, ônibus duas ou três vezes por dia, apenas uma escola para as crianças da vila inteira.

Houve um tempo em que minha mãe lavou muitas toalhas para o Gentil, cabeleireiro famoso de Porto Alegre. Nesta época já estava mais instruída, cobrava por dúzia.

Todos os seus fregueses eram brancos e não moravam na vila. Buscava as trouxas na casa deles. Meu Irmão, mais forte, ajudava a carregar as trouxas.

Para lavar roupa no inverno era difícil e ela se obrigava a secar a roupa a ferro, botar a roupa para secar perto do fogão à lenha. Fazia de tudo para secar a roupa porque a comida, independente de ser verão ou inverno, tinha que ter para os filhos e estava na dependência do recebimento do dinheiro dos lavados.

Com a entrada dos filhos na escola, ficou tudo mais difícil, pois embora na rede pública, as crianças precisavam de calçado, o calçado furava, botava um papelão, precisavam de livros, cadernos, agasalhos.  

Sempre fui uma criança muito atenta. Sentia que a vida era difícil para nós e isto é uma coisa que me fazia sofrer junto com a minha mãe. Não posso dizer que passei fome, mas tudo era com muita dificuldade: se era feijão, era só feijão; pão era só pão torrado, com chá de matinho, capim cidró, funcho.     

Quando minha avó foi morar conosco, começamos a ter  quatro refeições por dia. Pela noite, minha avó fazia um chá e dava para os netos dormirem calmos. O chá era feito com açúcar queimado e casquinha de limão. Essa avó materna, a avó Isaura, introduziu o chá da noite, em nossa casa.

Os parentes acabavam morando todos juntos porque era uma forma de se ajudarem.Cada um com o pouco que tinha, ia repartindo uns com os outros e, sobrevivendo.

A avó Isaura era cozinheira, trazia os restos das comidas que sobravam na casa da patroa e foi assim, melhorando a alimentação em nossa casa. Não eram os restos dos pratos, mas os restos das panelas.Tudo que podia, ela trazia.

As mulheres, na minha vida, tiveram muito valor, neste aspecto assim da conversa, da serenidade, do respeito, da valorização  do trabalho.

A mãe se importava mais do que o meu  pai, com a educação dos filhos. O pai machista privilegiava mais o homem. A mulher, no máximo, deveria estudar para casar. Era a opinião dele. 

Minha mãe trabalhava muito, não tinha sábado nem domingo. Também começou a fazer faxina. Nem as lavações de roupas davam conta para o sustento. Aquela batalha dela foi para mim um exemplo porque eu era muito atenta naquele sacrifício. Nós não tínhamos coragem de pedir coisa alguma para ela, fora do orçamento. Sentia que estávamos com muitas dificuldades, sempre. Mas minha mãe apostou no colégio. 

Lavava roupa para um dono de livraria, fez crediário de livros, por lavagem de roupas. Cada trouxa lavada abatia na compra de nosso material escolar. Era a forma que encontrava  para nos dar os livros. Aquela conta não terminava nunca.

Completei o curso Primário e fui fazer o Ginásio no colégio Irmão Pedro. Tinha que pagar passagem, mais o uniforme. Foi muito sacrifício. Sendo ainda criança, fiquei um tanto fragilizada.  

Por conta das lavagens de roupas, principalmente no rigor dos invernos, minha mãe pegou doenças. Carregou muito peso, levava as trouxas a pé, revezando com meu irmão. Preocupava-se muito para não trocar as peças de roupas nas trouxas, além das sérias preocupações familiares que lhe roubaram a saúde.

Usava avental de napa, um falso couro, para proteger a barriga, da umidade, de tanta água que rolava, durante a lavação. Teve uma doença que diziam ser “figos nos pés”, abria a sola do pé, dava uma ardência que queimava, tinha rachaduras na sola dos pés, sentia dor. Teve problema cardíaco, hipertensão, em conseqüência da agitação do serviço, de ter que dar conta da sobrevivência, de se amargurar com os problemas do pai, devido à política.

Meu pai estava vivendo clandestino. Foi trabalhar em uma metalúrgica de fundo de quintal. Muito amargo com a vida, começa a beber e tem início um outro momento de sofrimento, em nossa família. Minha mãe sempre muita calada, de poucas palavras.

Minha mãe tinha uma coisa extraordinária, entre tantas outras que ela tem, o gosto pela musica clássica, pela poesia e pelo teatro. Papai desprezava os seus gostos e falava: “o que ela quer, uma negra besta desta, lavadeira e faxineira, com estas coisas”.

A mãe fazia teatrinho para nós. Os filhos sentavam na cama, olhando a mãe fazer teatro. Morou durante uns tempos com uma tia, em uma casa onde leu muitos livros de literatura juvenil e depois veio a repetir aquelas histórias para os filhos. Não tínhamos acesso aos livros, mas a mãe nos contava as histórias e fazia teatro. 

Hoje eu vejo, na trajetória de minha mãe, a falta de cuidado com ela mesma, não cuidava do seu corpo, não tinha vaidade, foi perdendo dentes. Desde os treze anos tinha cabelos brancos. Sempre correndo, não tinha tempo para ela. Suas  canelas grossas  ficavam cinzentas no frio do inverno, ela molhava a mão na água do tanque e esfregava nas canelas, deixando as  pernas guasqueadas, sapecadas de água, molhadas na frente e cinzentas atrás, secas. 

Lavava em tanque de cimento. Botava as roupas de molho nos tonéis. As peças brancas deitava para quarar no pasto ou em cima de pedras.

Usava anil, para deixar a roupa mais clara. Para tirar bolor ou ferrugem, colocava a roupa para quarar e em cima borrifava   sal e suco de limão. Tinha sempre um estrado perto do tanque para poder alcançá-lo, era baixinha.

Os filhos ajudavam-na a torcer as roupas maiores. Às vezes deixavam cair a roupa no chão, na terra. Dava um transtorno, mamãe precisava enxaguar a roupa, novamente.

Quando estávamos todos separados, inclusive meus pais, minha mãe começou a dar-se conta que não tinha direitos sociais. Ia buscar roupa nas casas e se as patroas tinham  pouca roupa para lavar, pediam que voltasse na semana que vem. Ela gastava dinheiro de transporte, havia muita incerteza do ganho.

O advento da máquina de lavar reduziu os lavados. Vinham para as lavadeiras, as roupas mais especiais que precisavam de goma, os tecidos mais delicados.

Começou um tempo de evolução tecnológica, industrial, comercial e cultural. Vão sumindo certas profissões. Minha mãe observa tudo isto e se dá conta que não adquiriu para ela, direito algum.

Depois espelhou-se em mim e começou a estudar. Terminou o primeiro grau. Com mais de cincoenta anos, mudou  com relação à auto-estima. Cuida do corpo, dos dentes, passa creme no rosto, nas mãos. Está com uma melhor aparência, hoje em dia, do que anos atrás, quando era mais jovem. Saiu para fazer cursos profissionalizantes e arrumou novo trabalho. Mudou a relação com o marido, surgindo uma nova relação de poder, no lugar da submissão, por conta da sua auto-estima e do seu próprio poder aquisitivo.  

Olhando essa realidade de minha mãe, também fui percebendo uma série de coisas e me colocando neste contexto como mulher, querendo fazer algo diferente.  Eu sou um pouco do meu pai, atitude solidária, política, humana. Tenho envolvimento com o trabalho para crianças e adolescentes, movimento sindical, movimento comunitário.

Aos 17 anos comecei a trabalhar fora de casa. Fui auxiliar de escritório e, numa revendedora de carros, trabalhei como controladora de estoque. .Realizei trabalhos de meio de caminho, enquanto estava estudando, para poder pagar o transporte, ajudar na conta de luz, no rancho mensal. Gostava do que eu fazia.

Trabalhei no município de Alvorada que abriu campo de estágio para Assistentes Sociais. Senti muito prazer ao trabalhar na vila, em Alvorada. Sinto prazer, não de trabalhar com a pobreza, mas com as pessoas. Volto-me muito para a carreira e para a atualização, sempre.

Angústias? Sinto uma angústia muito forte em relação ao processo de exclusão social. Ah! Eu sofro. Há 23 anos envolvida neste processo, não me acomodei. O sofrimento humano me abala muito e eu vejo isto crescendo. Onze horas da noite, uma criança carregando um carrinho de papelão e apanha um livro do chão e começa a folhear no meio da rua,  os carros passando. A exclusão, a descriminação, a falta de oportunidades, essa coisa do individualismo, muito egoísmo. Parece assim que quando comecei a ser militante no movimento negro, tinha mais gente para trocar, as pessoas eram mais solidárias.

Hoje existe muita disputa de poder, muita vaidade, os valores estão em outras direções, seguem outros princípios, isto é um desencanto.

Encantos? Por outro lado, trabalho como este, a oportunidade de poder falar sobre a trajetória.de minha mãe, das mulheres, valorizar as nossas lutas ...

Não perco a esperança.

Surge a preocupação com as gerações futuras, mas alguma coisa fica de bom. Não é? Fica mesmo. Assim é o trabalho que eu faço hoje e gosto.

Trabalho com mulheres, no programa de formação de promotoras populares. São lideranças que recebem e fazem a multiplicação de informações sobre as questões das mulheres, leis, saúde, cidadania, violência, trabalho, uma assessoria jurídica popular, promovida pela ONG da qual faço parte, denominada THEMIS. Já coordenamos projetos nacionais voltados para estudos e aplicação de relações de gênero.

Coordenei uma Casa de Passagem para crianças vitimas de violência. Trabalhava com pessoas indefesas e desprotegidas. Constatei as conseqüências de crimes horríveis e convivi com esses resultados, diretamente. Vivia dentro da casa com mais uma equipe, cuidando de dezessete crianças, na faixa etária de nove meses a quinze anos, todas elas violentadas, estupradas.

Chegou um momento em que não deu mais para sofrer tanto. Fiquei preocupada com minha saúde mental. Se continuasse naquele envolvimento, ou iria banalizar o trabalho ou iria adoecer. Não seria por culpa das crianças mas pelos absurdos de um sistema cruel que não cooperava para atingir os objetivos da casa. Era a primeira casa no gênero, em  tal município.

Como tratava de meninas vitimas de estupro, no mínimo tinha que trabalhar com a individualidade delas porque elas perdem a identidade, a auto-estima e este resgate da identidade é muito importante, acompanha o trabalho. Então eu providenciava para que tivessem um armário com as coisas delas respeitadas, com as calcinhas delas. Levava as meninas para o ginecologista, para exames periódicos, todo aquele processo e na ocasião eu era questionada sobre o fato das meninas terem cada uma as suas calcinhas. Com a maior naturalidade e frieza perguntavam para mim, “por que elas precisam ter cada uma as suas calcinhas, porque uma não pode usar a calça da outra?”

A mesma situação ocorria com as mamadeiras dos bebês, quando se era questionada sobre a razão de não poder trocá-las, entre as crianças.Quem questionava estas coisas era o Poder Publico, porque a visão estava somente no custo e jamais no beneficio. Essa coisa assim de auto-estima, identidade, higiene, era considerada muito investimento.  

O trabalho com as crianças não era o pior, o ruim era ter que ir para reuniões e discutir, pelear, isto é, brigar, lutar pelas crianças. Era como se eu tivesse parido 17 filhos, e tinha que ter tamanha garra para brigar por eles. Mas eu não era a mãe, eu estava no meu papel de profissional, mas não tinha as condições de desempenho adequado e correto. Afastei-me do trabalho. Fui trabalhar em Alvorada, com a Prefeita Esther e finalmente, com três mulheres da classe média estou coordenando o programa já citado, de formação de promotoras populares, na THEMIS.

 Este trabalho que resgata e valoriza a atividade das lavadeiras por intermédio de suas filhas é extraordinário, porque o prêmio destas lavadeiras são os filhos, com o sonho delas realizado. 

