Labrys
estudos feministas/ études féministes
janeiro/ junho 2006 -janvier / juin 2006

As mulheres e os discursos da Amizade

MarildaAparecida Ionta

Resumo

É comum no imaginário ocidental idealizar a capacidade dos homens para o exercício da amizade e menosprezar as experiências das mulheres nesse vínculo intersubjetivo. Grosso modo, esse imaginário masculino veicula a incapacidade das mulheres para tecer laços de amizade entre si e com o sexo oposto, pois de acordo com esse cânone elas só pensam em amor e casamento. Por essa razão, o objetivo desse texto é refletir sobre as relações de saber e poder que perpassam a escrita da história e os discursos canônicos sobre amizade, pois eles alimentam regimes de verdades amplamente consumidos pelas sociedades contemporâneas que reproduzem estereótipos vinculados às noções de masculinidade e feminilidade.

 

As crenças que alimentam o imaginário social contemporâneo remontam à tradição filosófica em que, de Platão a Montaigne, de Aristóteles a Kant, se postulava a incapacidade de as mulheres contraírem relações de amizade entre si e com o sexo oposto. Para Aristóteles, em Ética a Nicomâcos, por exemplo, as mulheres não exercem a amizade em sua plenitude, pois elas e os homens afeminados são propensos às lamentações, e suas relações com o outro derivam de situações aflitivas e de tristeza. Isso faz com que elas se afastem da verdadeira amizade.

Nessa mesma linha de raciocínio, Cícero reatualizou o discurso aristotélico para o contexto da sociedade romana. Em seu texto, Lélio, ou A amizade, ele explica que as mulheres, por sua fragilidade e falta de solidez, procuram relações de assistência e proteção e não vínculos dotados de nobreza, como se supõe existir na verdadeira amizade.

Assim como os filósofos da antiguidade greco-romana, Montaigne, no século XVI, repetirá o refrão da incapacidade das mulheres para a amizade, e a concepção desse pensador talhou também os cânones literários posteriores. No século XIX, por exemplo, Gustave Flaubert escreve que as mulheres são ineptas para a verdadeira camaradagem, pois elas são românticas demais, não conseguem se transformar em hermafroditas; isto é, femininas para os prazeres carnais e masculinas para os laços de amizade. Ademais, ele afirma que as mulheres sonham com o casamento (VINCENT- BUFFAULT, 1996).

Essas crenças reincidentemente difundidas no imaginário social ocidental sustentam o credo dominante sobre a amizade em nossa sociedade. Elas associam a temática da amizade às questões de gênero ao propagar as seguintes concepções: a amizade é uma prática e um tema masculino; ela é, por excelência, um assunto de homens;  as mulheres são incapazes do sentimento amistoso, pois elas só pensam em amor; nas sociedades pré-modernas, a polaridade sexual é irreconciliável pois homens e mulheres vivem em mundos separados (feminino e masculino), não podem ser íntimos e nem amigos. Por outro lado, nas sociedades industrializadas, as amizades mistas são vistas como suspeitas. Essas concepções formam uma espécie de repertório de saber sobre a amizade, amplamente consumido e difundido socialmente no mundo contemporâneo.

É impressionante constatar como esses regimes de verdade naturalizaram-se em nosso imaginário, produzindo muitas outras crenças que reafirmam estereótipos vinculados às noções de masculinidade e feminilidade. De um lado, tornou-se comum idealizar a capacidade dos homens para a lealdade e a dedicação, e de outro a de desvalorizar a amizade entre as mulheres. Isso é visível na reincidência da idéia de que as mulheres, quando jovens, rivalizam entre si para atrair a atenção masculina; e quando são casadas, dedicam-se às suas famílias, sendo absorvidas na cotidianidade da vida doméstica.

