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juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006

>Passeando no centro de Porto Alegre com uma travesti

Rosimeri Aquino da Silva

 “Então, a partir daquele momento, a esposa enganada teve acesso àquele outro mundo” [1].

 “Olha, uma bicha!”[2]

RESUMO:

O texto aborda a passagem de uma travesti por dois espaços sociais ordenados segundo as normas da heteronormatividade: Academias de Formação de Policiais Civis e Militares e uma rua movimentada do centro da capital gaúcha. Através de ferramentas teóricas da vertente pós-estruturalista, dos estudos de gênero e da sexualidade, procuro analisar esta passagem, especialmente sobre alguns aspectos referentes à violência, à marginalidade e à abjeção envolvidas nesta experiência. 

Palavras-chave: travesti, espaço social, heteronormatividade

Ao reler meu diário de campo[3] lembro de que o passeio feito no centro de Porto Alegre com a professora travesti Marcelly Malta, fez meu coração bater mais depressa. A Marcelly[4] chama muito a atenção das pessoas que por ela passam. Camelôs, condutores, as pessoas nos elevadores e nos corredores do prédio onde fica a Associação Rede Igualdade, todos pareciam ter as atenções voltadas para ela. Senti um misto de medo e ao mesmo tempo coragem por estar saindo ao seu lado, pois era uma tarde ensolarada, então nada parecia estar encoberto por disfarces, meias verdades ou pelo escuro da noite. Estar ao lado dela parecia tornar tudo mais explícito e verdadeiro.

Naquele momento, Marcelly estava completamente exposta em um contexto, onde imperava e impera a heteronormatividade, a sociedade no seu cotidiano, na rotina de pessoas indo e vindo, na música urbana de ruídos difusos, na movimentação em restaurantes, nos escritórios, nas lojas com seus vendedores atraindo clientes, no riso de crianças, adolescentes, vendedores ambulantes, expondo suas quinquilharias, mulheres com suas sacolas de compras, homens apressados. Apesar de todos esses elementos, aparentemente, caóticos que compõe esse cotidiano sugerirem uma multiplicidade de corpos, de atitudes, de gestos e de sexualidade, é inegável de que se trata de uma ordem hegemonicamente heterossexual, cujas normas culturais governam os corpos de homens e mulheres.

 No dizer de Butler, o sexo não apenas funciona como uma norma, mas é “parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa” (Butler,1999:53). Se aceitarmos o pressuposto de que as identidades são diversas e transitórias, certamente o que foge da heteronormatividade também circula por ali, mas, em minoria, para um olhar mais amplo, na medida em que tendemos a fixá-las. De longe, parodiando o cantor Caetano Veloso, todos parecem “normais”. Se, por exemplo, pensarmos nas roupas como uma espécie de materialização da norma heterossexual imposta aos sexos, assim como passaportes ou cédulas de identidade, é de se supor que não seja comum o trânsito de homens pelas ruas movimentadas das grandes metrópoles, em plena luz do dia, usando belos e chamativos vestidos com muito brilho e com cores quentes, sapatos de salto agulha ou qualquer outro tipo de indumentária e artefato normatizados como de uso exclusivo de mulheres.

Pessoas apresentam-se no cotidiano social com adereços próprios de seu gênero e roupas que as diferenciam, as demarcam. Por exemplo, jovens rapazes usam calças largas, jeans, bermudas, camisetas de marcas famosas, assim como bonés e tênis. Já as meninas usam roupas que estão de acordo com o cenário fashion, as cores da estação, saias curtas, baby-looks, tamancos. Alguns homens usam terno e gravata, outros camisetas pólo. De acordo com seus ornamentos, eles podem ser chamados de mauricinhos, de funqueiros, de skatistas, de bregas, de malandros. Mulheres também são denominadas de peruas, barbies, discretas, esportivas, chiques, quando usam chapinhas, fazem escovas, permanente, mega hair, unhas compridas esmaltadas, vestidos, saias, maquiagens. As roupas sempre constituiriam uma espécie de materialidade dos gêneros masculino e feminino.