Antes de prestar este depoimento, telefonei para minha mãe, falando desta proposta e indagando o que ela achava de eu falar sobre a historia dela, ao que ficou muito emocionada, eu senti ao telefone. Disse-me: ”fala, porque eu tenho muito orgulho de tudo que eu fiz, é a memória do que foi feito  para que se chegasse onde chegamos. Não foi em vão, é preciso que sirva de estimulo a outras mulheres”.

Iracema Marlei Moraes da Silveira é a minha heroína, a minha mãe lavadeira. É uma mulher com espírito de luta muito grande, forte, um exemplo calado que se traduz em gestos, atitudes e comportamento. Minha mãe não verbaliza, não é discursiva. É uma grande heroína silenciosa.

 

            2     - Casarão Das Lavadeiras Em Caxambu*

                              Maria Aparecida Gonçalves da Silva

Meu nome é Maria Aparecida Gonçalves da Silva. Nasci no dia 19 de fevereiro de 1923, em Caxambu.

A cidade de Caxambu fica no sul do estado de Minas Gerais. Até o final do século XVII, as imediações do Morro do Caxambum, conhecido assim na época, eram habitadas pelos índios Cataguases. Aos índios nativos, segundo o historiador Antônio Maurício Ferreira, deve-se a origem do nome Caxambu, que na língua Tupi, falada por eles, significa “bolhas a ferver” ou “água que borbulha (Cata-mbu).

Meu pai chamava-se Antonio Bartolomeu Gonçalves e minha mãe, Alice Maria Bruno Gonçalves, a lavadeira responsável pela formação que recebi, por meio de suas lições de vida, de trabalho e amizade com as pessoas.

Minha mãe teve quatro filhos, sendo três homens já falecidos e eu, a única mulher. Estou com setenta e oito anos e quando volto aos anos atrás, nem acredito que consegui realizar alguns dos sonhos, pelo sacrifício que passamos. Lembro muito de minha mãe, Alice Maria, assim como lembro de minha avó materna, Liduína da Silva Bruno. Elas eram lavadeiras muito conhecidas e estimadas na cidade. Minha avó também era parteira e ajudou muitas mulheres ricas e pobres, para que dessem a luz aos seus filhos, com sucesso.

Mariana, minha avó paterna, também lavava roupa. Ela lavava sobre as pedras, às margens do Bengo, o rio que corta a praça, no centro da cidade.

E por falar no rio Bengo, quero destacar que Caxambu possui grande diversidade de recursos naturais e a sua  área hidrográfica é considerada uma das mais importantes do mundo, altamente apreciada desde o tempo do Império no Brasil,  pela qualidade de suas águas medicinais. Contam que a Princesa Isabel, com uma suposta infertilidade, teve o seu herdeiro, em virtude do tratamento feito nas águas ferruginosas das fontes de Caxambu. E eu, como boa caxambuense, fazendo uso dessas águas, tive nada mais do que treze filhos.

Por volta do ano de 1933, os hotéis da cidade, eram em número reduzido mas deixavam a cargo das lavadeiras, toda roupa da casa para ser lavada, o que garantia a essas mulheres, serviço e dinheiro. Mais tarde, a cidade passou a ter grande movimentação, com a proliferação de cassinos de jogos e construção de mais hotéis. A quantidade de pessoas que chegava para os cassinos trouxe um certo romantismo à cidade que ficava cheia de gente muito chique e famosa. Aumentou o número de pessoas que vinham usufruir das águas e jogar nos cassinos, aumentando também o trabalho das lavadeiras.

Aos 10 anos comecei a conviver com a movimentação no casarão de minha avó, com minha mãe e cinco lavadeiras. Ali funcionava uma lavanderia com dois tanques grandes de cimento e várias bacias de latão, muito usadas naquele tempo. Minha avó e minha mãe não tinham noção de que o trabalho delas era desempenhado como se fosse em uma cooperativa ao redor daqueles tanques. Eram as administradoras da cooperativa, cuja oferta de serviço era a lavagem de roupa e onde a entrada de dinheiro, toda renda que conseguiam com esse trabalho, era dividida entre elas. Assim, sustentavam a casa, ajudando seus maridos e filhos.

Convivi, desde menina, com todas as dificuldades impostas pela profissão de lavadeira, a qual passou por todas as gerações de minha família. Continuei na mesma trajetória de minha mãe, até por volta de meus dezoito anos, no casarão das Lavadeiras de Caxambu. Ajudava a carregar tabuleiros de roupas, na cabeça. Também entregava muitas roupas nos cabides. Eram as roupas lavadas e passadas, de fregueses dos hotéis, na época dos cassinos abertos.

As roupas de cama, as toalhas de mesa e as camisas eram engomadas e sempre lavadas, artesanalmente, sem química, a não ser o sabão em barra, o anil e muito sol para quarar. Depois eram passadas com o ferro de brasa. Ajudei a lavar muitos ternos de linho branco, chiques naquele tempo. A calça tinha que ter o friso bem marcado com o ferro de passar.

Minha mãe lavou para pessoas ilustres, como o Dr. Benedito Valadares, Governador de Minas Gerais, como o Presidente Getúlio Vargas e sua esposa, que costumavam vir a Caxambu para veranear.

Aos quinze anos eu já namorava e o namorado me ajudava a entregar as roupas. Ao mesmo tempo, era cortejada pelo segurança do presidente Getulio Vargas, chamado Gregório e apelidado de Anjo Negro.

Mais tarde, com o fechamento dos cassinos, Caxambu e todas as outras estâncias hidrominerais sofreram uma baixa na economia que era movimentada pelas pessoas que vinham veranear e jogar nessas cidades.

A queda financeira da cidade atingiu os ganhos das lavadeiras que atendiam os fregueses dos hotéis. Minha mãe não teve mais condições de manter o trabalho com as cinco lavadeiras que eram encarregadas das roupas de cama, mesa e banho. Com a diminuição da oferta de trabalho, o dinheiro diminuiu muito e não dava mais para ser dividido.

Mas também não foi só de sacrifícios que a gente viveu. Tivemos momentos bem alegres dos quais me lembro da minha família toda, tanto do lado materno, como paterno, escutando música e cantando. Meu pai, Antonio Bartolomeu Gonçalves era maestro da primeira Banda de Música da cidade e participava de um conjunto musical, juntamente com meus irmãos e uma tia paterna que cantava em coral de igreja. No dia dos ensaios da Banda ou do conjunto musical, a casa era uma festa com música de todo gênero. Dançavam em um clube onde havia concurso de dança. O clube carrega até hoje o mesmo nome que é bastante discutido: “Grêmio Recreativo Prazer das Morenas”. Minha mãe levava todos os filhos para o clube, pois era uma agremiação familiar. Quando a criançada sentia sono, dormia lá mesmo, enquanto os pais dançavam ao som das marchas, ranchos, samba de roda e jazz, influenciados pelos americanos. De vez em quando minha mãe ia até o pequeno quarto improvisado, para amamentar um dos pequenos.

Casei aos dezenove anos, tive treze filhos, como já falei. Deus me deu a graça de criar oito filhos, sendo quatro homens e quatro mulheres. Herdei dezoito netos, dos quais três são falecidos. Tenho quinze bisnetos, com mais dois a caminho para o ano de 2002.

A minha vida foi idêntica a da minha mãe. Depois de lhe acompanhar no Casarão, ainda lavei muita roupa.para ajudar meu marido a construir nossa casa, a educar os oito filhos, na medida do possível, pois mesmo estando na quarta geração, minhas filhas Ana Maria e Alice Maria, também lavaram roupa para me ajudar a manter os estudos delas, até se formarem no segundo grau.

 Não tive oportunidade de estudar além dos primeiros anos, porém foram anos de estudos muito bem feitos. Gosto muito de ler, de assistir aos noticiários para estar informada do que vai pelo mundo e poder conversar com os meus netos, bisnetos e filha Ana Maria, dando-lhe incentivo para os seus ideais e projetos no Movimento Negro de Caxambu, junto de todos os seus amigos e amigas que tentam mudar o rumo desta história de discriminação racial.

Meu marido era Maitre-d’hotel, responsabilizava-se pelos  cardápios e superentendia todos os garçons de um famoso hotel de Caxambu. Ele se vestia com toda a indumentária dos mestres franceses porque o hotel assim  o exigia, naquele tempo. Mantinha-se empregado no hotel por causa do talento que possuía  para o desempenho de sua função de Maitre.

Aos quarenta anos, fiquei viúva.

Quando me vi obrigada a deixar a cidade de Caxambu, pela falta de emprego, fui trabalhar no Rio de Janeiro. Fiz contato com uma família para a qual lavava, quando vinha em Caxambu e houve interesse de me levar para o Rio de Janeiro. Lá, esta família me encaminhou para a profissão de doméstica que eu exerceria pela primeira vez, deixando para trás minha família, meus amigos, minha terra, para entrar em outro sistema de vida até então desconhecido para mim.

Depois de vinte anos, voltei para Caxambu, aposentada.

Hoje em dia, não lavo mais roupas, profissionalmente. Mas foi lavando roupas que minha mãe me educou e eu, mais tarde, eduquei os filhos, não deixando faltar o que comer, o que vestir, o que calçar e, sobretudo, ajudando para que pudessem estudar.

Na época em que minha mãe me criou, ainda estava muito difícil um estudo mais avançado para os filhos pobres e negros, pois existia em primeiro lugar uma luta muito grande para sobreviver, para suprir as necessidades básicas. Mas havia bastante preocupação das famílias negras para passarem valores de bem para as futuras gerações.

Lavei roupas, como minha mãe, porém já pude contribuir para o estudo dos meus filhos. Bom seria que houvesse sempre este crescimento em nossa sociedade, através das gerações.

Tenho orgulho de ser honesta, amiga, solidária, e informada. Aprendi a viver assim, junto com minha mãe, Alice Maria Bruno Gonçalves, uma especial lavadeira, com a qual compartilhei de muitos momentos, no Casarão das Lavadeiras de Caxambu.

 

