labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

Literatura de mulherzinha

Zahidé Lupinacci Muzart

Resumo

Este texto propõe algumas reflexões sobre os preconceitos que cercam a expressão “ literatura de mulherzinha”.

Data dos anos 90 uma expressão que julgo preconceituosa e muito ofensiva: literatura de mulherzinha, usada para significar uma literatura mais light, de menor valor literário, lida quase que somente por mulheres. Também chamada de “chick lit”, esta literatura se caracterizaria por ser confessional, absolutamente centrada em perdas amorosas, em desilusões com parceiros e relacionamentos, em paixões amorosas e casos sexuais. É uma literatura de conteúdo, se ainda se pode falar dessa divisão, forma/fundo, uma literatura de enredo somente. A forma, nesse caso, importa menos (ou nada...) do que o enredo, a trama. Ao contrário do que pensei ao ler “ chick lit”, associando-a com chicken, a expressão se refere a chicletes, chewing gum com a implicação de que as leitoras seriam do gênero que masca chicletes e que não é intelectual...

É um fenômeno de amplitude mundial e com objetivos nitidamente comerciais. Na França é conhecida como litératture de gare, ou seja de estação de trens. Na África, lançada em 1998 uma coleção intitulada Adoras, (V. Lydie Moudileno) tem vendido um número imenso de livros e cada edição não sai com tiragem menor do que 10000 exemplares. Nos Estados Unidos, a produção é muito grande e as capas seguem um apelo jovem, capas coloridas com mulheres jovens e roupas idem.

 O romance típico desta coleção é centrado no casal, na paixão, na plenitude sexual, afetiva e econômica. Considerado pela crítica como subliteratura, diz-se que a chick lit se origina no romance rosa do século XIX e estranhamente esta literatura ganha maior repercussão no final do século XX. Na verdade, este sucesso veio na esteira do romance O diário de Bridget Jones, de autoria de Helen Fielding. Levado ao cinema, tornou-se um best-seller mundial, contando as desventuras de uma atrapalhada “balzaquiana” inglesa que, como toda heroína romântica, almeja um final feliz ao lado de um homem idealizado.

Com mais de 10 milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro, mais de 100 mil só no Brasil, a inglesa Helen Fielding montou sua novela com a estrutura do clássico Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Só que entre o original e sua, digamos, “cópia” há um abismo de diferenças. A irônica crítica social de Jane Austen desaparece totalmente e seu fino humor é substituído por um humor escrachado mais próprio para comédia pastelão. O que era, na autora do século XIX uma necessidade imperiosa das mulheres, ou seja, a realização pelo casamento, em Fielding torna-se algo que beira o ridículo. A heroína persegue o casamento tal como as mulheres do século XIX que não tinham outra saída mas com muito menos elegância. A profissão, coisa tão almejada pelas mulheres como libertação, torna-se neste romance algo absolutamente ultrapassado, sem objetivo, sem ideais.

Já há alguns anos persigo esta expressão “Literatura de mulherzinha”. E o que poderia parecer até referência ao famoso romance Mulherzinhas, romance de cunho feminista no século XIX, de Louisa May Alcott, revela-se carregado de preconceito. E por que dizer isso? porque em nenhum momento veríamos romances de aventuras como os de Jack Louis Stevenson (A ilha do tesouro) ou os de Jack London (ex. Caninos brancos) serem intitulados de literatura de homenzinhos, menininhos ou coisa que o valha... 

O romance Mulherzinhas foi escrito a pedido do editor da autora que desejava um romance para meninas. Só que diferentemente dos romances sentimentais da literatura feminina da época, o romance “deixou de lado a temática amorosa” para se preocupar com a formação da personalidade das meninas “ (Regina Zilberman: Peregrinas, mas antes de tudo mulheres. Intr. ao romance. Editora Atica,  1998, p. 7). Quanto à tradução, no Brasil de literatura de mulherzinha, vemos que não tem nenhuma relação nem com o romance de cujo título se inspira nem com a  temática para a qual foi inicialmente concebido, ou seja, literatura para a juventude.

A chamada literatura de mulherzinha não passa de uma sub-literatura bem apropriada aos tempos atuais em que a rapidez da informação não permite uma reflexão maior e tudo tem de ser absorvido sem maiores esforços. É uma literatura de passatempo, meio folhetim para ler e esquecer a seguir. Mas mesmo assim, revolta-me a sugestão de que somente mulheres leriam sub-literatura. Sabemos que hoje as novelas da Rede Globo de Televisão são assistidas por homens e mulheres igualmente. Por que  homens não leriam “literatura de mulherzinha”?