De modo geral, a amizade aparece como um campo interditado às mulheres, pois de acordo com o credo dominante sobre o tema, elas não dão conta de estabelecer laços sólidos e verdadeiros entre si. Via de regra, o que se discute sobre a temática se aloca no fértil terreno de uma longa tradição filosófica que é, por excelência, masculina. Entretanto, os estudos feministas estão desconstruindo sistematicamente o que normalmente se afirma sobre as mulheres e a amizade.[1]

Como dito, de Platão a Montaigne, de Aristóteles a Kant, de Cícero a Hegel, não é possível falar em laços amistosos entre homens e mulheres. Nesses discursos filosóficos, esse tipo de vínculo é considerado imperfeito, não se enquadra no que Aristóteles denominou teleia-philia, isto é, a amizade perfeita. E, conseqüentemente, são desprezíveis em relação aos laços tecidos entre os homens, pois as mulheres não são capazes da “verdadeira amizade”.

Grosso modo, para Aristóteles, a amizade perfeita caracteriza-se por uma relação de proximidade, de convivência, de confiança, de igualdade, de reciprocidade, de semelhança e de concórdia entre as pessoas. No discurso fundador desse filósofo sobre a amizade, a teleia-philia tem por base a excelência moral, e só pode ocorrer entre pessoas boas e semelhantes. Esse não era o caso das relações entre homens e mulheres na sociedade grega, pois essas encontravam-se em uma relação de domínio e submissão em relação aos homens.

Como se sabe, na Antiguidade grega as relações entre homens e mulheres eram rigidamente codificadas, tanto no matrimônio como na prostituição, e, à parte essa regulamentação, eram interditadas. Confinadas no espaço doméstico do oikos, as mulheres estavam submetidas ao poder masculino, pois a família era o centro da mais severa desigualdade. Esse espaço privado, local de interação entre os sexos, é caracterizado por Hannah Arendt (1995) como espaço de privação, isto é, marcado pela ausência de liberdade e de luta pela sobrevivência biológica. Como afirma Arendt, para os gregos o espaço privado não é o lugar de aconchego, de intimidade e de privacidade, como é para os modernos.

Segundo a filósofa, era a vitória sobre as necessidades da vida na família que possibilitava galgar o espaço público, lugar por excelência da liberdade e dos homens. “A esfera da polis, ao contrário [da família], era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis” (ARENDT, 1995: 41). Nesse sentido, a grande maioria das mulheres, ao ocupar o espaço da privação marcado pela ausência da liberdade, também não tinha o acesso à amizade e nem ao amor.

Como mostrou Michel Foucault em seu livro O uso dos prazeres (1998), no qual analisa a erótica grega, em uma sociedade em que as relações entre os sexos eram regulamentadas por contrato ou pagamento e a mulher encontrava-se em uma relação de domínio e submissão, não era possível desenvolver a arte erótica nas relações entre homens e mulheres. Isto porque essa arte caracterizada pela sedução, recusa e persuasão só poderia existir entre pessoas livres. Assim, na polis clássica, o baixo estatuto da mulher e sua reclusão na esfera privada levaram a concentrar a paixão e a ternura nas relações entre homens, o que teve como conseqüência o privilégio do culto da amizade e do amor masculinos[2].

Dessa maneira, a amizade torna-se um assunto e uma prática de homens constitutiva da virilidade, da cidadania, da ética e do cuidado de si entre os gregos (FOUCAULT, 1985). Seu exercício realiza-se entre pessoas virtuosas em sua sabedoria, comando e governo, e as mulheres estavam excluídas desse círculo social, ético e político.

Embora a situação feminina e as relações entre os sexos, em nossa sociedade, tenham se modificado sensivelmente em comparação à Antiguidade, a crença na incapacidade das mulheres para a amizade parece continuar a povoar o imaginário social. Contemporaneamente, o saber masculino continua a desprezar as amizades femininas, porque se fia na idéia de que as mulheres são emocionais, expressivas demais para experimentar a profundidade da amizade. Como sublinha Josepa Cuco Giner (1995), de  modo geral as ciências sociais identificam-se com esse traço androcêntrico.

Essas concepções reproduzem, de certa forma, as máximas elaboradas, quase meio milênio atrás, por Montaigne (1533-1520). A propósito das mulheres e da amizade, este pensador afirmava que a afeição dos homens pelas mulheres, embora fosse livre escolha, não podia se comparar à eleição ocorrida na amizade. De modo geral, em suas idéias as mulheres não tinham condições de realizar as trocas fecundas provindas dos laços entre amigos, pois a alma feminina carecia do vigor indispensável para sustentar o abraço apertado do sentimento amistoso, de duração ilimitada, que tão fortemente une os homens entre si. Para o filósofo, na amizade e no casamento a afeição e a livre escolha podem existir, porém os afetos da união entre homens e mulheres não podem ser comparados aos existentes na amizade.