III

Crença Na Educação E Nas Possibilidades Das Congadas Do Sul De Minas Gerais*


Ana Maria da Silva Martins


Ana Maria da Silva Martins é filha de Maria Aparecida Gonçalves da Silva e Eufrásio Moreira da Silva. Nasceu no dia 14 de janeiro de 1943, também em Caxambu. Casou-se aos 19 anos, após ter passado por toda trajetória de lavadeira, idêntica às gerações anteriores de sua família. Pertence à quarta geração, porém com poucas novidades a acrescentar do que foi também a infância de sua mãe. Da infância, até aos 19 anos, entregava muita roupa nos cabides, nos tabuleiros na cabeça, para ajudar sua mãe, porque era grande o movimento dos hotéis em Caxambu e aumentava o serviço de lavagem de roupas dos hóspedes.
Com a permissão de seu pai, foi ser cantora de um cassino onde funcionava uma boate. Ali havia um conjunto do qual três integrantes eram seus tios que lhe davam toda cobertura e proteção para não ser molestada. No início dos anos 50, cantar em boate era uma profissão não muito favorável para as moças. Ana Maria foi cantar no cassino porque seus tios permaneciam junto com ela. Naquela época, certos ambientes ou profissões que as mulheres exerciam, não eram vistos com bons olhos, sempre davam o que falar mal, dessas mulheres.
Retomando então a história de Ana Maria, ela teve dois filhos: Andréa da Silva Martins e Adriano da Silva Martins, falecido. Por intermédio deste filho, participou de uma reunião para tratar de consciência negra. Foi este filho que lhe fez o primeiro convite para participar de uma reunião, na escola em que estudava, onde seria discutido o assunto. Por volta de 1988, alguns meses antes das comemorações do Centenário da Abolição da Escravatura, ingressou na luta pela valorização da população negra e participou de muitos encontros até que conseguiu, com um grupo de amigos, formar um diretório e tocar para a frente as primeiras atividades do Movimento Negro de Caxambu, com a ajuda de importante pessoa amiga, Senhor Benedito Henriques, hoje falecido. As filhas de seu Benedito, Vera Maria Henriques e Amália Portela são, atualmente, grandes amigas e ativistas do movimento negro de Caxambu que teve o apoio inicial do pai delas.
O seu Benedito passava idéias, as finalidades e os fundamentos para iniciar o movimento negro, do qual se originou o Centro Caxambuense Afro–brasileiro, onde Ana Maria é a atual Presidente da Diretoria.
A princípio, confessa Ana Maria, não tinha a noção exata do que realmente iriam trabalhar nesta luta, mas a própria história e os acontecimentos da cidade foram apontando os rumos.
Passou a entender muita coisa. Entendeu que os poderosos donos de hotéis de Caxambu herdaram as suas terras de ricos fazendeiros e que eram terras, a maioria, procedentes de doações que tinham sido feitas aos colonizadores, em épocas passadas, as tais sesmarias. Foi assim, ganhando terras, ou tomando posse de terras que os brancos vieram para Caxambu e se fizeram na riqueza. Foram deixando para a classe pobre como a população negra, uma distância muito grande em relação a tudo que era possibilidade, até mesmo a possibilidade de freqüentar locais que faziam parte da própria natureza do lugar. Os pobres não tinham o direito e a petulância de freqüentar, como por exemplo, o Balneário Parque das Águas. E na concepção de Ana Maria, considerava que aqueles fatos aconteciam pelas condições financeiras; que o Balneário não dava acesso aos pobres, por uma questão de classe.
Mas depois de algum tempo, percebeu que não era só isso, que a discriminação girava na parte econômica e racial. Os negros ficavam afastados daquele parque que trazia grandes benefícios medicinais, mas não estava somente na pobreza, o impedimento. Na verdade, o impedimento estava na pobreza e em muito mais, pelo fato da discriminação racial.  Era a presença de um passado discriminatório que em conseqüência já havia determinado a situação de pobreza dos negros. Então, com a experiência dentro deste movimento, conforme já falou, vai procurando ler, conversar com pessoas esclarecidas, vai aos poucos amadurecendo a idéia sobre o significado e a importância de um Movimento Negro.
Conseguiu avançar na idéia. Mas a dificuldade que ainda tem e sente, com muito desgosto, é a falta de reconhecimento da importância do movimento, pelos próprios negros, por falta de informação. Muitos ainda pensam como ela pensava, que tudo é difícil somente por causa da pobreza, nem se dão conta do que realmente tem determinado esta situação e que podem se organizar para conquistar riquezas, como a educação, cultura, cidadania, expressão das idéias, ter uma sede para encontros de discussões, para aprender sobre a História, levantar a auto-estima.
Ana Maria está na luta, trabalhando a parte cultural das Congadas, conversando com os congadeiros que desejam uma vida melhor para os seus filhos. A maioria dos congadeiros vem da zona rural, trabalha na roça em regime semelhante ao escravismo e é analfabeta.Caxambu tem a própria congada que é a Congada de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Destaca que está conversando sobre o movimento negro porque sua mãe lavadeira que está bem viva graças a Deus, tem sido uma grande incentivadora de tudo o que é planejado para a valorização dos negros, em Caxambu. Sua mãe é muito politizada. Fazem reuniões na própria residência, em casa de amigos, na sede da Banda Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus que, através de seu Benedito reconstruiu o prédio que até  hoje existe. Conta que se reúnem na sede da Banda, quando há eleições ou uma reunião maior para receber convidados.
Revela Ana Maria, que tem o sonho de conseguir uma sede própria para as reuniões do movimento. Admite que tem lutado para que isso aconteça. Realizam contatos com as autoridades de Caxambu, do Executivo, Legislativo para que dêem este apoio. É muito difícil o interesse pela causa dos negros. Como acontece com quase todos os movimentos afros do Brasil, fala Ana Maria que “a gente ouve quase que a mesma queixa, da falta de recursos.”
Dentro das propostas, comenta que estão incluídas as realizações com todo grupo jovem. Busca atraí-los com o artesanato, música, dança, artes cênicas, para que formem grupos de cultura, de estudos e compreendam e valorizem a história dos negros e não fiquem envergonhados de coisa nenhuma, pela cor da pele e para que enfrentem as lutas com objetivos determinados, para vencer.
O movimento conseguiu um espaço no Grêmio Recreativo Prazer das Morenas que cedeu horário para oficina de danças. Tem muita esperança que, pela música e pela dança, desperte o interesse pelo movimento nesta camada jovem, bem como o interesse dos seus pais, pois para a concretização desse trabalho, a parceria com as famílias é muito  importante. No momento, estão nesse Grêmio Recreativo, onde o acesso de jovens é favorável. Na danceteria que funciona aos sábados e domingos, divulgam o movimento. Mas não é só por aí, porque o objetivo maior mesmo é a Educação, uma das finalidades fortes do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, além da continuidade das Congadas.
 Ana Maria coloca que estão precisando fazer boas parcerias com as Escolas de Caxambu, para que ajudem a diminuir a discriminação racial e ofereçam mais apoio ao desenvolvimento educacional dos negros. Acredita que as Escolas poderão ser aliadas.
Não acreditando estar viva para ver, tem muita esperança que seus netos que já estão crescendo, possam encontrar uma mentalidade diferente da que hoje existe, com relação à discriminação racial. Que possam receber mais apoio para que não passem por tudo aquilo que bisavós, avós e sua mãe passaram.
As referências que tem sobre os negros em Caxambu, ainda envolvem muito trabalho pela auto-estima, auto-imagem, tendo em vista que: o negro, em Caxambu, anda recolhido, muito cabeça baixa, porque faltam maiores informações.mais estudo e então nesses encontros do pessoal do Centro Caxambuense, com estes grupos de negros, sente que a responsabilidade é grande. Em termos de parceria para o trabalho pelo desenvolvimento da população negra, aponta as ações dos Agentes de Pastoral do Negro que estão com um desempenho importante nestas questões de valorização da população negra, principalmente do grupo jovem.
A história de Ana Maria confunde-se um pouco com a de sua mãe, Maria Aparecida, que também relatou alguns fatos para ajudar a compor este livro. Fica um recado delas: ”Nós duas sentimos que não é de um momento para outro que vamos mudar toda esta maneira social, mas temos esperanças.”
Os ensinamentos e informações que Maria Aparecida, sua mãe lavadeira continua passando para os filhos e netos são de muito valor e, especialmente para Ana Maria, são estímulos para lutar pela justiça e diminuição da desigualdade social, pela superação da discriminação racial.
Sente-se muito honrada com o cargo de Presidente do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, com o envolvimento que tem com a comunidade negra, com os congadeiros pelos quais devota muito respeito e carinho. Admite ter conseguido estudar até o II grau, com os recursos da lavação de roupa que fazia a sua mãe, abençoada mãe, Maria Aparecida.  
* Referenciais Históricos de Ana Maria da Silva Martins

 

4 - Do Bengo À Paixão Pelas Congadas*

       Amália Helena Portela

 

As senhoras  Maria Aparecida e Ana Maria, de Caxambu, fizeram referências ao Senhor Benedito Henriques e suas filhas, Vera Maria e Amália Helena, como pessoas importantes em suas histórias de vida, com relação às atividades pela  superação das desigualdades raciais, no movimento negro. Então procurei as filhas deste Senhor para ouvir o que tinham a acrescentar nos depoimentos tão significativos das duas amigas mineiras.

Tanto a Senhora Vera Maria, como a Senhora Amália Helena Portella poderiam ter se pronunciado a respeito, mas  quem teve a oportunidade de conversar sobre o assunto foi a Senhora Amália que atenta aos fatos narrados por Maria Aparecida e Ana Maria, enriqueceu algumas questões, principalmente os fatos que dizem respeito à participação do Senhor Benedito Henriques, no Movimento Negro de Caxambu.

Como se estivesse dando uma aula, falou com propriedade e entusiasmo, de assuntos que vão de História, Geografia e Sociologia, até composição de águas, logicamente, de águas termas de Caxambu, cidade pela qual revela extraordinário carinho.

Transcrevo de uma gravação, as palavras que ouvi da Senhora Amália, interferindo, positivamente, nas narrativas de Maria Aparecida e Ana Maria.

“Conforme Maria Aparecida se referiu, sua avó Mariana lavava às margens do Bengo e o que se ouvia dizer é que o rio Bengo muito serviu às lavadeiras de Caxambu. Ele passa, hoje canalizado, pelo centro da cidade e tem uma adutora que solta as suas águas no rio Baependi, que também é o nome de outra cidade mais antiga, da qual Caxambu fazia parte. Caxambu foi chamada, inicialmente, de Águas Virtuosas de Baependi e depois passou a chamar-se Cidade Nossa Senhora dos Remédios de Caxambu, por causa do valor medicinal das suas águas que são alcalinas, gasosas, alcalinas-ferrogasosas, sulfurosas e magnesianas, de acordo com as propriedades do terreno por onde elas correm.

A referência quanto à princesa Isabel e às águas de Caxambu é porque a princesa Isabel não tinha herdeiro e veio a Caxambu fazer um tratamento em suas águas porque ela estava com anemia ferropriva e as águas ferruginosas de Caxambu foram excelente remédio. Depois desse tratamento, a princesa ganhou filho. Naturalmente, criou-se uma lenda, com certeza em favor das propriedades medicinais e miraculosas das águas de Caxambu, envolvendo tão nobre personagem, como a princesa Isabel, a qual mais tarde mandou construir uma Igreja Católica na cidade, em ação de graças ou promessa, como costuma o povo contar.

Na entrada do Balneário Parque das Águas a que se referem Maria Aparecida e Ana Maria, tem uma placa com os dizeres de Rui Barbosa: “Caxambu é a medicina entre as flores”.

O romantismo da cidade, também citado, vem desde os tempos do Império no Brasil, porque a cidade sempre foi muito procurada por pessoas da Corte, autoridades famosas que davam ao ambiente um destaque especial, não só pela presença, senão pela maneira de vestir, de andar. A cidade tem passeios românticos de charretes, realmente, ainda tem um certo romantismo em suas ruas com muitas flores.

As pessoas que freqüentavam os cassinos eram de muito dinheiro, de belos trajes, o que dava à cidade um estilo de luxo, com a freqüência dessas pessoas nos cassinos de jogos, com música ao vivo, a cargo de excelentes músicos e cantores. As atividades dos cassinos terminaram, quando o Dr. Eurico Gaspar Dutra determinou o fechamento do jogo no Brasil, na década de 40.

Ana Maria cantava na boate de um cassino e a sua família era de cantores. Sua tia Mariinha, na Semana Santa, cantava e regia o coral da Igreja. Mariinha era contralto de voz belíssima e potente, que deixava admirados os veranistas do Rio de Janeiro, pela firmeza e beleza da voz. Regia um coral na rua e ali cantava, sem microfones, ao natural.

Quando os cassinos fecharam, a Ana Maria deixou de cantar na boate, logo casou-se e foi ser dona de casa, deixando de lado a  carreira artística.

Em relação aos tabuleiros de carregar roupas, posso acrescentar que eram de madeira, com 80cm de comprimento, com 50cm de largo e 10cm de altura. As lavadeiras forravam os tabuleiros com alvas toalhas e ali colocavam as peças de roupas limpas e passadas. Para as roupas não apanharem poeira, elas cobriam o tabuleiro com outra toalha.

Caxambu sempre foi visitada por gente famosa e algumas pessoas deixaram as suas visitas bem marcadas, como o Dr. Getúlio Vargas que, além de veranear, veio inaugurar a rodovia Areias-Caxambu. Ele veio com toda a sua comitiva política, toda sua equipe de trabalho e inaugurou essa estrada, essa rodovia, a primeira da cidade. Caxambu possuía somente estrada de ferro. Os veranistas chegavam de São Paulo ou do Rio de Janeiro, de trem, pela ferrovia. A inauguração da rodovia foi um marco de progresso e de sucesso.

O Dr. Getúlio Vargas comparecia ao veraneio acompanhado pelo seu segurança Gregório, apelidado de Anjo Negro o qual cortejava as moças da cidade, entre elas, a Maria Aparecida, que era uma negra muito bonita e, ainda estava solteira.