 A travesti perpassa, transita, circula nas fronteiras do gênero, na medida em que concebe nela mesma, no seu corpo, algo de comum dos dois gêneros: indumentária própria de mulheres características que a identificam como sendo do sexo biológico masculino. Sua imagem desconstrói não só a noção da apresentação social convencional dos sexos biológicos, mas, também, da sexualidade hegemônica. Campos, num artigo onde analisa situações vivenciadas em aeroportos pela conhecida modelo transexual brasileira Roberta Close, narra episódios de constrangimentos sofridos por esta ao se apresentar vestida de mulher e portar um documento que a identifica como um indivíduo do sexo masculino: “Aeroporto de Heathrow (Londres), abril de 1997.

Todos os passageiros procedentes do vôo de Zurique completam a rotina do desembarque: exibem seus passaportes, entregam formulários e declarações com seus dados, destinos e procedências, recolhem suas bagagens, passam pela alfândega. Apenas a modelo alta, de cabelos longos e vestido justo parece hesitar. O agente federal lhe faz sinal para que se apresse e examina mecanicamente seu documento, como faz com os demais passageiros. No entanto, suas feições de imediato se alteram: o nome Luis Roberto Gambine, e o sexo, masculino, destoam da figura indubitavelmente feminina que ele vê tanto no retrato quanto ali mesmo, em pessoa, diante dele. Ela então explica ser seu único passaporte e, igualmente, ser-lhe impossível, e, seu país, o Brasil, a troca de identidade masculina. Perplexo e incrédulo, o agente inglês é informado ainda de que ela teria nascido hermafrodita e de que, adulta, fora operada, tornando-se assim, mulher, o que ela tenta inutilmente comprovar com os papéis que retira da bolsa” (Campos, 1999:39).

Marcelly, assim com estes outros seres tidos como abjetos, “(...) aqueles que não são sujeitos” (Butler, 1999:155) representam a transgressão dessa ordem. Acompanhá-la naquele trajeto parecia me tirar de uma concepção normal de tempo, pois transitar pela Avenida Voluntários da Pátria levou uma média de vinte e cinco minutos, mas foi como se eu estivesse em um outro ritmo diferente do meu cotidiano, já que as sensações que eu sentia eram diversas e intensas: prontidão, euforia, coragem. Caminhar com ela parecia significar algum tipo de incorporação desses elementos que a fazem diferente dentro do contexto social hegemônico. É uma pessoa que causa estranhamento, impacto, riso nervoso, incompreensão, uma espécie de mal estar, por não ser rapidamente definida quando olhada. É como se as pessoas se sentissem perturbadas pelo fato dela, nos termos de Foucault, não possuir um “verdadeiro sexo” (Barbin, 1983:1). Um questionamento parecia sobressair-se à multidão: qual seria o verdadeiro sexo de uma travesti? Já que ela parece, anatomicamente, adotar os dois? Seios siliconados, quadris arredondados, etc.

Ao deixarmos a Associação Igualdade com o material já em mãos, direcionamos-nos a um grande edifício localizado na zona central de Porto Alegre a procura de uma loja para fotocopiá-lo. Minha impressão era de que algumas pessoas que cruzavam nosso caminho demonstravam medo, outras pareciam surpresas.

Ela transita entre a polaridade masculina e a feminina, para os olhos de quem a vê, como bem sabemos, institui lugares, jeitos de ser e apresentar-se para homens e mulheres. Apesar de estar usando ornamentos “apropriados para mulheres”, era possível que um olhar, nem tão atento, percebesse que se tratava não de uma feme fatale convencional, mas de uma travesti. Era perceptível que se tratava “biologicamente” de um homem, alguns traços a denunciavam. Essa “determinação” científica nos é revelada nas marcas e formato do rosto, nos ombros largos, ou no chamado pomo de Adão, pois nosso olhar está condicionado em detectar características físicas como essas, associando-as imediatamente ao sexo masculino. Entretanto, Butler diz que “... os corpos não se conformam, nunca, completamente às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio na qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória” (Butler, 1999:154).

