labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

Na transversal : Três artistas brasileiras

 

Luana Saturnino Tvardovskas

 

 

 

Resumo:

Esse texto explora as intersecções estabelecidas entre a produção artística e a crítica cultural feminista, focalizando as poéticas visuais das artistas Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. Evidencia a permanência do “dispositivo da sexualidade” na contemporaneidade, na perspectiva aberta por Foucault, ao que procura contrapor as formas da resistência feminista encontradas em instalações, performances e objetos artisticamente construídos a partir de um olhar diferenciado, que visam provocar e polemizar com as verdades instituídas, em especial em relação ao corpo feminino, à sexualidade e à subjetividade.

 

 

Muito já se falou, no âmbito das discussões feministas, acerca do modo como a reflexão sobre o corpo é espaço frutífero para uma crítica da cultura contemporânea (HOLLANDA: 2004). Nas fronteiras já borradas da arte contemporânea brasileira, três jovens mulheres artistas, Fernanda Magalhães, Rosângela Rennó e Márcia X. são notáveis pela transversalidade e impacto com que abordam o tema do corpo em suas poéticas visuais. Três universos que produzem interferências ácidas nos atuais modelos de saúde, beleza e felicidade a qualquer custo, fazendo proliferar imagens que multiplicam, disfarçam e incandescem.

            Rosângela, Márcia e Fernanda são mulheres que participam da mesma geração, nascidas no início da década de 1960. Márcia X., carioca, nasceu em 1959, mas faleceu jovem ainda, em 2005. Rosângela Rennó nasceu em Minas Gerais, em 1962, assim como Fernanda Magalhães, que é oriunda do Paraná. Elas trabalham com diversos suportes como performances, fotografias, desenhos e instalações. Utilizam elementos de uso cotidiano, como recortes de jornais, fotografias antigas e outros mais inusitados, como objetos de estimulação sexual, leite condensado, recortes de fotos eróticas de mulheres gordas nuas. Essa apropriação não-habitual de elementos desestabiliza verdades binárias e gera suspensões nos enunciados que legitimam opressões ao corpo e à sexualidade.

            Fernanda Magalhães apresenta um raro questionamento sobre os corpos de mulheres gordas, representando-as nuas. Compõe essas imagens com escritos pessoais, recortes de jornais, receitas culinárias, gerando um tom irônico ao reiterado discurso da magreza feminina. Rosângela Rennó recolhe, de maneira profícua, fotografias que abundantemente são descartadas por nossa sociedade. São fotos de casamento, retratos 3X4 e fotografias de jornais recriados, gerando uma refinada dissonância em nossa memória afetiva, política e cultural. Contrastando elementos como erotismo e infância, sagrado e profano - como, por exemplo, ao apresentar bonecas de plástico em posições sexuais -, Márcia X. produz diversas performances e instalações onde, com humor, critica o discurso falocêntrico e propõe novas fulgurações para a sexualidade.

            No cenário da arte contemporânea brasileira, muitas mulheres artistas destacam-se pelo alto rigor formal, por pesquisas aprofundadas nos suportes escolhidos (fotografias, esculturas, performances, etc.) e também por levantarem questionamentos acerca de problemas atuais como a sexualidade, o cotidiano e o poder. Uma pesquisa que privilegia a produção de Rennó, Magalhães e Márcia X. deriva, portanto, de uma atração pessoal por seus trabalhos, sendo impossível estabelecer uma hierarquia qualitativa entre as artistas consagradas na arte brasileira atual. Perante a particularidade e a multiplicidade criativa de artistas como Ana Miguel, Rosana Palasyan, Neide Jallageas, Cristina Salgado, Rosana Paulino, para citar somente algumas, existe ainda um grande universo para se abordar.    

            Embora extremamente diferentes, tanto plástica quanto tematicamente, as produções de Rennó, Magalhães e Márcia X. colocam em circulação inúmeras possibilidades de crítica à sociedade contemporânea. Segundo Foucault, as imagens artísticas têm o potencial de banir o tédio das interpretações e da escrita e, nesse artigo, procuro um modo diferenciado de olhar para as mesmas, percebendo-as como um espaço de confluência de enunciados e de forças: a produção artística dessas três mulheres encontra-se fora do âmbito figurativo e convida a um “desvio na circulação infindável das imagens na atualidade” (FOUCAULT: 2001, p. 350).

As três artistas aqui analisadas conectam-se às críticas feministas através das discussões levantadas em suas obras, principalmente no que concerne a algumas categorias centrais para o pensamento feminista, como os debates sobre as questões identitárias, a experiência, a sexualidade e a disseminação do sujeito. Embora não militem nos movimentos feministas, possibilitam inúmeras conexões entre este pensamento e suas produções. Aqui são priorizadas suas poéticas visuais sem, portanto, a fixação no aspecto da auto-intitulação das mesmas enquanto feministas. Quais são, portanto, as contribuições da arte produzida com enfoque feminista para a formulação dessa crítica e análise do presente?

A crítica de arte Heloisa Buarque de Hollanda explicita, no texto intitulado “Novos Tempos”, como as produções de jovens artistas mulheres incorporam e reelaboram problemáticas feministas. Seus trabalhos, surpreendentemente, criam uma “estética assertiva”, interessada em investigar as condições de produção de construção da subjetividade feminina (HOLLANDA: 2003). Abaixo, aproximo-me um pouco mais detidamente sobre as trajetórias dessas artistas, e em seguida, analiso três trabalhos das mesmas, onde essas dimensões são exploradas.

 

- Trajetórias

           

            Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó reagem sagazmente ao excesso de preocupação com o corpo, com a beleza e com a saúde, numa atitude ética e artística composta por suas histórias individuais e por conexões diversas com artistas de outros tempos, ou seja, por inter-relações com a arte contemporânea nacional e internacional. 

            Elas não constituem um grupo entre si, embora, no curso da vida e da trajetória profissional de cada uma delas, tenham-se conhecido e tenham feito amizade(s). Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó aproximaram-se na década de 1980, em Belo Horizonte, num curso de fotografia, onde se tornaram amigas e mantiveram contato próximo durante alguns anos de suas juventudes. Rennó teve maior proximidade com Márcia X., nos últimos anos da década de 1990, pois ambas viviam no Rio de Janeiro e participavam do mesmo circuito cultural e artístico. Fernanda Magalhães teve a oportunidade de conhecer Márcia X. e de assistir às suas performances, mas não tiveram uma relação tão próxima.

