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féministes/ estudos feministas Sem regras nem disciplina: a escrita feminista das mulheres anarquistas espanholas MariaClara Pivato Biajoli Resumo Este artigo apresenta, primeiramente, uma reflexão sobre as mulheres anarquistas espanholas e seus esforços para abrir um espaço feminino no universo político do movimento operário, a partir de 1890 até 1939, quando a Guerra Civil Espanhola chega ao fim. Apresenta também, em um segundo momento, a retomada desse espaço pela iniciativa de algumas militantes que desejam lutar contra o esquecimento de suas experiências, especialmente através de autobiografias produzidas nas décadas de 1980 e 1990.
Alas! A woman that attemps the pen, Such a presumptuous criature is esteemed, The fault can by no virtue be redeemed. They tell us we mistake our sex and way; Good breeding, fashion,dancing, dressing play, Lady Winchilsea (1661-1720) Por muito tempo e por várias razões, a escrita pública restringiu-se aos homens. Com raras exceções, a pena e o papel foram dados à mulher apenas para cartas, bilhetes, listas de compras, ou diários íntimos. Nunca esses escritos eram dirigidos a um público mais geral. A linguagem, as metáforas e metonímias, a retórica eram, então, domínios masculinos. Apenas quinhentas libras por mês e um teto todo seu é o que a notável escritora Virginia Woolf afirma que as mulheres precisam para dar asas tranqüilamente ao seu talento. Em uma palestra proferida em outubro de 1928, com esse mesmo título, Um teto todo seu (Ed. Nova Fronteira, 1985), Woolf analisa as dificuldades impostas à mulher para entrar no mundo da escrita, em especial o da poesia e romances, no qual ela mesma conseguiu se sobressair, muito em parte, ela admite, graças a uma herança que lhe garantiu segurança financeira para se dedicar à criação. A partir do tema inicial de “as mulheres e a ficção”, Woolf abre seu pensamento e constrói uma grande e sensível reflexão sobre o seu próprio mundo e sobre os obstáculos que nele existem para as escritoras. Ao invés de apresentar rápidas biografias de mulheres que conseguiram o intento, ela pede licença para abandonar o que seria esperado nessa palestra e busca entender porque um certo cavalheiro idoso, talvez bispo, afirmara uma vez nos jornais que nunca poderia ter havido uma mulher que escrevesse tão bem quanto Shakespeare. Ao perceber que elas foram condenadas a uma educação sempre inferior, quando não inexistente, Woolf acaba por concordar com o tal bispo... realmente nenhuma mulher, por maior que fosse seu talento, poderia ter escrito algo como Shakespeare, em sua época, simplesmente porque não tinha condições propícias, tanto de formação intelectual como de recepção de suas obras. A partir desta idéia, Woolf narra uma pequena história em que imagina o que teria acontecido com Judith, a irmã-fantasia que cria para o bardo, e tão criativa quanto ele: antes de completar vinte anos, Judith fugiu de casa para poder escrever e escapar de um casamento arranjado por seu pai; ao chegar a Londres, foi ridicularizada pelos donos dos teatros em que pediu trabalho, e acabou caindo nas mãos de algum empresário “compadecido” que depois a engravidou. Nesse ponto, Woolf conclui: Judith, então, acabou cometendo suicídio numa noite de inverno, “e está enterrada em alguma encruzilhada onde agora param os ônibus em frente ao Elephant and the Castle” (Woolf, 1985). Educação, estudos e formação de uma tradição literária seriam os primeiros passos para as mulheres desenvolverem suas habilidades e imaginação. Mas elas precisariam também de tranqüilidade, uma sala para escrever na qual não fossem interrompidas, e também que não precisassem esconder correndo seus manuscritos com vergonha do que a sociedade diria delas se descobrisse que escreviam. E, claro, as quinhentas libras mensais para se tornarem independentes dos homens. A escrita de mulheres livres espanholas Um teto todo seu, ou um espaço próprio para serem livres foi uma das bases da criação do grupo Mujeres Libres na Espanha, em 1936, menos de uma década depois da palestra de Virginia Woolf. As fundadoras do grupo, Lucía Sanchez Saornil, Mercedes Comaposada e Amparo Poch y Gascon eram todas intelectuais, duas delas com curso superior. Também já militavam no movimento anarco-sindicalista espanhol, especialmente da CNT (Confederação Nacional do Trabalho, o órgão sindical anarquista), que, em 1936, contava com 1,5 milhões de afiliados na região da Catalunha. Foi a partir de suas experiências dentro dos sindicatos que essas fundadoras passaram a perceber que as organizações operárias existentes eram inadequadas para abordar os problemas específicos que as mulheres tinham de enfrentar. Pensavam que o anarquismo abria um importante espaço teórico e político para o feminismo, porém não na prática. Sentiam que, ainda que as questões ligadas à condição das mulheres estivessem em pauta, poucas eram as atitudes para mudá-las. Decidiram, assim, criar um grupo de mulheres voltado para os problemas femininos. Um amplo teto todo delas. A difícil situação das operárias e donas-de-casa pobres espanholas, nas primeiras décadas do século XX, foi, com certeza, o principal impulso para a fundação do Mujeres Libres. Assim como as mulheres da elite, elas estavam submetidas a uma sociedade extremamente religiosa e patriarcal, vivendo dentro de suas casas sob o mando do pai, do marido, dos filhos e do padre. No entanto, no caso das mulheres das classes mais baixas, havia ainda a figura do patrão como mais um opressor, que as obrigava a aceitar salários mais baixos pelas mesmas jornadas de trabalho dos homens, além de conviverem com situações de abuso sexual no ambiente de trabalho. As palavras da conhecida anarquista russa Emma Goldman, publicadas no número 6 da Revista “Mujeres Libres” (“Semana 21 de la Revolución”), esclarecem o sentimento