Em seu clássico texto Da amizade, o ilustre cultor dos vínculos amistosos escreve que caso fosse possível formar com as mulheres uma relação de amizade, esta seria a amizade mais perfeita. Segundo Montaigne, porém, “não há exemplos de mulher que a tanto tenha chegado e, de comum acordo, todas as escolas filosóficas da antiguidade concluíram ser isso impossível” (MONTAIGNE, 1972: 93). Enfim, as mulheres estão geralmente destinadas ao amor pela condição de reprodução da espécie ou por obstáculos sociais e impedidas de ter acesso à amizade. Assim, pode-se afirmar que para tornar as amizades masculinas perfeitas, teleia-philia, e inseri-las na ordem do sublime, foi necessário excluir as mulheres deste tipo de vínculo; em outras palavras, para que os laços entre homens fosse o modelo perfeito de amizade, foi preciso excluir as mulheres dessas relações. Como afirma Jacques Derrida (1994) com muita propriedade, a exclusão das amizades femininas e da heterossexualidade nos discursos canônicos sobre a amizade tem como contrapartida o culto da homossexualidade viril.

Então o problema é: como explicar a permanência histórica dessa representação? Como entender a poderosa força desse cânone que até hoje exclui duplamente as mulheres da amizade? Pois ela elide tanto os laços tecidos entre as mulheres quanto o que elas criam com o sexo oposto. Porque os discursos filosóficos que alimentam o imaginário social insistem em não reconhecer as experiências femininas e heterossexuais nos laços amistosos?

Evidentemente, reconhecer as experiências femininas no campo da amizade seria admitir a capacidade das mulheres para a criação de relações intersubjetivas diferenciadas, seria reconhecê-las como iguais, pois o amigo é outro eu, como ensina Aristóteles em Ética a Nicomâcos; seria incluí-las na ordem da igualdade, da sabedoria, do governo e do comando.

Como nos faz crer Derrida, a exclusão do feminino na amizade é correlata a muitas outras estratégias que procuraram manter a dominação masculina e reservar o espaço público ao homem e o espaço doméstico à mulher. Os discursos filosóficos tradicionais alimentam um imaginário patriarcal sobre a amizade que associa diretamente o fenômeno da amizade à masculinidade. Isso se reproduz inclusive no interior dos campos científicos, uma vez que são os homens que constroem esse discurso e realizam as pesquisas sobre amizade. Nesse sentido, eles tendem a valorizar e dar visibilidade às práticas amistosas masculinas e desvalorizar e elidir as femininas.

Como nos demais campos de nossa cultura, os discursos ético-político-filosóficos da amizade estão embriagados de falogocentrismo; o falo é o significante em torno do qual gravitam os conceitos, as interpretações e as experiências da amizade. Os diversos modelos de amizade conhecidos na historiografia são, antes de tudo, homofílicos, quer tratem da democracia ateniense, da relação de fidelidade da sociedade feudal ou, mais próximos da sociedade contemporânea, dos laços amistosos que nascem da guerra social (VICENT-BUFFAULT, 1996).

Simbolicamente, o falo estabelece as condições morais e políticas de uma amizade autêntica das quais as mulheres estão excluídas. Portanto, a amizade é prenhe de significações políticas; ela ilustra uma ordem social fundada no poder masculino, na veiculação de um modelo político democrático; isto é, uma sociedade de irmãos em que as irmãs estão excluídas. Reconhecer a capacidade das mulheres para a amizade seria uma das maneiras de minar as bases do edifício falocêntrico de nossa cultura e suas propostas de gestão das populações, de controle sobre os corpos e sobre a vida dos indivíduos. Jacques Derrida (1996) vê o discurso greco-cristão da amizade perfeita como a comunicação reincidente de um modelo político fundado na igualdade, liberdade e fraternidade, isto é, como a recitação e a propagação da idéia de grande sociedade de irmãos. Segundo o autor, esse discurso da amizade vem dar aquiescência ao sistema político democrático. 