            Márcia Pinheiro ou Márcia X. desenvolveu, desde a década de 1980 até sua morte precoce, performances e instalações, questionando o estatuto da arte e do artista na sociedade, do corpo e da sexualidade, da normalidade e da perversão. Talvez ainda não se tenha a dimensão do que significou investir nestas manobras experimentais, em meio ao refluxo dos anos 1980, período de franca implantação do neoliberalismo. No entanto, é importante situá-la em sua transgressão, divergente daqueles/as artistas que primaram pelo “retorno da pintura” naquele momento de “abertura lenta e gradual” no país. Para muitos críticos, a produção artística dessa geração havia abandonado a tradição vanguardista dos anos setenta, priorizando a pintura em relação à realização de performances e instalações (BASBAUM: s/d).

Sua primeira exposição individual, Ícones do Gênero Humano, ocorre em 1988, no Centro Cultural Cândido Mendes, no Rio. Nesta ocasião, enquanto a galeria permanecia vazia, isto é, sem obras expostas, Márcia X. e Aimberê César (que é artista performático e fotógrafo) fotografaram aqueles que compareceram ao vernissage. Posteriormente, penduraram as fotos dessas pessoas nas paredes.  A surpresa decorre da crítica implícita aos espaços reservados à exibição de obras, tanto quanto aos circuitos de arte: a denúncia da falta de abertura para o ingresso de novos talentos no circuito de arte, ou mais precisamente, do elitismo característico desse universo.

Márcia Pinheiro mudou seu nome para Márcia X., após uma performance na cidade do Rio de Janeiro, em 1985, que teve como parceria o poeta Alex Hamburguer, seu primeiro marido. Tratava-se de uma intervenção na Feira Internacional do Livro, onde ela acabava expondo o próprio corpo numa nudez performática. Como o acontecimento foi registrado nos jornais no dia seguinte, a estilista homônima Márcia Pinheiro não gostou de ver seu nome envolvido em fato tão escandaloso e Márcia ludicamente anexou um “X” ao seu nome, para desvincular-se da imagem da famosa estilista das colunas sociais. 

Esta postura irônica e irreverente marca sua trajetória, por exemplo, quando Márcia X. fez participações no “Cep 20.000”, em 1992, evento de poesia liderado pelos artistas Chacal e Guilherme Zarvos, no Espaço Cultural Sérgio Porto - RJ. Dentre as performances apresentou nesse evento, destaca-se “Lovely Babies”, em que a artista se insinuava com um roupão de banho, cabelos soltos, surpreendendo o público com um breve strip-tease. Apresentava-se vestida com uma camisa e uma cueca, onde abrigava um volume que simulava o órgão sexual masculino. A imagem da mulher sensual, no entanto, era, em seguida, quebrada abruptamente pela visão da ambígua artista com um suposto pênis. Mas logo, Márcia X. retirava o objeto de dentro da cueca e revelava que se tratava de uma bonequinha, que, em seguida, ela passava a ninar e acariciar. Por fim, novamente o tom da performance transformava-se e a bonequinha eletrônica passava a engatinhar com outras, sugerindo posições sexuais diversas. Com o projeto “Cep 20.000”, o Espaço Cultural Sérgio Porto legitimou-se como uma das mais notáveis incubadoras cariocas de trabalhos de vanguarda, mantendo-se em atividade até hoje.

O erotismo manifesto na performance confluía, aqui, com uma crítica aos papéis de gênero, já que não se tratava de mostrar o corpo nu, ou de revelar o que era sugerido sexualmente, mas de chocar o público com a surpresa da mescla de elementos inusitados, provenientes tanto de sex-shops, quanto do universo infantil.

Durante os anos 1990, Márcia X. iniciou séries marcantes, que problematizam o erotismo, como a Fábrica Fallus, feita com objetos de estimulação sexual, e Kaminhas Sutrinhas, apresentados no Espaço Cultural Sérgio Porto, em 1995, onde diversas pequenas camas são colocadas em exposição e sobre elas, duplas e trios de bonecos sem cabeça executam uma mímica sexual. Nesse trabalho, saltava aos olhos o contraste da infância com o erotismo: irreverência de Márcia X. ao embaralhar os tabus sociais e provocar sentidos outros àquilo que é tomado como natural por nossa cultura. A partir daí, seus trabalhos foram expostos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em 2001 e 2002, ela participou do Panorama da Arte Brasileira, que itinerou no MAM de São Paulo, Rio e Salvador. Também participou, no mesmo ano, da III Bienal do Mercosul.

Estes trabalhos denotam a carreira firme e independente que Márcia X. consolidou, apesar das críticas e sucessivos cortes de participação em salões e em outras mostras. Atravessou censuras e cancelamento de diversas performances, tendo sido uma grande batalhadora pela arte experimental contemporânea, lutando para afirmar a performance no meio artístico nacional (BASBAUM: s/d).

            Maria Fernanda Vilela de Magalhães, fotógrafa e artista visual, apresenta uma constante em sua trajetória artística: a dimensão da rebeldia. Seus trabalhos utilizam diversos suportes – instalações, performances, desenhos e “fotografias manipuladas”, como ela mesma define; focalizam corpos de mulheres gordas e são permeados por enfrentamentos. Mulheres nuas, de frente, de costas, em poses sensuais ou escandalosas chocam pelo inusitado. Sobre essas imagens fragmentadas, Fernanda imprime outras marcas: escritos pessoais, receitas culinárias, colagens de outros corpos, e cria contrastes surpreendentes pelo jogo de luzes

.A artista, hoje com 44 anos de idade, vive em sua cidade natal. Formou-se em Educação Artística pela Universidade Estadual de Londrina, em 1984, e é especialista em fotografia pela mesma Universidade, onde atua como docente vinculada ao Departamento de Arte, na cadeira de Fotografia.

Ela adquiriu apreço pela arte desde muito nova, através do incentivo de seu pai Antonio Vilela de Magalhães. Ele era jornalista e foi um homem bastante múltiplo e arrojado, que apoiou para o desenvolvimento cultural da cidade de Londrina.