 Os lugares, para pessoas como Marcelly, são rigidamente delimitados numa sociedade hegemonicamente heterossexual, na dita sociedade “normal”: esquinas de determinadas ruas, consideradas pontos de prostituição, bordéis, casas de show, boates GLS, salões de beleza, programas de auditório, programas humorísticos, carnaval. Butler afirma que “O imperativo heterossexual possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações. Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente a domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito (Butler, 1999:155).

Se a passagem de uma travesti na rua de uma metrópole como porto Alegre causa os mais diferentes sentimentos que vão, por exemplo, do espanto ao horror, imagine o que causou sua presença na sala de aula de um curso da SJS/RS onde reuniram-se instituições tradicionais da sociedade, universidade e instituições policiais! Disse um oficial: “Imagina só, ela é uma pessoa muito espontânea, divertida. Os policiais questionavam: Mas até travesti vem dar aula na academia?! É um absurdo, foi um acontecimento muito impactante. Tamanho foi o ocorrido que jornais, delegacias e estudantes propuseram uma matéria contestando a presença de uma travesti dando aula na academia de policia. Há registros sobre isso nos jornais corporativos”.

Por que Marcelly causou tanto espanto? Como homossexuais são pejorativamente definidos quando se encontram longe do glamour de passarelas, programas de auditório, salões de beleza ou boates de shows de transformistas? Para responder a esse questionamento é preciso não esquecer de que se hoje podemos ver travestis transitando durante o dia, trabalhando em outras atividades, para além da prostituição, durante muito tempo, associou-se o modo de vida dos homossexuais relacionado à clandestinidade e à vergonha.

Uma travesti, como foi dito em sala de aula[5], é um pobre, miserável doente (clara junção de penalização e tolerância). Também foi dito em diferentes momentos e de diferentes formas que os homossexuais, em geral, são degenerados, traiçoeiros, mentirosos, contrários às leis de Deus, cruéis, golpistas (demonização). Por último, foi afirmado que há, também, vários tipos: o gay bufão, o patético, o retardado, o mentiroso. A partir destes, os próprios gays estereotipam os seus comportamentos, comportando-se de forma histérica, mais que as mulheres, dão vexame, como querem ser respeitados? Uma outra razão para o espanto pode ser, talvez, porque policiais estivessem e estão acostumados a vê-las num outro lugar; não em qualquer espaço público, mas nas zonas perigosas, nas zonas de prostituição. Há quase que uma relação direta entre travestis, prostituição e violência.

 Que memórias são acionadas quando pensamos em travestis? Notícias veiculadas na imprensa de Porto Alegre e no restante do Brasil, não raras vezes, referem-se à violência sofrida por elas. Na publicação, Construindo a Igualdade, a história da prostituição de travestis em Porto Alegre, a violência é uma marca destacada nas narrativas dessas pessoas, especialmente daquelas que batalhavam ou batalham nas ruas, as trabalhadoras do sexo. São fartos os relatos sobre humilhações, sobre insultos, sobre narizes e dentes quebrados e, também sobre assassinatos. Os agressores mais comuns eram policiais e clientes, poderiam ser também transeuntes, que sem nenhum motivo evidente manifestavam-se cruelmente. Patrícia Pop, hoje com cinqüenta anos, conta sobre como um cliente a atacou com um canivete: “Ele estava a pé, na Avenida Farrapos, e me chamou para fazer um programa. Fomos caminhando em direção a um hotel, quando ele me agarrou pelos cabelos. Consegui dar uma joelhada nele e sair correndo. Mas como eu estava de salto alto, ele conseguiu me pegar de novo. Foi quando ele me furou com um canivete na barriga. Uma das meninas que fazia programa ali, na Ramiro Barcelos, me ajudou. Entretanto, prestar queixas nas delegacias era perda de tempo, pois geralmente nós éramos mandadas embora (Böer, 2003:75).