Como nos mostra a História, entretanto, todo credo possui seus hereges, ou seja, aqueles que desafinam “o coro dos contentes”. Nesse campo, situam-se as concepções de Nietzsche. Percebe-se que este pensador associa o homem, a mulher e a amizade em uma outra perspectiva, contrapondo-se ao discurso aristotélico-ciceroniano da amizade.

Em Assim falou Zaratustra, mais especificamente no canto Do amigo, Nietzsche problematiza a capacidade humana para a amizade por meio de sua personagem. Para Zaratustra, ser capaz de amizade é saber reconhecer no amigo o inimigo que ele pode ser, uma vez que, “no amigo, deve-se, ainda, honrar o inimigo” (NIETZSCHE, 1987: 72). Assim, reconhecer no amigo o próprio inimigo é para o filósofo um sinal de liberdade. Essa virtude não pertence nem aos escravos e tampouco aos tiranos, pois eles não são suficientemente iguais e livres para alcançar essa liberdade. Dessa conclusão política, Zaratustra passa à questão da mulher. Diz ele:

>Por demasiado tempo se escondeu na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher não é ainda capaz de amizade: ela conhece somente o amor. No amor da mulher há iniqüidade e cegueira com relação a tudo o que ela não ama. E também no amor consciente da mulher há ainda sempre agressão, tempestade e noite, ao lado da luz. A mulher não é ainda capaz de amizade: como gatas e passarinhos são ainda as mulheres. Ou no melhor dos casos, novilhas. (NIETZSCHE, 1987:73) .

Como se observa em Assim Falou Zaratustra, em especial no Canto do amigo, o filósofo serve-se de Zaratustra e elabora, a princípio, um julgamento político das mulheres bastante tradicional, pois elas são incapazes de amizade, de inimizade, de justiça, de respeito a tudo o que não amam. Nesse sentido, a mulher não é um homem, “como gatas e passarinhos são ainda as mulheres”; elas não fazem parte da humanidade, estão fora da lei no que se refere ao ato de amar, no melhor dos casos elas “são novilhas”, ou seja, procriam, e Zaratustra as reconhece como mães.

Entretanto, após essas afirmações sobre o sexo feminino, Nietzsche, por meio de uma inversão apostrófica, faz com que Zaratustra se volte para os homens para acusá-los. Dirigindo-se a eles, pergunta: “A mulher não é ainda capaz de amizade. Mas, vós, homens, dizei-me quem de vós é capaz de amizade?” (NIETZSCHE, 1987: 73). E a seguir afirma: “Quanta pobreza, ó homens, quanta avareza existe em vossas almas! Na mesma medida com que vos entregais ao amigo, eu quero usar também com o meu inimigo, e nem por isso vou ficar mais pobre” (NIETZSCHE, 1987: 57).

Zaratustra parece não ver nos homens, e tampouco nas mulheres, a capacidade de amar e respeitar aqueles com os quais não se identificam. Neste caso, ambos estão no mesmo plano, são idênticos na avareza e em suas partes malditas. A incapacidade para o sentimento amistoso é comum aos gêneros, pois homens e mulheres igualmente não são generosos o bastante para darem-se uns aos outros; não possuem o “Dom” infinito da irreciprocidade, do dar sem receber que as relações de amizade requerem, segundo Nietzsche. Nesse sentido, pode-se dizer que ao tornar homens e mulheres incapazes de amizade, o filósofo acaba por macular o falo e borrar as amizades viris. Ele estilhaça a teleia-philia masculina, as amizades perfeitas.

Como uma espécie de lamento, Zaratustra diz: “Se existe a camaradagem: que possa existir também a amizade!” (NIETZSCHE, 1987: 73). Esse apelo pode ser interpretado como a necessidade de superação dos laços amistosos que até hoje têm norteado a relação com o outro.

