labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/juin 2008-janeiro/junho 2008

BARBIE : MENININHA QUANDO BRINCA PÕE A MÃO

NO CORAÇÃO? [1]

Fernanda Theodoro Roveri

Resumo

Uma história da boneca Barbie talvez possa contar as muitas histórias vividas por meninas do mundo inteiro. Meninas mergulhadas na ilusória inocência do brinquedo Barbie, um espelho no qual se projeta um ideal de virtude feminina. Emoldurada por uma publicidade que é a maquiagem do real, Barbie encontra-se voluptuosa em seu nirvana particular, sua sedução está no ápice de toda a magia. São 49 anos de estrelato e Barbie continua tão firme e rígida quanto seu corpo de plástico. Esse artigo busca realizar uma análise do sucesso da boneca e dos mecanismos publicitários que configuram sua personalidade versátil, estampando-a como um modelo de feminilidade às meninas.

Palavras-chave: Barbie, corpo, infância.

 

Duas bonecas Barbie são compradas, a cada segundo, em algum lugar do planeta (Lord, 2004: 7). A boneca mais vendida no mundo quer ser a melhor amiga da menina e ensinar-lhe como ser mulher adulta, moderna, consumista, feliz e ter o corpo “em forma”. Assim como todo brinquedo, Barbie é protegida por uma aura de sublime pureza, inocência e fantasia. Com a troca constante de embalagens e o visual adaptável às diferentes etnias, a boneca norte-americana construiu uma memória do mundo em quase meio século de existência. Mas, o que poucos sabem, é que Barbie tem uma descendência alemã e é fruto de um modelo feminino ideal do pós-guerra.

   Ruth Handler e Elliot Handler foram os fundadores da empresa de brinquedos que fabrica a Barbie, a Mattel. Em 1956, o casal passava as férias com a família na Suíça quando Ruth, fazendo compras com sua filha adolescente, viu uma boneca que não conhecia. A menina quis comprá-la para enfeitar seu quarto e a mãe levou duas bonecas para a filha e uma para entregar aos executivos da Mattel, pois havia vislumbrado a possibilidade de fabricar uma boneca com corpo adulto, como há anos desejava criar.

    A boneca se chamava Lilli, era personagem de caricaturas do jornal alemão Bild-Zeitung. Lilli apresentava-se como uma derrotada no pós-guerra que fazia de tudo para trazer de volta sua prosperidade: estampada nas histórias de maneira sensual, ela costumava perseguir homens ricos em busca de dinheiro e sucesso. Transformada em boneca, Lilli era uma espécie de mascote para os homens adultos. Vendida em bares e tabacarias, Lilli não era direcionada para crianças; a boneca ficava sentada com as pernas abertas em um balanço ou em um burrico e servia tanto para ser colocada no painel do carro como um presente para as namoradas no lugar de flores[2].

  Lilli é então precursora da Barbie (nome dado em homenagem à filha de Ruth, Barbara). Lançada no mercado em 1959, Barbie era apresentada como uma modelo adolescente que tinha uma vida real. Mas Ruth Handler procurou se esforçar para adequar sua réplica a um padrão de garota norte-americana “respeitável”. Para evitar a semelhança entre as bonecas, a Mattel contratou um maquiador profissional da Universal Pictures, responsável por “suavizar” a face sedutora de Lilli[3]; um engenheiro de mísseis do Pentágono ajudou a desenvolver brinquedos de alta tecnologia, chegando a patentear as articulações do corpo da boneca. Charlotte Johnson, estilista e veterana da moda, fabricou os trajes da Barbie, impondo-lhe o seu próprio jeito imponente de vestir-se. E ainda, um diretor de pesquisa motivacional foi contratado para elaborar um pacote de propagandas que sanasse a insegurança e o ódio que as mães tinham em relação a uma boneca adulta.