O renascimento de um gênero que grassou no século XIX merece reflexão. Em uma época carregada de guerras, de violência, de misérias sem fim, o público mergulha em enredos que os arrebatem para uma época revogada, para um tempo quase utópico de paz em que o amor era tema dominante na vida.

Enquanto tal literatura exibe muitos títulos em inglês de autoras como a irlandesa Marian Keyes ou Nora Roberts, na literatura brasileira, os títulos são raros.

Nem os livros de grande sucesso da Sra. Leandro Dupré, nos anos 40, se encaixariam nessa categoria. Mesmo sendo uma literatura com grande sucesso de público, como esses romances o foram, e que encerravam problemas vividos pelas mulheres em sua época como, por exemplo, a questão da situação das desquitadas, tema de O romance de Tereza Bernard, nem mesmo assim poder-se-iam classificar como chick-lit... Pois, diferentemente, a literatura de mulherzinha é uma literatura feliz, digamos assim.  Seus problemas são essencialmente falta de sérios problemas, falta de um marido ou de dinheiro para comprar uma bela roupa.

O meu objetivo aqui é discutir o preconceito. Pergunto-me: onde o preconceito?

Se no século XIX, as obras de mulheres apareciam comentadas sob a rubrica “trabalhos de Senhoras”, isto é, uma coluna que já lhes atribuía de saída um menor valor e englobava os tais trabalhos de Senhoras com os de crochet e tricô ou de cozinha (lembro o titulo de um periódico de Santa Catarina, o único periódico dirigido por mulheres e que se chamou Penna agulha e colher, em 1918), hoje, a literatura de mulherzinha pretende englobar o que as mulheres escrevem como literatura de massa, uma literatura mais popular, escrita com objetivos nitidamente mercadológicos, seguindo esquemas e rótulos.

Na Internet, há referências do muito que foi produzido, em inglês o maior número de títulos, já que a pátria da chick lit foi a Inglaterra, com Bridget Jones e continuou alentada carreira nos Estados Unidos.

Chiara Manfrinato, em artigo publicado na internet, (http://www.ccaps.net/newsletter/12-05/art_1pt.htm.  Papo de mulher. ) intitulado Afinal, o que a Bridget Jones e o Yves Saint Laurent têm mesmo em comum?  cria uma tese muito interessante e, creio, original, associando o novo gênero com a indústria da moda. Ela afirma que a indústria da moda e a chick lit teriam uma estratégia comum de comunicação, tornando-as bastante semelhantes porque ambas vendem sonhos:. “Quando estamos diante de um mundo perfeito, repleto de pessoas bonitas e roupas maravilhosas, clientes e leitores gostam de pensar que também podem vir a fazer parte deste universo. Eles não deveriam percebê-lo como um mundo elitista, mas sim como um espaço aberto e acessível. É uma estratégia de comunicação baseada em identificação»

Explica ainda a questão da linguagem, afirmando que autoras desse gênero literário e editores de moda usam a mesma linguagem de clichês, baseada na linguagem popular, com um vocabulário repleto de gírias e expressões de uso comum. “Mas por trás do léxico, o elemento básico compartilhado pelas linguagens chick lit e fashion é o estilo, que deve ser charmoso, agradável, bem-humorado, divertido, frívolo e frugal”.

Essa associação mostra o quanto a chick lit é uma literatura alienada e alienante. Nosso mundo é hedonista, e a “cultura” só conquista as “massas” quando assume formas fáceis e agradáveis de digerir.  Participa da  indústria do romance, é um produto antes de qualquer coisa, no sentido de artigo de consumo.

Roland Barthes, em O prazer do texto, ao discorrer sobre linguagem e ideologia, afirma que:

...a linguagem encrática (aquela que se produz e se espalha sob a proteção do poder) é estatutariamente uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o esporte, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a figura principal da ideologia. Em face disso, o Novo é a fruição. (...) Daí a configuração atual das forças: de um lado um achatamento de massa (ligado à repetição da linguagem) – achatamento fora-de-fruição, mas não forçosamente fora-de-prazer – e, de outro, um arrebatamento (marginal, excêntrico) rumo ao Novo – arrebatamento desvairado que poderá ir até a destruição do discurso: tentativa para fazer ressurgir historicamente a fruição recalcada sob o estereótipo.