Habilmente, Nietzsche serve-se de um discurso quase cristão, usando a noção de amor ao inimigo, dar sem receber, para se opor à herança aristotélica da amizade. Ele se lança contra a noção de amizade grega por excelência, fundada na igualdade, semelhança e reciprocidade. Zaratustra expõe no canto Do amigo as fragilidades da tradição discursiva aristotélica-ciceroniana da amizade, ao revelar a inexistência da amizade entre os homens, criando fissuras profundas nas concepções falocêntricas da amizade.

Mais adiante, no canto Do amor ao próximo, Nietzsche irá contrapor a idéia de amor ao próximo à noção de  amor ao distante, afastando-se, também, do discurso cristão da amizade, rompendo com a “economia do sublime” que caracteriza o Cristianismo. Assim, Nietzsche, que a princípio parece reafirmar os discursos dominantes sobre a amizade, rompe com o cânone hegemônico.

A empreitada nietzschiana cria outra concepção de amizade, lançando luz para a assimetria, a irreciprocidade, a diferença, o estranhamento, a distância; enfim, ele afirma a heterogeneidade, a alteridade que não deve ser suprimida na busca da concórdia. Como sublinha o filósofo Francisco Ortega (2000), a noção de amizade do filósofo não supõe a busca na amizade do dissenso, do conflito, da irreciprocidade, mas que a lente para olhar a amizade oferecida por Nietzsche põe em questão nossas crenças no monopólio da transparência, do consenso, da identificação, da fusão, da extrema intimidade nas relações de amizade.

O resgate da filosofia nietzschiana da amizade pelos intelectuais franceses contemporâneos tem possibilitado pensar esse vínculo como um mecanismo de formação e transformação, em que o conflito e heterogeneidade desempenham papel importante, não para reforçar a identidade, mas para transformá-la. Dessa forma, a amizade torna-se, na verdade, uma ascese, um exercício sobre o corpo e a alma; ou seja, uma atividade de autotransformação e aperfeiçoamento, tornando perfeitamente plausível as relações entre homens e mulheres e o estabelecimento de relações na diferença. As concepções da amizade do filósofo alemão são percorridas também por Edson Passetti (2003) em seu livro Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida.

Porém, pode-se dizer, sem risco de equívoco, que foram as próprias mulheres que demonstraram, particularmente, sua capacidade para a amizade. A despeito dos discursos filosóficos, os estudos feministas, intensificados a partir dos anos sessenta, descortinaram mediante pesquisas empíricas, nas releituras dos arquivos, um rico universo social tecido pelas mulheres e entre elas.

A descoberta pela história das mulheres, das práticas de amizades femininas, cujo exemplo clássico foi o trabalho de Carroll Smith Rosenberg, de 1975, The female world of love and ritual between women in nineteenth-century America, Disordely Conduct, deu visibilidade às formas de convívio entre as mulheres, apontando a criação de uma “cultura” feminina distinta da esfera de ação dos homens. Ao analisar a amizade feminina e suas relações com a cultura vitoriana entre os fins do século XVIII e início do século XIX na América, a autora mostra a existência de um rico universo de relações tecido entre as mulheres de classe média. Esse vínculo assume diversas faces: aparece em forma de amor entre irmãs, da solidariedade entre as meninas adolescentes e mesmo de amor sensual entre mulheres.

Como Rosenberg faz crer, as denominadas “amizades românticas” eram de certa forma estimuladas socialmente e faziam parte da educação sentimental das meninas na sociedade burguesa. Essa autorização cultural para o exercício do jogo amoroso nos elos entre amigas pode ser interpretada como exercício de poder sobre o corpo feminino. Isso porque se pressupunha, dessa forma, controlar  os desejos eróticos das moças,  dirigindo-as para ideais mais elevados. Contudo, as amizades femininas engendravam a tensão entre as fortes ligações estabelecidas entre as mulheres e os deveres familiares da reprodução e da maternidade exigidos pela cultura vitoriana. Nesse sentido, findado o tempo de escola, por exemplo, era interditado a elas viverem com a amiga querida.