      A criança foi descoberta como consumidora em potencial após a Segunda Guerra Mundial, época em que a Mattel consagrava-se como pioneira no uso de técnicas de marketing e comerciais voltados ao público infantil. Se antes a venda de brinquedos era direcionada aos pais, com o lançamento da Barbie os comerciais capturavam a menina para que ela mesma tivesse os argumentos necessários para convencer os adultos a comprarem a boneca. Um desses argumentos era o de que Barbie, com toda sua elegância, ajudava meninas travessas a se comportarem como pequenas damas.[4] Assim, as propagandas iniciais da boneca sempre foram testadas antes com um grupo de meninas e, se o comercial não lhes chamasse a atenção, não era veiculado na rede televisiva.

  Desde que nascem, as crianças vivenciam certas experiências sociais que são determinadas pelo fato de serem meninos ou meninas. Felipe (2003: 125) nos mostra que

Se observarmos as propagandas de brinquedos dirigidas às meninas, também veremos que elas investem de forma importante na idéia de cultivo à beleza como algo inerente ao feminino, aliada sempre ao supérfluo, ao consumo desenfreado, ou seja, não basta ter apenas a boneca Barbie, Susi ou Polly, é preciso ter todos os modelos e variações da mesma boneca e seus respectivos acessórios. (Felipe, 2003: 125)

   Por outro lado, se observarmos a publicidade de “brinquedos para os meninos”, notamos que ela traz a definição de como eles devem se comportar: as cores escolhidas para estampar a embalagem geralmente são mais escuras, os rostos ofensivos dos bonecos demonstram poder, ação e coragem, juntamente com mensagens que demarcam a quem o brinquedo é dirigido: “Quando é necessário poder ofensivo máximo, a tropa de ataque entra em ação com seus veículos altamente equipados com artilharia pesada. O inimigo que se cuide![5]. Os brinquedos vêm imbuídos de normas que definem o que é permitido e o que não é permitido para cada sexo, há um abismo que separa os brinquedos destinados aos meninos e os destinados às meninas. Mas vale ressaltar que essas dicotomias são criadas pelos adultos e que nem sempre têm o mesmo significado para as crianças no momento da brincadeira.

   A comercialização dos brinquedos segue a proposta de seduzir tanto as crianças quanto seus pais. Barthes (1972: 40) qualifica os brinquedos da sociedade capitalista como vulgares, afirmando que os brinquedos que representam o mundo adulto são “reproduções em miniatura dos objetos humanos como se a criança fosse apenas um homem pequeno, a quem só se podem dar objetos proporcionais ao seu tamanho”. A relação recíproca que adulto e criança estabelecem socialmente é, por vezes, desconsiderada quando se afirma que as condições de existência da criança estão ligadas apenas a uma satisfação de suas necessidades biológicas naturais. Para Charlot (1983: 107),

A criança não é somente fraca, impotente, dependente. É também, em razão dessa fraqueza mesma, exigente. Dirige ao adulto certo número de solicitações, de início, essencialmente vitais e inconscientes, depois, cada vez mais afetivas, sociais e conscientes. O adulto reage a seus apelos em função de suas próprias necessidades, de seus problemas, de seus conflitos, de sua personalidade, etc. Da mesma forma, a sociedade responde às exigências infantis em função de seus modos de produção, de sua organização, de suas estruturas, etc. Essas reações do adulto e da sociedade modificam, por um processo de compensação, o grau de impotência e o nível das exigências da criança. (Charlot ,1983: 107)

       A publicidade de Barbie se concentra em seduzir e encaminhar a menina ao mundo imaginário da boneca. Imersa num cenário onírico cor-de-rosa, a garota é conduzida pelas mãozinhas da amiga Barbie a um passeio em que é possível vislumbrar inúmeros acessórios de prestígio, até que a menina, candidata à estrela, é convencida de que precisa desejá-los para sua coleção. Terminado o sonho, ao sair do universo fantástico criado para a boneca, a menina é estimulada a se apresentar em alguma loja de brinquedos para conferir e comprar os mais variados caprichos que fizeram parte do incrível cenário da musa.