O pai de Maria Aparecida era maestro da Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus, que foi fundada em 04 de setembro de 1908 e tem, ainda, uma sede própria na rua Marechal Deodoro. Era, na época, uma Corporação Musical composta quase que totalmente de negros. Essa Corporação tem hoje uma sede que foi reconstruída por papai, o Senhor Benedito Henriques de que fala Ana Maria. Ele buscou muito auxílio entre políticos da capital do Brasil, para que a Corporação tivesse um lugar digno para fazer seus ensaios e reuniões.

Quanto ao Grêmio Recreativo Prazer das Morenas que eu não concordo com o nome, porque são negros e não morenos os seus fundadores e freqüentadores, surgiu de um grupo que se organizou para se divertir, porque não podia freqüentar os bailes da cidade que aconteciam em seus hotéis de luxo. Os negros ficavam somente olhando as pessoas se divertirem nos salões, até que decidiram fundar o Prazer das Morenas, um lugar para se distraírem com as famílias, um clube. O nome do clube não é dos melhores, porém comprova como as pessoas tinham medo de assumir a negritude.

Quanto à ajuda que as duas amigas falam que receberam de meu pai, Benedito Henriques, prende-se ao fato de que o papai foi um homem de visão extraordinária e orientava muito elas. Ele saiu de Caxambu com 18 anos de idade, depois de ter trabalhado nas obras do Balneário Parque das Águas. Um construtor italiano que foi a Caxambu viu o trabalho dele e o levou para trabalhar no Rio de Janeiro, onde ele trabalhou na construção do Palácio Tiradentes, em que passou a funcionar a Câmara dos Deputados, até o ano de 1960, ano em que foi transferida para Brasília.

No Rio de Janeiro, meu pai trabalhou como pedreiro e depois passou a ser o administrador da Câmara, com o nome de Zelador do Palácio Tiradentes. Transferido para Brasília, foi indicado pela mesa da Câmara para trabalhar com os engenheiros que iam construir a cidade de Brasília. Foi o homem responsável pela orientação do funcionamento da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde trabalhou até o ano de 1966, ao aposentar-se. Então voltou para Caxambu.

Como era um homem muito estudioso, entusiasmado com as questões sociais, e, ainda, porque gostava muito da Maria Aparecida e da Ana Maria, integrou-se com elas para realizar algumas ações, como a criação do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, em 1988.

Ana Maria teve todo o apoio de papai para conduzir o Movimento Negro, em Caxambu. Ela sempre se colocou muito envolvida com esse movimento e conseguiu fazer com que ele sobrevivesse e aparecesse.  Uma das propostas do Movimento Negro de Caxambu é resgatar a cultura negra através das Congadas, uma dança do tempo dos negros escravos, muito característica em cidades mineiras.

Caxambu tem um grupo de Congada em que o mestre é o Senhor Ismael Carlos dos Santos. Então o Centro Caxambuense Afro-brasileiro, em parceria com o seu Ismael e com a ajuda de papai, passou a realizar atividades, no mês de novembro, na Semana da Consciência Negra, onde se faz uma apresentação das Congadas de Caxambu e dos municípios circunvizinhos, do Sul de Minas Gerais. Além dos congadeiros de Caxambu, apresentam-se os de Guapé, Soledade de Minas, de  São Gonçalo do Sapucaí, Conceição do Rio Verde, Jesuânia, Lorena, Lambari e Cambuquira que estão tentando conservar a tradição.Isto está sendo possível porque o seu Ismael entrou em contato com todas as cidades onde existem, ainda, as Congadas e que ficam mais próximas de Caxambu.

Nas Congadas, a evolução da dança é com passos marcados, acompanhados de cânticos, invocando a devoção religiosa. Fazem parte da Congada, homens, mulheres e crianças. Levam um estandarte com o nome da cidade e outro com o nome do grupo de Congada, no caso de Caxambu, com o nome de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Meu pai trabalhou muito com a Ana Maria, procurando estudar com ela os fatos e causas que originaram a baixa auto-estima e pobreza da população negra, bem como o valor das tradições dos negros e, principalmente, o movimento das Congadas, uma tradição popular que resistiu à escravidão e oportunizou a reunião dos negros, não somente para dançar e cantar, mas para tratar de assuntos de liberdade.

Aproveitando a citação de Ana Maria de “querer juntar os jovens e despertar o interesse deles para o movimento negro, através da dança”, eu gostaria de lembrar o seguinte: uma das formas dos jovens valorizarem a sua terra natal é quando guardam alguma lembrança boa e sabemos que para gravar os momentos alegres da vida, nada melhor do que a música e a própria dança.

Minha irmã Vera Maria e eu, as quais Maria Aparecida e sua filha Ana Maria fazem referência, estamos sempre junto delas, tentando fazer progredir esse trabalho com as Congadas.

Nossos congadeiros são pessoas que se ocupam muito das lidas nas lavouras e não têm tempo e nem condições de estudar e nem sabem a força que têm, que através dessa dança que eles apresentam, que já estava em extinção, poderão melhorar a própria vida.

Então começamos a distribuir umas fichas para que cada um respondesse, oralmente, ou por escrito, de acordo com a escolaridade, as perguntas relacionadas com questões que eles vivem no mundo do trabalho e em geral. Os resultados nos apontaram rumos a tomar para trabalhar a justiça social que tanto se apregoa. Temos um documento denominado A Carta dos Congadeiros, em que fazem reivindicações para o desenvolvimento deles, das suas famílias.

Pretendemos começar a ajudar o pessoal das Congadas com a implantação de um curso de alfabetização para os participantes de Caxambu e suas famílias. Também já estamos com uma proposta elaborada, da criação de uma Escola de Congada onde todos devem aprender a dançar e estudar. Teremos períodos de apoio escolar para os alunos das comunidades carentes de maioria negra, artesanato, teatro e até um pré-vestibular. A Escola de Congada Nossa Senhora do Rosário e São Benedito estará funcionando na Escola Wenceslau Braz, cedida pela Prefeitura de Caxambu.Para que isto aconteça temos poucas pessoas que ajudam. Apesar de sabermos que existem recursos destinados ao desenvolvimento da população negra, a gente fica muito longe destes recursos.

Então, o nosso compromisso é com o resgate, o aprofundamento, a valorização e difusão da história e cultura negras, considerando como legítima a comunidade afro-descendente para atuar em sua defesa e seus direitos.

O Movimento Negro de Caxambu trabalha a parte cultural e social e resolvemos, junto com os dirigentes do Centro Caxambuense Afro-brasileiro, trabalhar em conjunto com a Pastoral do Negro, na parte religiosa, porque temos o trabalho do seu Ismael Carlos dos Santos, mestre da Congada.O seu Ismael sai com os congadeiros, fazendo novena nas casas, rezando o terço, dando explicações religiosas durante os meses de maio e no mês de outubro. Justamente essa era uma forma de devoção religiosa do negro, no tempo da escravidão, aqui no sul de Minas Gerais.

Quando a mãe de Ana Maria relata que foi obrigada a deixar Caxambu para ir trabalhar no Rio de Janeiro, não foi um acontecimento casual. Na época, pelo seu grau de politização, pela sua irreverência e esclarecimento, foram negadas todas as oportunidades de trabalho para ela e sua família, por perseguição política, nos pequenos municípios brasileiros, quando não escaparam as lavadeiras. Infelizmente, fatos como este, de perseguição política, ainda continuam acontecendo, no Brasil.

 Talvez, porque precisassem do talento do marido dela, conservaram somente ele no emprego de mestre de cozinha, mas assim que ele faleceu, os figurões da época que poderiam empregar as pessoas, negaram todas as possibilidades de sobrevivência para dona Maria Aparecida. Não lhe deram a oportunidade nem de exercer a profissão de lavar roupas. Essa foi a causa de uma mulher trabalhadora ser forçada a sair de sua terra natal, deixando para trás os seus filhos, sua família, suas amizades, suas histórias, conforme relata.

A luta de Maria Aparecida, atualmente com setenta e oito anos, tem sido incentivar e ajudar a filha nas atividades em prol das Congadas e pelo desenvolvimento da população negra. Neste sentido, ambas vêm recebendo o apoio de minha irmã e o meu apoio, bem como de outras pessoas interessadas pela causa social e da discriminação. Recebem apoio de algumas entidades da sociedade civil, religiosa, da Universidade, mais recentemente, e de alguns políticos da região.

Com certeza, pela amizade que temos com essas duas pessoas maravilhosas e pelo envolvimento de meu pai Benedito Henriques, com os seus ideais, é que aparecemos em seus depoimentos de filhas de lavadeiras, conclui a Senhora Amália.

   5 - Minha Mãe, A Presença De Uma Grande Rainha*

                    terezinha juraci machado da silva

 Esta história começa pelo nome de três jovens, meus filhos.

 Dakir, de 27 anos, Kamir, de 23 anos e Zumbi, de 20 anos. Foram os nomes escolhidos para homenagear os nossos ancestrais africanos, assim como fazem os elementos de outras etnias, como os alemães e os italianos.

Algumas pessoas chegaram a criticar minha atitude, dizendo  que coloquei nomes  muito estranhos nas crianças, principalmente no caçula. Tive que dar repetidas explicações, contar a história de Zumbi, já que a escola não ensina.

Escutei todo tipo de pergunta, como:

- O  que é isso? Que nome é este que botaste neste guri?

Respondia-lhes que eles tinham que aprender que Zumbi é o nome de um herói negro, da resistência à escravidão, guerreiro líder do Quilombo de Palmares.

Para eles, Zumbi era demônio, diabo, morto vivo.  

Em relação aos nomes de meus filhos, teve uma passagem com o escritor Ziraldo, quando em Passo Fundo, solicitei-lhe que autografasse livros para os meus dois primeiros meninos. Ao ler os nomes de Dakir e de Kamir,   o Ziraldo  argumentou:

- Mas mulher, que carga pesada, que responsabilidade estás dando para estes filhos. Será que tens o direito de dar esta bandeira para teus filhos?

                      Sou a Terezinha Juraci, filha de lavadeira. Nasci em Porto Alegre, na primavera dos anos 40, a 20 de outubro.

Minha mãe é a Maria do Carmo Almeida Machado, também conhecida por Carmem, Maria ou avó Carmem. Ela nasceu em São Sepé, município do Rio Grande do Sul.          Não foi criada com a mãe. Morou com os padrinhos, na casa dos Almeidas. Sabe que a mãe havia sido empregada desta família e que teve outros filhos. Minha mãe apenas sabia que era filha de Geraldina de tal, nem tinha o sobrenome. Era uma crueldade isso,  regime de escravidão.

Assim, também não conheci os meus avós maternos nem por fotografia. Meu avô deveria ser algum homem branco da fazenda dos Almeidas, pois minha mãe é muito clara. A minha avó viveu com a família dos Almeidas, mas essa gente não alcançou nenhum tipo de benefício financeiro e nem instrução para a minha avó e para a minha mãe.

A mãe contava as historias da cidade de São Sepé, onde  carregava leite do tambo para as casas da vila. Ia entregar leite com um vestido de chita, calçando tamanquinho, cortando geada pela estrada e que, ao voltar, trazia água da fonte.

Referia-se a uma igreja que havia na cidade, a qual ainda está por lá, do mesmo jeito. Eram três coisas das quais sempre falava: na praça, na igreja e na fonte, hoje canalizada.

Visitei essa igreja, em São Sepé, quando precisei ir neste município com as colegas Marilene Paré e Vera Valmerate, a serviço do Projeto O Negro e a Educação, da Secretaria Estadual de Educação. Do Rio Grande do Sul. Dentro da Igreja, ao levantar a tampa da pia batismal, há uns seis anos atrás, fiquei muito emocionada e ao mesmo tempo muito  revoltada. As colegas que me acompanharam são testemunhas do choro convulsivo que desabei e que não parava de chorar, no trajeto que fiz da Igreja, passando pela praça, até chegar na casa de  dona Deolinda, uma Mãe de Santo que conheceu minha mãe, quando jovem.