Como indica o trabalho de Lillian Faderman (1981), por volta dos fins do século XIX apareceram outras possibilidades de vida fora do circuito da domesticidade heterossexual. Com isso, algumas mulheres adquirem independência em relação a si, a seu corpo e a sua sexualidade. De acordo com as pesquisas dessa autora, é possível observar que, entre “as gloriosas solteironas” do início do século XIX e as novas mulheres que apareceram no fim deste mesmo período, os “casamentos femininos” ou os denominados “casamentos de Boston” tornaram-se mais comuns. Além disso, chegaram mesmo a ser aceitos pelos setores mais elitistas da sociedade, o que não ocorria no interior da classe operária. Nesse segmento social, as mulheres ocultaram sistematicamente os casos de amor feminino.

Nesse momento histórico, isto é, final do século XIX, a intimidade física entre as mulheres não era associada à sexualidade ilícita. Não obstante, por volta de 1880 os teóricos da medicina enquadraram a amiga romântica na categoria de invertida sexual feminina ou lésbica, produzindo um deslocamento no olhar sobre as relações tecidas entre as mulheres.

Essas investigações clássicas apontam, entre outras coisas, que, apesar de não ser consideradas pelos discursos masculinos, as amizades femininas possuem uma história com temporalidades e deslocamentos próprios. Ademais, essas pesquisas podem ser tomadas como exemplos ilustres de um momento em que as mulheres, especialmente as acadêmicas, tomaram para si a tarefa de escrever sua própria história. Como disse Michelle Perrot (1984), nesse período ocorreu uma reavaliação eufórica da história das mulheres e, ao mesmo tempo, descobriu-se o prazer da convivência feminina.

Nessa direção, e mais próxima de uma historiografia nacional, é possível encontrar, em diversos estudos, as mulheres exibindo uma solidariedade atuante, sejam mulheres do povo, escravas, brancas pobres, trabalhadoras e prostitutas. É o que indicam os trabalhos de Maria Odila L. S. Dias (1984), Margareth Rago (1985), Rachel Soihet (1989), Leila Mezan Algranti (1993), entre outros. Enfim, as mulheres estão, por toda parte, tecendo amizade e contraindo relações de ajuda mútua, prazer de convivência e criando estratégias de sobrevivência nas ruas, nos mercados, nos lavadouros, nas fábricas, nos conventos e nos bordéis. Vale dizer que não foram apenas as mulheres do povo que foram recuperadas pela historiografia, a imagem da mulher burguesa foi igualmente redefinida em suas atuações sociopolíticas e culturais, como evidenciam os estudos de Marina Maluf (1995) e Susan Besse (1999).

As investigações e publicações contemporâneas sobre as diversas produções materiais ou escritas nascidas no âmbito da vida privada, as denominadas por Lucia Helena Vianna (2003) de “obras íntimas”, entre as quais se encontram as correspondências, indicam que as mulheres não apenas construíram laços entre si, mas teceram de forma lapidar relações com o sexo oposto. É o que sugerem, por exemplo, as cartas trocadas entre Cecília Meireles e Fernando Azevedo; a troca epistolar de Nísia Floresta com August Comte; a correspondência de Clarice Lispector com o escritor Fernando Sabino; o diálogo de Lou Andreas Salomé com Nietzsche e Freud; a correspondência de Hannah Arendt com Martin Heidegger; a rede intersubjetiva construída mediante as cartas por Teresa d’Ávila com diversos homens de seu tempo, em especial San Juan de La Cruz. Esses são apenas alguns exemplos dos laços construídos entre mulheres e homens.

Ainda que esses casos de troca epistolar restrinjam-se ao mundo da arte e das culturas letrada, leiga e religiosa, supõe-se que as relações intersubjetivas entre indivíduos do mesmo sexo e com o sexo oposto, certamente, deveriam fazer parte da vida cotidiana de outros segmentos sociais.

Os estudos realizados pelas mulheres, não apenas na historiografia, mostraram novas dimensões da sociabilidade de ambos os sexos e apresentam novas propostas teóricas, como aponta Giner (1995). Segundo a autora, trabalhos de sociólogas contemporâneas têm relacionado às atuais mudanças no espaço público com os deslocamentos ocorridos nas amizades femininas e masculinas. Nestas pesquisas, o argumento utilizado é que, com a domesticação da vida comunitária, parece estar ocorrendo uma feminização no âmbito da sociabilidade e da amizade. As amizades masculinas adquirem novas tonalidades, pois se desenvolvem cada vez mais no espaço privado da casa e, por sua vez, as mulheres estão definindo mais os círculos de sociabilidades para si próprias e para seus parceiros.