   Barbie ainda ensina para as crianças como elas devem se apresentar corporalmente, vendendo não só seus produtos, mas o estilo de vida que está em alta no mercado. No site brasileiro da boneca[6], é possível participar de diversas atividades com a Barbie e aprender que é essencial ter uma roupa para cada ocasião e não repetir o mesmo traje dentro de certos espaços de tempo. Barbie e suas amigas mostram como a mulher pode ficar mais bonita e descolada ao usar roupas que valorizam as formas femininas mais admiradas socialmente. Entrar no mundo da Barbie e ser como uma destas bonecas está cada vez mais “fácil”: Qualquer mulher que não possuir uma anatomia eficaz em exaltar a eminência da roupa escolhida, poderá contar com serviços de drenagem linfática, bioplastia, depilação a laser, lifting, dieta natural, limpeza de pele, aparelho de ginástica passiva, bronzeamento instantâneo e lipoescultura.

Embalada com seus atrativos da moda em um alvejado cenário de sonho e fantasia, Barbie impõe uma significação corporal construída sob os moldes higienistas e eugênicos, consagrando-se como uma das inscrições da contemporaneidade que assinala profundamente a sua marca cor-de-rosa sob o corpo de milhões de meninas. Mesmo que nem todas as crianças possam comprar os produtos que a publicidade da Barbie esforça-se para vender, qualquer pessoa pode consumir os signos de gênero e sexualidade apresentados pela boneca, que vertiginosamente ensina e produz certas formas de pensar, de agir, de estar e se relacionar

(...) Sujeitos consomem não só mercadorias como também valores que estabelecem como deve ser o corpo, como devemos nos vestir, quais comportamentos valorizar, isso tudo não somente através das marcas de gênero, como também de raça/etnia, classe, geração, para citar algumas (Sabat, 2003: 153).

      Uma das formas que veiculam o modo de Barbie estar e se relacionar com o mundo é através de filmes para as crianças. Neles, a boneca é mencionada como uma atriz que vive papéis de princesa e, como afirma a sinopse do filme “Barbie Quebra-Nozes”(2002), “mostra a todas as crianças que se você for generosa, inteligente e corajosa, tudo é possível”. No filme “Barbie - A Princesa e a Plebéia” (2004), a boneca canta várias canções que ensinam como a menina deve se comportar para ser uma verdadeira princesa. Uma delas é significativamente entoada por um personagem masculino, o tutor da família real, responsável por transformar a aparência e os hábitos da Plebéia, para que esta substituísse a princesa que havia desaparecido do palácio:

Uma princesa sabe usar uma colher

Tem mil sapatos pra escolher o que quiser

Tem conduta exemplar

É discreta no jantar

E demonstra interesse para ouvir (...)

Caminhando com cuidado

Um sorriso delicado

O que sente, nunca demonstrar!

Voar...

Uma princesa sabe como se portar

Uma princesa nunca pode descansar (...)

   Ao final do filme, a criança tem a opção de selecionar as músicas que fizeram parte da história e cantá-las juntamente com a Barbie em forma de karaokê.  A boneca incentiva a menina dizendo: “Eu gosto dessa música porque ela nos ensina a ter bons modos de maneira bastante divertida”  e “Eu sei que você tem uma voz linda!”. A grande expressão dos desenhos da Barbie está no coração, lugar estritamente feminino de onde devem brotar os sentimentos de ternura, amizade, esperança e docilidade. Rael , ao analisar os desenhos infantis produzidos pela Walt Disney, aponta que em muitas histórias o feminino e a afetividade se conectam naturalizando a menina como sensível, doce e paciente:

“(...) as representações dos desenhos procuram mostrar que o ideal de feminilidade está estritamente vinculado ao coração. Justifica-se, assim, o discurso que procura enfatizar que as mulheres são mais dóceis, mais emotivas, mas fracas e dependentes, devido às características físicas que possuem”. (Rael 2003:169),

  O discurso também é reiterado na sinopse do filme: “Nesta mágica performance musical, duas belas e corajosas garotas ousam seguir seus sonhos e descobrir que o destino está escrito em um lugar muito especial: seu coração!”. Com grande sedução, a loura boneca impõe uma identidade à menina mostrando-lhe os sentimentos que devem ser cultivados no coração. O discurso sublinha ainda que sonhar é intrínseco ao feminino e que da fantasia nascem o sucesso, o prestigio e a beleza.

