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féministes/ estudos feministas Prazer, poder e perigo Amanda Presotti Corrêa Resumo Os estudos da sexualidade, desde os anos 70, têm se configurado como um dos principais pontos de tensão nos movimentos de mulheres. Não é difícil perceber que várias das questões levantadas pelos feminismos se relacionam com o tema: heterossexualidade compulsória, estupro, direitos reprodutivos, lesbianismo, entre outras. No entanto, poucos assuntos geraram tantos embates como este. Esse artigo visa tratar das chamadas “guerras sexuais” feministas – uma série de debates teóricos e políticos entre feministas acerca das relações entre sexualidade, poder, prazer e perigo. Palavras-chave: sexualidade, feminismos, movimento de mulheres, pornografia. Os estudos sobre a sexualidade vêm, cada vez mais, conquistando espaço dentro da Academia, abrangendo diversos campos do conhecimento. Podemos localizar o aumento desse interesse nas demandas políticas requeridas pela chamada “segunda onda”[1] dos movimentos feministas e pelos movimentos pelos direitos dos homossexuais – mais uma demonstração da força político-social-epistemológica dos movimentos de mulheres. Participam desse nascimento pelo interesse na sexualidade a Nova História Cultural - especialmente no que diz respeito à ampliação do universo dos objetos possíveis de serem estudados – e também a obra de Michel Foucault, especialmente os três volumes que compõem a História da sexualidade. Na História, os estudos da sexualidade vêm aliando um estudo da história dos discursos sobre o sexo e a avaliação das estratégias disciplinares presentes em diferentes discursos normativos acerca da sexualidade (seguindo aqui a metodologia foucaultiana de análise), com a investigação das práticas sexuais vivenciadas (ENGELS, 1997: 298). No entanto, os estudos sobre a sexualidade não são uma versão da sexologia, tradicionalmente associada à classificação, patologização e tratamento dos fenômenos sexuais. Os estudos da sexualidade configurados pelos movimentos feministas e pelos movimentos gays, inclusive, se opõem radicalmente à visão epistemológica da sexologia: a prioridade reside sobre a composição histórica e sócio-cultural da sexualidade, e não na biologia. Também se separam em suas premissas – as novas perspectivas desconstróem o relacionamento heterossexual patriarcal, que era considerado norma da sexologia. Os estudos feministas atuais devotam muito de sua produção ao campo dos estudos sobre a sexualidade: pornografia, prostituição, direitos reprodutivos, assédio sexual, abuso sexual, incesto, estupro, aborto, liberdade sexual, lesbianismo, saúde das mulheres. Sendo assim, considero que o campo dos estudos da sexualidade resume bem o mantra feminista “o pessoal é político ” – aquilo de mais íntimo, de mais privado, é mais do que tudo material e assunto de políticas públicas. Como bem colocaria MacKinnon “A sexualidade está para o feminismo como o trabalho está para o marxismo: aquilo que é mais fundamentalmente nosso, e no entanto aquilo que mais nos é tomado” (MACKINNON, 1991). Esse artigo visa tratar das chamadas “guerras sexuais” feministas – um debate intenso entre diferentes grupos de mulheres acerca das relações entre a sexualidade, poder e prazer. É importante lembrar que talvez nada tenha gerado tanta discordância quanto os estudos da sexualidade – e enquanto me proponho a oferecer explicações claras e equitaticas sobre diversos pontos de vista, também deixarei claro onde reside minha posição nesse debate. Quero salientar também que as discussões levantadas pelos movimentos gays só serão tratadas aqui quando se entrelaçarem às dos movimentos feministas. Primeiramente, é necessário definir alguns termos. Os termos “sexo” e “sexual” têm dois sentidos comuns: o primeiro remete às diferenças físicas entre homens e mulheres; o segundo, ao intercurso sexual (JACKSON & SCOTT, 1996: 2). Nesse artigo, tanto os termos “sexo” quanto “sexual” significarão, primeiramente, atividade erótica íntima – a menos que explicitado em contrário. “Sexualidade” compreenderá desejos eróticos e práticas sexuais: O termo “sexualidade” é então reservado para aspectos da vida social e pessoal que têm significação erótica. Nesse sentido, o conceito de “sexualidade” permanece de certa forma fluido, em parte porque o que é considerado erótico, e dessa forma sexual , não é fixo. O que é erótico para uma pessoa pode ser revoltante para outra e politicamente inaceitável para uma terceira.Assim, [...] Ao utilizarmos esse termo um tanto quanto