mais geral das fundadoras do grupo frente à situação de opressão e abandono da mulher pobre espanhola: “Em nenhum país do mundo sente a classe operária o comunismo libertário como sente a classe operária espanhola. O grande triunfo da Revolução que se iniciou nos dias de julho demonstra o alto valor revolucionário do trabalhador espanhol. Deveria supor-se que em seu apaixonado amor pela Liberdade incluísse a liberdade da mulher. Mas, muito longe disto, a maioria dos homens espanhóis parece não compreender o sentido da verdadeira emancipação ou, em outro caso, prefere que suas mulheres continuem ignorando-a. É fato que muitos homens parecem convencidos de que a mulher prefere seguir vivendo em sua posição de inferioridade. Também se dizia que o negro estava encantado por ser propriedade do dono da plantação. Mas o certo é que não pode existir uma verdadeira emancipação enquanto subsista o predomínio de um indivíduo sobre outro ou de uma classe sobre outra. E muito menos realidade terá a emancipação da raça humana enquanto um sexo domine o outro.” (Revista Mujeres Libres, nº6, 1936) Os objetivos do grupo já estavam anunciados no próprio nome que foi escolhido, “Mulheres Livres”. Como Lucía Sanchez Saornil esclareceu ela mesma, em um texto de 1937, sobre sua revista: "No mês de maio de 1936 nascia a revista Mujeres Libres. Não era uma mera casualidade a coincidência destas duas palavras. Tínhamos a intenção de dar ao substantivo "mulheres" todo um conteúdo que reiteradamente a ele se havia negado, e ao associá-lo ao adjetivo "livres", além de nos definir totalmente independentes de toda seita ou grupo político, buscávamos a reivindicação de um conceito - mulher livre - que até o momento havia sido preenchido de interpretações equívocas e que rebaixavam a condição da mulher ao mesmo tempo em que prostituíam o conceito de liberdade, como se ambos os termos fossem incompatíveis. (CNT, nº531, 1937) Mujeres Libres conseguiu reunir mais de 20 mil afiliadas (este é um número mínimo, existem historiadores falando até em 40 mil) nos seus quase três anos de existência, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Este conflito foi caracterizado pela luta entre o exército golpista de orientação fascista, comandado pelo general Francisco Franco, contra os defensores da IIª República espanhola. No entanto, ele acabou sendo palco também de um processo revolucionário levado a cabo principalmente pelos operários anarquistas da Catalunha, onde terras, indústrias e serviços foram coletivizados e o poder público tornara-se inócuo. Tantas mudanças sociais abruptas impulsionaram o trabalho do grupo, cujo objetivo principal era libertar as mulheres de sua ignorância e da sua escravidão no lar através de educação, profissionalização e constituição de redes de solidariedade. Desta forma, ele concentrou suas energias em criar escolas, creches e cursos profissionalizantes, e divulgar sua revista, também chamada “Mujeres Libres”, para alcançar o maior número de mulheres possível. Com seu trabalho, o grupo ofereceu uma oportunidade única para muitas espanholas, especialmente as operárias, de modificar a situação em viviam. Junto ao conflito bélico que se desenrolava e a construção de uma revolução social, Mujeres Libres desenvolveu seu objetivo de dar impulso à liberdade feminina, unindo um olhar político anarquista a outro olhar extremamente crítico das relações de gênero. Durante os três anos de guerra civil e do processo revolucionário, o grupo desenvolveu as mais diversas atividades para fazer uma revolução que não alterasse somente o sistema político vigente, a dominação capitalista dos patrões sob os empregados, mas que extinguisse também a hierarquia homem-mulher, marido-esposa, pai-filha, libertando as mulheres inclusive da restrição ao lar e da maternidade obrigatória. Procurou também desenvolver a formação política de suas afiliadas através de discussões políticas, debates de idéias e palestras de conscientização, e defendiam uma união na qual as mulheres deveriam também lutar ao lado dos homens contra as opressões do capitalismo. Mujeres Libres divulgava a sua visão de que as mulheres teriam, assim, uma “doble lucha”: lutar ao lado dos homens contra as opressões políticas e econômicas, e lutar, ao mesmo tempo e sozinhas, pelo fim da opressão de gênero. Devemos destacar a revista “Mujeres Libres” como um importante espaço aberto para os escritos políticos e literários das mulheres espanholas do meio libertário. Os assuntos abordados nas páginas desta revista referiam-se a questões femininas, operárias e anarquistas e acompanharam o desenrolar da Guerra Civil e do processo revolucionário. Por exemplo, um artigo no número 5 da revista refletia sobre as mudanças que seriam necessárias no trabalho do grupo dentro do novo contexto da guerra: “Os acontecimentos se precipitaram e ainda que quiséssemos o sossego dos dias serenos para nossa obra, não vamos lamentar-nos de que não seja assim, ao contrário, procuraremos e colocaremos nosso empenho mais decidido para ajustar nosso tom e nossa expressão ao ritmo acelerado com que a vida se desenvolve. Não é uma deserção nem uma retificação. Mantemos firmemente o propósito que nos deu vida: não mudamos em absoluto nosso objetivo. Nascemos com um propósito de captação e o mantemos. Mas o momento nos obriga a mudar de tática, já não temos de ir buscar a mulher no fundo dos lares; já não é preciso mostrar-lhe a conveniência de que se incorpore ao movimento social. A guerra civil empurrou a mulher espanhola, como um dia a guerra mundial empurrou a outras mulheres violentamente, brutalmente para a rua (...). A mulher ainda está aturdida pelo barulho dos tiros dos canhões e dos fuzis, obcecada unicamente pela idéia de viver. Mas esse viver é apenas um instinto, não uma consciência, e aqui nosso dever, que aceitamos com toda sua responsabilidade: converter esse instinto em consciência.” (Revista Mujeres Libres nº5, 65º dia da Revolução, 1936) Outro aspecto muito interessante é que a revista era composta unicamente por artigos escritos por mulheres. A única contribuição masculina aceita foram as ilustrações do companheiro da fundadora Mercedes Comaposada, o artista Baltasar Lobo. Todo o resto, da composição dos artigos e editoração até a impressão e distribuição, tudo era feito apenas por afiliadas do grupo. Ao longo dos três anos de conflito, treze números foram publicados, sendo que o décimo quarto ainda estava no prelo, em 1939, quando a guerra acabou com a vitória franquista e o grupo se desmanchou com a fuga para o exílio na França. A educação da mulher era um dos itens mais importantes para o grupo. A constituição de cursos de alfabetização, de cultura geral, ciências, matemática, literatura, nos mostra como o ML estava preocupado em oferecer meios para as mulheres crescerem sozinhas, libertarem-se dos prejuízos advindos da ignorância em que foram criadas e também do grande poder da moral da Igreja Católica sobre elas. A revista e a publicação de outros folhetos eram instrumentos essenciais para a divulgação de suas atividades e idéias, coisa que as fundadoras já faziam há muito tempo. Por exemplo, Amparo Poch y Gascón, médica, publicou, em 1932, um folheto intitulado “La vida sexual de la Mujer – Puberdade, Noviazgo y Matrimonio”, no qual analisava os valores machistas que circulavam a respeito da sexualidade feminina e seus efeitos perversos. Para ilustrar a força das palavras de Amparo, cito aqui um pequeno trecho do item sobre o Noivado: “É que com as mulheres ocorreram coisas muito curiosas. Quando se concordou que os homens tinham alma – essa alminha pessoal que, depois de morrermos, dizem ser queimada no centro da terra ou se dedica a vagabundear eternamente ociosa entre outras muitas em um céu lá em cima – às mulheres foi negada. (...) Tiveram o bom cuidado de inculcar nas mulheres cristãs uma idéia semelhante a esta: Que o prazer sexual é, para elas um pecado, e que as carícias da carne devem limitar-se ao estritamente necessário para os fins da geração. Com esta idéia – falada e escrita – e a psicologia masculina que saía deformada da assídua concorrência aos prostíbulos, não é estranho que muitas mulheres casadas, com vários filhos, considerem o ato sexual como algo repugnante a que só se submetem por dever – deveres conjugais chamam a isto – e que, por seu próprio gosto, não teriam realizado nunca. Destas e de outras causas que vão de braço com elas, nasce o mito da frigidez feminina, que trataremos mais extensamente ao falar do matrimônio. (...) Agora vêm uns médicos e nos dizem, por um lado, que somos uns seres semi-desenvolvidos, intermediários entre a criança e o homem; e, por outro lado, quando temos inteligência e atuamos eficazmente na vida pública, que temos desajustadas as glândulas endócrinas e que interessamos mesmo ao patologista. Quer dizer que estamos condenadas a viver imersas num estado de imperfeição sem esperança: quando somos as mulherzinhas adoráveis, desenvolvimento incompleto, quando somos seres capazes e responsáveis, anormalidade manifesta.” Como podemos observar, Amparo enfrenta, critica e ironiza tanto os poderes da moral católica que incidiam sobre a mulher quanto os poderes médico-científicos, detentores então da mais “pura verdade” a respeito da essência feminina. Com a mesma coragem, Lucía Sanchez Saornil, em 1935, entra em um debate público sobre a questão da mulher dentro do movimento anarquista com um conceituado militante da época, Mariano R. Vázquez. Através de artigos publicados no jornal operário “Solidaridad Obrera”, Lucía responde com grande determinação a dois textos anteriores de Vázquez, nos quais ele afirmava que a mulher era de fato submissa aos homens também no meio operário, mas que essa situação era também culpa dela, pois não lutava por sua liberdade. Acrescentava ainda que ela não deveria esperar dos homens que abrissem mão de seus privilégios de bom grado, afinal, agarrar-se a eles era uma característica muito humana, da mesma forma como a burguesia não cederia nunca voluntariamente a liberdade ao proletariado. Eis um trecho da resposta de Lucía, no artigo de conclusão “Resumo al margen de la cuestión femenina. Para el compañero M. R. Vázquez”: “Deve ter-se presente que meus artigos se intitulavam ‘A questão feminina em nossos meios’; isto é, não a questão feminina em termos gerais, não a questão em terreno filosófico, senão a questão em termos anarquistas. Fora do nosso campo, camarada Vázquez – e me dirijo ao companheiro Vázquez porque, eu seu artigo “Pela elevação da mulher”, resume seguramente o pensamento de muitos outros camaradas -, fora de nosso campo, é muito compreensível e até desculpável e, se quiser, até muito humano, que o homem queira conservar sua hegemonia e se sinta satisfeito por ter uma escrava, como o burguês defende sua situação e seu privilégio de mando. Mas eu não falava para todos os homens, camarada; falava para os anarquistas exclusivamente, para o homem superado, para aquele que, inimigo de todas as tiranias, está obrigado, se quer ser conseqüente, a arrancar de si qualquer foro de despotismo que sinta despontar. (...) Por isso o anarquista – e digo o anarquista, veja bem – que pede sua colaboração à mulher para a obra de subversão social, há de começar por reconhecer nela uma igual, com todas as prerrogativas da individualidade. O contrário será “muito humano”, mas não será anarquista. (...) Você pode compreender agora que não se trata tanto da emancipação da mulher, como da edificação do futuro, e que os anarquistas, se forem sinceros, se não estiverem no anarquismo por puro esporte, se vêem obrigados a seguir o caminho que assinalo? (...) E, agora, apenas mais umas palavras para terminar, amigo Vázquez. Não acolho sua sugestão para a página feminina em “Solidaridad Obrera”, mesmo que seja muito interessante, porque minhas ambições vão mais longe; tenho o projeto de criar um órgão independente, para servir exclusivamente aos fins que me propus. Dele falaremos mais adiante.”