Nos últimos quarenta anos, os estudos feministas[3] _ associados a outras vertentes teóricas, das quais se podem destacar a crítica pós-estruturalista, as teorias psicanalíticas, a Hermenêutica _ têm contribuído sistematicamente para desconstruir, desnaturalizar e historicizar o pensamento social falocrático. Essas análises críticas favorecem os ruídos dos contradiscursos; cada vez mais eles estão se tornando vozes nítidas e criando possibilidades de trabalho com objetos até então negligenciados, como, a amizade construída entre homens e mulheres e admitindo a capacidade feminina em estabelecer novas relações intersubjetivas. Como sublinha Luce Irigaray (2002: 6):

“enquanto sujeito autônomo, a mulher se encontra, desde então, por sua vez, conduzida a se situar em relação ao outro, e a especificidade de sua identidade faz com que ela privilegie muito mais a dimensão da alteridade em um vir a ser subjetivo”.

Em suas sugestivas pesquisa sobre a maneira de falar das meninas, a teórica feminista mostra como a forma de expressão delas é diferente da das mulheres, das dos meninos e da dos homens. A menina possui uma linguagem mais atenta ao outro, ela respeita sempre a existência de dois sujeitos, e seus diálogos guardam as nostalgia das conversar com suas bonecas.

Como interpreta Luce Irigaray, a fala da menina guarda o germe de uma relação sujeito-sujeito, ao contrário dos meninos, que privilegiam a relação sujeito-objeto. Nessa trilha, o sujeito feminino, em oposição ao masculino, valoriza a relação com o outro gênero.

Indubitavelmente, a recuperação das práticas de amizade exercidas pelas mulheres aponta para a construção de relações com o outro mais livres, solidárias e múltiplas e, certamente, não só para as mulheres, elas continuam possibilitando a invenção de novas formas de existência, novas subjetividades e enriquecendo o empobrecido mundo dos afetos.

Referência Bibliográficas

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Nota biográfica

Marilda Aparecida Ionta é historiadora, professora da Universidade Federal de Viçosa e faz parte do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero (NIEG) da mesma instituição. Em seu doutorado realizado na Universidade Estadual de Campinas, estudou subjetividade e amizade nas primeiras décadas do século XX no Brasil, cuja tese intitula-se: As cores da amizade na escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. Dentre vários trabalhos, destacam-se o texto “Cartas de Pijama”: amizade e relações de gênero na escrita epistolar de Mário de Andrade e Anita Malfatti. In: Destinos das Letras: história, educação e escrita epistolar. (org) Maria Helena Camara Bastos e outras. Passo Fundo, UFP, 2002;  e A escultura de si nas cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga e Henriqueta Lisboa. In: Revista de História Oral, 2006.


 

[1] Vejam, entre outros os trabalhos de: FADERMAN, Lillian. Surpassing the love of men. Romantic friendship and love between women from the Renaissance to the present. New York: Quill- William Morow, 1981. SMITH-ROSENBERG, Caroll. “The female world of love and ritual: relations between women in nineteenth-century America, Disorderly Conduct. Visions of Gender in Victorian America. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 1986; IONTA, Marilda Aparecida. As cores da amizade na escrita epistolar de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. Tese de Doutorado, IFCH, Universidade Estadual de Campinas, 2003.

[2] Como sublinha Francisco Ortega, a rígida separação entre os sexos gerava tensões maritais e frustrações de necessidade emocionais, como, a auto-afirmação, que em outras sociedades normalmente é satisfeita nas relações heterossexuais. Na Grécia essa função era desempenhada pela amizade e pelo amor masculinos. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 27.

[3] Ver sobre a epistemologia feminista, entre outras: FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de Gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque.(org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, pp. 217-250. HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. In: Revista de Estudos Feministas, n. 1, 1993, pp. 7-31. BUTLER, Judith. Fundamentos Contigentes: O feminismo e a questão do “pós-modernismo”. In: Cadernos Pagu, n. 11, 1998, pp. 11-42.

 

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