Minha mãe nunca mais quis voltar lá, em São Sepé. Naquele momento pude entender quais seriam suas tristes recordações de humilhação e de misérias humanas.

De São Sepé, a minha mãe foi para a cidade de Cachoeira do Sul, já casada com Carlos Romeu que morava em Cachoeira.

Tanto o meu pai, Carlos Romeu Machado, como a minha mãe não tiveram a memória deles, dos seus antepassados e sim a memória dos patrões, com os quais conviveram.

Em Cachoeira minha mãe começou a trabalhar em uma casa de família, como serviçal e babá.

Quando resolveram tentar uma vida melhor, em Porto Alegre, foram morar, inicialmente, em uma casa de cômodos, em um só quarto. Ao melhorarem de situação financeira, saíram da casa de cômodos e passaram a residir na rua Larga, perto do tradicional cinema Castelo, hoje inexistente na capital. Depois, naquela rua, minha mãe amamentou a filha de uma batuqueira que em troca lhe alcançava canjica e leite para ajudar na alimentação.

Dona Celina, a batuqueira, fez um vaticínio. Naquela ocasião disse para minha mãe que eu seria uma pessoa de grande importância.

Então, com o passar do tempo, em cada formatura minha, a mãe costumava dizer: que a dona Celina tinha razão, pois na idéia de minha mãe, por meio dos estudos é que viria para mim a falada grande importância, vaticinada por Dona Celina.

Lembro-me que eu ficava sozinha, quando minha mãe saia para fazer algumas compras. Ela deixava a janela fechada com uma folha entreaberta para refletir a luz do dia. Eu via quando minha mãe vinha ao longe e  ficava pulando em cima do berço. Ela trazia biscoito e querosene. Houve um dia em que derramei o querosene que era do fogareiro de pressão, usado naquele tempo.  

Depois da rua Larga, fomos morar em um porão, em  frente ao prédio da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre - OSPA, na Avenida Independência. Nesta rua minha mãe começou a fazer biscates para gente rica e cuidava de criança, fazia serviços de arrumadeira e lavava roupas.

Com o passar dos anos, nossa casa ficou muito grande porque fomos morar na vila IAPI, considerada uma vila de negros bem sucedidos na vida. Tínhamos uma sala enorme, com poucos móveis. 

Minha mãe plantava, criava galinha, não faltava comida. Plantou muitas árvores frutíferas.

As casas eram de alta qualidade, foram as primeiras casas populares da capital. Mas meu pai jogava muito e a minha mãe precisava lavar roupa para poder ter alguma coisa a mais, além da comida. Ela desejava manter meu irmão e eu,  no colégio.  

Mamãe começou a lavar roupa, intensamente, na vila IAPI, ajudando uma vizinha, até fazer a sua própria clientela.

As vizinhas se falavam e choravam as mágoas por cima do muro, quase segredando. Não iam umas nas casas das outras, mas ficavam um tempo grande, conversando pelo muro. Comentavam sobre os maridos que bebiam, dos que brigavam, trocavam as mágoas, trocavam gêneros alimentícios de que estavam em falta nas casas. Se faltava  sal, trocavam por açúcar ou por uma batata, pois o sal não podia ser doado, sob pena das vizinhas brigarem, era uma superstição que muita gente conserva até os dias de hoje.

Dona Chininha era o nome de uma das vizinhas, nunca me esqueço dela. Eu tinha uns oito anos e nunca me esqueço da solidariedade, da cumplicidade entre elas, sem fazerem alarde.                        Na vila do IAPI tinha gente bem de vida que era cliente de lavados mas começou a vir também pessoas de outros lugares, com roupas extraordinárias, lindas, até cortinas para a mãe lavar, cortinas vermelhas. Este fato irritou muito o meu pai que perguntou:

Mas de onde saiu esta cortina vermelha? Tu estás lavando roupa de cabaré?

Até que um dia meu pai jogou as roupas lavadas no chão e eu presenciei as lágrimas correndo no rosto de minha mãe. A trouxa estava pronta e ela teve que lavar todas as roupas, novamente, inclusive a pesada cortina vermelha. Precisava honrar o compromisso. Minha mãe chorou um choro para dentro. Senti revolta de ver a mãe sem reação.

cenas deste tipo que eu seja o  oposto dela, jamais me calo para um homem.

Conflitos sérios me distanciaram do pai, o qual eu considerava um carrasco para minha mãe. Ele era ativista político, Delegado Sindical. Fez até um comitê em nossa casa, mas em matéria de relacionamento com a mulher e filhos não levava jeito. E, para completar o estrago, era um jogador inveterado, o que colocava a perder qualquer investimento familiar.

 Na vila IAPI fazia muito frio e não tínhamos muitas roupas. A mãe nos botava na cama e nos dava um caldo de osso. Lembro que ela pegou meu irmão e eu  pela mão, foi na Avenida Assis Brasil, para trocar algum serviço de lavação de roupas, por uns metros de  pelúcia e fez casaquinhos à mão, para nos agasalhar.

Entregava a roupa à noite. Nunca carregou as trouxas na cabeça, amparava com as mãos.

Meu irmão fez um carrinho com rodas de bicicleta, para ajudar minha mãe a carregar as roupas. Para entregar os lavados, minha mãe botava o melhor vestido e também nos arrumava com o que tínhamos de melhor. O meu irmão vestia a fatiotinha da comunhão. Existia essa questão de dignidade que passava pela apresentação pessoal, principalmente relacionada com andar de roupa muito limpa      Lembro da trouxinha de cinza para clarear a roupa, dos dois ferros de passar, enquanto esfriava um, o outro já estava tinindo, quente.

Minha mãe fazia pão em casa. Saia do tanque para o forno, o que no inverno representava um choque térmico. No inverno, a água do tanque virava gelo que tinha de ser quebrado dentro do próprio tanque. Ela acabou tendo pneumonia. Teve frieira de fazer bolhas nas mãos. Era muito rigorosa a função de lavar roupa, no inverno.

Meu pai, infelizmente, Jogou todo dinheiro que ela havia juntado para pagar a casa. Perdemos a casa. Fomos morar na vila Floresta, casa alugada. Eu passei a caminhar da vila floresta à vila do IAPI, um caminho muito longo para pegar o bonde. Sapato furado, papelão em baixo. Dinheiro suado para comprar um gostosão ou um mata fome, os nomes que dávamos para os lanches da época, nas esquinas das escolas.

A casa havia sido perdida  em dívida de jogo.

Foi muito sacrifício pelo qual passou minha mãe lavadeira, Lembro bem  que investia tudo nos filhos, para se educarem. Mal sabia escrever o nome.

Dona Carmem era contadora de historias. Criou o habito de ouvir e contar historias. Com oito anos eu li o livro Genoveva, um romance, para minha mãe. Falava de uma corsa que amamentava dois gêmeos. Deveria ser a historia do Rômulo e Remo. Aprendi a ler com esse livro. Também lia o Acácio e o Reizinho, tirinhas de jornais que meu pai trazia. Lia o jornal Correio do Povo.

Há uma ausência muito grande do meu pai, até a adolescência.

Na vila Floresta, minha mãe não lavava mais roupas e foi trabalhar no supermercado Real, às seis horas da manhã, limpadora da gerência do supermercado.

Como a nossa raça é forte !

Teve uma vida de muito trabalho, luta, sofrimento, esquecendo dela mesma. Não deixava as crianças tomar parte nos assuntos dela com os patrões.

Meu pai já faleceu e também o meu irmão.

A minha mãe mora conosco, está com oitenta e um anos.Teve um problema cérebro vascular,  esteve em coma, porém resistiu. Está bonita, bem cuidada. Levo-a para todos os lugares onde eu vou e que ela possa me acompanhar sem desconforto. Valorizo a companhia dela.

Quando recebo alguma homenagem, sempre arrumo uma forma de transportar para ela. É o retorno, a recompensa do que fez por mim.     Tudo o que sou como Professora, Especialista, Mestre, tem uma parte dela. Minha mãe passou isto para mim, esse gostar de ler, de literatura. E ela era analfabeta.

Sou formada em letras em Minas Gerais, em Guaxupé. Em Porto Alegre, já casada e com um filho para criar, retornei à faculdade, fiz a especialização.Voltei-me para a questão do negro na Literatura, como um todo e na literatura infanto-juvenil. Conclui Mestrado em Literatura Africana de Língua Portuguesa. 

Viajei a Angola, Moçambique, África do Sul, como observadora Internacional da eleição que elegeu Mandella. Também fui observadora das eleições palestinas.

É através da leitura que a criança toma contato com o externo e observando que nós não temos as representações negras  de uma forma digna nos livros infanto-juvenis, eu me dediquei muito para isto e são essas pesquisas que tenho feito. A Literatura Africana veio por conta da minha curiosidade sobre a África e das minhas idas à África, como fui a Angola e Moçambique.

Atualmente estou direcionando o meu Doutorado para autoria feminina desses países Africanos de Língua Portuguesa.   

Tenho lidado muito com a questão dos personagens negros na literatura infanto-juvenil brasileira e estou iniciando um trabalho de pesquisa sobre o negro na literatura Gaúcha em que analiso a questão da presença ou ausência do elemento negro.

Fui professora de uma Instituição de Ensino Universitário que é a Faculdade Integrada Ritter dos Reis, onde lecionei Inglês e depois trabalhei com Literatura Portuguesa, Literatura Africana e Literatura infanto-juvenil. Dentro desta área de especialidade fui durante nove anos, professora titular da  instituição.  

Sou diretora para assuntos Africanos do Instituto Cultural Português de Porto Alegre. Atualmente estou na Argentina, representando o Brasil como Primeira Leitora, lecionando. Acredito estar contribuindo para a auto-estima do povo negro e tenho orgulho das minhas raízes, de ser filha de lavadeira.                   

Sou uma pessoa que acredita, sonhadora mesmo. Acredito que os negros, diante de todo este quadro, deste percurso de sacrifícios, de resistência, de pobreza absoluta, muitas vezes conseguem chegar e vencer, mesmo com os parcos investimentos de uma lavadeira. Será que não é possível a gente avançar no desenvolvimento sócio-econômico, educacional e cultural, mais depressa?                  

Temos que canalizar nossa força interior.Mas de onde vem esta força? É da nossa ancestralidade. Minha mãe me deu essa força e estou passando-a  para meus filhos que estão todos formados: Um é Geógrafo, outro esta terminando Educação Física, o  mais moço está cursando Fisioterapia, é campeão sul brasileiro de jiu-jitsu. Meu marido é Agrônomo, Economista, Cooperativista e pós-graduado em Economia. Temos uma família bem sucedida. Não temos dinheiro, mas temos toda uma formação intelectual que o dinheiro não paga. As sábias lavadeiras que investiram na educação dos filhos adivinharam que a Educação é o tesouro que poderiam legar às famílias.

Liberdade econômica? Ainda estamos muito dependentes porque não temos acesso, mas mesmo com todas as dificuldades, eu sonho muito. Outra coisa que considero importante nesta minha trajetória é ser convidada de uma universidade negra norte-americana, a Madgard Ever College, como pesquisadora e educadora.

Então vou todos os anos para os Estados Unidos e nas palestras que faço nos Estados Unidos, apresento as pesquisas, os estudos que a gente faz aqui, o que os negros estão fazendo, eu falo da comunidade negra brasileira nos Estados Unidos.

Apresento algumas aulas sobre Literatura Brasileira, analiso a  questão do negro nessa Disciplina.Divulgo o que se faz no Brasil e que às vezes é muito mais reconhecido lá fora do que aqui mesmo. Esta é uma das mágoas que a gente tem. Mas até com a própria mágoa se trabalha.

Os sonhos são muitos e a crença também. Creio em uma nova era. Estou sonhando com a criação de um Instituto Superior de Educação, por que não? Porque não nos juntarmos, um grupo de intelectuais, aqui mesmo no Rio Grande do Sul, de estudiosos,  para a capacitação de pessoal, principalmente negros, também brancos, multiétnicos. Não comporta fazer um gueto, mas que sejamos os diretores, que tenhamos na mão a direção disso, o controle, o poder decisório. Temos capacidade, temos que ter a coragem, a mesma que impulsionou Zumbi. Afinal, o que representa o nome de meu filho?