(“Solidaridad Obrera”, 8/11/1935) Além de rebater os argumentos do companheiro, Lucía toca em um ponto essencial que era a militância anarquista, acusando os homens de estarem no movimento “por puro esporte” se não conseguiam enxergar que era necessário, para a revolução social, começar a fazer mudanças primeiramente dentro da própria casa. Desta forma, ela politiza a vida privada, cuja importância estava sempre em segundo lugar. E mais, no último parágrafo, recusa um convite de Vázquez para escrever no “Solidaridad Obrera” em uma seção feminina, mostrando como considerava esta seção insuficiente, e já anunciava a sua intenção de criar o que seria mais tarde o grupo Mujeres Libres. Assim, no âmbito da escrita política, devemos destacar estas espanholas criadas no meio operário e anarquista, a maioria autodidatas, que conseguiram criar um espaço próprio para manifestarem suas idéias e opiniões, e para discutir questões feministas. Elas, no entanto, não estiveram sozinhas, e podemos encontrar, em fins do séc. XIX, mulheres escritoras anarquistas que foram pioneiras nessa luta por um espaço para a escrita feminina. Refiro-me, por exemplo, às militantes Teresa Claramunt e Soledad Gustavo, mas também à sua filha Federica Montseny, cuja militância se inicia apenas uma década antes do ML, e com o qual depois vai impulsionar, na década de 1930, uma relativa expansão no número de escritoras. Devemos também lembrar que não se tratava de um movimento exclusivamente espanhol, pois temos os grandes exemplos da russa Emma Goldman e da brasileira Maria Lacerda de Moura. A lista seria longa demais para colocá-la por inteiro, o que por si só já é surpreendente. A primeira geração e seus frutos Começo, então, pela primeira dessa lista, Teresa Claramunt. Nascida em uma família operária de Sabadell (Catalunha) em 1862, Teresa teve pouca educação formal, pois logo aos dez anos foi colocada para trabalhar em uma fábrica têxtil, como acontecia com a maioria das crianças que precisavam ajudar com o sustento da família. Dessa sua experiência na fábrica, aliado ao pensamento anticlerical e republicano de seu pai, a jovem desenvolveu uma simpatia em relação ao pensamento anarquista que ainda estava chegando na Espanha, principalmente pela influência de seu “mentor” e depois marido, Antonio Gurri – Teresa casou-se com 22 anos. Ela teve a oportunidade de assistir de perto a formação do movimento anarquista na Espanha, e conheceu pessoalmente grandes nomes dessa época, como Anselmo Lorenzo, Max Nettlau e Federico Urales. Mas a sensibilidade de Teresa logo se volta para a sua própria experiência: como trabalhadora em uma fábrica e uma das únicas mulheres presentes nas reuniões e comícios anarquistas, ela rapidamente toma para si a causa das mulheres operárias. Teresa começou sua militância entre os anos de 1884 e 1885, quando já estava casada e não trabalhava mais. Segundo Laura Vicente, “o fato de que durante os primeiros anos de casada usava o sobrenome do marido e sempre assinava e aparecia mencionada na imprensa como Teresa Claramunt de Gurri, indicava a existência de uma certa dependência material, emocional e intelectual de Claramunt em relação ao seu marido. Esse detalhe ganha mais significado quando, anos depois, abandonou o sobrenome de seu marido e criticou as mulheres que o utilizavam. Já que considerava símbolo de dependência e escravidão”. (Vicente, 2006, p.79) Claramunt abraçou a causa das mulheres em vista de que, dentro do movimento anarquista, as idéias de liberdade feminina eram escassas e pouco discutidas nas assembléias e congressos. Na imprensa, Vicente registra apenas dois periódicos exclusivamente femininos e que tiveram curta duração: “Humanidad Libre”, 1902 e “La Mujer Moderna”, 1904. Além disso, era difícil encontrar artigos dedicados ao tema das mulheres, e quando existiam, tratavam-se sempre de homens falando sobre a questão. Teresa defendia arduamente dois temas que lhe eram mais caros: primeiro, a necessidade de livrar as mulheres dos códigos restritivos do catolicismo, pelos quais eram mais influenciadas do que os homens por conta de sua parca educação. Para ela, a religião agia como uma venda que tampava os olhos das mulheres para a luz do conhecimento e da liberdade oferecida pelo anarquismo. Segundo, Claramunt sempre chamava as mulheres para participar do movimento, e cobrava dos companheiros que trouxessem às assembléias suas mães, esposas, irmãs e filhas para que elas também pudessem lutar pela revolução social. Um traço constante de sua escrita era utilizar sua própria experiência como inspiração e exemplo, o que tornava seus artigos muito fáceis de serem compreendidos pelas mulheres que porventura fossem lê-lo. Sempre tentava justificar suas falhas na escrita e na gramática pela importância do que tinha para dizer, o que nos mostra uma certa insegurança em entrar nesse mundo da escrita. Segundo Vicente, “as mulheres, e é esse o caso de Claramunt, para legitimar seu atrevimento em tomar a palavra, (...) compensaram sua falta de ciência com sua experiência como mulheres e, por isso, sua voz continha veracidade. Colocaram em palavras a experiência da vida.” (Vicente, 2006, p.93.) Foi a partir de 1891, quando vai morar em Barcelona, depois de um curto período em Portugal, que Claramunt realizou uma grande virada: tornou-se uma mulher muito mais segura, que não precisava mais de mentores, e abandonou definitivamente o sobrenome Gurri de seu marido. Anos depois, abandonaria também o próprio marido para viver uma relação libertária com outro companheiro. Teresa continuou, nesses anos, com a sua luta contra a religião