A violência da polícia, por seu turno, era uma velha conhecida, banalizada e naturalizada e, segundo Patrícia, não menos cruel do que as agressões de alguns clientes. Apanhar da polícia fazia parte da rotina de quem batalhava nas ruas e a justificativa era sempre a mesma: “Já fiquei um mês no Presídio Central por vadiagem, como eles diziam” (Böer, 2003:79). Viver fugindo da polícia, conforme as travestis, torna a prisão era uma possibilidade constante. Para fechar pontos de prostituição e retirar travestis de zonas residenciais se fazia uso da força, por isso todas relatam que era necessário correr, porque senão era uma surra certa."Se não corresse eles batiam, com certeza. Uma vez uma amiga minha foi humilhada, agredida, chegaram a quebrar o dente dela. Pegamos um táxi e fomos à Quarta delegacia, mas nos mandaram embora” (Böer, 2003:95).

Uma travesti diz não acreditar no interesse dos policiais na manutenção da ordem pública, quando eles agiam dessa forma. Segundo ela, muitos queriam sempre uma cota do dinheiro, ganho nos programas. Além disso, ela lembra da violência sexual que algumas sofriam nas delegacias. As mais antigas contam que, quando presas, eram levadas para delegacias, suas roupas eram retiradas, eram obrigadas a vestir macacões sujos e eram "presenteadas" a outros presos para que eles se divertissem[6]. A travesti Simone Close relata sua longa experiência de correrias da polícia e passagens pelas delegacias, dependendo do ponto de batalha: “Eu fui presa muitas vezes, nos deixavam numa cela, dormindo no chão, com jornal, mas eles nunca foram violentos comigo, porque eu sempre fiquei na minha, mas muitas travestis apanhavam, levavam choque e tudo, eu vi" (Böer, 2003:102).

            A travesti Marcelly Malta foi convidada a participar dos cursos da SJS/RS como professora da disciplina Movimentos Sociais. Histórias similares a estas foram contadas por ela em sala de aula, e não é surpreendente concluir que a experiência de introduzir uma professora travesti nos cursos da SJS/RS no Rio Grande do Sul tenha causado tanta estranheza, desconfiança e desconforto não só para alguns integrantes das instituições policiais, mas também para outras pessoas envolvidas com o projeto. Ela é militante de uma associação denominada Igualdade, a qual promove a cidadania de travestis e transexuais do RS, desenvolvendo projetos na área da assistência social, prevenção das DST/AIDS e Direitos Humanos. Marcelly representa, no meu ponto de vista, toda a complexidade das relações estabelecidas entre as pessoas envolvidas nos Cursos em questão, por isso trata-se de uma figura paradigmática do caráter revolucionário na experiência nesta experiência. Nas entrevistas feitas junto aos professores, nas avaliações das disciplinas, em jornais na época, em relatos de alunos é possível identificar tais estranhamentos.

Segundo a fala da diretora[7] do DDRH/SJS, naquela ocasião, a disciplina de Movimentos Sociais não foi bem vinda de modo geral, especialmente quando foi colocado que representantes dos próprios Movimentos Sociais iriam ministrá-la. Ocorreram resistências em alguns setores da polícia, dentro das academias e em diferentes setores da SJS/RS, como direções, coordenações e entre participantes oriundos das universidades. Questionou-se amplamente a proposta e a metodologia desse trabalho. Por que a necessidade daquela disciplina? Por que tinham de ser aquelas pessoas e não outras para ministrá-la? Também foi argumentado que os agentes dos Movimentos Sociais não estavam habilitados, de que não seriam capazes de dar aulas.  Como poderiam eles tratar teorias complexas, conteúdos históricos, conceitos através de uma didática apropriada? Argumentava-se que esta missão deveria ser cumprida por especialistas: os historiadores, os psicólogos, os filósofos, os sociólogos, etc. Os representastes dos Movimentos Sociais, nessa acepção, poderiam participar eventualmente de seminários, trazendo relatos de experiência ou em sala de aula como casos a serem analisados. Uma professora argumentou[8]:

(...) a gente sabe que não é dessa forma que se faz, colocar os agentes, os próprios sujeitos como professores. Isso aí nunca se fez na universidade, a não ser, claro, que se tenha um deles que seja professor. Eu me lembro que tinha numa das oficinas uma advogada do Movimento Negro, parece que ela já era professora. Aí sim! É claro, ela já trabalha. Então, o que acontece, até hoje o pessoal ainda faz piadinhas com o Bisol. (...) Uma vez, numa reunião lá na academia eles criticaram muito que o Bisol tinha permitido que alguns alunos... Ah! Tá,  que homossexuais ingressassem na instituição. Não me lembro bem do episódio, mas aconteceu”.