escorregadio nós desejamos transmitir a idéia de que sexualidade não é limitada a “atos sexuais”, mas envolve nossos sentimentos e relações sexuais, os modos em que nós somos ou não definidas enquanto sexuais para outras, também como as maneiras em que nos definimos (JACKSON & SCOTT, 1996: 2). Por que se pensar o prazer nas relações íntimas femininas é tão complicado? Qual a importância de algo tão pessoal para os movimentos de mulheres? Uma análise mais atenta revelará que, na verdade, a vivência sexual das mulheres não é algo que diga respeito apenas ao campo do privado. É dentro dessa discussão que nasce o bordão feminista “O pessoal é político”, que significa mais do que levar posições políticas para nossas vivências pessoais. Através de grupos de “elevação de consciência”, onde grupos exclusivamente femininos se reuniam para discutir questões da agenda feminista, bem como experiências pessoais, as feministas descobriram que muitas dessas experiências, problemas e ansiedades não eram, de forma alguma, pessoais, mas sim partilhados por outras mulheres. Assim, chegaram à conclusão que “eles [problemas e ansiedades] derivavam de nossa situação social e eram característicos de nossa opressão enquanto mulheres. Como eram de origem social, requeriam soluções políticas” (JACKSON & SCOTT, 1996: 5). Ao tentarem encontrar um campo comum entre as experiências das mulheres e utilizá-lo para análises e ações políticas, as feministas redefiniram e amplificaram o conceito de “político” e se voltaram para campos da vivência social das mulheres até então menosprezados, tais como a sexualidade. Essas feministas lideraram debates e ações políticas que demandavam o direito das mulheres de definirem seus destinos e suas próprias sexualidades, combatendo as representações sociais de passividade e inércia femininas. Denunciaram de fato, como política, a assimetria e a hierarquização do humano baseadas em uma pretensa evidência biológica. Catharine A. MacKinnon afirma que: Nessas áreas [estupro, incesto, espancamento, assédio sexual, aborto, prostituição e pornografia], os esforços feministas objetivam confrontar e mudar as vidas das mulheres de forma concreta. Tomadas juntas, elas estão produzindo uma teoria política feminista centrada na sexualidade: sua determinação social, construção diária, expressão do nascimento até a morte, e controle masculino (MACKINNON, 1991: 109). A questão é: vivemos numa sociedade onde o sexo tem um excesso de significado. As práticas sexuais não são apenas expressões de um prazer individual, mas sim local primordial e constituinte das relações de poder e de auto-representação. E essas relações de poder são coercitivas para as mulheres, da forma mais crua e violenta possível : não podemos ignorar que o estupro, o assédio sexual e o espancamento, por exemplo, fazem parte das práticas sociais e sexuais de nossa sociedade. As feministas vêm analisando que, da mesma forma que a sexualidade é socialmente construída, ela é gendrada: Mulheres e homens são divididos pelo gênero, feitos nos sexos como os conhecemos, pelos requerimentos da sua forma dominante, a heterossexualidade, que institucionaliza a dominância sexual masculina e a submissão sexual feminina. [...] Homens e mulheres são criados pela erotização da dominância e da submissão (MACKINNON, 1991: 113). Se a liberação sexual feminina a que aspiramos diz respeito à sexualidade como a conhecemos, talvez esse projeto não seja tão interessante assim para as mulheres. É necessário que se critique as formas de assujeitamento imbricadas no mais íntimo dos espaços para que talvez percebamos que elas dizem respeito, sim, à forma como o todo social funciona. Se a sexualidade à qual queremos livre acesso é uma sexualidade atravessada por representações e práticas violentas, talvez ela não seja tão libertadora. No entanto, esse tipo de questionamento não é tão óbvio e linear assim, e diferentes posicionamentos frente ao tema podem ser encontrados nos movimentos feministas. Muito da crítica feminista vêm se concentrando na sexualidade enquanto ponto-chave da opressão feminina. Outras feministas, por sua vez, sentem que muita atenção foi dada aos aspectos negativos e coercitivos das práticas sexuais em detrimento do prazer que elas proporcionam. Feministas com uma visão libertária da sexualidade têm insistido que a discussão sobre os perigos da sexualidade não são mais discussões acerca da opressão de gênero e sim discussões por repressão sexual. Passemos agora à uma breve análise sobre os dois lados do debate e seus pontos mais significativos. A