e pela inclusão das mulheres no movimento anarquista. Participou em duas tentativas de criar um grupo operário só de mulheres, como mais tarde viria a ser o Mujeres Libres, porém ambas fracassaram. De maneira clara, ela reconhecia a situação de opressão e inferioridade em que vivia a mulher, responsabilizava o homem por criar dita situação e mantê-la assim, e concluía que a mulher deveria, sozinha, lutar contra sua opressão (e opressor), ao invés de esperar dos homens alguma atitude. O que explica o forte engajamento de Claramunt em tentar construir uma organização exclusiva de mulheres. Segundo Vicente, “As alternativas que propunha Claramunt eram as seguintes: em primeiro lugar, reconhecer o problema para remediá-lo; a mulher tem que ser a protagonista da solução, não tem que esperar do homem o remédio de seus males; em segundo, a mulher tem que lutar por liberdade e igualdade de condições em relação ao homem; por último, a mulher tem que trabalhar com consciência própria de seus direitos e deveres para, com o concurso que o homem lhe preste, poder completar a transformação necessária”. (Vicente, 2006, p.229) Como podemos observar, muitas questões que estavam presentes na iniciativa do grupo Mujeres Libres foram levantadas bem antes por Teresa Claramunt, e esse diálogo de idéias não foi uma mera coincidência. As participações dessa militante nos eventos mais marcantes do movimento anarquista espanhol, entre 1890 e 1910, desde greves até a repressão governamental e exílios forçados, colaborou para Claramunt ser recoberta com a imagem de heroína, e raro seria alguém não conhecer seu nome na década de 1930. Assim, podemos afirmar que, por seu exemplo, ela sentou as bases para muitas futuras jovens anarquistas lutarem por um espaço no movimento. Nascida na mesma geração de Claramunt, Teresa Mañé também foi uma militante anarquista de destaque, e apareceu frequentemente na imprensa com seus textos políticos assinados sob o pseudônimo de Soledad Gustavo. Teve a sorte de nascer em uma casa relativamente abastada e liberal – Teresa Mañé recebeu uma boa educação, diferentemente de Claramunt, e formou-se professora. Com pouco mais de vinte anos, regeu uma escola laica e, nessa época, teve seus primeiros contatos com o pensamento anarquista. Com vinte e quatro anos, casou-se civilmente com Juan Montseny, mais conhecido pelo seu pseudônimo de Federico Urales (Iñiguez, 2001). Por causa da repressão e perseguição do governo contra os anarquistas, principalmente após o processo de Montjuich (1896), o casal é exilado e vai morar em Londres em 1897, para logo regressar para a Espanha e se instalar em Madri, onde cria e edita “La Revista Blanca”, uma das revistas de maior importância dentro do movimento, junto com “Estudios” e “Generacion Consciente”, e na qual Soledad Gustavo escrevia frequentemente. Em 1905, nasce Federica Montseny, única filha do casal. Toda a abertura para as mulheres conquistada por militantes como Teresa Claramunt e Soledad Gustavo serão aproveitas ao máximo por algumas moças da geração de Federica, incluindo as fundadoras do grupo Mujeres Libres, Lucía, Amparo e Mercedes. Ela mesma lembra da educação libertária que recebera de sua mãe em sua autobiografia: “Eu deveria observar um regime especial de distribuição do tempo. A manhã estava destinada ao estudo. As tardes eram livres. Minha mãe também não me torturou com lições que deveria aprender a todo custo. Quanto não entrava na minha cabeça sem esforço, deixava-se para mais tarde. Minha mãe pertencia a uma geração em que as idéias de Rousseau sobre a educação das crianças ainda tinham singular vigência. (...) A base principal, o método pedagógico de minha mãe consistia essencialmente em despertar minha curiosidade, remetendo-me às leituras que poderiam ampliar meus conhecimentos. (...) À tarde deveria estudar minha lições e poderia dedicar o tempo que me sobrava livre à leitura. Ainda me vejo sentada na escada que conduzia ao terraço, na qual meu pai tinha instalado estantes escalonadas cheias de livros, entregue à minha paixão favorita. (...) Porque a grande inteligência dos meus pais consistia em me colocar na pista dos autores que progressivamente ia compreendendo. Era eu mesma que descobria e selecionava as leituras, conforme me interessavam ou me entediavam.” (Montseny, 1987, p.17-25) Federica Montseny foi uma mulher formada nessa tradição anarquista e também feminista. Considerava Teresa Claramunt como sua mãe espiritual, tamanha a admiração que sentia por essa pioneira. Federica teve todas as oportunidades para desenvolver-se, e foi uma escritora anarquista de muita importância, com seus artigos políticos e pequenos contos que eram publicados em “La Novela Ideal”, suplemento literário de “La Revista Blanca”, os quais ela passou a editar junto com seus pais em 1923. Foi também uma grande oradora, reconhecida no meio operário, o que a levou ao cargo de Ministra da Saúde em 1937, a partir do qual ela conseguiu aprovar a legalização do aborto. As novelas que Federica escrevia para “La Novela Ideal” apresentavam, na sua maioria, uma temática feminista, em que mulheres sofriam pelos prejuízos morais advindos da religião católica e de sua submissão. Por exemplo, no conto “Las Santas” (“La Novela Ideal” nº5, 1925), Federica narra os esforços de duas mães solteiras para trabalharem em uma sociedade que as julgava pecadoras. Preocupa-se em mostrar como suportaram e venceram as adversidades através de seus esforços, educação e principalmente pela solidariedade entre elas mesmas. Ainda que hoje possamos criticar estas novelas como ingênuas ou demasiado românticas, elas tinham um caráter de denúncia muito forte, principalmente de questões de gênero, e eram muito importantes na formação das jovens do meio operário naquela época. A maioria não tinha oportunidades de receber alguma educação além do básico, e essas