A diretora lembra da dificuldade em todo o processo de contratação dos representantes dos movimentos sociais, o atendimento às exigências burocráticas, empecilhos de todas as ordens, exigindo daqueles que acreditavam na proposta, longos debates, difíceis e desgastantes, interferências, idas e vindas para que o projeto pudesse acontecer. A diretora percebia um sentimento, aliás, um mau pressentimento em todos os setores envolvidos de que não se deveria fazer essa experiência. Ela analisa que esse sentimento foi amenizado à medida que as aulas iniciaram e os resultados obtidos através das avaliações feitas pelos alunos foram positivos. A carga horária muito extensa e excessivamente teórica dos Cursos de Formação era uma queixa constante. Assim, investiu-se na possibilidade dos alunos-policiais contatarem com pessoas que representavam "concretamente" o que eles iriam encontrar e enfrentar na realidade cotidiana. Dessa forma, foi saudada a oportunidade de ouvir um negro falar do racismo, de como ele ocorre na relação com a policia, de como se dá a discriminação racial na comunidade. Também foi saudada a oportunidade de ouvir gays, travestis, mulheres, profissionais do sexo, expondo o preconceito enfrentado diariamente. Neste momento, utilizando novamente Caetano Veloso, num outro enfoque, todos pareceriam normais.

Alguns policiais compreenderam, sobre os limites, as dificuldades engendradas a partir da formação mais tradicional. Esta formação não lhes propiciara este tipo de conhecimento e metodologia. Tratava-se de uma queixa constante entre aqueles policiais atuantes de longa data na instituição. A introdução dessas novidades implicava um reconhecimento, em parte, de que esses grupos encontravam-se alijados de seus direitos e que a partir de então, teriam espaço para falar. Não a partir das falas e dos conteúdos aparentemente "neutros" de professores, da leitura de artigos "assépticos", mas a partir de representantes dos próprios grupos. Alguns policiais, no entanto, caracterizavam esse acontecimento como uma “afronta” à própria instituição[9].

A inclusão de grupos tradicionalmente “excluídos”, representantes dos negros, dos homossexuais, dos travestis, esses "abjetos" todos como professores, como instrutores oriundos de dentro dos Movimentos Sociais, em algumas avaliações, foi considerada ridícula, idiota, absurda, desrespeitosa, o fim da picada, o fim dos tempos, etc. Esses estranhos instrutores passaram a trabalhar como professores, utilizando conteúdos, critérios de avaliação, ou seja, todos esses elementos que compõem esse lugar pedagógico, instituído por muitos como sagrado, nobre e legítimo. Ocorreu, portanto, um deslocamento territorial, ou melhor, uma ocupação territorial feita por professores, sem dúvidas alguma, não convencionais.

 Naquele momento, aquelas estranhas pessoas foram colocadas no lugar de professor, num procedimento que, para alguns, parecia parodiar ou, quem sabe, ofender o ofício de ensinar. Dá para chamar isso de professora?[10] Apesar da reação positiva entre a maioria dos alunos, foram manifestadas em diversas instâncias da SJS/RS, oposições claras a este projeto educacional. Foram buscadas nos programa de ensino, e, especialmente, na participação dos movimentos sociais, situações de descrédito ao projeto. Professores, alunos-policiais, coordenadores, diretores, entre outros, afirmaram que o caso mais expressivo, envolvendo as discussões sobre esta disciplina, foi, justamente, a presença da travesti, ocupando salas de aula, na posição de professora, nas escolas da polícia.

