labrys, études
féministes/ estudos feministas
Entre Capitus, Gabrielas, Tigresas e Carolinas: Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel
RESUMOA proposta deste artigo é analisar alguns exemplos da
produção feminina na música popular brasileira contemporânea, a partir
de uma observação da poeta e feminista Alice Ruiz, em artigo do início
dos anos 1980. Segundo a poeta, como a História e a literatura foram escrita
pelos homens, as mulheres seriam o que os escritores e compositores do
sexo masculino diziam que elas eram: Capitus, Gabrielas, Carolinas e Tigresas.
Foram várias as imagens femininas construídas por poetas e letristas e
incorporadas como “ideal feminino”. Alice propunha que uma nova ótica
deveria ser criada sobre as mulheres por elas mesmas. Pergunto,
mais de duas décadas depois desse artigo, o que terá mudado nessa construção?
O que as mulheres dizem sobre si, no âmbito da canção popular? Busco
Palavras-chave: compositoras; letristas; musica popular brasileira; mulheres na musica. Por sete séculos eu fui Escrava devotada de um mandarim Trançava ouro em seus bigodes, seus pagodes Forrava sua cama de cetim Regava suas flores de cristal Bordava rouxinóis em seu jardim E agora, com a queda do Império Falando sério O que será de mim? “O Mandarim” (Jussi Campelo). No início dos anos 1980, Caetano Veloso deu uma entrevista à revista Nova, onde afirmou que a mulher seria inferior ao homem, física e mentalmente. A afirmação foi surpreendente, partindo de um dos mais libertários dos compositores brasileiros, e provocou uma reação imediata em Alice Ruiz, amiga do compositor, que respondeu com o artigo “Carta Aberta a Caetano”, publicado na revista Quem, de Curitiba, cujo trecho abaixo chama especial atenção: “A história foi feita pelos homens. E escrita por eles.
Aliás, tudo foi escrito, analisado, estudado pelos homens. Inclusive as
mulheres. Quer dizer, tudo que se fala e sabe sobre mulher foi dito pelos
homens. Pelo menos, até uns poucos anos atrás. Faz muito pouco tempo que
as mulheres escrevem. Talvez por isso nenhuma se debruçou tanto sobre
a alma feminina quanto Machado de Assis, Flaubert, Balzac, Tolstói, entre
centenas na literatura. Ou como você e Chico entre outros na nossa música.
Somos Capitu, Gabriela, Carolina, Tigresa. Somos o que vocês disseram
que somos. Em outras palavras, até o conceito de mulher é masculino, ou
era, até recentemente. Os critérios são a visão do homem. Mas isso você
colocou às mil maravilhas na entrevista quando disse: “nosso dever é criar
novos critérios, Foi esse trecho que me levou a pensar sobre o desafio da poeta: as mulheres, com suas produções musicais, reinventam-se? Ou, em outras palavras, estão incorporando modificações na construção do eu para além do sujeito universal masculino? O primeiro desafio foi a questão da composição feminina. Foi interessante observar que são pouquíssimas as compositoras brasileiras conhecidas. Pedro Alexandre Sanchez, crítico musical da Folha de São Paulo, em diversos artigos levantou a questão da escassez da composição feminina, para ele restrita a alguns nomes como Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa. Para o crítico, a composição feminina toma novos caminhos apenas com o aparecimento de Rita Lee, a primeira de toda uma nova geração de compositoras. Existem muitas e muitas outras, algumas já bem conhecidas, como Marina Lima, Zélia Duncan, Angela Ro Ro e Marisa Monte. Outras que só algumas pessoas conhecem suas composições, por serem poucas e pelo reconhecimento como intérpretes, como Gal Costa, Cássia Eller ou Maria Bethânia, além de toda uma geração de compositoras brilhantes que despontaram na música brasileira a partir dos anos 1960. Antes disso, ainda em 1958, a cantora e pesquisadora Inezita Barroso gravou um LP apresentando as compositoras Babi de