Se o investimento  é grande, recursos existem por aí.Talvez a gente não tenha organização suficiente para chegar até eles. Então vamos nos organizar, vamos organizar outros modos de agir, formas simbólicas de lavar roupa, carregar trouxas e passar tudo a limpo e a tempo de garantir algo mais para as futuras gerações.

Defino-me inquieta, muito braba, zangada, atacada mas me considero vivendo um momento mais reflexivo, menos impulsiva, mais contida, ainda que sonhadora. Amo demais e preservo a família, a coisa mais importante, juntamente com Maria do Carmo, meus filhos e o marido Paulo Roberto da Silva.

Tenho em minha mãe a presença de uma  grande rainha, pessoa, ídolo, espelho, meu norte, exemplo de luta de mulher,  a dedicação e a sabedoria. É a pessoa mais maravilhosa que  já tive, que já vi, minha mãe lavadeira.

Este trabalho é brilhante, providencial a idéia de falar das lavadeiras, por meio de suas filhas, porque recupera o trabalho braçal que nunca é lembrado em hipótese alguma. Essa mulher lavadeira que sustentou os filhos, transformou os filhos, a maioria semi- analfabeta, em filhos alfabetizados, através desse esforço, desse trabalho manual duro que era lavar roupa.

Hoje, lavar roupa é muito mais fácil, mas naquela época, com sabão de soda, roupa estalando de goma para passar a ferro, o enfrentamento do tanque com água gelada, era duro, porém  era profissional, era uma das formas dignas de muitas mulheres negras sobreviverem e educarem os seus filhos. E hoje?

As lavanderias hoje estão, em maioria, nas mãos dos brancos que têm poder aquisitivo.Não somos empresários deste trabalho que era  delas, das nossas avós, das nossas mães que nos sustentaram, criaram famílias, criaram filhos doutores e mestres.Esbarramos na questão econômica. As tecnologias são caras e tiram as possibilidades de investimentos dos negros, a maioria sem muitos recursos para desafios.

Mas as filhas das lavadeiras, nunca pensaram que aquela atividade artesanal se transformaria  em uma atividade empresarial? E que poderiam ser empreendedoras? Levaram a sério o que as mães lavadeiras diziam: “O que eu passei, não quero que vocês passem, lavando roupas.”

O lavar roupa era também incumbência familiar, geralmente compartilhada pelas crianças mas não vejo nenhuma  conotação de exploração do trabalho infantil. Vejo como o início do exercício de responsabilidade e de solidariedade, o que muito colabora para a  diminuição da marginalidade.

6 - O sabãozinho está ficando pouco, sumindo...

Maria Helena vargas da silveira

Isto me leva ao material de trabalho das mães lavadeiras, pois as suas filhas citam o sabão em barra, de soda, meia barra, o ferro a carvão, geralmente mais de um, a mesa de passar, o anil, o polvilho, a maizena, a araruta, usados para engomar; a pedra onde esfregavam as roupas; algumas lembram das tinas, dos tanques, dos tonéis, dos tabuleiros, das bacias, dos baldes, cestas; outras falam da interação com o meio ambiente, da lavação nos córregos, nos rios, nas fontes, nas cachoeiras, utilizando gravetos para o fogo onde ferviam as roupas, aproveitando o pasto para botar as roupas a quarar  borrifadas com sal e suco de limão. Enfrentaram o calor, o sol muito forte, ou as geadas do inverno que endureciam a água e as mãos. Fazem alusão às longas caminhadas, por trabalharem longe de casa, às subidas de morros e higiene do local das fontes, em solidariedade às companheiras que viriam lavar no mesmo local, no dia seguinte. Faziam a Hora do Gari, com a maior alegria.

E essas interações com o meio ambiente que as filhas das lavadeiras faziam com suas mães, têm um sentido relevante. Assim como as interações que os elementos da flora e da fauna provocam na natureza, quando cada ser vivo busca harmonicamente a sobrevivência, contribuindo involuntariamente para o estabelecimento do equilíbrio, as lavadeiras, talvez nem sequer imaginavam, mas foram fundamentais para que as comunidades em que viviam funcionassem, assim como as flores, as árvores, os animais e os diversos recursos ambientais que formam as florestas, compõem os biomas e são  além de tudo, o mundo em que vivemos.

Os depoimentos das filhas das lavadeiras também apontam alguns aspectos históricos e detalhes geográficos de suas regiões de origem, comprovando o grande carinho que as pessoas têm, geralmente, pela sua terra natal.  São riquezas de detalhes que fazem de cada história uma verdadeira jóia , um memorial que surpreende pela quantidade de informações de várias naturezas, de usos e costumes de época, descrição de paisagens, de transporte, entre outros hábitos, principalmente religiosos.

Mas o maior entusiasmo frente a esses memoriais, é a alegria, a satisfação de sentir que aquelas lavadeiras foram capazes, que foi  possível para aquelas lavadeiras,  impulsionarem a mobilidade social do país.

As filhas das lavadeiras demonstraram que têm diferentes componentes étnicos em suas origens e  não somente o africano, constituindo a demanda das  afrobrasileiras, uma mistura de negro com índio, com português, com italiano, com alemão, com paraguaio, frutos da orgia forçada a que foram submetidas as suas avós e bisavós africanas com os senhores brancos com os quais se deitavam. Este fato impede que elas organizem a sua árvore genealógica, porque os antepassados escondiam esses detalhes, uns por vergonha e outros por medo, pois na maioria das vezes ficavam criando os seus filhos nas senzalas das fazendas dos brancos que as deixavam prenhas. No momento de falar sobre as origens de cada uma, foi complicado.Será que começou com o Silveira? Será que foi com o Ferreira? Será? Fizeram questionamentos aliados à procedência das fazendas onde moravam os ditos donos das suas matriarcas. E pararam por aí. Admitem que são uma misturinha e que a mistura prossegue, de forma  consentida, o que, de certo modo já deverá facilitar a elaboração da árvore genealógica de seus netos. Que bom, né meus botões de osso?

Está na hora de ensaboar uma cortina vermelha de veludo. O romantismo que me inspira esta cortina dentro de uma tina merece até uma poesia. O sonho, as aventuras do pensamento. Livre é o ar que entra pelas janelas com qualquer cortina, de chita, de veludo, de canudinho de jornal e descobre os ambientes, as pessoas, as camas, as mesas, o que tem dentro das casas, o que se passa. O ar, entrando pelas janelas, perpassando as cortinas é um grande maroto..Mas com meus botões quase não tenho estas conversas líricas. É melhor desconversar porque de cortina de veludo vermelha, nem todo mundo entende, pensa logo que é da Zona.  Mas o que as filhas das lavadeiras me lembram em relação à Zona? Lembram do respeito às prostitutas, dos maridos fujões, da infidelidade conjugal. Mas será somente isto? Faltou sexo. Mas as meninas falaram de sexo também, mais nas frustrações das mães do que no namoro dos pares. Mesmo assim, com tantas queixas e desencantos, as lavadeiras tiveram muitos filhos. Esta análise bem se prestaria a um outro ato, um ato sexual.

A relação com os pais não aparece muito amistosa, mas todas reconhecem alguns atributos especiais que possuíam e até se identificaram com eles, na idade adulta, principalmente com os   que lutaram por justiça social, os que tinham medo da fome e tratavam a mulher e os filhos como as apoteoses da comida e até mesmo para os alcoólatras foram citadas as qualidades da  franqueza  e de um caso de coragem de abdicar do álcool., a pedido da mulher grávida; muitos pais foram reconhecidos pelos componentes alegria, gosto pela música, pela dança, pelas festas. Muito exaltados foram os  trabalhos de alguns pais que, como pedreiros e artistas da construção tiveram inteligência que as deixou orgulhosas de suas obras. Apesar dos relacionamentos pouco amistosos, a sensibilidade de algum pai foi lembrada, ao induzir, com um presente de Arte e Cultura, a carreira da filha, futuramente, a qual naquela época nem pensava que o valioso presente oferecido pelo pai fosse ser tão útil para o seu Curso de Artes Plásticas.

 Os pais calados não foram poupados, aparecem criticados quanto à alienação do homem na resolução dos problemas domésticos; resolviam o que tinham que resolver na rua e ficavam calados, no lar. A mulher que se virasse, era dela o reduto, sozinha, forte, um comando seguro que lhe acarretaria, mais tarde, muitas doenças, principalmente ocasionadas pela  tensão do dia a dia, além daquelas adquiridas pelo desempenho da profissão. Houve relatos de doenças localizadas em pés, mãos, joelhos, pernas, câncer, hipertensão.

Mas a maioria das filhas das lavadeiras deixa transparecer que o pai era secundário, frente ao que a mãe fazia, que era dela o comando da casa, que a mãe desempenhava o papel de propulsora do desenvolvimento da família.

Em geral, os pais não representaram o elemento que trouxe muito prazer às suas vidas, porque muitos foram causadores de algum tipo de violência contra aquelas mulheres as quais eram consideradas as santas, as provedoras de tudo.

Foram feitas alusões à infidelidade conjugal e à submissão da mulher aos caprichos dos companheiros negros que se comportavam como carrascos de suas mulheres. Os comentários quanto à questão ficaram por conta do pode ser. Pode ser de  origem histórica, pode fazer parte de um processo ainda mal resolvido, ou pode ser uma questão de afirmação pessoal e pode ser desrespeito mesmo, desrespeito humano. Houve alguma alusão ao fato como sendo um ranço da senzala. O adultério já é um fato muito complicado e em relação ao homem negro,  teve certa presença acentuada, nas histórias reveladas.

Pela apreciação dos depoimentos, o homem arrumava sempre uma forma de negar a sua presença, havia sempre um ato que camuflava a vontade de não estar por perto; ou ia para a gafieira, ou derrubava a trouxa de roupa limpa no chão, porque na trouxa tinha uma cortina vermelha que desconfiava ser de cabaré. Como desconfiava? Então saia para a rua, deixando a mulher trabalhando, entre outros casos; ou agredia com palavras grotescas os gostos mais refinados da mulher.Elas silenciavam. Choravam para dentro, baixando a auto-estima e acarretando doenças de cunho emocional.

Pelas colocações, todo o acompanhamento da escola era feito pelas mães.

Interessante é o fato como se referem à escola particular,  mais elogiada pela tradição e pelos lindos uniformes do que pela qualidade do ensino. Não desponta este aspecto de competência entre a escola pública e a particular. A evidência é que uma era dos ricos e a outra era dos pobres. A maioria das filhas das lavadeiras estudou em escola pública, ainda que, em algum momento, poucas  tivessem relatado uma passagem pela escola particular.

Ainda tem a capa de violino para lavar, com este sabão pouquinho...Vou lavar com o pensamento, em homenagem às lavadeiras e suas filhas que gostavam e gostam das Artes.

Um fato importante que derruba com muitos preconceitos negativos e estereótipos em relação ao negro e às pessoas analfabetas ou semi-alfabetizadas, tem relação com as artes nobres, pois as suas mães gostavam de Literatura, música clássica, óperas, operetas, teatro, cinema, ballet e canto lírico. Freqüentavam esses espetáculos, sempre que podiam ou ganhavam ingressos. Faziam teatrinhos em casa para as crianças, contavam histórias, eram artistas do lar. Passaram o gosto por esses encantos para as filhas, inclusive influenciando em suas carreiras, uma das quais tornou-se atriz, outra, professora de Artes Plásticas e Mestranda em Artes Visuais, teve a que estudou Canto Lírico, e a que formou-se em Literatura, de tanto escutar histórias e todas, com certeza, artistas do cotidiano.