A presença da Marcelly parece ter oferecido, segundo os informantes, uma excelente oportunidade para uma proliferação de argumentos, não só entre aqueles setores chamados de "mais conservadores" da SJS/RS, de que o programa estava falhando. Além de oportunizar situações para as costumeiras ironias, os deboches e os insultos tradicionalmente direcionados aos desviantes da norma heterossexual. Foi onde mais os opositores insistiram. Nas palavras de um diretor[11]:

Eu ouvi numa discussão na Secretaria queixas dos antigos sobre o fato de se levar gente dos movimentos sociais. Embora fosse uma discussão no contexto dos direitos humanos, dos movimentos sociais como um todo - os negros, as mulheres, os movimentos populares enfim, para discutirem e confrontarem a questão das práticas policiais etc, eles conseguiram acender tensão, sobre suas motivações, sobre o reconhecimento da cidadania desse pessoal. Eles disseram: mas isso foi um escândalo, um erro terrível, apontado como o mais grave do curso. Foi um erro, e agora? Aonde é que nós erramos? Alguém perguntou. Um deles respondeu: Vocês levaram bichas e travecos para dar aula para os policiais, ensinar para os policiais, vocês têm noção?

As aulas de Marcelly, na avaliação padrão da SJS/RS, foram consideradas "boas", mas as informações que chegavam às direções das academias eram a de que a professora tinha uma prática incorreta em sala de aula, moralmente incorreta. De que ela fazia programas e dos valores cobrados por eles. De que ela era uma profissional de sexo e ensinava práticas sexuais em pleno ambiente educacional. A professora também foi associada à cafetinagem e à prostituição infantil. Os jornais de classe da polícia, o Jornal dos Delegados e o Jornal da Servipol veicularam matérias, onde foi afirmado que Marcely Malta não tinha competência para ser instrutora da Academia da Academia de Polícia. Tais matérias originaram pedido de direito de resposta, impetrado pela Igualdade, através do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul. Tal acontecimento ganhou um vulto tão grande que acabou sendo objeto de discussão em audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa, em 21 de agosto de 2002.

A sexualidade de um/uma "desviante", e, nesse caso tudo parece indicar, aos olhos da sexualidade hegemônica, é dotado de "alguma coisa da qual era preciso desconfiar, alguma coisa que sempre introduzia no indivíduo possibilidades de tentação e de queda", como afirma Michel Foucault (Foucault, 2004:71). Além disso, de acordo com os parâmetros da moralidade, fundamentada na heteronormatividade, toda forma, toda expressão do desejo que parece fugir do funcionamento organizacional, das necessidades familiares e de reprodução, assim como das práticas sexuais da sexualidade hegemônica, é passível de desqualificação.

A moralidade, fundamentada nesse parâmetro e sempre quando julgada necessária, é acionada nas instituições, apesar de já visualizarem-se rachaduras em seus muros centenários. Creio que a "rede de intrigas", ocorrida no caso Marcelly, poderia ser pensada como estratégias de um tipo de poder que, nos termos foucaultianos, visa o controle dos indivíduos através da sua sexualidade. Por que justamente pessoas como ela, desviantes da heteronormatividade, são continuamente alvos de ataques. Será, porque elas são consideradas mais frágeis? Paranóia? Coincidência? Obra do acaso? Seus comportamentos são facilmente passíveis às críticas, porque quando a sexualidade é evidente, especialmente, a sexualidade desviante da travesti, a moralidade é facilmente acionada e são muitos aqueles que compactuam com seus pressupostos. Diante de argumentos dogmáticos de representações constituídas e fortalecidas desde tempos imemoráveis, certamente “desviantes” tornam-se vulneráveis.

Caminhando com Marcelly pelas ruas de Porto Alegre, experienciei o estranhamento que as pessoas demonstram diante de sua figura queer. Ela é alta, loura e aparenta ter, mais ou menos, cinqüenta anos. Naquele dia, usava um belo e chamativo vestido florido que salientava suas pernas longas, torneadas e singulares. Calçava um sapato feminino, de salto muito alto, evidenciando, ainda mais, o seu porte alto. Parecia-me que ela destacava-se no meio da multidão que transitava pelos arredores da Rua Voluntários da Pátria. Alguns vendedores ambulantes não hesitavam em fazer sórdidas piadinhas e gozações. Outros preferiam abordá-la para vender muambas:

Oi moça, quer comprar vale-transporte? Ah! Ah! Ah! Ela continua a caminhar absoluta, sem dar a mínima, demonstrando orgulho próprio. Eu lhe pergunto: Você é sempre notada? Ela responde: Sim, o dia que não há uma piadinha, risadinhas de lado, cutucões entre amigos, olhares curiosos e até manifestações de violência explícita, desconfio que alguma coisa esteja errada.