Vilela, como era chamado, deu para a filha sua primeira máquina fotográfica, uma Polaroid, quando tinha ainda seis anos de idade. Incentivando-a a fotografar e a refletir, ele foi a referência mais importante para a formação da artista. Magalhães explicita esse forte elo afetivo num trecho de seu doutorado em artes, dizendo como as orientações e o amor do pai apoiaram-na a conquistar uma paixão pela arte (MAGALHÃES: 2007).

Fernanda Magalhães, ainda jovem, dançou balé clássico, moderno e jazz, fez teatro, escreveu contos infantis e era correspondente mirim no jornal Folha de Londrina. Tocou piano, violino, cantou num coro cênico, fez animações e cinema super-8 na ALCA – Associação Londrinense de Cineastas Amadores. Teve inúmeras oportunidades para expressar-se e formar-se artisticamente. Essas inúmeras conexões com diversas mídias ainda interessam a Magalhães em sua produção artística que é plena de articulações com a poesia, com a música e com o teatro. Certamente, Magalhães não é uma fotógrafa tradicional, e utiliza-se do suporte também para transgredi-lo e levá-lo ao limite. Muitas vezes, a fotografia é parte de uma instalação ou de uma performance, como na série desenvolvida em 2004, Fotos em conserva, onde recortes de fotografias são guardados dentro de pequenos vidros, sugerindo a frágil lógica da memória e do esquecimento.

Após sua graduação, em 1986, Fernanda Magalhães passou a trabalhar no Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss, permanecendo na função de fotógrafa especialista até o ano de 1997. Foi, portanto, uma década de experiência na área museológica, onde a artista teve a oportunidade de fazer cursos e viajar para cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, conhecendo artistas e estudiosos de arte.  Na década de 1980, também participou das semanas de fotografia promovidas pela FUNARTE, que forneceram à artista maiores reflexões sobre linguagem fotográfica e expressões artísticas.

Políticos e feministas, seus trabalhos artísticos como Classificações Científicas da Obesidade, 2000 - instalação onde fotografias de corpos gordos são suspensas por fios quase imperceptíveis, e possuem os interiores recortados, ficando somente as bordas e margens desses corpos na exposição - denunciam e rejeitam as classificações pretensamente científicas e bastante normativas, que aprisionam o corpo feminino e pretendem assujeitá-lo aos padrões de beleza estabelecidos. Neste mote, sua criação é acompanhada de um intenso trabalho sobre si, principalmente pela positivação de elementos de sua subjetividade e das imagens sobre o corpo da mulher gorda, sobre seu próprio corpo. Mais do que isso, através de sua produção, a artista participa criticamente dos debates que se abrem atualmente, também no Brasil, para discutir difíceis problemas sociais e individuais, como a obesidade e a auto-estima.

Rosângela Rennó Gomes produz instalações e objetos através da utilização de imagens fotográficas abandonadas em arquivos públicos e privados e de textos retirados de jornais. No começo de sua trajetória, a artista caminhou principalmente no campo do universo feminino, se apropriando de fotos de álbuns de família, acrescentando-lhes algumas inscrições, como no trabalho Mulheres Iluminadas, 1988, onde uma fotografia de infância da artista com sua irmã, numa praia do Rio de Janeiro, foi modificada, rasurada e escurecida, causando uma dissonância entre o título e a imagem dessas mulheres “mal iluminadas” (CHIARELLI: 1997, p. 176). Em seguida, além das fotografias, trabalhou com instalações, passando a utilizar o espaço das exposições de outra maneira. Neste momento, o interesse pelo universo feminino passou a mesclar-se a preocupações sobre a condição humana, por vezes apresentadas pela artista em seu caráter épico e carregada de drama. Aproximou-se, principalmente, aos temas das fotografias recolhidas de arquivos de ateliers fotográficos populares, outras recolhidas de jornais, como também fotos de obituários e de identificação criminal.   

Rennó formou-se em arquitetura pela UFMG em 1986 e, em 1987, em artes plásticas pela Escola Guignard, em Minas Gerais. Também integrou o grupo Visorama de estudos de arte contemporânea, entre 1991 e 1993, titulando-se doutora em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade Estadual de São Paulo, em 1997. Atualmente reside e trabalha na cidade do Rio de Janeiro e exibe seu trabalho nacional e internacionalmente, como na De Appel Fundation, Amsterdã - Holanda, The Museum of Contemporary Art of Los Angeles, L. A. - EUA e na Galeria Lombard Freid, New York - EUA.

Através da crítica acerca dos modos de construção das identidades na atualidade, principalmente daqueles que operam através da fotografia, a artista sublinha temas diversos como a obsessão normativa sobre o corpo, o escopo cultural de imagens que conformam as subjetividades em divisões binárias masculino/feminino e as cicatrizes e marcas corporais como espaço de denúncia aos modos adquiridos de lidar com tipos físicos.    

            Suas críticas sociais tomam a história da fotografia como objeto a ser evidenciado e questionado. Rennó utiliza-se de imagens fotográficas abandonadas em arquivos públicos e privados e considera-se uma fotógrafa que não fotografa: acredita que o mundo já está por demais abarrotado de imagens. Quando esculpe, ela foge das referências tradicionais, por exemplo, em algumas obras do projeto Arquivo Universal, (1992-2003), onde textos de jornal são gravados em paredes macias de isopor, provocando um aspecto de invisibilidade aos textos, mas ao mesmo tempo dotando as letras com uma inusitada sensibilidade tátil. Ela realmente subverte as práticas e os nomes que podem estagná-la, estando em fuga constante de uma identidade fixa. Parece interessante notar que, enquanto grande parte dos artistas atuais procura manter um traço reconhecível de identidade em suas obras, Rennó crie um trabalho como o Arquivo Universal, guardando mil detalhes insignificantes sobre um mundo de memórias desconhecidas, conectando-se a uma postura nômade e portadora de uma sensibilidade que estranha radicalmente o habitual.