Oliveira, Juracy Silveira, Zica Bérgami (de quem, no mesmo ano, Inezita gravou um dos maiores clássicos da música brasileira, “Lampião de gás”), Leyde Olivé e Edvina de Andrade, mostrando que o problema de se imaginar que só Dolores e Maysa surgiram com trabalhos autorais, depois de Chiquinha Gonzaga, era possivelmente por uma centralização da indústria fonográfica no Rio de Janeiro. A música popular já nasceu sob suspeita no Brasil, e se para os homens do início do século XX canção popular era sinônimo de vadiagem, o ingresso das mulheres nesse campo foi muito difícil e acompanhado de profundas suspeitas sobre a “integridade moral” das que se aventuraram. Nos anos 1970, Sueli Costa, numa entrevista à jornalista Ana Bahiana, contou, sobre ser mulher e compositora: “Vai ver que isso até influenciou as pessoas naquela época em que eu não conseguia nada. Não sei. Pode ser. Era muito estranho. Uns não acreditavam. O Grisolli foi um que estranhou: ‘Como é? Uma mulher compositora?”. Outros me achavam um bicho estranho. Queriam me fazer assim um produto exótico. Mulher compondo música é mesmo muito estranho. Não existe, não é? Não tem quase ninguém. Estranho isso. No começo me doía, me incomodava. Eu sentia, bem, que era tratada... sabe como é... teve um cara aí de uma gravadora que queria me dar uns uísques... fazer uma transa... e depois ver se ia gravar... Essas coisas... eu estranhei no começo... fiquei quente de ódio. Mas é como a Joyce disse. ‘Mulher não é considerada para nada. Vai ser considerada na música?’ E é uma coisa tão tola, no fundo.” (BAHIANA, 2006:221-222). Sueli Costa começou sua carreira artística em 1961, mas o reconhecimento como compositora só aconteceu dez anos depois. É autora de grandes sucessos como “Face a face” e “Jura secreta”, gravadas por Simone, e “Primeiro jornal”, gravada por Elis Regina, entre muitas outras canções. Tornou-se conhecida no início dos anos 1970, depois que Maria Bethânia gravou canções suas em shows e LPs, como “Assombrações”, “Encouraçado” e “Demoníaca”, entre muitas outras, mas seu nome se projeta mesmo a partir de 1975, quando “Coração ateu” entra na trilha da novela Gabriela, e a canção “Dentro de mim mora um anjo” (em parceria com o poeta Cacaso) na trilha de “Bravo”, ambas da Rede Globo. “Coração ateu” não deixa de trazer uma incredulidade feminina com o romantismo. Essa mulher parte, e não chora: O meu coração ateu quase acreditou Na tua mão que não passou de um leve adeus Breve pássaro pousado em minha mão Bateu asas e voou Meu coração por certo tempo passeou Na madrugada procurando um jardim Flor amarela, flor de uma longa espera Logo meu coração ateu Se falo em mim e não em ti É que nesse momento Já me despedi Meu coração ateu Não chora e não lembra Parte e vai-se embora Em 2001, numa reportagem que trazia o resultado de uma pesquisa sobre as músicas mais apreciadas da MPB, Pedro Sanches e Lúcio Ribeiro reparam que “Não sobrou muito para a ala feminina de compositores na enquete [...]. Rita Lee comparece isolada na 11ª posição [...] Bem atrás (no tempo e na lista), Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran empatam, com apenas quatro votos cada. Maysa, precursora da presença feminina na MPB moderna com Dolores, foi esquecida” (RIBEIRO, 2001:E4). Indagadas pelos autores da reportagem sobre o porquê das mulheres serem “menos ativas como autoras de canção popular”, Rita Lee responde: “As mulheres são quantitativamente menos presentes em