Essas peças pequenas, essas roupas de crianças,  entranhadas de areia. Em cada dobrinha tem uma sujeira e os  bolsos recheados de papel. Esta  trouxa veio carregada de responsabilidades. Essas coisas de crianças são muito importantes. Vai sobrar conversa e vai faltar sabão. Mas conforme combinamos, inicialmente,  vamos lavando até onde der, não precisamos esgotar a trouxa, nem a conversa.

As situações de Cultura e de Lazer que as filhas das lavadeiras compartilhavam foram bastante diversificadas, dependendo da região em que moravam e da influência materna, Os componentes mais comuns foram escutar música na adolescência, ir no baile das sociedades de negros, umas desde crianças em baile infantil ou junto com os adultos nos clubes de negros, brincar de pegar peixinhos no córrego, brincar de esconde-esconde, andar de patinete, pentear caroço de manga, jogar Cinco Marias, subir nas árvores para apanhar frutinhas, fazer bolhas de sabão, fazer panelinha com chapinhas de garrafas, usufruir das diversões das praças: do balanço, da gangorra e do escorregador. Não fizeram muitas referências de  brincar com as bonecas, em criança. Inclusive existem alguns estudos acadêmicos que tratam deste assunto, da relação das meninas negras com as bonecas.

Também em relação ao Lazer foi citada a praça, lembrado o parque, o esporte, as visitas nas casas dos parentes, as serestas, os forrós, o cinema  e o Carnaval.

A praça, no depoimento,  configura-se como espaço de reunir as lavadeiras para construção da cidadania. No vai e vem das pessoas, no lá e cá das palavras, as mulheres interagiam com sua cidadania, unindo o lazer à democracia. O espaço ficava liberado às idéias reveladas. Então, adultos, crianças e idosos compartilhavam o tempo, o lugar, os olhares e os sentimentos. Naquela época, década de 50, a  praça Xavier de Brito, no Rio de Janeiro e tantas outras do Brasil, eram das mães com seus filhos, dos namorados, dos apreciadores das belezas das flores, do cantar dos passarinhos. A praça era do povo trabalhador.

Veio até um  axó de Xangô para a lavação. Justiça meu Pai, Justiça. Com os meus botões, Caô! Caô! Firma o meu cavalo e respeita a maioria das lavadeiras. Elas só cantavam hinos de Igreja. Meus botões,  canto é canto. Cada qual com seu cada canto.

A religiosidade apareceu forte nos cantos das lavadeiras do Sul e Sudeste. São cantos, meio rezas, representativos do hinário da Igreja Católica, dos quais aparecem algumas letras nos depoimentos. O questionamento mais forte ficou por conta do medo, na Semana Santa, quando incutiam nas crianças que com a morte de Jesus, ficava o demônio comandando o mundo, o que assustava muito as meninas que se acostumaram a ver os quadros horrendos do demônio, fazendo maldades, espetando as pessoas com enorme garfo, colocando gente na fogueira.

Houve queixas sobre o catecismo católico muito severo, com um  Deus que era  respeitado somente pelo medo.  Realmente  era coisa muito complicada para as crianças, ainda mais quando diziam para as negras que todos os anjos eram branquinhos. Elas esperariam  o quê? Ir para o inferno.

Em todos os casos, no aspecto religioso, surgiu o momento de questionar sobre os anjos. Por que somente anjos brancos? Atualmente, já aparecem anjinhos negros e a cor dos anjos não preocupa mais.

Pelos relatos, a maioria deixou de freqüentar a Igreja Católica onde realizava todas as práticas e até algumas  pertenciam às Irmandades de Filhas de Maria , as mais novas e,  as mais velhas, às Irmandades do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, ou de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

 Algumas  continuam indo à missa todos os domingos e dias santos e outras não revelaram a religião. Mas cantam os hinos da Igreja católica e até vão à Igreja, por ocasião de casamento, batizado, em missas de aniversário, sétimo dia, no Natal e na Semana Santa, quando a liturgia já modificou bastante e possuem o necessário entendimento sobre essas coisas simbólicas.

O fato mais contundente de citação religiosa ficou por conta da filha de lavadeira cuja família era Evangélica, o que obrigou-a a optar entre seguir as atividades da Igreja ou envolver-se no mundo, como cidadã política, inclusive militante do Movimento Negro Unificado, coisas não permitidas pela Igreja Evangélica, além dos seus dogmas. Mas admite, com muita alegria, que dentro dos preceitos desta religião, os seus familiares se mobilizam de forma muito saudável, vivenciando com os filhos as mais bonitas e dignas lições de amor ao próximo, solidariedade, fé e harmonia, valores cristãos que adquiriu com sua mãe Evangélica. Cantava no coral da Igreja e muito apreciava seus hinos, alguns dos quais ainda lembra.

Existe referência à religião  afro e Mãe de Santo, porém não há, por parte das filhas, a  evidência explícita desta prática religiosa. Geralmente as pessoas optam por não comentar aspectos religiosos de suas vidas, como bater cabeça para o santo, tomar passe, participar de sessão de Preto Velho. Só se estiverem na Bahia, então não escondem porque é um caso cultural, como dizem, não é mesmo?

Como as mulheres depoentes são negras, procuraram fazer alguns registros sobre o Movimento Negro, ocasião em que houve muitas controvérsias. Para umas, o Movimento Negro é o que se pode fazer nas bases, nas famílias; para outras ele tem relação com o poder que precisa urgente ficar mais direcionado nas mãos dos negros. Também aparecem desencantos e decepções por conta de mudanças que ocorreram no modo de atuação do Movimento Negro, dos anos oitenta até agora. Existem referências ao individualismo, vaidades, egoísmo e falta de organização por parte de falsas lideranças que assumem a causa e até certos cargos políticos, por interesses pessoais e excluem os companheiros. Mas exaltaram o trabalho das mulheres que iniciaram as lutas no movimento negro e acreditam que essas mulheres abriram caminhos para que as pessoas se assumam com suas responsabilidades, fazendo sua parte, porque não é mais o movimento negro que irá resolver os problemas da população negra. As frentes foram abertas.

Pelos depoimentos, as filhas de lavadeiras de Caxambu estão caminhando com o Movimento Negro junto com a Pastoral do Negro e o movimento das Congadas e estão cheias de ideais, parecem ainda viver os momentos mais solidários e conscientes do Movimento Negro, mesmo com todas as dificuldades das pessoas se assumirem negras naquele município. É um dado para ser registrado e comentado, pois enquanto uns desanimam, outros tocam para a frente as ações. São as fases dos caminhos, dos movimentos.

 Mas meus botões, essas desconfianças, as dúvidas. Nem precisa de tanto dilema. Tudo pode ser resolvido sob a proteção de Santa Bakita. Ela vem ajudar.  Tenho certeza de que negro, ainda pode ajudar a outro negro., ainda mais se ele estiver em movimento, fica mais fácil para dar um empurrãozinho. Mas Bah! Barbaridade! (esqueci de contar que meus botões são gaúchos e que de vez em quando me exigem certas expressões gaudérias), tem que ter cuidado, gurias e guris, com o tal de empurrão. Vamos conversando, devagarinho, pedindo uma força para Santa Bakita, uma Santa negra assumida. Ela ajuda nessas pendengas. Recebida a graça, a Poderosa  Santa cobra apenas um pequeno ato perpétuo, em ação de graças: repete-se, na hora grande, enquanto tivermos vida, em frente ao espelho, para valorizar a nossa auto-imagem, a seguinte reza:

Santa Bakita,  agradeço a ajuda

que recebi do meu negro irmão.

 Peço perdão, se algum dia  deixei

De acreditar em nossa histórica união.

Em frente ao espelho, dada a oportunidade, você já aproveita para exercícios de valorização da auto-imagem, pois surgem as lembranças das histórias infantis, de miss negra, de musas negras populares e a reza é completada com a maior animação, quando a gente pergunta e a gente mesmo já responde, pelo espelho mágico: espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu? Não, não, não...Negra é linda.

Meus botões são galhofeiros natos. Eles me ajudam a viver, sorrindo.

Para entender melhor o Movimento Negro citado nos  depoimentos, há necessidade do conteúdo ser estudado por especialistas no assunto, por militantes que reflitam politicamente sobre o que as filhas das lavadeiras estão querendo dizer,  porque o tema é bem complicado, exige a necessária competência para uma análise apurada. Apesar de termos uma literatura  muito boa sobre o assunto, em nenhum momento encontra-se qualquer coisa semelhante, com esta espontaneidade com que as mulheres estão falando sobre o Movimento Negro, movimento de negro, uma revelia pessoal. É uma conversa que merece atenção maior, porque deu para sentir muitas controvérsias, ressentimentos e diferentes opiniões.

Sempre insistindo, as mães lavadeiras acreditaram que podiam fazer das filhas, mulheres que não precisassem lavar roupas, assim como elas, para ganhar o pão. E conseguiram.

O centro  principal dos referenciais foi a escola, o estudo, o trabalho, a correria para usufruir do pão e do ensino. A escola foi o sonho. A honestidade e o trabalho longe dos tanques, completavam o recado das lavadeiras para as suas filhas. Todas conseguiram, dentro de suas possibilidades, atingir seus objetivos, e este fato serve para a auto-estima da nossa sociedade. Muitas das filhas das lavadeiras não são pessoas ricas de coisas materiais, porém o que possuem é inalienável, são bens interiores.

 Sem a pretensão de biografar as filhas das lavadeiras, deseja-se colocar em evidência que elas estão contribuindo para o desenvolvimento do país, da forma como cada uma se posicionou em sua profissão e, mesmo algumas, depois de aposentadas, ainda continuam suas carreiras em pleno convívio social. Não são a personificação das vagabundas, malcriadas, briguentas e escandalosas, estereótipos mais comuns com que certas pessoas desqualificadas, ainda costumam chamar as filhas de lavadeiras.

Muitas coisas preocupam no mundo atual. Preocupa a violência contra as mulheres, a violência do mundo, contra tudo e todos. Mas  nada é mais preocupante do que saber que as crianças estão nascendo nos guetos marginalizados ou em outros lugares onde as mães não se animam, não têm um objetivo de fazer dessas crianças umas pessoas, gente, como as lavadeiras trabalharam pelas suas filhas. Se elas não acreditam mais na escola, se a escola, o estudo, não é mais a esperança da sociedade, o que será então? Qual a motivação para que essas mulheres lutem novamente por um objetivo de desenvolvimento, pelo menos por um,  pela valorização da  vida?.

 As mulheres lavadeiras, decantadas por suas filhas, foram as heroínas. Mas o que está acontecendo com as mulheres, agora, que não conseguem tocar para frente, dar continuidade aos valores de seus antepassados? Faltam cuidados para com a família, as estratégias de desenvolvimento estão entregues a quem? Sem culpas ou com culpas? Como vimos as mulheres negras, hoje?

 Em vários lugares onde as lavadeiras e suas filhas viviam tranqüilamente, estão acontecendo violência e dor. Os jornais estão plenos de notícias terríveis, tanto de lugares do Rio de Janeiro, como de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, de São Paulo, do Espírito Santo e tantos outros estados do Brasil. Locais decantados pelas filhas das lavadeiras aparecem nas páginas policiais. O que as filhas das lavadeiras ainda podem fazer?

Algumas falam em ingressar a fundo na política, para ter o poder de tocar para frente projetos socioculturais, fazer revolução no ensino, na Educação. Outras elaboram planos de ação em favor do desenvolvimento, pela paz, pela igualdade de oportunidades, pelo aproveitamento de talentos para estimular o processo educacional. Existem as que acreditam no poder da revitalização cultural, na religiosidade, nos valores éticos e cristãos, todas as esperanças ainda continuam com as filhas das lavadeiras, para superação da discriminação, das desigualdades. Mas seus planos, seus ideais, seus projetos andam empoeirados nas gavetas.

Existem políticas para o desenvolvimento socioeconômico, e educacional direcionado para aqueles lugares de onde procederam as filhas das lavadeiras, mas infelizmente, essas políticas não caminham, ficam só no papel. E como dizia minha avó lavadeira, o papel aceita tudo, transforma-se até em máscara, chapéu de bruxa, aviãozinho.