heterossexualidade compulsória se configurou como um aspecto fundamental da dominação masculina. Questões como gravidez indesejada, transmissão de doenças, violência e coerção fazem parte do leque das relações heterossexuais. Historicamente, esforços enormes, desde cintos de castidade a leis de propriedade, foram feitos para controlar a sexualidade feminina e para atar as mulheres a homens individuais através de relações heterossexuais monógamas. O duplo critério de moralidade concedeu aos homens as liberdades sexuais negadas às mulheres. [...] A sexualidade das mulheres tem sido policiada e regulada de uma forma que a masculina não tem sido: é a prostituta que é estigmatizada e punida, e não seus clientes homens. A atividade heterossexual tem sido sempre arriscada para as mulheres, associada que é com perda de “reputação”, com gravidez indesejada e com doenças que ameaçam a fertilidade. As mulheres também têm sido vulneráveis à violência e coerção sexual masculina, a despeito de serem tomadas como responsáveis tanto por seu próprio comportamento quanto pelo do agressor (JACKSON & SCOTT, 1996: 3). É tentador afirmar que ocorrências como o estupro, o abuso infantil ou o assédio sexual se resumem a violências e, por isso, não são o que chamaríamos exatamente de sexo, mas de crimes. No entanto, na medida em que essas situações são erotizadas cotidianamente (na pornografia, nas imagens midiáticas, etc.), elas se tornam parte integrante do que o sexo é e pode ser, formando assim representações sociais particularmente densas e recorrentes dentro do nosso vocabulário conceitual para entender e praticar o sexo, segundo análise de Catherine Mackinnon( 1991: 134-137). As mulheres, construídas socialmente dentro dessas referências, muitas vezes as ancoram e as assimilam: “Isto é o assujeitamento, a resposta individual à interpelação do social que cria as identidades e a identificação a um grupo, definindo sua inserção no espaço societal” (NAVARRO-SWAIN, 2000: 53-54). Dessa forma, as mulheres se assujeitam individualmente às representações sociais que informam que sexo forçado ou violento é prazeroso. E se a submissão feminina à violência é encarada como erótica, ela passa a ser considerada sexo, como nos aponta ainda MacKinnon “O papel sexual masculino, [...] se centra na intrusão agressiva naqueles com menos poder. Tais atos de dominação são experimentados como sexualmente excitantes, como sexo. Eles conseqüentemente o são” (MACKINNON, 1991: 127). Igualar sexualidade apenas com prazer, para as mulheres, é muito arriscado - estaríamos apagando todo um aparelho de dominação em nome do desejo sexual, que a priori não questionamos. O dispositivo da sexualidade[2] é um aparelho. E, mais ainda para as mulheres, um aparelho de dominação: Tomados juntos e tomados seriamente, questionamentos feministas sobre as realidades do estupro, espancamento, assédio sexual, incesto, abuso infantil, prostituição e pornografia [...] sugerem uma teoria do mecanismo sexual. Seu roteiro, [...], é a força, expressão de poder. Força é sexo, não apenas sexualizada; força é a dinâmica do desejo, não apenas uma resposta para o objeto desejado quando a expressão do desejo é frustrada. Pressão, socialização de gênero, restrição de benefícios, extensão de indulgências, os livros de como fazer, a terapia sexual são o ponto suave do espectro; a foda, o punho, a rua, as correntes, a pobreza são o ponto áspero. Hostilidade e contentamento, ou excitação do senhor pelo escravo, junto com surpresa e vulnerabilidade, ou excitação do escravo para com o senhor- essas são as emoções da excitação dessa sexualidade (MACKINNON, 1991: 136). É preciso levar em conta que a grande matriz da sexualidade como nós a conhecemos atualmente diz respeito à sexualidade androcêntrica de cunho heterossexual (NAVARRO-SWAIN, 2000: 83). “Para ser clara: o que é sexual é o que dá ao homem uma ereção” (MACKINNON, 1991: 137). Adrienne Rich, em 1980, questionava o pressuposto de que as mulheres são, majoritariamente, heterossexuais. Rich argumentava que a heterossexualidade é imposta às mulheres e reforçada através de uma série de discursos e práticas sociais: Quaisquer sejam as origens [da heterossexualidade compulsória], quando olhamos profunda e claramente a extensão e elaboração dos procedimentos designados para manter as mulheres dentro das vizinhanças da sexualidade masculina, se torna inescapável perguntar se a questão que as feministas deveriam endereçar não é simplesmente ‘desigualdade entre os gêneros’, nem a dominação da cultura pelos homens, nem meros ‘tabus contra a homossexualidade’, mas o reforço da heterossexualidade compulsória para as mulheres como um meio de certificar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional, como bem sublinha Riche: [...] A suposição de que ‘a maioria das mulheres são heterossexuais inatas’ permanece como um obstáculo teórico e político para o feminismo [...], parcialmente porque reconhecer que para as mulheres a heterossexualidade pode não ser, de forma alguma, uma ‘preferência’ mas algo que teve que ter sido imposto, administrado, organizado, propagado e mantido pela força é um passo imenso a se dar [...] (RICH, 1996: 135). É necessário salientar, também, que o pressuposto de que a sexualidade é construída implica uma pedagogia dos sentidos em que aprendemos a nos excitar com certas imagens, e passamos a entendê-las como a definição de sexo. Essa construção social da sexualidade está apoiada, dentro das teorizações feministas, sobre três aspectos. O primeiro deles analisa a dominação masculina, relacionando a sexualidade com as estruturas patriarcais. O segundo se concentra na construção de nossos desejos sexuais no nível da subjetividade individual, e o terceiro procura demonstrar a variabilidade e maleabilidade dos desejos sexuais humanos (JACKSON & SCOTT, 1996: 7). Nesse trabalho identifico-me com a linha dita radical de pensamento feminista acerca da sexualidade, distanciando-me dos questionamentos feministas de cunho psicanalítico sobre o assunto. Embora a psicanálise tenha sido e ainda seja uma das principais perspectivas teóricas utilizadas pelas feministas na teorização da sexualidade, ainda tenho algumas objeções frente a ela. A visão universalista da subjetividade que a psicanálise oferece confronta meu posicionamento de historiadora feminista, que compreende a sexualidade em constante mudança ao longo do tempo. Como apontaram Jackson e Scott, Mesmo a versão lacaniana, que sugere que os sujeitos sexuados e desejosos são constituídos através de sua entrada na linguagem e na cultura, se refere não a uma linguagem e uma cultura de forma específica, mas a um processo de se tornar um ‘sujeito falante’. É difícil desafiar a qualidade falocêntrica dessa versão sem assumir algo de uma sexualidade feminina essencial e pré-cultural (JACKSON & SCOTT, 1996: 10). Tendo em mente a sexualidade enquanto construto social, volto-me para as questões que interessam à agenda feminista e aos discursos produzidos pelos diferentes movimentos de mulheres. Muitas feministas têm construído análises sobre a violência sexual que revelam,, sublinham e problematizam as maneiras como essa violência tem sido utilizada como uma forma de controle social e de manutenção da disparidade de poder entre os gêneros. Kate Millett, por exemplo, aponta que a opressão feminina começa no quarto e a partir daí se espalha para todos os aspectos da vida social (MILLET, 2000: 157-234). Catharine A. MacKinnon desenvolveu uma brilhante argumentação teórica que mostra que a sexualidade é central para a manutenção da opressão feminina (MACKINNON, 1991). Liz Kelly, concluindo que a violência sexual é endêmica em nossa sociedade, chega a desenvolver uma teoria que se baseia num continuum de violência. A idéia de continuum aqui não pretende implicar que algumas formas de violência são mais extremas que as outras, mas é utilizada para enfatizar as regularidades que são as bases de vários tipos de abusos e as conexões entre eles. O continuum iria, portanto, das diversas formas de assalto e sexismo enfrentadas pelas mulheres no dia-a-dia até as formas mais violentas de assassinato de mulheres por homens. (KELLY, 1996: 191-206). Andrea Dworkin escreveu sobre a pornografia e como a mesma está atrelada à violência – especialmente, à violência contra as mulheres (DWORKIN, 1981). Como podemos ver, essa linha teórica assinalou o vínculo entre o padrão normativo dos encontros heterossexuais e o sexo violento e coercitivo. Sendo assim, consideram o campo da sexualidade como um local privilegiado para a expressão do poder masculino. As discussões acerca das relações de poder entre os gêneros são o ponto principal da discussão, mais do que as relações sexuais propriamente ditas. No entanto, A regularidade com que a sexualidade masculina se expressa de forma violenta tem, no entanto, levado muitas feministas a considerar as maneiras em que o poder é ele mesmo eroticizado na cultura contemporânea. (...) Suas análises são particularmente interessantes no que elas argumentam que tais atos não são o resultado de uma misoginia generalizada, mas são