muitas áreas. Começamos a E Paula Toller arremata: “Não sou pequenininha, não tenho mãe chamada Paula nem uso esse apelido, mas sempre me chamam de Paulinha. É Paulinha Toller e Fernandinha Abreu. Pergunte se existe Robertinho Frejat. Dá preguiça, mas se falo dizem que é mau humor [...]Deve ser preguiça, as pessoas esquecem mesmo. Há muito homem na música, ficar com mulherzinha deve ser mais difícil. É lógico que há machismo, é questão de maioria, de quórum”. (TOLLER apud RIBEIRO, 2001:E4). O caminho para a composição feminina, no Brasil, foi árduo e lento, e a percepção das diferenças entre os gêneros, em especial, na construção de um eu feminino diferenciado do discurso masculino sobre “o que seríamos” também foi gradual. Dolores Duran foi compositora nos tempos do samba-canção, da dor-de-cotovelo, e são comuns as referências sobre suas composições que tratam da mulher abandonada por seu amante ou suplicando por ele, como “Solidão” (Vivendo na esperança de Mas é preciso destacar que algumas de suas letras já traziam também uma mulher que não estava mais disposta a esperar pelos caprichos do outro, como em “Fim de caso”: Eu desconfio Que o nosso caso Está na hora de acabar Há um adeus em cada gesto, Em cada olhar Mas nós não temos É coragem de Nós já tivemos A nossa fase de carinho apaixonado De fazer versos, De viver sempre abraçados Naquela base do só vou se você for Mas de repente, Fomos ficando cada dia mais sozinhos Embora juntos Cada qual tem seu caminho E já não temos Nem coragem de Tenho pensado, E Deus permita que eu esteja errada Mas eu estou, ah eu estou desconfiada Que o nosso caso Está na hora de acabar A mesma situação se repete na canção “Olhe o tempo passando”, em parceria com Edson Borges: Olhe, você vai embora Não me quer agora Promete voltar Hoje você faz pirraça Até acha graça se me vê chorar A vida acaba um pouco todo dia Eu sei e você finge não saber E pode ser que quando você volte Já seja um pouco tarde pra viver Olhe o tempo passando Você me perdendo com medo de amar Olhe, se fico sozinha Acabo cansando de tanto esperar Em “O negócio é amar”, letra postumamente musicada por Carlos Lyra, escrita provavelmente durante os anos em que mais produziu suas canções (entre 1952 e 1959) Dolores fazia uma avaliação sobre o amor. Mostrava que: [...]Tem homem que briga pela bem-amada Tem mulher maluca que atura porrada Tem quem ama tanto que até enlouquece Tem quem dê a vida por quem não merece Amores à vista, amores à prazo Amor ciumento que só cria caso Tem gente que jura que não volta mais Mas jura sabendo que não é capaz Tem gente que escreve até poesia E rima saudade com hipocrisia”. Essa canção apontava também para uma crítica muito clara à idéia do ciúme como prova de amor e ao discurso do amor romântico. Contemporânea de Dolores, Maysa trazia em boa parte de suas letras uma mulher abandonada que não acreditava mais na possibilidade da felicidade sem o outro. Notava, com ironia, na canção “Felicidade infeliz”: Felicidade, deves ser bem infeliz Andas sempre tão sozinha Nunca perto de ninguém Felicidade, vamos fazer um trato Mande ao menos teu retrato Pra que eu veja como és Esteja bem certa porém Que o destino bem cedo fará Com que teu rosto, eu vá Felicidade não chore Que às vezes é bom A gente sofrer Mas, ao mesmo tempo, em “Meu mundo caiu”, em uma de suas
mais clássicas canções lembrava que “se meu mundo caiu eu que aprenda
a Meu verso sempre tão triste Volta pedindo desculpas Pelo triste que causou Meus olhos tantas vezes decantados ‘Inda mais desencantados Voltam, tristes ao que deixou E tudo recomeça novamente Eu me entrego docemente E a tristeza eu me dou Voltei, com meus olhos Com meu verso E a todos eu peço Que me aceitem como sou Com meu verso sempre triste Com meus olhos desencantados Sendo sempre como sou Meu verso sempre tão triste Volta pedindo desculpas Pelo triste que causou É importante Ainda no tempo do samba canção, em 1958, ocorreu a primeira gravação de um rock no Brasil, efetuada por Nora Ney. É um dato importante, já que esse gênero, considerado o “mais masculino da canção” foi todo pontuado pela atuação feminina em nossa história musical, o que poucos observam. Em sua biografia sobre Janis Joplin, a historiadora feminista Alice Echols lembra que o rock’n’roll era o espaço da agressividade e da sexualidade, portanto, inadmissível para as mulheres. A chegada de Janis, nos anos 1960, tornou-se um marco na história do movimento: O que faz a rebeldia de Janis ser especialmente notável