   Os filmes da boneca são um abrigo para uma publicidade eficaz em designar a Barbie como uma personagem distinta, amiga e real, criando uma expectativa de valor de uso como fonte de prazer. A publicidade insinua e sugere um universo que não vem junto com o brinquedo. Barbie aparece sempre em extravagantes cenários recheados de milhares de acessórios e equipamentos sedutores: palácios imensos e rosados, bichinhos de estimação (sempre branquinhos com olhos azuis ou verdes), fadinhas encantadas, pôneis com asas, sereias, etc.

Quando vai à loja, a criança encontra a boneca estampada em um desses paraísos, mas, quando olha dentro da embalagem, se dá conta de que os acessórios não estão inclusos; cenário de caráter ilustrativo somente; as cores das peças podem sofrer variações... Este é um típico mecanismo utilizado para incitar as crianças a serem fiéis colecionadoras, promovendo a venda e o lucro aos fabricantes. Oliveira (1989: 32) afirma que “não é à toa que a indústria de brinquedo compra serviços de publicidade e espaços nobres de audiência e assistência infantil na televisão. E que o montante desses investimentos seja um verdadeiro segredo de estado”.

   A fabricante de Barbie também elaborou jogos on line para que as meninas aprendam sobre moda e encontrem outras amigas virtuais para “conversas de garotas”. A interação entre as usuárias do site[7] ocorre através da seleção de um repertório de frases pré-estabelecidas pela Mattel, a fim de manter a conversa segura e evitar “fofocas” entre as meninas. Assim, ao encontrar uma amiga na loja de roupas, móveis, cinema, salão de beleza ou parque, a usuária tem algumas opções de frases para iniciar a conversa, tais como:

Adorei sua roupa!/ Arrasou no look!/ Que fofo!/ Eu gosto de ser uma boa amiga/ Vamos fazer compras?/ Quer sentar?/ Eu quero ir de pijama para a escola!/Falei muito alto e a pessoa de quem eu estava falando ouviu!/ Onde você cortou seu cabelo?/ Você devia ser modelo!/ Acha que combina?/ Meu cabelo tá horrível!/ Olha aquele garoto!/ Tem alguma coisa mais light para comer?/ Eu fiz um problema de matemática todo errado/ Eu ri tanto que a bebida saiu pelo meu nariz!/ Eu parecia uma lesma na aula de ginástica!

Mas a menina somente pode acessar o site se seus responsáveis responderem a uma mensagem da Mattel autorizando sua filha a participar das atividades do sistema. Para isso, um comunicado de esclarecimento é enviado aos adultos:

Bem-vindos ao br.BarbieGirls.com! O mundo Barbie Girls foi criado para ser um lugar seguro, divertido e emocionante para as meninas brincarem online. Com a sua permissão, sua filha poderá criar uma personagem virtual, decorar seu próprio quarto, fazer compra com os B$ ("dinheiro" virtual) que ela recebe, jogar, ver vídeos com seus filmes e produtos favoritos da Barbie e bater papo com outras usuárias inscritas em um ambiente controlado. Nosso sofisticado filtro de vocabulário mantém estas conversas apropriadas para meninas e previne que informações pessoais — tais como o nome de sua filha, número de telefone, e endereço — sejam dadas a qualquer desconhecido. O B Chat permite que as garotas se comuniquem por meio de mensagens prontas que criamos. A menina escolhe a mensagem que quer e envia para a amiga.