A humanidade precisa de um novo tempo, feliz. Você também acha assim? Se estamos perdendo valores, perdendo coisas vitais, básicas,  tenho a certeza de que você acha assim, pois só acha quem perde. Estamos perdendo muitas alegrias, muitas perspectivas que poderiam ser melhores.

Em todos os depoimentos das filhas das lavadeiras, apesar das adversidades, nenhuma delas colocou que não era feliz. As pessoas viviam do modo como podiam viver.

Hoje, como lembrou Ruth de Souza:” se a vizinha compra uma blusa nova, a outra já quer comprar também. Uma sociedade harmônica e desenvolvida não se faz com o consumismo e a inveja.”

O exemplo das filhas das lavadeiras, de suas mães trabalhadoras tem que servir para movimentar de forma brilhante a auto-estima das mulheres, especialmente das mulheres negras, dos nossos adolescentes, dos jovens, da sociedade em geral.

Se as lavadeiras puderam educar seus filhos e filhas, lavando na beira das tinas, nos rios, nos córregos, nas cachoeiras, subindo e descendo estrada, com trouxas na cabeça, carregando os filhos e filhas, com certeza, outras mulheres também podem se mobilizar para que os filhos e filhas se orientem de forma positiva, para que não fiquem na marginalidade, excluídos, negados.

As pessoas, mulheres e homens não têm este direito de colocar filhos no mundo para ficarem na vida como peças expostas aos temporais, nos arames da vida,sem que sejam recolhidas, cuidadas, acariciadas e deixadas limpas, bonitas, brilhantes, como as lavadeiras cuidavam de suas peças. E eram coisas, coisas sujas.

Falar sobre as filhas das lavadeiras trouxe muita paixão, mas ao mesmo tempo, uma tamanha indignação, no confronto com fatos tão mesquinhos, como jogarem no rio uma criança no colchão por ter feito xixi na casa da patroa; homens e mulheres sem trabalho pela perseguição política; uma professora, a primeira professora negra da cidade, não conseguir dar aulas porque era preta, como diziam, junto com seu nome próprio Eva Preta. E por aí vão... Absurdos! Mas foram vitoriosas essas pessoas, essas famílias.

As filhas das lavadeiras trouxeram mensagens de  otimismo, de felicidade, de recordações de lugares, de coisas vividas cada uma em seu tempo de criança, de jovem, de adulta, trouxeram referenciais de vida. A saudade que expressaram, mesmo  daqueles tempos mais adversos, é bem compreensível, pois a maioria, ainda tinha a presença da mãe.

Parece que perdi os meus botões, meus pensamentos, minha herança. Que interferências poderão ter afastado os meus pensares?

A herança deixada pelas mães lavadeiras resume-se em valores que incluem o estudo, a alegria de viver, o trabalho, a coragem, a honestidade, a organização, a disciplina, a solidariedade, a amizade, a fé, o carinho, o amor, o bom trato para com os semelhantes, a resolução dos problemas, sem brigas, a proteção da figura do pai, mesmo que tenha problemas, a criação,  de estratégias para conseguir o desejado. Ainda influenciaram no gosto pelas Artes, pela vaidade, pela feminilidade, pela dignidade, pelas atitudes de silêncio nas horas de precisão e pelo argumento e poder da fala para orientar, questionar seus direitos, entender e fazer-se entender em seus pontos de vista, para harmonizar e criar situações de relacionamento civilizado com os filhos, com os parentes, com os amigos, no lar, no trabalho.

Nota-se que as crianças tinham uma participação nos trabalhos das lavadeiras, entregando as roupas, ajudando a torcer as peças, assoprando os ferros de brasa, dobrando e contando as roupas, carregando água. Perguntadas sobre a forma como era visto este tipo de trabalho, foram unânimes em dizer que foi muito bom que trabalhassem porque o trabalho desperta o senso de responsabilidade e que não sentem, naquilo que fizeram, nenhum tipo de exploração do trabalho infantil, mas sim uma estratégia de solidariedade e de envolvimento com as coisas da casa. As mães estavam trabalhando, eram as protagonistas principais do trabalho e as crianças ajudavam nas tarefas menos penosas. Acharam muito  natural e acreditam que deve haver uma parcela de trabalho e responsabilidades das crianças em casa, pois além de afastar das ruas, estão aprendendo a fazer alguma coisa que talvez mais tarde seja útil para a sua sobrevivência.

Tem muita roupa para ser lavada, a trouxa está pela metade. Terminou o sabão, um sabãozinho de nada... Perdi os meus botões...Que vontade de gritar bem alto. Gritar, quando se pode é cantar?  Vamos cantar e é  já.

Ogum, olha a sua bandeira,

ela é branca, verde e encarnada.

Ogum, no campo de batalha,

Ele venceu a guerra.

E não perdeu soldado.

-        Mamãe! Que negócio é este de sabãozinho de nada? Que coisa estranha de conversa inacabada? E essa cantoria?

-         Homenagens, homenagens para as guerreiras.

-         Mas a Senhora  conversava com quem?

-         Estava falando com os meus botões.

-         Botões não falam.

-         Mas me escutam. De repente entrou alguma  interferência e eles se perderam.

-         Mamãe, existem tantos botões para se ligar nesta casa... E ainda quero saber da conversa inacabada.

-         Era com elas, a conversa. Com elas e com os meus botões. Mas por momentos roubaram a minha atenção, revirei a cabeça, perdi os meus botões.

-         A Senhora está brincando comigo. Onde estão elas que não as vejo? E por acaso foram elas que falaram do seu máxi-lencol, que transformaram uma cortina em poesia, que saudaram Xangô, com Caô! Caô!  E agora, ainda há pouco cantaram para Ogum? São coisas suas, mamãe, bem suas. .A senhora era elas. Elas eram a senhora.

-         Não sei de nada. Até meus botões desapareceram.

-         Compre outros, mamãe. Peça pelo tele-botão, por fax, pela internet. Não chore os botões perdidos. Temos  botões em casa para apertar e plic, plic,  tudo cai em suas mãos.

-         Nem tudo,  nem tudo.

-         Compreendo, mas sem culpas.  Também tenho os meus botões, a senhora me ensinou a conversar com eles e jamais estão à venda. M as por que a conversa ficou inacabada?

-         Foram elas que se retiraram.

-         Mamãe, suas ligações com o astral ainda vão dar em confusão. Não vejo mais ninguém, além de nós. Ou fui eu que dispersei os seus botões? Também estava falando com os meus. Falei alto demais e você deve ter se ligado.

-         Será? Era uma conversa feminina. Ela sabe quem eu sou. Falava de roupa lavada, geada nas mãos, chá de matinho, sabãozinho pouco, cortina no chão, pão com pão, camisa de patrão,  casa e comida, família, parentes, agregados, livro, caneta, sapato, furado, caderno, uniforme, alguém na vida, ler e ser, ter e haver, ter e não ser, lavação, passação , exploração, ferro de brasa, água da bica, da tina, do rio, das cachoeiras, do morro, da ponte dos negros. e o resto todo de desassossego.

-         Agora acredito que eram elas: você e eu. Não deixaremos a  conversa inacabada. Acontece que enquanto a senhora falava com os seus botões, na frente da máquina de lavar roupa, eu estava com os meus botões ligados na nossa história. Nossas ligações se cruzaram. Mamãe, eu venho falando há tempos, que isso dá confusão,  a senhora ficar interagindo com os botões  dos outros. A senhora fica quietinha, silenciosa, escutando tudo o que se diz. Você vai longe, com essa  invenção de conversar com os seus botões.

-         Então, minha filha, você me conhece de verdade..Fico calada, mas alguém sempre interfere.

-         Eu lhe conheço muito bem. A Senhora é a minha mãe, uma mulher negra trabalhadora com a maior dignidade, A LAVADEIRA. E estou organizando os meus botões para contar a sua história.

-        Você? Você vai escandalizar?

-         Seus botões voltaram depressa e muito avançados. Será que ainda me conhecem de verdade?

-         Para começar, como eu queria, você é alguém na vida,  uma mulher negra com dignidade, trabalhadora, que freqüentou o colégio, sabe ler, sabe escrever e que de tanto ler e escrever, desaprendeu de lavar roupa e comprou uma máquina de lavar. Você é A FILHA DA LAVADEIRA. E vamos acabar com esta conversa.

-         Ainda não acabamos de conversar. Quero arrumar um jeito contundente que todo mundo saiba, não apenas eu, que você é uma Vida.

-         Escandalize. Leve-me na faixa de pedestre e deixe que eu passe sem nenhum sinal, quando vier uma  lotação voando. Saia de perto e veja no que vai dar: mais uma vida que passa para a eternidade, uma negra, aparentando setenta anos, pelas mãos calosas e a curvatura da coluna deveria ser lavadeira das redondezas, ainda com cheiro de sabão de soda e presença de pigmentos azuis e coadjuvantes ignorados, parecendo pó de anil, na periferia do corpo, sem carteira de identificação profissional, aguarda reconhecimento no Instituto Médico legal para os devidos processos de pesquisa e sepultamento. A morte divulga a vida, no obituário. Tem quem leia, todos os dias, minha filha.

-         A Senhora faria uma aventura dessas somente para atender ao meu desejo?  E ainda precisamos de tragédias, para ter visibilidade? Isto não combina com a sua dignidade, nem com o trabalho que passou para me criar. Nós somos visíveis, gente.

-         Mas afinal o que é dignidade? Se é por causa da tal dignidade, meus botões estão dizendo que troque de estratégia. Quem sabe escreva um livro, um livro que irá passando de mão em mão. Quem sabe? Um livro com dignidade, contando a história das lavadeiras pelos botões de suas filhas.

-         Mamãe, a senhora me surpreende. De vez em quando  anda envolvida com os seus botões. Mas, sabe-se lá o que lhe dizem e onde lhe levam.  Depois de tudo que passou na vida, tem  plenos direitos de envolver-se com o que quiser.

Recado: A continuidade deste livro, com seus quatro atos, está aberta a todos aqueles que sentirem necessidade de aprofundamento na riqueza de conteúdos dos referenciais históricos das filhas das lavadeiras. Foram tantos!  Mas acabou meu sabão.


 
 
 

*Referenciais Históricos de Sandra Beatriz Moraes da Silveira

* Referenciais Históricos de  Maria Aparecida Gonçalves da Silva

* Referenciais Históricos de Amália Helena Portela

* Referenciais Históricos de Terezinha Juraci Machado da Silva

 

nota biográfica

Maria Helena Vargas da Silveira (rainhaginga@uol.com.br) nasceu no Rio Grande do Sul, cidade de Pelotas.

Estudou em escolas públicas de Pelotas e de Porto Alegre, da alfabetização ao ginásio (hoje, Ensino Fundamental Completo da 1a à 8a série).

Ingressou no curso de Formação de Professores da Escola Normal Assis Brasil (escola pública, hoje, Instituto de Educação) em Pelotas-RS.

Iniciou curso de Pedagogia em Pelotas, na Faculdade Católica.

Transferiu-se para a UFRGS onde concluiu o Curso de Pedagogia.

Fez especialização em Supervisão Educacional na FAPA – POA.

Atualmente, ela trabalha na Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).

A Autora tem inúmeras publicações em coletâneas acerca do Mundo Negro e obras individuais que vão de Ensaios, Contos e Crônicas, como O Encontro (2000), até Poesias como Meu Nome Pessoa (1989).

        Em As filhas das lavadeiras (2002), são as filhas que contam as histórias das mães lavadeiras. Através dessas histórias, se podem notar as conseqüências da escravidão, do racismo e do sexismo no Brasil. “Poderia ser diferente, mas tomei os rumos que tem muito a ver com o legado de meus familiares; o trabalho, a escrita e a não aceitação das injustiças.” (http://rainhginga.sites.uol.com.br)

          Estamos apresentando aqui, seis das “histórias” das Filhas das Lavadeiras.

 

 

labrys, estudos feministas / études féministes
janeiro / julho 2005 - janvier /juillet 2005