Iniciado em 1992 e vigente até hoje, O Arquivo Universal e outros arquivos (RENNÖ: 2003) foi desenvolvido mediante um amplo projeto de recolhimento e organização de fotos perdidas e abandonadas e de textos de jornais referentes a fotos que permitiu a Rennó produzir inúmeras séries de obras, dentre as quais algumas que se conectam às temáticas da fotografia como prática de controle social e de registro da experiência cotidiana. Até o momento, pertencem a este arquivo dezoito séries de obras, onde Rennó apresenta e debate temas como a violência e a vaidade, o casamento e o amor, o sistema prisional brasileiro, a imigração, os militares, o anonimato e o poder.  

Deste grande universo temático destaca-se o método utilizado por Rennó de subverter o lugar comum das imagens cotidianas: as fotografias de casamento manipuladas pela artista tornam-se Cerimônia do Adeus (1997-2003); as fotos dos corpos de prisioneiros do Carandiru, re-fotografadas, tornam-se Cicatriz (1996-2003); os retratos antigos de família, esbranquiçados por ela compõem uma sombria Parede Cega (1992-2000). E não são apenas os títulos das obras – sugestivos de outras possibilidades de aproximação com aquilo que é esquecido -, que carregam o tom dramático e por vezes irônico de Rennó. Ocupando uma parede com a obra In Oblivionem (1995), de imagens quase totalmente pretas, a artista escancara nosso hábito de abandono e esquecimento do passado, ao mesmo tempo em que nos depara com o fato paradoxal de vivermos abarrotados de imagens.

Ela quer interromper o fluxo de fotografias deste mundo marcado pelo excesso imagético (HERKENHOFF: 2003, p. 125). Assim como em Fernanda Magalhães, esse método de apropriação parece associar-se a um embate contra a alienação perante as imagens sociais. E, diante da falta de sentido na busca por valores absolutos, essas artistas voltam suas atenções para o detalhe, para o tido como insignificante e momentâneo.  Se em Magalhães os temas apresentam-se mais carregados de carnalidade, já que o corpo é apresentado como espaço ativo de resistência, em Rennó, o que se apresenta são justamente aquelas práticas aparentemente inocentes através das quais a sociedade contemporânea esquadrinha e polariza as identidades.

 

- O corpo em imagens

 

            Essas artistas criam uma multiplicidade de imagens que sugerem reflexões sobre temas complexos e cruciais para as discussões de gênero na atualidade. Nas próximas páginas, nos aproximaremos de três trabalhos que anunciam estes questionamentos.

Neles, forjam-se sobreposições e zonas de sombra que indicam possibilidades outras para o erotismo, a sexualidade, o feminino. Poeticamente, surgem imagens inusitadas e carregadas de sentido, que embaralham categorias estáveis, como a pretensa divisão natural entre os gêneros.

O questionamento dos mitos, das ideologias e da padronização dos comportamentos em nossa atualidade é promovido por diversas pensadoras feministas, como Judith Butler, que reverte a noção de identidade sexual, fundada no biológico, incitando-nos a verificar o aspecto performativo e cultural dos gêneros (BUTLER: 2003).

O sexo constitui-se o eixo de nossa compreensão acerca de nossa individualidade e de nossas verdades mais profundas, conforme Foucault assinalou, e adquire esta centralidade em nosso pensamento através de todo um discurso de controle e de poder (FOUCAULT: 1979). Essas jovens artistas brasileiras debatem, frontal ou sutilmente, os papéis de gênero e a identificação da figura da mulher com a natureza materna, com o casamento e com as definições de beleza e de saúde atuais. São práticas artísticas que captam o funcionamento desses jogos de poder e criam imagens que, na transversal, desconstróem as estratégias pelas quais eles instauram-se. Não se trata apenas de mostrar repressões ao corpo e à expressão feminina no mundo público, mas também de verificar, como núcleo de suas poéticas visuais, a própria constituição das subjetividades na contemporaneidade.

 Fábrica-fallus (1993-2005) é o título da série onde Márcia X. utiliza pênis de plástico - sempre vigorosos e eretos, comprados em sex shops e acoplados a toda sorte de enfeites femininos e de apetrechos infantis e religiosos. O título original da série era “Penys Lane”, nome bem humorado, característico das sátiras exploradas pela artista em seus trabalhos. As engenhocas sexuais são modificadas por Márcia X., pela junção de diversos materiais: pompons, espelhos, medalhas, correntes, rendas, etc. Os vibradores utilizados em alguns exemplares, não eram estáticos, rodopiando e movimentando-se, ao mesmo tempo em que se chocavam entre si. Uma série feita ao longo de diversos anos, que resultou em inúmeras peças, algumas dotadas de movimento e som, possibilitando interação com o público: alguns assobiam para quem passar em sua frente, outros se assemelham aos brinquedos infantis, num apelo a um jogo lúdico, inocente ou não; há outros que sugerem expressões sexuais extravagantes, lembrando rituais sadomasoquistas. 

A apropriação de objetos e apetrechos de uso cotidiano, comprados por Márcia X. no “Saara”, bairro comercial popular na cidade do Rio de Janeiro, cria um tom engraçado, que reafirma o aspecto insolente da artista. Esse posicionamento questionador das hierarquias (dos objetos, das práticas e mesmo do universo simbólico) está não somente nos materiais que utiliza, mas se faz presente também em sua postura ético-política frente a impasses espinhosos, como o problema do elitismo que envolve o mercado de arte no país. Sua prática é o humor, assim como a de um bufão, que trata de destronar o rei e coroar o bobo para produzir riso, embaralhar os jogos de legitimação do certo e errado, desestabilizando tudo aquilo que possui lugar ao sol.

Em seus trabalhos, uma forte dimensão erótica aparece conjugada com sua crítica feminista, formando um emaranhado difícil de desenroscar. Márcia X. não se contenta com as imagens binárias de um feminino casto ou vampirizador, em seus trabalhos, expõe e insinua o corpo, desfaz as fronteiras do normal e do perverso, afirma o prazer e brinca com o desejo.

A erotização das crianças, na atualidade também está em pauta nas obras de Márcia X. Ao defrontar sexo e infância, ela sacode os tabus constituídos e cria uma zona indefinida entre a ironia e a valorização dos temas; zombando, por exemplo, do próprio erotismo que, na atualidade, é apresentado pelo mercado como jogos e brincadeiras, vejam camisinhas de morango, calcinhas comestíveis, vibradores que são bonecos ou animaizinhos (FELIPE: 2006).