é que ela estava muito à frente de seu tempo, recusando-se a ser uma boa
menina muito antes de a revivificação do feminismo moderno No Brasil, a história do rock começou com as mulheres, apesar desse fato ser pouco lembrado nos livros que contam a história do movimento em nossas plagas. Primeiro, em 1955, tivemos a gravação de Nora Ney do sucesso de Bill Halley em “Rock around the clock”; em seguida, no final dos anos 1950 e início dos 60, Celly Campello se tornou recordista de vendagem do rock (bem comportado, no entanto) aos 15 anos de idade. Cabe notar que seu primeiro compacto, de 1958, trazia duas canções com letra de Celeste Novais, musicadas por Mário Gennari Filho. Mas a composição e a crítica ácida e bem-humorada vieram mesmo em 1967, com Rita Lee, nos Mutantes. Seu primeiro disco solo foi gravado em 1970 – Já estou até vendo / Meu nome brilhando / E o mundo aplaudindo / Ao me ver cantar / Ao me ver passar / I wanna be a star!, cantava em “Sucesso aqui vou eu [Build up]”. E o nascimento do pop-rock, no Brasil, que dominou os anos 1980, veio pelas mãos de Marina Lima. Marina teve sua primeira canção, “Meu doce amor”, gravada por Gal Costa, em 1977, e lançou seu primeiro disco solo dois anos depois, em 1979. Rita Lee é uma das compositoras brasileiras que mais tematizou as relações de gênero em suas composições. Apresentou uma nova mulher, desconhecida para a canção brasileira, uma “ovelha negra da família que não vai mais voltar” que revolucionava a relação entre os gêneros. Na canção “Menino Bonito”, quem era lindo e não dizia nada era o garoto, uma inversão da idéia da “moça bonita só de boca fechada”, tão comum nas canções masculinas. E, dessa vez, quem não podia ficar era a mulher (e, pensando em Adoniran com o “Trem das onze”, nem era por causa da mãe...): Lindo, e eu me sinto enfeitiçada Correndo perigo Seu olhar é simplesmente lindo Mas também não diz mais nada Menino bonito E então quero olhar você E depois ir embora Sem dizer o porquê Eu sou cigana Basta olhar pra você Canções como “Cor-de-rosa choque” (Sexo frágil não foge à luta / E nem só de cama vive a mulher), “Fonte da juventude” (Quanto mais a mulher jura / Gostar de homem erudito / Tanto mais ela procura / Um tipo burro e bonito / Pois as pernas que um dia abalaram Paris / Hoje são dois abacaxis / Se os olhos da Elizabeth ardem, meu bem / O que a Helena Rubinstein com isso?”), “Elvira Pagã” (“Todos os homens desse nosso planeta / Pensam que mulher é tal e qual um capeta / Conta a história que Eva inventou a maçã / Moça bonita, só de boca fechada, / Menina feia, um travesseiro na cara, / Dona de casa só é bom no café da manhã”), “Luz Del Fuego” (“Eu hoje represento a loucura / Mais o que você quiser / Tudo que você vê sair da boca / De uma grande mulher”) entre muitas outras, traziam essa nova mulher, denunciavam o olhar normativo e masculino, e deixavam perplexos os ainda remanescentes de uma geração bem comportada do rock brasileiro, como a de Celly Campelo ou a Jovem Guarda. Rita Lee representou e ainda representa o “desmanche” das Capitus, Tigresas, Gabrielas e Carolinas, proposto por Alice Ruiz. Em 2000, quando esperávamos a Miss Brasil com “Um corpo de veludo, as pernas de cetim / A boca de cereja e os dentes de marfim / Um beijo envenenado, onde já se viu? / Miss Brasil 2000! [...]Será que ela vai continuar uma tradição? / Será que ela vai modificar uma geração?” Rita apresenta “Pagu” como a mulher do século XXI: Mexo remexo na inquisição Só quem já morreu na fogueira Sabe o que é ser