A B Sala Reservada, disponível apenas para amigas na vida real, permite que as usuárias digitem as próprias mensagens, mas qualquer linguagem inadequada ou informação pessoal é bloqueada.(...) Nós também monitoramos as conversas para garantir que permaneçam seguras e apropriadas. Os administradores de Barbie Girls freqüentemente revêem relatórios de conversas nos ambientes e ajustam os filtros de vocabulário para bloquear ou permitir palavras ou frases novas. Este monitoramento serve exclusivamente para manter o ambiente de conversas seguro — os relatórios de conversas não são usados de nenhuma outra forma, e nós não guardamos ou mantemos qualquer informação privada.

Se uma menina sentir que uma amiga ou melhor amiga está se comportando mal, ela pode clicar em “bloquear” para impedir que esta pessoa lhe envie mensagens. E ela pode remover instantaneamente qualquer pessoa de seu quarto ao clicar em “pedir para sair.” Se alguém a constranger, ela pode nos avisar clicando na personagem da outra usuária e clicando em “denunciar.” Quando uma usuária é denunciada, nós podemos rever a conversa no momento do incidente, monitorar a usuária ofensora e determinar se medidas futuras são necessárias. Qualquer usuária que tiver comportamento censurável pode ser banida do site.[8]

    Para brincar com a Barbie, a garota precisa ser obediente, ter o certificado de boa conduta emitido por seus responsáveis e não violar as leis do sistema, que promete fornecer-lhe “total diversão” e segurança. Em nome da privacidade, o site controla a brincadeira disponibilizando opções de atividades consideradas, pelos adultos, apropriadas para que menina aprenda a parecer-se com sua boneca. A presença de personagens masculinos no site é ínfima, apenas o Ken aparece num jogo em que a menina ganha mais dinheiro arrumando-o para um encontro com Barbie. Outro é um menino de skate que atravessa o parque a fim de ilustrar o cenário onde as estrelas principais são as “Barbie Girls”. Podemos notar que o “ambiente seguro” elaborado pela Mattel é aquele em que as meninas podem brincar longe dos seus inimigos masculinos, fechando-se em seus quartos virtuais e emitindo frases controladas umas às outras.

A boneca Barbie, cuidadosamente arrumada nas lojas, forma um comprido e rosado corredor de “brinquedos exclusivos para meninas”. As crianças aprendem que seus brinquedos surgem das prateleiras, naturalmente oriundos de um espaço delimitado por hierarquia de gênero. Meninos e meninas desconhecem que seus brinquedos têm uma realidade anterior à da loja e que são objetos de um processo produtivo. Ocupando desde as mais baixas prateleiras às mais altas, ali estão as loiras, as morenas, as bailarinas, as ginastas, as fadas e tantas outras simulações humanas que Barbie queira consagrar luxuosamente.

Ao seu lado, um mundo em miniatura é feito sob encomenda para a boneca: piscina de luxo, conversível para viajar com estilo, mochila escolar para fazer inveja às amigas, casa dos sonhos, blocos de montar educativos, kit de maquiagem fashion... Participar de uma divertida brincadeira de fazer compras com a boneca pode custar desde R$15,00 - numa simples roupinha - ou até mais de R$200,00, para artigos como casa ou carro da Barbie.  

Mesmo aparecendo sob inúmeras versões, Barbie mantém os traços do rosto e o corpo padronizados, podendo mudar, sempre que quiser, o penteado, o figurino ou a cor dos olhos e cabelo. Na verdade, o que difere um tipo de outro é o que na embalagem se afirma: Barbie Rapunzel, Barbie Astronauta, Barbie Ginasta, etc. Negras ou brancas, as bonecas Barbie aparecem sempre com os mesmos trajes. A mulher negra é padronizada com uma etiqueta branca: as roupas, os acessórios, a fisionomia e os costumes das duas bonecas são idênticos, o único diferencial é a cor do plástico do qual são fabricadas. Steinberg (2001) aponta que as bonecas negras não significam a democratização dos brinquedos, mas uma boa razão para as meninas negras desejarem comprar as bonecas de 50 dólares.