revistas eram, às vezes, a única forma de entrarem em contato com os valores anarquistas. E o fato de terem sido escritas também por mãos femininas as aproximava muito mais da realidade das jovens que as liam. A retomada da palavra pela lembrança Federica Montseny não se calou depois da guerra. Muito pelo contrário, continuou participando ativamente do movimento no exílio e escrevendo textos autobiográficos, a exemplo de seu pai. Mis primeiros cuarenta años é uma obra de alto valor feminista, no qual Federica narra as suas “aventuras” como uma mulher que participava ativamente de um meio majoritariamente masculino. Mas não são apenas as suas atitudes que podemos considerar contrárias ao lugar inferior que era dado às mulheres, mas também e principalmente a sua escrita. Segundo Patrícia Greene, importante estudiosa dos textos de Montseny, as autobiografias escritas por mulheres revolucionárias subvertem toda uma tradição literária que as excluía deste tipo de narrativa, além de chocarem-se, propositalmente, com o discurso franquista que objetivava apagar da memória coletiva toda e qualquer referência às atividades anarquistas, comunistas, etc. Ela utiliza uma expressão da escritora catalã Montserrat Roig para definir melhor essa luta das mulheres: “a substituição do tempo do silêncio pelo tempo da palavra.”. Diz Greene: “As políticas excludentes da formação de um cânone literário têm mais do que nunca marginalizado a produção autobiográfica das mulheres do conjunto das narrativas importantes sobre a Guerra Civil Espanhola e o exílio. A crítica literária espanhola raramente se referiu às autobiografias de mulheres revolucionárias. Ao contrário, tem considerado a narrativa das experiências femininas como “não-literárias” e, portanto, não merecedoras de atenção crítica. As participações femininas nos sucessos da Segunda República, no esforço da guerra e a sua contribuição para uma ‘cultura de resistência’ durante a diáspora republicana têm sido vistas como não essenciais e carecedoras de importância histórica.”(Greene, 1997, p.334) A ousadia destas mulheres ao apropriarem-se de um gênero literário que era destinado a um universo masculino, branco e heterossexual é também uma forma de resistência. Através de suas autobiografias, questionaram identidades historicamente impostas sobre si mesmas, e construíram uma forma de inserir as mulheres dentro de uma história que era dominada por um pensamento falocêntrico. Ou mais, uma forma de destruir essa história e construir outras novas. Além disso, ainda segundo Greene, “as autobiografias de mulheres ativistas da esquerda espanhola frequentemente apresentam uma narrativa com uma voz dupla que integra, textualmente, a complexa relação entre a pessoa pública e a mulher privada, entre a história oficial e a história pessoal, enquanto, simultaneamente, constrói uma contra-narrativa que desafia a versão franquista fraturada da história”. (idem, p.334) Por exemplo, cita a obra Mis primeros cuarenta años, e diz que, “ao combinar história política com questões da vida doméstica, Montseny subverte o ‘si’ (self) público tradicionalmente apresentado na memória política escrita por seus companheiros homens” (idem, p.336). Desta forma, a narrativa de Montseny, bem como de muitas outras mulheres espanholas, ao “generificar” (engender) a memória política, realizam a tão aguardada transição do “tiempo del silencio” para o “tiempo de la palabra”. A luta contra o esquecimento de suas experiências levou também algumas das ex-militantes do grupo Mujeres Libres a tomar essa iniciativa de escrever suas autobiografias. Por exemplo, Pepita Carpeña e Sara Berenguer, duas mulheres já octogenárias que têm muito em comum: nasceram em Barcelona no ano de 1919, filhas de operários. Ambas tiveram de começar a trabalhar muito cedo para ajudar a família, deixando assim de ir à escola. Também assistiram à explosão da Guerra Civil Espanhola e à construção da revolução pelos operários e camponeses, por socialistas, trotskistas e, em especial, os anarquistas. Uniram-se a esse esforço, militaram pela causa, e acabaram fazendo parte do Mujeres Libres. Ambas também discordavam do grupo no começo, afinal, para que separar homens e mulheres se lutamos juntos por um ideal comum? Mas ambas também perceberam depois, na prática, o quanto as mulheres eram oprimidas e a necessidade de um grupo como o Mujeres Libres. Pepita e Sara também fugiram para o exílio na França, após a derrota para o exército de Francisco Franco, e por lá ficaram, nunca mais voltando a residir na Espanha. Mulheres tão parecidas, mas que produziram autobiografias muito diferentes uma da outra. Sara Berenguer publicou Entre el sol y la tormenta: treinta y dos meses de guerra (1936-1939) em 1988. Como bem o título já indica, Sara concentrou seu trabalho nas suas experiências durante a chamada Revolução Espanhola. O livro de mais de trezentas páginas começa com o relato da eclosão do movimento no dia 19 de julho de 1936 e termina com o longo esforço para chegar à fronteira com a França, no final de janeiro de 1939, e fugir para o exílio. É formado por cinco capítulos, os quatro primeiros marcados e nomeados pelos diferentes empregos que teve nas organizações anarquistas; o último trata da capitulação de Barcelona e o exílio. Os capítulos são compostos por “mini-narrativas”, em que ela conta um acontecimento ou outro intercalando muitas temporalidades: os anos de 1936 até 1939, os anos do exílio e o momento da escrita, no final dos anos de 1980. Pepita Carpeña publicou sua autobiografia, De toda la vida, pela primeira vez em 1993 e em espanhol, mas existe uma edição em francês, cuja tradução do original ela mesma fez, do ano de 1998, com alguns anexos ao texto de 1993. Trata-se de um pequeno livro, cerca de setenta páginas, no qual ela narra desde sua infância nos bairros pobres de Barcelona até os dias