carvão Eu sou pau pra toda obra Deus da asas à minha cobra Minha força não é bruta Não sou freira nem sou puta Sou a rainha do meu tanque Sou Pagu indignada no palanque Fama de porra-louca, tudo bem Minha mãe é Maria Ninguém Não sou atriz-modelo-dançarina Meu buraco é mais em cima Nem toda feiticeira é corcunda Nem toda brasileira é bunda Meu peito não é de silicone Sou mais macho que muito “home” Uma mistura de todas as mulheres, uma homenagem às milhares de mulheres perseguidas na inquisição, a Pagu de Rita Lee escapa das normatizações do corpo e de comportamento, não tem um patrimônio (minha mãe é Maria Ninguém), é a mulher múltipla que sobe no palanque, trabalha o dia todo, cuida da casa, pau pra toda obra. Pagu aproxima-se, de certa forma, da mulher apresentada no final dos anos 1970, por Joyce e Ana Terra, na canção “Essa Mulher” - também múltipla: De manhã cedo essa senhora se conforma Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos Ah, como essa santa não se esquece De Depois sorri meio sem graça E abraça aquele homem, aquele mundo que a faz assim feliz De tardezinha essa menina se namora Se enfeita, se decora, sabe tudo, não faz mal Ah, como essa coisa é tão bonita Ser cantora, ser artista, isso tudo é muito bom E chora tanto de prazer e de agonia De algum dia, qualquer dia entender de ser feliz De madrugada essa mulher faz tanto estrago Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar Ah, como essa louca se esquece Quanto os homens enlouquece nessa boca, nesse chão Depois parece que acha graça E agradece ao destino aquilo tudo que a faz tão infeliz Essa menina, essa mulher, essa senhora Em quem esbarro a toda hora no espelho casual É feita de sombra e tanta luz De tanta lama e tanta cruz que acha tudo natural. Aqui é preciso destacar que a letra de “Essa Mulher” é da poeta Ana Terra. Joyce, uma das nossas maiores musicistas, não teve a mesma felicidade ao tratar o feminino na canção “Mulheres do Brasil”, música e letra suas: No tempo em que a maçã foi inventada Antes da pólvora, da roda e do jornal A mulher passou a ser culpada Pelos deslizes do pecado original. Guardiã de todas as virtudes Santas e megeras, pecadoras e donzelas Filhas de Maria Ou deusas lá de Hollywood São irmãs porque a mãe natureza Fez todas tão belas. Oh! Mãe, oh! Mãe Nossa mãe, abre o teu colo generoso Parir, gerar, criar e provar Nosso destino valoroso. São donas-de-casa Professoras, bailarinas Moças operárias, prostitutas meninas Lá do breu das brumas, Vem chegando a bandeira Saúda o povo e pede passagem A mulher brasileira. Ao colocar “Parir, gerar, criar e provar nosso destino valoroso” na letra da canção, Joyce naturaliza novamente o corpo feminino, reduzindo as mulheres ao ato biológico da procriação. É interessante lembrarmos aqui a fala de Sueli Costa, citada anteriormente: apesar de Joyce perceber as dificuldades das mulheres para serem reconhecidas em um campo que até então era tomado pelos homens, ainda assim cometeu esse deslize. Nos anos 1980, Marina Lima não só contestou o discurso sobre o corpo feminino como, ao se apropriar de uma música extremamente machista de Roberto e Erasmo Carlos, transformou-a em discurso da opção pelo amor entre as mulheres no que foi prontamente compreendida. Cantando a canção em seus shows Marina invertia a obviedade da letra ao afirmar de forma irônica que “é... cada um de nós precisa... precisa de um homem para chamar de seu” e ao se colocar como esse “homem”, sem alterar a letra da canção, transforma-a num chamado para que as mulheres percebessem outras possibilidades de amor além do sujeito universal masculino. Igualmente, as mulheres também cantavam, junto com Marina, a letra para outros homens, rompendo as identidades sobre masculino e feminino: Sei que você fez os seus castelos E sonhou ser salva do dragão Desilusão meu bem Quando acordou estava sem ninguém, xi..., xi, sem ninguém?