Infantilização do pornográfico e erotização da imagem com humor. No primeiro caso, trata-se de um procedimento que banaliza os objetos e as práticas da indústria pornográfica, dessexualizando-as pela super-exposição. De outro, há certa leveza na dimensão pornográfica que a obra de arte apresenta, já que esta forma sexual é percebida como prática corrente na sociedade. Márcia X. parece ao mesmo tempo querer ridicularizar-nos perante uma grande confusão dos sentidos e atentar para o que está sendo perdido ou ganhado na experiência amorosa e sexual, enquanto outros modos possíveis de relação com o sexo. Ela associa sexo/infância comicamente, ao mesmo tempo em que ridiculariza os ícones da cultura falocêntrica, produzindo um olhar transversal. Provoca-nos risos nervosos, cômicos porque Márcia X. embaralha os tabus e inverte lugares comuns. O pornô infantilizado perde a agressividade e torna-se cômico; o infantil erotizado se torna mais interessante ao olhar adulto. Dois extremos se confundem: a perversão, o fetiche sexual, noite em lua cheia e a pureza infantil, manhã ensolarada.

 Em Fábrica Fallus, o jogo simbólico do falo é desmontado desde um duplo ponto de vista: tanto pela personificação bem humorada dos pênis autômatos, que evocam ou se transformam em bispos, palhaços, narcisistas, amantes latinos, etc., quanto pela expressão de um desejo feminino pós-emancipação, quiçá muito mais livre, e que se evidencia pela possibilidade de acesso a uma indústria erótica de vibradores e de mil outros apetrechos, criados para favorecer o prazer. Se anônimos e impessoais nas prateleiras das lojas, nas obras de Márcia X., esses órgãos sexuais se transformam em objetos simultaneamente fálicos e femininos, pornográficos e infantis, sagrados e profanos. Pênis que se abraçam e enamoram; pênis cobertos de imagens santificadas; pênis-candelabros; pênis-narcisos, que se admiram diante de um pequeno espelho cor de rosa; pênis–sádicos, acorrentados, de todos os gostos e por todos os lados. 

Sua reflexão sobre o corpo é ex-cêntrica na crítica, mas esse, nessa série, é mostrado apenas através de sua parte sexual: o órgão masculino geralmente escondido, mas em visibilidade simbólica em nossa sociedade. Se o discurso feminista atual debate a importância de vivenciarmos e respeitarmos as diferenças de gênero, Márcia X. envolve-nos com uma estratégia mais antiga, de ataque frontal e direto ao símbolo máximo do poder e da masculinidade. 

A Fábrica Fallus é metonímia do mundo: uma maquinaria que não pára de produzir ícones do desejo, de adaptar os “produtos” a toda sorte de gostos, de recriar e multiplicar o poder do falo. Márcia X. volta seu olhar mordaz ao patriarcado, ironizando a obsessão com a sexualidade que caracteriza a sociedade contemporânea, através da fabricação de pênis em série. É uma imagem do que Foucault observou acerca da explosão discursiva sobre o sexo em nossa sociedade. Esse filósofo buscou compreender como a sexualidade foi colocada no centro da existência na Modernidade, como ela se tornou algo que seria preciso conhecer, examinar, classificar e vigiar, como se tornou o lugar privilegiado onde a “verdade” mais profunda do indivíduo residiria. Sagazmente, Foucault reverteu o discurso tradicional, que dizia ser a sexualidade reprimida, indicando como paralelamente às repressões constituiu-se todo um discurso de controle e poder, que nos incita a falar de sexo e a colocá-lo no centro de nossa ontologia. Positividade do poder, produtividade do sexo (FOUCAULT: 2001).

Fábrica Fallus de Márcia X. conecta-se, assim, com o deslocamento promovido por Foucault, quando ele pergunta pelos motivos da excessiva preocupação com o sexo, desde o século XIX:

 “O problema é o seguinte: como se explica que, em uma sociedade como a nossa, a sexualidade não seja simplesmente aquilo que permita a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos? Não seja simplesmente alguma coisa que dê prazer e gozo? Como é possível que ela tenha sido considerada como o lugar privilegiado onde nossa verdade mais profunda é lida, é dita? Pois o essencial é que, a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer “Para saber quem és, conheças teu sexo”. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa espécie, nossa “verdade” de sujeito humano.” (FOUCAULT: 1979, p. 229)

Márcia X. capta e denuncia essa estratégia do poder com um toque de sarcasmo. Delineia-se, de modo cômico, uma crítica ao falocentrismo, arquitetada através da própria prática cultural do enaltecimento heróico do masculino. Os pênis fortes eretos, símbolos da masculinidade e do vigor da raça, em outros tempos, são ironizados e ridicularizados, ao mesmo tempo em que sua carga erótica é potencializada.

Por lidar com questões como a sexualidade, muitas vezes extrapolando os limites do estético, Márcia X. sofreu rejeição e preconceitos, o que também explicita o quanto ela era polêmica. Trabalhando frontal e agressivamente com a mitologia erótica ocidental, conforme indica Heloisa Buarque de Hollanda, essa artista é um exemplo radical dessa geração de artistas que reelaboram temas do feminismo, na pós-modernidade.

   A crítica de arte Marisa Florido César destaca a força de Márcia X. para questionar os mitos e as ideologias, a padronização dos comportamentos e a constituição dos poderes em nossa atualidade. Essa artista produziu suas obras, mantendo-se conectada à potência transgressora das vanguardas artísticas, mas sem deixar de reavaliar essa mesma tradição e de problematizar sua própria atualidade (CÉSAR: 2005).

Em apelo à liberdade e à vida, promove rupturas iconoclastas. Inventando novos desejos e novos imaginários, criando novos sentidos e novas linguagens, Márcia X. irrompe como uma das novas bárbaras em luta contra o Império. Reinventa a corporeidade, desfazendo e desafiando as formas de captura e padronização da sociedade de controle.