A Mattel tem criado variedades de estampas para beneficiar as bonecas Barbie de uma diversidade cultural e étnica passível de aceitação e comercialização por inúmeros países do mundo. Porém, a matriz na qual se produzem as bonecas continua sendo a norte-americana e, qualquer que seja a etnia representada, Barbie sempre continuará na ponta dos pés, anoréxica, com traços característicos da branquiedade (nariz tênue, cabelos no máximo ondulados e olhos castanhos claros para a representação da etnia negra), com seios grandes e nunca idosa. Como afirma Steinberg :

A Mattel definiu etnia como diferente do branco. A Barbie normal, loira, é o padrão a partir do qual as “outras” surgem. Como emula a cultura dominante, a norma é a Barbie; sem um título, todas as outras Barbies são qualificadas por sua linguagem, alimentos e danças ‘nativas’. Tentando ser multiculturais, pais compram essas bonecas para suas filhas para ensiná-las sobre “outros” povos

[...[. Barbie dividiu as bonecas dentro das culturas dominantes e marginais. A brancura da Barbie a privilegia a não ser questionada; ela é o padrão para todas as outras. (Steinberg, 2001: 333)

Barbie também é o padrão de corpo que está em alta no mercado. Desde pequenas, as crianças são incentivadas por suas tutoras bonecas a se apoderarem desse corpo de plástico e desejá-lo para si mesmas. As crianças japonesas, hispânicas, africanas ou de quaisquer outros lugares do Oriente ou do Ocidente, encontram a Barbie configurada em todas as etnias, como se a boneca tivesse uma plasticidade democrática de representar todas as mulheres... No entanto, Barbie sempre carrega os ideais de beleza ocidental norte-americanos, bem como os comportamentos juvenis mais legitimados em sua cultura.

Uma das imagens projetadas para a criança saber o que e quem a Barbie é, é a California Girl, uma coleção de bonecas bronzeadas que saem em turma pelas praias radicais procurando diversão. A menina não compra apenas a boneca de plástico, mas uma narrativa que determina o comportamento e a personalidade do brinquedo, descrita em uma embalagem que se assemelha a uma revista ilustrada, ou um manual que explica o que deve ser esperado desse produto e a maneira certa de se brincar com ele:

É natural que a Barbie, a mais descolada California Girl, e suas amigas façam daqui a sua área de lazer! Primeira parada – a praia, onde as ondas e a diversão nunca acabam! As ondas são radicais e o surfe é demais! Quando o sol se põe, a Barbie e suas amigas entram no jipe 4x4, aquecem os motores e vão direto à festa de praia mais badalada da cidade. Outra super aventura no horizonte! Esse é o estilo de vida da...California Girl.[9]

A boneca se imortaliza alimentando nas crianças e nos adultos colecionadores o sonho da perpétua renovação. Barbie nunca envelhece e seu mundo perfeito nunca pára de ser fabricado, para cada produto que a criança adquire, tantos outros são lançados, sugerindo que a coleção nunca terá um fim.

Congelada na idade favorita da sociedade, a fase da juventude, Barbie despreza a infância e o envelhecimento, concebendo que a beleza e a sexualidade só se conservam num corpo jovem, e são alcançadas, sob forma de saúde, por quem segue a moda, se enfeita com cosméticos e oferece seu corpo à malhação ou à intervenção cirúrgica. À criança cabe a busca por uma aparência adulta assemelhada à da boneca. Meninas candidatas à Barbie brincam com o próprio corpo na fantasia de que o mundo fashion da boneca possa corresponder às suas vidas. Nessa ideologia, há estreita ligação entre ter o que é da Barbie e tornar-se a própria Barbie: vestir suas roupas, usar seus acessórios e sapatos iguais aos seus, significa conseguir o mesmo corpo, o incrível sucesso, o luxo e o prestígio da boneca.