O debate é antigo entre uma literatura acadêmica e uma literatura de mercado. Quando Paulo Coelho foi indicado para a Academia Brasileira de Letras, houve grandes discussões sobre se  a sua obra teria valor estético para uma Academia de Letras. Não podemos esquecer igualmente o quanto as novas tecnologias têm provocado mudanças na área da arte e da cultura.

Edgar Morin, em Cultura de Massas no Século XX, teoriza: "A corrente média triunfa e nivela, mistura e homogeníza (...). Favorece as estéticas médias, as poesias médias, os talentos médios, as inteligências médias, as bobagens médias. É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve sua humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio."

Representante dessa mediania, a chamada “ literatura de mulherzinha” de variada qualificação sempre depreciadora e pejorativa, este romance sentimental  destinado a grande público é bem menosprezado pelos estudos mais aprofundados. No entanto, sua importância comercial é muito grande, pois as tiragens são enormes e as vendas, também. Estranho fenômeno! Ao imputar às mulheres a leitura de um gênero denominado “menor”,  a indústria torna-o um grande sucesso editorial que a  crítica insiste em ignorar...  Conforme Lydie Moudileno, estudiosa de literaturas africanas de língua francesa,  “ o paradoxo é evidente: por um lado, o gênero é objeto de ostracismo intelectual por parte da crítica mas por outro lado conhece um sucesso fulgurante a ponto de suplantar os outros gêneros em termos de produção e leitores, atingindo milhares de leitores e leitoras fiéis,  tornando-se hoje  o primeiro gênero literário na França  à frente mesmo do romance policial.” (Ler em http://www.codesria.org/Links/Publications/monographs/Moudileno.pdf.)

Referências bibliográficas

ALCOTT, Louisa May. Mulherzinhas. Trad. Claudia Moraes. São Paulo: Editora Atica,  1998

AUSTEN, Jane.Orgulho e Preconceito, Trad. Lúcio Cardoso. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

CARAZO , Carolina Sánchez-Palencia. El discurso femenino de la novela rosa em lengua inglesa.  Cádiz: Universidad, Servicio de Publicaciones, 1997

DUPRÉ, Sra. Leandro. O romance de Tereza Bernard. (1ª edição 1941). Editora Saraiva, 1957

FIELDING, Helen. O diário de Bridget Jones. Trad. Beatriz Horta. Record, 1998.

_________. Bridget Jones - No limite da razao. Trad. Record, 2000.

LONDON , Jack . Caninos brancos.  Porto Alegre: L&PM, 2004.

MORIN , Edgar. Cultura de Massas no Século XX (Col, O Espírito do Tempo). Forense Universitária, 2005.

MOUDILENO, Lydie. Littératures africaines  francophones des années 1980 et 1990. Document de travail n. 2, 2003. Séné gal: CODESRIA, 2003.

MOURALIS, Bernard. Les contre-littératures. Paris: Presses Universitaires de Francês, 1975.

STEVENSON, Robert Louis A ilha do tesouro.  São Paulo: Atica, 1997.

Nota biográfica:

ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART  é professora titular (aposentada) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC}, continua atuando no curso de Pós-Graduaçâo em Literatura da mesma Universidade. É pesquisadora 1-A do CNPq e trabalha na linha de pesquisa Literatura e Mulher. Coordenou trabalho de resgate com pesquisadoras de várias universidades brasileiras o que resultou nos livros Escritoras brasileiras do século XIX, volumes I e II. Publicou ainda os livros Mariana Coelho: A evolução do feminismo. Imprensa Oficial do Governo do Paraná; Júlia da Costa: Poesia. Imprensa Oficial do Paraná; Fazendo Gênero. Ponta Grossa : Universidade Estadual de Ponta Grossa. Cartas de Cruz e Sousa. Letras Contemporâneas; Cruz e Sousa. Poesia Completa, Fundação Catarinense de Cultura; Tempo e Andanças de Harry Laus, EDUFSC. Editou durante 13 anos a revista Travessia, do curso de PG em Literatura da UFSC. Em 1996, fundou com Susana Funck a Editora Mulheres.

 

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