Suas produções artísticas traduzem buscas por novos lugares – politizados, vale marcar - para o feminino, para além da figura da MULHER, isto é, de um modelo abstrato e pretensamente universal, imposto praticamente para todas as mulheres, desde meados do século XIX, em que a principal característica feminina seria a maternidade. Operam deslocamentos, na medida em que traduzem novas formas de expressão da feminilidade e apresentam novas concepções de sexualização, beleza e sedução, inclusive corporais. Potência crítica nos trabalhos artísticos e constante irreverência nos métodos: um feminismo refinado que, ao mesmo tempo, sabe zombar da condição feminina tradicional e rir do mundo. (BRAIDOTTI: 2001 e BUTLER: 2003)

Em 1995, Fernanda Magalhães produziu diversos trabalhos que faziam parte do projeto A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia, com o qual concorre a uma bolsa da Funarte e ganha o VII Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da FUNARTE/ MinC. Assim, conquista um ano de incentivos para desenvolver o projeto, que visava investigar as representações da mulher gorda no imaginário social. Como resultado final, a artista apresenta a série de fotografias manipuladas (que possui o mesmo nome do projeto), onde ela se apropria de diversos trabalhos visuais, que tem como tema central a figura de mulheres gordas.

 Nesta série de manipulações sobre fotografia, a artista apropria-se de imagens fotográficas produzidas por artistas como Joyce Tenneson, Deborah Turbeville e Jan Saudek, e dos brasileiros Sérgio Duarte, Sandra Bordin e Angelo Pastorello, além de fotos publicadas na revista pornográfica norte-americana Buf, também voltada para a visibilidade dos corpos femininos gordos. Magalhães conjuga essas imagens retrabalhadas com inscrições de textos bem-humorados, formulando uma leitura crítica que, em alguns momentos, se aproxima das abordagens que esses artistas constróem a respeito da obesidade feminina.

Tradicionalmente, nas abordagens do nu artístico feminino, são as poses artificiais e de caráter pretensamente atemporal que prevalecem. Já em Fernanda Magalhães, uma distinção se coloca: ela não trabalha as imagens da feminilidade de maneira idealizada, mas apresenta mulheres que “são de carne e massa, cheiram o real e exalam a vida como ela é”, nas palavras de Maria Carla Moreira. (MOREIRA: 1997) Com isso, ela desnaturaliza as categorias de beleza e saúde proclamas pelos discursos científicos, posicionando-se criticamente contra identificações que se pretendem biológicas e, portanto, imutáveis, o que podemos ver muito claramente na obra acima apresentada.

Em Gorda 9, Magalhães recorta seu próprio rosto, enquanto expõe seu corpo nu, sobrepondo a cabeça da Vênus de Willendorf em seu lugar, como inscreve na  própria imagem. Recriando-se como deusa-mãe, deusa da fertilidade de tempos imemoriais, para além de uma atitude de auto-valorização, a artista promove uma imagem positiva da mulher gorda, fonte da vida, da felicidade, origem da própria espécie. E, assim, situa-se no centro de duas metades de uma mesma mulher. Nessa imagem, a artista contrasta a imagem de seu corpo, ao de uma modelo magra, o que também explicita sua compreensão de que o problema da ditadura da beleza é uma constante entre as mulheres, e não apenas para as gordas.

        Esse auto-retrato – em que o próprio corpo é utilizado de maneira muito abrangente - apresenta-se como uma reação à perversa lógica de negação do corpo gordo, difundida na atualidade. Ser gorda, nesse contexto, deixa de ser uma experiência traumatizante e de profundo sofrimento, afinal, as próprias divindades situadas em nossas origens não eram representadas como as figuras que hoje definimos como saudáveis, porque magras e ágeis.

            Em outras imagens dessa série, Fernanda aborda como o desejo feminino é um tema complexo e muitas vezes negligenciado pela cultura, o que denota o quão avesso às mulheres ainda é o nosso mundo. Em Gorda 9, a artista faz uma colagem de um texto abaixo da imagem central, de autoria desconhecida, que diz:

“Uma outra página enumera uma lista de pedidos aos aliados não-gordos. O primeiro: “Ser vista como um ser humano sexual”. O úl-”

Essa colagem, associada às imagens de mulheres nuas, denuncia como a mulher obesa, em nossa cultura, sofre estigmatizações e constrangimentos, sendo tratada como uma pessoa que é incapaz de usufruir os prazeres sexuais. Para Fernanda, esse é um dos objetivos políticos de seu projeto: mostrar a atmosfera de hipocrisia que permeia o tema, já que a própria artista conseguiu descobrir, em sua pesquisa, diversas imagens, por exemplo, de revistas pornô comerciais, que exaltam a exuberância erótica de mulheres gordas. De modo surpreendente, Fernanda anuncia que a liberdade de experimentar a sexualidade e de ser “sexual” são conquistas necessárias para que haja respeito social com as mulheres gordas. Isso significa, para a artista, que existe sim um desejo sexual com esse corpo gordo, mesmo que o imperativo normativo anuncie que o gozo e o prazer só estão disponíveis para aquelas cujo corpo encaixa-se nas classificações científicas de beleza, magreza e saúde.

Em se tratando da discussão sobre a obesidade, Sander Gilman traz importantes contribuições, ao advertir sobre o quão escorregadio é este conceito, em geral, associado às noções de doença e deficiência (GILMAN: 2004, p. 330-353). Portanto, questiona as possíveis definições do termo: “O que é a obesidade?”, e, em seguida, afirma:

“Embora existam conjuntos de definições médicas contemporâneas da obesidade, também é claro que a definição daqueles que são obesos muda de uma cultura para outra com o passar do tempo” (GILMAN: 2004, pp. 333-334).

Gilman critica os regulamentos que definem o excesso de peso corporal como causador de uma “deficiência clara” (GILMAN, 2004, p. 332). Segundo ele, até mesmo no âmbito médico, há uma grande dificuldade em distinguir-se se a gordura corporal é o resultado de uma doença, ou se é ela mesma uma doença. Quando se considera a obesidade como tal, existem inclusive dúvidas sobre que órgãos ela afetaria: o sistema digestivo, o circulatório, ou a mente? No último caso, sofreria o obeso da mais estigmatizante das doenças, a doença mental?