atuais, quando já é bisavó. Para efeitos de comparação com o livro de Sara, Pepita dedica doze páginas de seu livro aos acontecimentos que viveu durante a Revolução Espanhola. A estrutura do seu livro é marcada por pequenos capítulos que se iniciam a cada vez que algum acontecimento importante ocorreu, que poderia ser desde a mudança de casa até o início da própria revolução. Tudo na mais perfeita ordem cronológica. No caso de Sara Berenguer, podemos perceber que a realização de sua autobiografia tem vários objetivos. Um deles com certeza é a valorização da Revolução Espanhola e das conquistas do anarquismo naquele momento. O próprio recorte temporal do livro já mostra isso. Na sua narrativa, podemos encontrar passagens que não nos deixam esquecer como Sara procura criar o tempo todo uma imagem positiva do trabalho dos anarquistas. Ela busca quebrar o velho estigma de que anarquismo é bagunça, caos e terrorismo. Outro objetivo de seu livro, não menos importante, é defender a saída das mulheres do lar para o ambiente público, como ela mesma fez, para mostrar que “mujer libre” não pode ser mais sinônimo de prostituta. A passagem do livro na qual ela se revolta contra alguns companheiros que riam de uma palestrante é significativa: “No local das Juventudes Libertárias haviam organizado uma Agrupação Mujeres Libres que tinha uma secretaria. (...) Em cada um dos lados da entrada do local tinham colocado um mural do ML e um das JL. Quando entrei no recinto, alguns jovens estavam lendo a chamada para a palestra de Conchita Guillén, delegada da Federação Local de Mujeres Libres, que ocorreria naquela manhã. Ao lerem que a oradora era uma mulher, eles riram muito e ridicularizaram o trabalho da mulher – como se não tivéssemos outro dever que limpar o bumbum das crianças e cozinhar. Fiquei indignada. (...) Um sentimento que estava dormindo dentro de mim despertou. A cólera e a raiva alteraram minha passividade. Aqueles comentários sarcásticos (...) fizeram com que eu me lembrasse de quando, aos 13 anos, comecei a trabalhar como ajudante de açougueiro. (...) Havia um açougueiro que sempre me importunava. Surpreendeu-me várias vezes quando eu saía com um cesto de vime em cada braço naquele caminho estreito [do frigorífico]. Com a brutalidade de uma besta selvagem, vinha para cima de mim e colocava suas mãos nos meus seios. Era difícil lutar contra aquela força bruta carregada com aqueles cestos pesados. (...) Esse foi o motivo que me fez dizer à patroa que não voltaria mais para o trabalho. Assim, o comportamento daqueles jovens me fez reviver a imagem daquele machismo avassalador e repugnante, ganhando a batalha pela força. (...) Eu, que não estava de acordo com a separação do homem da mulher na luta comum, quando escutei aqueles comentários desagradáveis e despeitados contra o sexo feminino, desencantei-me e defendi de modo apaixonado as mulheres”. (Berenguer, 1988, p.114-115). Essa passagem apresenta uma reflexão muito mais elaborada sobre sua entrada no grupo Mujeres Libres. Além da indignação presente no momento em que ouve as mulheres sendo alvo de zombarias por companheiros, Sara nos oferece um relato de como sentiu, incontrolavelmente, o retorno de uma experiência que havia esquecido há muito tempo, e o sentimento de revolta que estava guardado em algum lugar. Tal movimento de uma memória involuntária lembra muito a experiência vivida pelo narrador de Marcel Proust em No caminho de Swan (Ediouro, 2002), quando, ao provar uma madeleine com chá, sentiu imediatamente uma sensação de felicidade que ele reconhecia, e sabia que estava relacionada com seu passado. Na melhor forma proustiana, as madeleines aqui foram substituídas pelas palavras agressivas que Sara ouvira. Na autobiografia de Sara, podemos ler também que, para ela, a revolução tem um sentido de “despertar”, pois é através dessa experiência que descobre o mundo da revolução e o ideal do anarquismo, encerra um noivado e torna-se outra pessoa. Talvez este seja um outro motivo pelo qual decidiu centrar sua autobiografia naqueles anos: foram eles que a formaram pelo resto de sua vida. E neste aspecto, seu pai, Francisco Berenguer, teve um papel muito importante. Ele está presente durante todo o livro como o guia de Sara para o mundo anarquista, a sua referência, a pessoa que a levou ao sindicato pela primeira vez, que a ensinou a atirar, que lhe deu conselhos sobre o anarquismo. O caráter e as opiniões de seu pai eram tão importantes a ponto de Sara, logo no começo das lutas de 1936, querer fazer alguma coisa pela revolução porque pensava que, se seu pai lutava por algo, com certeza era algo justo, mesmo se ela não sabia do que se tratava. Isso nos mostra como o vínculo que Sara tinha e tem até hoje com seu pai e com a memória dele é muito forte. E mais, nos faz pensar como sua autobiografia também é um diálogo com ele, para fazer jus ao homem revolucionário que ela via e para mostrar a ele, de alguma forma, que ela seguiu todas as suas lições. Um diálogo que não pode ser ao vivo porque a guerra o levou. De maneira diferente de Sara, o livro de Pepita Carpeña mistura o tempo todo sua vida particular com a sua militância. Poderia até dizer que, na verdade, é o privado que guia sua narrativa. Seu objetivo está claro desde a introdução: ela escreve estas memórias para seus netos e bisnetos, pois eles sempre perguntam a ela sobre sua história de vida. A importância da Revolução Espanhola no seu relato nem por isso se torna menor. Ela lembra com orgulho e certa saudade aqueles dias: “[depois das lutas de 19 de julho] a CNT e seus militantes imediatamente tomaram em suas mãos a economia do país. Nós vivíamos dias de intensa emoção revolucionária. Nem as horas nem o cansaço nós fazia ceder, nós nos sentíamos vivos”. (Carpeña, 1998, p.24) Devemos observar também que Pepita insiste muito na sua característica de “testemunha” do