( Sei!). Sozinha no silêncio do seu quarto Procura a espada do seu salvador E no sonho se desespera Jamais vai poder livrar você da fera Da solidão Com a força do meu canto Esquento o seu quarto pra secar seu pranto Aumenta o rádio me dê a mão Você precisa de um homem pra chamar de seu Mesmo que esse homem seja eu Um homem pra chamar de seu Mesmo que seja eu É engraçado, lembrando a gravação dessa canção por Erasmo Carlos, em 1982, ao mesmo tempo em que se mostrava uma canção machista, quando cantada por um homem, parecia indicar também um problema de estima desse “macho”, quando entoava “mesmo que seja eu” - a inversão (e apropriação) de Marina foi genial. Da mesma forma, Luhli, compositora de sucessos como “O vira” e “Fala”, gravadas pelo grupo Secos & Molhados, também trata da homossexualidade feminina ao contar, na canção “Quase festa”, repleta de sutilezas, a história de uma mulher que depois dos 50 anos se descobre capaz de amar novamente, dessa vez alguém de seu próprio sexo: De camisola num apartamento Leão na jaula, janela pro vento Entre as panelas vê passando o tempo Quieta, um furacão por dentro, dentro... Dentro o amor é quase festa Um sopro de beleza Por trás da armadura Madura e completa certeza É chegada a hora de sentar à mesa E provar a sua própria natureza Lá fora o mundo é desafio Uma vontade de ajeitar a vida As ruas fervem de pobreza e cio O tempo explode na urgência do agora, agora... Agora o amor é quase festa Um sopro de beleza Por trás da armadura Madura e completa certeza É chegada a hora de sentar à mesa E provar a sua própria natureza Percebe-se aqui a diferença do tratamento do “natural” em Luhli e Joyce, na canção “Mulheres do Brasil”, apresentada anteriormente. Luhli utiliza o termo para designar a relação com o próprio sexo, de sua própria natureza. Fátima Guedes é outra grande compositora que apareceu no cenário musical no final dos anos 1970. No festival MPB/Shell da Globo, em 1980, Fátima Guedes trouxe a canção “Mais uma boca”, que com poesia e canção contundentes, mostrava a vida de uma mulher sem esperanças que acabou de parir uma criança. Na letra da canção, nenhum romantismo sobre a gravidez, o parto ou o futuro da criança: Quem de vocês se chama João? Eu vim avisar, a mulher dele deu a luz sozinha no barracão E bem antes que a dona adormecesse o cansaço do seu menino pediu que avisasse a um João que bebe nesse bar, me disse que aqui toda noite é que ele se embriaga Quem de vocês se chama esse pai que faz que não me escuta? É o pai de mais uma boca, o pai de mais uma boca. Vai correndo ver como ela está feia, vai ver como está cansada e teve o seu filho sozinha sem chorar, porque a dor maior o futuro é quem vai dar. A dor maior o futuro é quem vai dar E pode tratar de ir subindo o morro que se ela não teve socorro quem sabe a sua presença devolve a dona uma ponta de esperança Reze a Deus pelo bem dessa criança pra que ela não acabe como os outros pra que ela não acabe como todos pra que ela não acabe como os meus... Em “A bailarina” a alegoria é transparente com as “boas moças” que guardavam as tradições da família e os estereótipos femininos: Gira a bailarina Na caixa de música Lívida menina Rodando, rodando... Num pequeno círculo De ouro e de espelho Escrava do delicado Mecanismo Pálida e suave Em seu bailado frívolo Quantas vidas passa Dançando, dançando... Com a orgulhosa pose De uma estirpe distante Finita num infinito Narcisismo Roda a bailarina A sua sina De tonta Guardiã de jóias e segredos De família Com a roupinha de balé Com a sapatilha Relíquia de passar De mãe pra filha Ela se persegue Em seu passeio lúdico Presa na caixinha Girando, girando, girando... Alice Ruiz, autora da provocação que abriu este artigo, tem, como Rita Lee, o olhar atento às