Continuamos a desfilar pelas ruas centrais da cidade entre um grande fluxo de transeuntes, carros de passeio, lotações, ônibus, lojas comerciais, vendedores ambulantes. Algumas pessoas demonstravam naturalidade, tratando-a com respeito. Chegando na loja de xerox, clientes muito jovens sorriem de forma cúmplice, tentam não parecer perturbados, desviam o olhar disfarçando curiosidade. Diante destas reações, perguntei-lhe: Como foi na sala de aula? Prontamente respondeu-me, fazendo ares de mistério: Esta historia te conto outro dia! E assim, seguidamente após vários encontros, narrou-me os acontecimentos em meio a gargalhadas, seriedade, manifestações de saudade e tristeza pela interrupção do que, na sua opinião, constitui-se numa oportunidade única...

 

Referências

Böer, Alexandre. 2003. Construindo a igualdade: a história da prostituição de travestis em Porto Alegre. Porto Alegre: Brasul.

Butler, Judith.1999. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In:

Louro, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, p.151-172,.

Campos, Maria Consuelo Cunha. 1999. “Roberta Close e M. Butterfly: transgênero, testemunho e ficção”. Revista Estudos Feministas, v,1, n.2, p.37-52,.

Foucault, Michel.1996. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola.

______. 1988. “El sujeto y el poder”. Revista Mexicana de Sociologia. UNAM, México, v.2, n.3 jul/set., p.3-20.

______. 2004. Ética, sexualidade, política. (org.): Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

______. 1990. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

______. 1990. La vida de los hombres infames. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta.

.

______. 1992. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

______. 1983. “O verdadeiro sexo”. In: Barbin, Herculine. O diário de um Hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Louro, Guacira Lopes.1995. Educação e Gênero: a escola e a produção do feminino e do masculino. In: SILVA, T. T. da (org.). Reestruturação curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. Rio de Janeiro: Vozes.

______.1997. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes.

______.1999. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.

______.2001. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Estudos Feministas. Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v.9, n.2, p. 541 – 553.

______. 2003. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. Corpo, gênero e sexualidade.  Petrópolis: Vozes, v.9, n.2, p. 41 – 52.

Nota biográfica

Rosimeri Aquino da Silva é socióloga, mestre em educação e professora em diversas licenciaturas na FACOS/Osório-RS. Atualmente está concluindo seu Doutoramento no PPG/Edu- UFRGS, sob orientação da professora Guacira Lopes Louro.


 

[1] Fala de sala de aula no PPGedu/UFRGS.

[2] Fala de rua de Porto Alegre/RS

[3] Diário de campo de minha Tese de Doutorado.

[4]Marcelly Malta representou a Associação de travestis do RS -Rede Igualdade em cursos de formação e atualização, destinados a servidores da Secretaria da Justiça e da Segurança do RS, ocorridos durante a gestão de Olívio Dutra (1999-2002). Marcelly ministrou para alunos policiais, civis e militares, a disciplina de Movimentos Sociais.

[5] Frases coletadas de diversas entrevistas feitas com professores ministrantes das disciplinas humanísticas nos referidos Cursos da SJS/RS, proferidas em diferentes situações de sala de aula.

[6] Vídeo "Aos olhos da vida, somos todos iguais". Igualdade. Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul.

[7]  Entrevista feita em 04/04/2005

[8]  Entrevista feita em 04/08/2005 com uma professora (Socióloga e Policial)

[9] Relato de professores entrevistados no dia 07.10.2003 e 03.08.2004

[10] Comentário de um professor entrevistado em 08/07/2002

[11] Entrevista em 07/02/2002

 

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