Ser modelo, desfilar, tirar fotos, estampar anúncios, aparecer na televisão e cantar em programas de calouros: tudo isso representa o grande sonho de milhares de meninas e das próprias mães. Para isso, há uma indústria que incessantemente fabrica esses desejos na tentativa de comercializar o corpo infantil, apresentado num misto de ingenuidade e sedução. É comum encontrarmos anúncios oferecendo cursos profissionais de modelo para crianças entre um a seis anos, apelando para discursos que mostram as vantagens da familiarização dos bebês ao mundo televisivo e da moda. Werneck ao relatar a a preferência dos estilistas por garotas novas, descreve a opinião de um dos produtores de desfiles para a Fashion Rio:

“a obsessão do mercado existe porque, quando elas são novinhas, têm um corpo incrível e um frescor. Mas acho que as ninfetas ficam melhores quando amadurecem, quando começam a transar”.( Werneck 2004: 6))

Desde cedo, as meninas aprendem que devem manter um autocontrole e um interminável jejum para que permaneçam dentro das esferas de admiração. Suas infâncias são disputadas por modelos que lhes ensinam quais as expectativas sociais em relação ao ser mulher, esfumaçando outras alternativas e possibilidades de viverem suas sexualidades. Ao problematizar a atual perda da infância das meninas, Simpson , afirma que

Aquilo que começa sendo um mimetismo – a menina de seis anos passando batom e vestindo minissaia – acaba por tornar-se a maneira de ver e de ser vista, o que envolve privação (regime, se é gorda), competição (para estabelecer uma hierarquia dentro da zona limitada de expressão permitida às mulheres) e, além de tudo, simplesmente desvio de outras maneiras de pensar e de comportar-se que estejam fora dessa esfera. (Simpson ,1994: 137)

Esse corpo com o qual a publicidade dialoga é convidado a tudo querer e em abundância comprar: exibir o máximo de mercadorias em si e ao mesmo tempo mostrar o mínimo de si: nenhuma gordura, nenhum vício, pouca fome, nada de rugas, celulite ou estria... O que vale é ser um esqueleto frágil para servir de suporte às etiquetas e aos mais variados acessórios da moda. Meninas e mulheres aprendem a tratar as atrizes e modelos como se fossem excelsos paradigmas e reagem diante das imagens delas como se obedecessem a um mandamento inquestionável. Wolf  afirma que

A ideologia da beleza ensina às mulheres que elas têm pouco controle e poucas opções. As imagens da mulher segundo o mito da beleza são simplistas e estereotipadas. A qualquer momento existe um número limitado de rostos “lindos” reconhecíveis. Através de percepções tão limitadas do universo feminino, as mulheres concluem serem suas opções igualmente limitadas.( Wolf, 1992: 64)

Defronte aos espelhos de feminilidade apresentados na televisão, nas revistas e anúncios, as mulheres são intimidadas e aprendem a se verem feias e doentes. O corpo obediente à lógica do mercado é aquele que se esfomeia para estar na moda e conserva sua visibilidade através de constantes correções cirúrgicas. Wolf (1992), ao demonstrar que os cirurgiões estéticos atendem a necessidades culturais e não biológicas, aponta que o mercado cirúrgico é algo imaginário, pois não há nada de errado com o corpo feminino que uma mudança social pudesse curar. Os cirurgiões, interessados em manter suas rendas, dependem do ódio que as mulheres devem sentir por si próprias. A publicidade, dizendo-lhes tanto o que é certo como o que é abominável mostrar fisicamente, invade e chama os corpos saudáveis de doentes para que os cirurgiões possam tratá-los.