perpretados como um resultado das maneiras específicas erm que a subjetividade masculina é construída nas sociedades modernas (JACKSON & Scott, 1996: 18). Aqui as teorizações de Foucault têm muito a somar aos debates feministas. Se seguirmos a linha teórica de Foucault e reconhecermos que a sexualidade é um dos campos primordiais onde as relações de poder atuam, verificaremos a disparidade de poder entre os gêneros, como as feministas fazem questão de lembrar. Mas para Foucault o poder não é institucional nem repressivo, mas sim uma rede que permeia as relações sociais e está em constante rearranjo devido às mudanças na sociedade e às resistências. Ou seja, as transformações das práticas e hierarquizações sexuais são possíveis em diversas instâncias: Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa (FOUCAULT, 2004: 241). Muitas feministas consideraram as teorizações de Foucault úteis, especialmente no que toca à sexualidade feminina como um construto social. Dessa forma, os questionamentos e teorizações feministas acerca da sexualidade muitas vezes caminham lado a lado com a perspectiva foucaultiana, como bem aponta Navarro-Swain: !Os feminismos e Foucault, em suas imbricações e eventuais desencontros foram marcos para a mudança nas perspectivas de se pensar e de se fazer história e ciência, apontando para suas condições de produção, compostas de todo um aparato simbólico / político, discursivo e não discursivo (NAVARRO-SWAIN, 2004: web). Embora tenhamos a possibilidade de mudança, é importante salientar que o uso atual do poder no que concerne as práticas sexuais, como as feministas radicais apontam, está intimamente ligado à violência. A trivialidade do estupro, do abuso sexual e do incesto em nossa sociedade evidenciam a relativa permissividade com que os avanços masculinos indesejados são encarados: “Sempre no pano de fundo, muitas vezes não muito longe, está a sanção da intimidação física, não porque os homens são mais fortes, mas porque eles estão dispostos e capazes de utilizar sua força com relativa impunidade social” (MACKINNON, 1991: 93). Confrontada com a discordância de uma outra ala de teóricas feministas, MacKinnon evita categorizar os discursos dissonantes como mal-direcionados, preferindo concentrar suas críticas à aparente falta de relevância dada à desigualdade entre os gêneros nas questões relativas à erotização e ao prazer : !Obter prazer não é minha agenda particular; obter igualdade é. Se o prazer sexual está no caminho, nós temos que pensar sobre isso. Um número pequeno de mulheres com altas vozes, amplificadas através de todo tipo de publicação, têm argumentado que elas adoram a sexualidade do jeito que ela é. [...] Me parece que esse fato documenta a maneira pela qual a supremacia masculina funciona: ela cria seu grupo subordinado que erotiza a própria subordinação, a aproveita, se sente preenchida por ela, acredita que isso é o que uma mulher realmente é. O imperativo é fazer com que a cópula perfeita esteja disponível para nós no limite de nossa jornada. Algumas mulheres dizem que é isso que elas querem. [...] Algumas de nós aparentemente têm aquilo que querem, ao menos é o que elas dizem, então eu acho que os problemas delas estão resolvidos. [...] Seria de grande ajuda se aquelas que advogam seu ponto o fizessem da maneira que você o fez: igualdade é importante, mas prazer também é. Eu não ouvi a turma do Powers of Desire[3] dizer que igualdade significativa fosse importante nessa área. Isso é porque é essencial para a posição delas que a desigualdade não seja um problema para o sexo desde que ela produza prazer, que a desigualdade na busca pelo orgasmo é felicidade. A pergunta principal delas não é e a nossa igualdade? mas sim e nossos orgasmos? (MACKINNON, 1996: 134). Que as mulheres achem excitante a dominação, a subjugação e/ou a violência é problemático, e concordo com MacKinnon que devemos questionar estruturalmente tal fenômeno, no âmbito , por exemplo, das representações sociais e das práticas pedagógicas en torno da sexualidade compulsória.. Por outro lado, feministas "libertárias" como Amber Hollibaugh, Pat Califia e Gayle Rubin advogam que as questões levantadas acerca do entrelaçamento de poder e sexualidade ultrapassaram o campo do gênero para instaurar-se no campo da liberdade sexual, estabelecendo- se como um discurso opressor. Essas feministas querem celebrar sua sexualidade sem o olhar de reprovação das outras, e o fazem em diferentes contextos. Hollibaugh advofa um reconhecimento do prazer sexual, e sugere que o poder pode ser uma forma de