evento, mostrando que ela viu e viveu tudo o que está narrando, e por isso ninguém poderá contradizê-la. Com certeza, podemos pensar que se trata de uma resposta ao longo silêncio imposto à história daquela Revolução, e também àqueles que tentam diminuí-la. Mesmo que muitos historiadores afirmem que a Revolução Espanhola não foi tão grande como dizem, que se trata de uma “lenda anarquista”, não podemos desfazer da intensidade com a qual Pepita e muitos outros viveram esses acontecimentos que, para eles, com certeza foi a maior revolução do mundo. É a partir desse sentimento de defesa de seu passado revolucionário que podemos entender como, para Pepita, a experiência da revolução a marcou e se faz presente na sua vida sempre, apesar de não ser o recorte de sua autobiografia, ao contrário do que fez Sara. A percepção do problema das mulheres também aparece continuamente nas narrativas de Pepita: o tempo todo ela comenta, enquanto conta algum episódio de sua vida, como era a situação da mulher naquela época. O olhar de Pepita, tanto para a sua vida na época quanto para a nossa sociedade hoje, é extremamente moldado pela questão de gênero. Tanto que lamenta também ver, ainda hoje, a permanência de algumas situações das mulheres de sua época. Por isso, toda vez que o grupo Mujeres Libres é mencionado, ela o recobre de elogios. No epílogo da sua autobiografia e nos dois anexos escritos um ano e cinco anos depois do original, Pepita faz um balanço de sua vida e não lamenta nenhuma das experiências pela quais passou: “Eu tenho 79 anos, estou quase no final da minha vida. Ela foi intensa e forte, e apesar de tudo, não me arrependo de nada”. (idem, p.70) Idéia esta que ela reforça várias vezes durante o fim do livro: “Comme dit la chanson, Je ne regrette rien”.
( Acompanhamos de perto suas emoções: os primeiros amores, seu casamento com Pedro que morre na frente de batalha; sua dor de perder o marido e também um irmão; o sofrimento no exílio, as humilhações; um segundo casamento que se torna um desastre pelo marido ser alcoólatra; a difícil decisão de pegar suas filhas e abandoná-lo; a alegria do reencontro com antigos companheiros em Marselha; o nascimento de um novo amor e uma nova filha, e as dificuldades de se viver numa relação de união livre, considerada imoral. Essa é a história que vivi, diz Pepita, e apesar de todo o sofrimento, não desejo não tê-la vivido. Para estas mulheres, a publicação de seus livros e a existência de outros sobre os anarquistas, a Revolução Espanhola e o próprio Mujeres Libres deixam-nas mais tranqüilas em relação à tarefa de salvar o passado. Como diz Benjamin, em uma de suas teses “Sobre o conceito de História” (1996), o anjo da história bem que gostaria de despertar os mortos, e é a eles que estas mulheres dedicam seus trabalhos, como uma forma de justiça e também de homenagem: “Dedicamos este testemunho à memória de todas as nossas companheiras e às mulheres que caíram na contenda, assassinadas pelo franquismo, às encarceradas e a todas aquelas que morreram no tão longo exílio.” (Dedicatória de GIL et alli, 1999, p.6) Não somente textos anarquistas, essas mulheres criaram obras feministas a partir do momento em que se dispuseram a tomar a caneta - aquela que só lhe davam para escrever cartas e listas de compras - e com isso abriram o espaço, lançaram o exemplo e incitaram outras mais a fazer o mesmo. No entanto, Sara Berenguer foi ainda mais além na sua ousadia de escrever, e publicou um livro de poesias: LaRima “Escribo poesía, y algunosme reprochan carecen deesmeralda elegancia. en no expresarme al Decir loque el corazón siente, y aunque no guarde armonía, es mejorquesi al guardarla se miente. Ya vem la poetisaque soy, sin regla nidisciplina, pero a mí sólome anima demostrarmetal cual soy. La libertad de expressión es larima cristalina (Berenguer, 1982, p.17) Ela demonstra, aqui, toda sua força ao rebater as críticas que recebe por falta de “técnica” em suas poesias e ao continuar criando mesmo assim. Afinal, mulheres como Sara são “sem regra nem disciplina”, e nunca se deixaram prender pelas normas masculinas que somente desejavam silenciá-las. Muito pelo contrário, essas mulheres fizeram muito barulho. E há quem esteja incomodado até hoje. * Referências bibliográficas - ACKELSBERG, Martha A. Mujeres Libres. El anarquismo y la luchapor la emancipación da las mujeres. Barcelona, VirusEditorial, 1999. - BERENGUER, SaraEntre elSol y laTormenta. Treinta y dos meses deguerra (1936-1939) Barcelona: Seuba Ediciones, 1988. - BERENGUER, Sara Cardos y flores silvestras Mexico: Editores Mexicanos Unidos, S.A. 1982. - CARPEÑA,Pepita Detoda lavida. Paris: Éditions du Monde Libertaire/ Ed. Alternative Libertaire, 1998. - GENEVOIS, Daniéle Bussy. “Mulheres de Espanha. Da República ao Franquismo” in DUBY, George e PERROT, Michelle (dirs.) História das Mulheres no Ocidente vol.5: O século XX. Porto/São Paulo: Afrontamento/Ebradil, 1991. - GIL, Conchita Liaño et. alli. Mujeres Libres – Luchadoras Libertarias Madri: Fundación de Estudios Libertarios Anselmo Lorenzo, 1999. - GREENE, Patricia V. “Federica Montseny: Chronicler of an anarcho-feminist genealogy” in LetrasPeninsulares,Outono de 1997. - MONTSENY, FedericaMis primeros cuarenta años Espanha: Plaza & JanesEditores, 1987. - POCH Y GASCÓN,Amparo Lavidasexual de la Mujer –Puberdade, Noviazgo y Matrimonio, Cuadenos deCultura, LVI, Valencia, 1932. - RAGO, Margareth “Esque no esdigna la satisfacción de los instintossexuales? Amor,sexo eanarquia naRevolução Espanhola” inSOARES, Carmen Lúcia (org.) Corpo eHistória Campinas:AutoresAssociados, 2006. - VICENTE, - WOOLF, VirginiaUm tetotodoseu
Nota biográfica MariaClara Pivato Biajoli é graduada emHistóriapela Unicampem
2004; trabalhacom otema dasmulheres anarquistas espanholas e ogrupo
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féministes/ estudos feministas |