relações entre os gêneros. Poeta, Alice cuida das palavras de forma especial, nada em suas letras está ali por acaso. Como em “Bolerango”, letra musicada por Waltel Branco, onde ao som trágico do tango e do bolero, a poeta aponta e ironiza o universo feminino do samba-canção, bem ao estilo dos anos 1950: Boca da noite Na calada, em silêncio Grandes lábios Se abrem em sim Batom, rimel, pó-de-arroz Mas pó para depois Cansada de mim Quero ser dois Mas por mais que eu capriche no blush Não tem outro eu que eu ache Saí vestida de noite Abusei do decote E lancei a sorte Sorri para um desconhecido Escapei por pouco De um engano muito louco Voltei só e cabisbaixa Quem encontra uma mulher Não procura o que ela acha Caetano Veloso havia dito uma vez que percebeu a quantidade de vezes que utilizava o pronome “eu” em suas canções – Alice, conferindo sua própria produção, notou que utilizava demais o pronome “você”. Percebendo os estereótipos do masculino/feminino, da “preocupação maternal feminina com ou outro”, ou essa construção de que as mulheres colocam o outro sempre em primeiro lugar, fez a letra de “Vou tirar você do dicionário”: Eu vou tirar do dicionário A palavra você Vou trocá-la em miúdos Mudar meu vocabulário e no seu lugar vou colocar outro absurdo Eu vou tirar suas impressões digitais da minha pele Tirar seu cheiro dos meus lençóis O seu rosto do meu gosto Eu vou tirar você de letra nem que tenha que inventar outra gramática Eu vou tirar você de mim Assim que descobrir com quantos “nãos” se faz um sim Eu vou tirar o sentimento do meu pensamento sua imagem e semelhança Vou parar o movimento a qualquer momento Procurar outra lembrança Eu vou tirar, vou limar de vez sua voz dos meus ouvidos Eu vou tirar você e eu de nós o dito pelo não tido Eu vou tirar você de letra nem que tenha que inventar outra gramática Eu vou tirar você de mim Assim que descobrir com quantos “nãos” se faz um sim Alice mostra também em suas canções experiências femininas cotidianas, como em “Sem receita”, que mostra o que lhe passou pela cabeça quando temperava um frango: [...] eu estava preparando um frango e começaram a surgir idéias em relação ao jeito que eu estava fazendo o frango, que é o jeito que eu sempre fazia, que não tem muito segredo: é temperar o frango, enfiar uma maçã dentro e botar no forno, que é pra dar uma umidade enquanto assa, senão o frango fica muito seco. Mas a maçã tem toda uma metafísica e tal... e eu estava achando erótico aquele negócio de abrir as coxas do frango, e veio esse texto. É um texto culinário-metafísico-erótico. (RUIZ, 2003). A poeta percebeu a poesia enquanto preparava a receita: o frango “nu”, a maçã e sua ligação com o pecado original. O resultado é revelado na letra composta, que não nos diz, em um primeiro instante, que se trata de uma receita culinária, o que cria uma tensão erótica de início, como propôs Alice, mas que vai se desvendando durante a canção, em especial na segunda estrofe: Primeiro lenta e precisamente Arranca-se a pele Esse limite da matéria Mas a das asas, melhor deixar Pois se agarra à carne Como se ainda fossem voar As coxas soltas Soltas e firmes Devem ser abertas E abertas vão estar E o peito nu Com sua carne branca Nem lembrar A proximidade do coração Esse não! Quem pode saber Como se tempera o coração? Limpa-se as vísceras Reserva-se os miúdos Pra acompanhar Escolhe-se as ervas, espalha-se o sal Acende-se o fogo, marca-se o tempo E por fim de recheio A inocente maçã Que tão doce, úmida e eleita Nos tirou do paraíso E nos fez assim sem receita. Em outro momento de experiência cotidiana, Alice Ruiz e Alzira Espíndola apresentam também de forma emocionante o resultado de uma conversa em que discutiam os problemas de suas filhas adolescentes em suas relações amorosas: Amor que se dedica amor que não se explica até quando se