Esse autor evidencia a importância ética dessas questões, ao compreendê-las como problemas tanto culturais como históricos. Nesse registro, o conceito de obesidade esbarra com as conformações do normal e do patológico, indicando os aspectos da construção cultural do corpo, na atualidade.  Foucault, por sua vez, nota como as conformações e catalogações que operam nos corpos constituem questões políticas, problemática investigada constantemente por Fernanda Magalhães. Diz ele:

“Mas o corpo está também diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder dele se apoderam imediatamente, elas o investem, o marcam, exigem dele signos (...). Esta tecnologia política do corpo é difusa, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõem-se freqüentemente de peças e pedaços, faz funcionar uma aparelhagem de processos discordantes” (FOUCAULT: 1977, pp. 30-31).

  Segundo Mariana Botti, o auto-retrato comporta, pelo menos, cinco séculos de tradição (BOTTI: 2005). Diagnosticando os usos do mesmo por artistas atuais, a autora mostra que esta tendência do universo artístico relaciona-se à problemática da identidade, onde o auto-retrato pode servir como método de construção e controle da identidade, como contestação dos significados de gênero impostos, e também, como possibilidade de exploração da própria subjetividade. No caso de Magalhães, ao colocar-se em cena, a artista pode assumir sua própria realidade e denunciar livremente os preconceitos que gordas e obesas enfrentam, evidenciando ainda a dimensão de gênero, pois sabe que a sociedade aceita o homem gordo com muito mais facilidade e privilégios que a mulher, destinada a ser bela, magra e escultural.

O auto-retrato de Magalhães também se conecta, por seu caráter acéfalo, aos comentários de Eliane Robert Moraes a respeito das interrogações da arte sobre a figura humana (MORAES: 2002). Essa autora comenta que, desde o final do século XVIII, surgiram diversas expressões artísticas que pretendiam contrapor-se à busca por uma imagem ideal do homem, utilizando o imaginário do dilaceramento como seu principal método. Embora diferentes, estética e historicamente, nessas expressões, a problematização da cabeça repousa na origem de uma interrogação acerca da necessidade assustadora de confinamento do humano num retrato definitivo e imóvel. Afinal, a que vem a noção de natureza humana, fixa e imutável para todo o sempre? Deste modo, ao abordar o tema do acéfalo em Georges Bataille (1897-1962), Moraes instiga: “se a cabeça representa a forma perfeita através da qual o ser humano constrói as certezas ilusórias sobre si mesmo, é precisamente dela que ele deve escapar” (MORAES: 2002, p. 219).

    O que dizer do acéfalo em Magalhães? Esconder o próprio rosto pode também ser uma maneira de provocar outros olhares, afirmando, por exemplo, que o problema não é individual, mas coletivo. Ou avançando, pode ser pensado, também, como uma crítica à tendência homogeneizadora, que faz do corpo gordo a identidade através da qual a pessoa é unicamente identificada e, portanto, classificada por padrões exteriores a ela; logo, empobrecida e preterida

.Em Cerimônia do Adeus (1997-2003), Rennó apresenta fotografias digitais realizadas a partir de negativos fotográficos adquiridos em estúdio de retratos de Havana, Cuba, em 1994. São as fotografias do adeus dos recém casais, que provavelmente se despedem dos familiares e amigos, após a cerimônia do casamento, e vão às núpcias. Apagados e escurecidos, os casais posam para a câmera, acenando para o passado e marcando a ruptura social representada pelo casamento. Por outro prisma, o título sugere uma outra ironia, que surge a partir de seu tom fúnebre, se pensarmos que ele também é nome de uma obra de Simone de Beauvoir, onde ela narra os últimos anos de convivência com Jean-Paul Sartre antes de seu falecimento.

É dentro do universo da familiaridade e dos álbuns de família que Rosângela Rennó introduz um clima fantasmagórico em suas obras, principalmente através do tema do sujeito melancólico, de imagens que reivindicam a nostalgia de uma identidade perdida.  A apropriação de imagens antigas, já envelhecidas pelo tempo ou manipuladas pela artista para que adquiram um aspecto de apagamento, produz o efeito de suspensão da identidade. Muitas vezes é preciso um esforço dos olhos para que se veja aquilo que o tempo está apagando.  Assim, a artista incide sobre o tema do casamento como célula produtora de álbuns de família, onde a fotografia exerce o congelamento mítico de coesão afetiva (HERKENHOFF: 1997).

Se o casamento, atualmente, adquiriu novas significações sociais, a artista não nos permite esquecer do imaginário sólido que o cerca. São marcas de subjetividades construídas através do rito fotográfico, pois a fotografia, nestes termos, é necessária para a afirmação e prova da experiência vivida. Em Historias do Amor (1992-2003), por exemplo, Rosângela Rennó apresenta apenas textos que comentam alguma fotografia, sem, no entanto, apresentá-las ao espectador. Num texto da série, um casal procura tirar a foto perfeita da cerimônia, voltando dias após o casamento para uma praia, já que no dia o tempo estava fechado e a foto não sairia boa. Caso isso não ocorresse, o risco seria guardar uma lembrança frustrante de um momento especial. A fotografia ideal do casamento é tomada como a prova incontestável da excelência dos votos, o certificado para a posteridade desta promessa de felicidade. Em questão, portanto, está o fato de que a possibilidade da experiência só existirá através da comprovação das imagens. Susan Sontag problematiza essa obsessão contemporânea por fotografias, investigada por Rennó:

“Não seria errado falar que as pessoas têm compulsão pela fotografia, fazendo da própria experiência uma maneira de ver. Ao cabo, ter uma experiência torna-se sinônimo de fotografá-la, e participar de um acontecimento público passa a ser cada vez mais equivalente a vê-lo através da fotografia” (SONTAG: 1981, p. 24).

Esta compulsão pela fotografia, seja como construção social da identidade ou como marca atemporal da experiência, leva a considerarmos as práticas de guarda da memória, principalmente as relações da mulher com o culto fotográfico. Em que pesem estas considerações, é interessante notar o que Alexandre Ricardo Santos apresentou a respeito do imaginário oitocentista (SANTOS: 1997). Também para este autor, é preciso considerar as relações estabelecidas entre a mulher e a fotografia, no que tange à associação cultural do feminino com a responsabilidade pela memória familiar. Porém adverte que, mesmo embutidas desta função, as mulheres precisam sempre se inserir no código fotográfico que privilegia uma visão masculina do mundo. Assim, segundo Santos, toda uma carga de gênero pode ser percebida nas fotografias deste período, pois a prática fotográfica vinha acompanhada das informações morais do êthos masculino:

“A dominação masculina está presente não somente no nu fotográfico, mas também no retrato, de homens ou mulheres. É ela que estabelece para cada corpo a regra de atuação ideal diante da câmera objetiva, onde os fotógrafos exercem o papel de juízes da visualidade ideal para a sociedade” (SANTOS: 1997, p. 200).         