Barbie, com seu corpo magro, duro e rígido, foi feita para posar em milhares de modos e servir de musa inspiradora para inúmeros trabalhos de célebres estilistas. A boneca, diferentemente de outras que são feitas para brincar e ninar, tem seu visual constantemente reconfigurado a fim de servir como estampa de novos espaços publicitários direcionados ao público infantil. Barbie é sempre atualizada para não ficar com uma imagem de simples boneca, mas de uma pessoa real: Em 1964 ganhou olhos que abriam e fechavam, em 1965 dobrava as pernas, em 1992 foi dotada de voz[10] e atualmente já pode ser vista com uma tatuagem de borboleta no ventre.

À Barbie são dadas identidade e presença no mundo. O Pentágono presenteou-lhe com uma coleção de trajes militares, ela tem até uma versão de cera no museu Grévin em Paris e, em seu nome, seus seguidores fazem convenções nacionais. Barbie é vestida e fotografada por gente famosa, tem mais de 500 estilos de maquiagem profissional, possui casas, carros, amigas, namorados e um mundo fashion com seu nome. Uma “indústria de sonhos” faz da Barbie o que quiser! 

Encantada, adorada, sofisticada e tatuada... A Mattel tem se esforçado para que Barbie transcenda as barreiras do brinquedo, conquistando uma imensurável popularidade e estrelato, a fim de ultrapassar todas as previsões do mercado.

Barbie traz consigo a definição de uma beleza feminina considerada insuperável, é um brinquedo que simula ser uma mulher de respeito, de atitude, estilo e elegância. Mas estes são apenas mais alguns dos muitos disfarces que a Mattel reproduz para manter em órbita uma boneca com uma “carreira” passível de contestação... Sem ninguém para segurá-la, Barbie é algo que não consegue nem parar em pé.

REFERÊNCIAS

Livros, revistas e artigos - Impressos

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Filmes

Barbie: O Quebra-Nozes. Universal Pictures, EUA, 2002.

Barbie: A Princesa e a Plebéia. Universal Pictures, EUA, 2004.

Nota Biográfica

Fernanda Theodoro Roveri

É formada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (2004) e atualmente é professora da Rede Estadual de Ensino de Campinas – SP, onde ministra aulas para crianças do Ensino Fundamental. Cursa o Mestrado pela Faculdade de Educação da Unicamp e, sob a orientação da Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares, estuda a história da boneca Barbie e a educação de meninas.


 

[1] Este artigo é uma reelaboração do trabalho “A Boneca Barbie e a Educação de Meninas – Um mundo de disfarces”, apresentado na 30ª. Reunião Anual da Anped em Caxambu, MG, no período de 7 a 10 de outubro de 2007, para o Grupo de Pesquisa: Gênero, Sexualidade e Educação.

[2] Para mais informações a respeito da Lilli, ver as obras de Steinberg (2001) e Lord (2004).

[3] Lilli possuía sobrancelhas arqueadas, olhar voltado para baixo e realçado com delineador, como em nus pornográficos, as bochechas eram avermelhadas e os lábios arredondados. Lilli tinha o cabelo preso no alto da cabeça e uma mecha loura caía sob a testa.

[4] Steinberg (2001: 324) nos revela que “o gancho promocional que Handler citou como o mais essencial foi a possibilidade de as garotas poderem possuir apenas uma boneca, já que esta poderia ter diversas roupas.” Mas enquanto uma boneca era vendida por 3 dólares, suas roupas custavam 5 dólares.

[5] Transcrição da embalagem do brinquedo Action Forces, fabricado pela Gulliver.

[6] www.barbie.com.br

[7] www.barbiegirl.com.br.

[8] http://br.barbiegirls.com/legal/parents.html. Grifos meus.

[9] Transcrição da propaganda presente na embalagem da boneca Barbie California Girl – Mattel, 2004.

[10] Schiebinger (2001: 137) relata que em 1992 Barbie abriu sua boquinha para dizer às 800 milhões de meninas que a compraram: “a aula de matemática é difícil”. A Mattel sofreu protestos de um grupo de mulheres da American Association of University Women.

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier/juin 2008-janeiro/junho 2008