vai parece que ainda fica olhando você sair sabendo que vai cair deixar que saia deixar que caia por mais que vá sofrer é o jeito de aprender e o teu caminho só você vai percorrer se você vence, eu venço se você perde, eu perco e nada posso fazer só deixar você viver Enchemos a vida de filhos que nos enchem a vida um me enche de lembranças que me enchem de lágrimas outro me enche de alegrias que enchem minhas noites de dias outro me enche de esperanças e receios enquanto me incham os seios Só olhar você sofrer só olhar você aprender só olhar você crescer só olhar você amar só olhar você... Ao contrário da bailarina de Fátima Guedes, as filhas dessas artistas não vivem em caixas, aprisionadas e “protegidas”. Como Pagu, de Rita Lee, vão aprender a viver confiando em si mesmas. Essas mães apenas torcem por elas e observam. Mas não interferem. Para encerrar, sabendo que deixei de fora deste texto muitos nomes importantes da composição feminina que poderiam contribuir para essa nova visão da mulher, procuro na nova geração do século XXI outras formas para essa representação. E é no grupo DonaZica que encontro eco às palavras de Alice Ruiz. Formada por nove músicos, a banda trabalha com repertório autoral, em sua maioria composto pelas mulheres do grupo: Iara Rennó (filha de Alzira Espíndola), Anelis Assumpção (filha de Itamar Assumpção) e Andréia Dias. Divertida, irreverente e fortemente referenciada musicalmente pela Vanguarda Paulista de seus pais, o DonaZica traz divertidas constatações sobre a vida da mulher pós-moderna, em contraste com as crises nos relacionamentos dos anos 1970. Vejamos o olhar de Sueli Costa e Aldir Blanc em “Altos e baixos”: Foi, quem sabe, esse disco Esse risco de sombra em teus cílios Foi ou não meu poema no chão Ou talvez nossos filhos As sandálias de saltos tão altos O relógio batendo, o sol posto, o relógio As sandálias, e eu batendo em teu rosto E a queda dos saltos tão altos Sobre os nossos filhos Com um raio de sangue no chão Do risco em teus cílios Foram discos demais, desculpas demais Já vão tarde essas tardes e mais tuas aulas Meu táxi, whisky, Dietil, Diempax Ah, mas há que se louvar entre altos e baixos O amor quando traz tanta vida Que até pra morrer leva tempo demais... O DonaZica, em oposição, responde com “Fio da comunicação”: Tem vez que me dói viver Como pode ser, como pode Nunca se poder crer Em ninguém Simples ser humano com H Esse osso roer não é mole, eu devo confessar Esse osso roer não é mole O meu amor já não tem mais tanta frescura A minha vida não suporta compostura E assimilando toda a situação Sigo tranqüila com muita perturbação Espero um dia não E nem perder o fio da comunicação Na vadiagem glorifico ao meu rei No Espero ser uma pessoa quase sã Pra nunca O meu amor já não tem mais tanta frescura A minha vida não suporta compostura. Respondendo à questão inicial colocada por Alice Ruiz, acredito que a arte pode indicar o caminho para a mudança e a transformação das mulheres, assim como colabora para as novas visões sobre as mulheres. Só precisamos escutar o que elas dizem... e cantam! nota biográfica Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, possui graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas (1989) e mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Foi violonista e cantora, dedicando-se, desde a sua formação, à pesquisa e divulgação da Música Popular Brasileira. É idealizadora e mantenedora do site MPBNet (http://www.mpbnet.com.br). Cursa doutorado em História na Universidade Estadual de Campinas desde 2006, onde desenvolve o projeto “Navalhanaliga: a poética feminista de Alice Ruiz”, orientada pela Profa. Dra. Margareth Rago. É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. referências bibliográficasBAHIANA, Ana Maria
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