Na série Cerimônia do Adeus esse aspecto da construção das identidades através da fotografia é bastante presente, pois a partir da exposição de inúmeras imagens que, no fundo, aparentam ser sempre a mesma, Rennó critica a homogeneização das experiências afetivas e a necessidade de reprodução incansável de um mesmo código sexual, leia-se heterossexualidade compulsória, imposta a praticamente todo o mundo ocidental. Ainda pode-se pensar como, no âmbito da crítica feminista, o casamento constitui-se o contrato social que historicamente restringiu as mulheres no universo doméstico e na obrigatoriedade da maternidade. Nesse sentido, a partir da sutileza de sua poética, essa artista elabora essas perspectivas críticas e conecta-se ao debate da desconstrução de identidades fixas e “naturais”. 

Podemos avançar nesse âmbito, mediante os argumentos de Judith Butler a respeito da performatividade do gênero (BUTLER: 2003). O gênero não é escrito no corpo como se este fosse um meio passivo, sobre o qual se inscrevem os significados culturais. Esta autora empreende uma longa observação dos modos através dos quais as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais, questionando os impasses de definirmos o gênero como uma interpretação cultural do sexo:

“O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de um significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem que designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecido” (BUTLER: 2003, p. 25).

Portanto, o debate se desloca do sentido da inscrição do gênero sobre o corpo para o da compreensão dos aparatos culturais que organizam o encontro entre o instrumento e o corpo, com o intuito de percebermos quais intervenções são possíveis nessa repetição ritualística.  O pensamento de Butler visa reformular, desse modo, a noção de gênero, para abranger as relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e que ocultam, assim, a própria operação da produção discursiva. As obras de Rosângela Rennó questionam os modos de conformação das identidades pelo ato de fotografar, e podemos melhor compreendê-las através da desconstrução formulada pela crítica feminista atual, evidenciando como o gênero é um dos modos de construção dramática e contingente de sentido (BUTLER: 2003). Considerando o gênero como intencional e performático, é possível evidenciar as normas do mesmo que permitem as ficções sociais vigentes, como o próprio fenômeno da crença em um “sexo natural”.

Rennó apropria-se de imagens, por exemplo, em Cerimônia do Adeus, que foram produzidas dentro das normas sociais que privilegiam a visão masculina, onde o próprio casamento opera como estratégia de construção de uma ficção cultural. A ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero é criada, portanto, por meio da estilização do corpo e dos gestos. Muitas vezes o âmbito das relações íntimas serve para reafirmar a necessidade e naturalidade desses atos de gênero, sendo a fotografia do casamento uma das construções que servem para fortalecer esses atos e sustentar a divisão binária das identidades.

- Conclusão

 

Fernanda Magalhães, Rosângela Rennó e Márcia X. evidenciam as complexidades do debate acerca do corpo na atualidade. As particularidades de cada uma delas fazem emergir críticas e reflexões surpreendentes, trazendo à tona uma atitude de reação às tentativas de estagnar as identidades, seja através da ficção de naturalidade do gênero e do corpo, da estratégia de produção de anonimato através das fotografias ou dos incansáveis investimentos sobre os corpos proclamados pelo discurso médico e reiterados pelo jogo da mídia.

As conexões com o pensamento feminista e pós-estruturalista, nesse sentido, evidenciam-se através das críticas ao sujeito universal e às categorias binárias, como em Fernanda Magalhães, que compreende a necessidade de repensarmos as divisões normal/patológico, saudável/doente, etc., abordando as estratégias biopolíticas pelas quais esses enunciados adquirem caráter de verdade. Magalhães critica não somente as tentativas de imposição de uma norma de beleza ao corpo da mulher, mas compreende que tais investimentos produzem práticas sociais de difícil resistência, como a rejeição da organicidade e da gordura.

Rosângela Rennó revolve, estrangula as imagens até que delas se possam guardar somente impressões; são identidades perdidas, memórias que se esforçam para se manterem presentes – todas num imenso Arquivo Universal. Devolve-nos, através de seu olhar refinado, imagens que interrompem o fluxo da mesmice e que causam perplexidade. Destaca dentre fotografias abandonadas, um universo de sensações: solidão, morte, laços afetivos, amor – transfigurando a realidade e fazendo explodir da repetição uma intensidade, uma linha, uma diferença vibrante.

Márcia X. desorienta o corpo, o sexo e o desejo, traçando na carne uma poética radical e até ameaçadora. Seus objetos eróticos e infantis e suas performances transgressivas e lúdicas sugerem inúmeras críticas à divisão dos papéis sociais a partir do gênero, aos tabus sexuais e ao pensamento hierárquico e falocêntrico.

Esse artigo procurou apontar algumas provocações promovidas por essas artistas, abordando as relações existentes entre suas produções e a crítica feminista, principalmente em dois aspectos. O primeiro deles diz respeito ao método empregado, como meio de estranhar os enunciados tidos naturais como, por exemplo, o discurso médico, a relação entre corpo e gênero e as práticas de construção de subjetividades narcíseas e individualistas. A partir do destaque que essas artistas dão a essas questões, formulam-se críticas ao presente repletas de poética e de imaginação. Em segundo lugar, suas poéticas visuais debatem as normatizações do corpo na cultura atual, como meio de desestabilizar verdades e práticas opressoras, notando, sobretudo, no que essas operam para criar ficções sobre a naturalidade das divisões de gêneros. Assim, através da crítica das identidades fixas, as obras aqui apresentadas conectam-se às formulações das feministas contemporâneas que desconstroem balizas seguras, potencializando outros modos de pensar, agir e sentir na atualidade.

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nota biográfica:

Luana Saturnino é mestranda em História Cultural pela Unicamp, orientanda da Profra Dra Margaret Rago, pesquisas artistas plásticas brasileiras para sua dissertação de mestrado.  

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007