eroticismo e que não deveríamos negar esse potencial (HOLLIBAUGH, 1996: 224-229). Gayle Rubin defendeu outras supostas minorias sexuais, tanto na forma do sadomasoquismo quanto do “sexo inter-generacional” (o termo de Rubin para sexo entre adultos e menores). (RUBIN, 1984). Pat Califia milita publicamente pelas práticas sadomasoquistas, embora apenas no contexto lesbiano e homossexual, preferindo não advogá-lo dentro de relações heterossexuais. Ela sustenta que as práticas sadomasoquistas não tem o mesmo significado quando fora da hierarquia institucionalizada da heterossexualidade (CALIFIA, 1996: 230-237). Califia defende ainda que todas as relações sexuais devem ser seguras, sãs e consensuais[4]. Um dos principais pontos defendidos por Califia é que há uma constante troca de papéis entre @s participantes, e que a dinâmica entre @s tops (sádic@s) e bottoms (masoquistas) se restringe ao contexto da relação sexual. Se é verdade que o nosso treinamento na sexualidade convencional começa no minuto em que nascemos (CALIFIA, 1996: 231), é interessante pensarmos na probabilidade de que a excitação derivada de uma situação sexual onde se cria um cenário binário de divisão de poder seja uma conseqüência a longo prazo de sermos constituíd@s dentro de uma cultura patriarcal que estabelece as práticas sexuais dentro de um sistema de hierarquias. Como levantaram Jackson e Scott, o argumento de Califia falha em se perguntar de onde vieram esses desejos (JACKSON & SCOTT, 1996: 19), apontando para a armadilha de colocarmos o sexo e a sexualidade como campos fora da história. A matriz patriarcal que nos informa que sexo é polarização de poderes está incrustada em nosso sistema de pensamentos, nos processos de construção de gênero e da sexualidade, nas redes de representações sociais, que velma seus mecanismos de poder. O importante, assim, é repensar a forma em que somos construíd@s enquanto sujeitos na crítica a uma sexualidade hierarquizada e assimétrica, fruto de relações átriarcais. O que fica claro, nesta ótica, é que esta noção de prazer S/M reitera o dispositivo da sexualidade e suas estruturas de aprisionamento ao sexo como significação e verdade última do ser. Mais ainda:, é necessário levar em conta que nem tod@s @s interessad@s em práticas sadomasoquistas são integrantes do movimento S/M, e sim pessoas fora dos movimentos de mulheres e também heterossexuais, o que abre possibilidades grandes para abusos (já que o eixo das relações é assumidamente a hierarquia entre indivíduos). Creio que é possível afirmar que o número de pessoas que se pautam pelos preceitos que são o norte da cultura S/M de filiação feminista é, no mínimo, infinitesimal perante o universo daquelas que se guiam pelas representações sociais oferecidas pelo discurso da pornografia, cujo fundamento, lembremos mais uma vez, é violência simbólica– especialmente na violência de gênero. Embora tenha criticado algumas perspectivas libertárias, considero que a procura do prazer seja um objetivo positivo para as feministas, sem entretanto colocar a sexualidade no centro de nossas vidas, cerne de identidade, de busca, de motivação. A polarização é , neste caso, é incociliável. Os debates entre os discursos libertários e os não-libertáriosas foram muitas vezes inflamados, especialmente porque alinhamentos políticos opostos foram tomados dentro, por exemplo, do contexto norte-americano: algumas feministas do movimento antipornografia se alinharam com a ala da Nova Direita estadunidense (direitista, republicana e conservadora), enquanto outras preferiram se denominar de esquerda – liberais, democráticas e libertárias, extrapolando assim as análises de violência de gênero e de relações patriarcais[5]. Se a sexualidade é mantida como eixo dos seres e seus relacionamentos, a questão da desigualdade e sobretudo da diferença essencializada dos sexos permance em estruturas montadas pelo patriarcado. O discurso sobre o prazer, de fato, vela mais uma vez a apropriação dos corpos das mulheres, que continuam a definí-las e organizar suas vidas em torno do casamento, da maternidade, da heterossexualidade como meio de incorporar a imagem da "verdadeira mulher" No âmbito da cultura, das representações sociais, que fundam valores e posições de autoridade e poder o pessoal é , mais do nunca, políticdo.
referencias bibliográficas CALIFIA, Pat. (1996). “Feminism and Sadomasochism” in: JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and Sexuality: a Reader. Columbia University Press, New York, pp. 230-237. DWORKIN, Andrea. (1981). Pornography: men possessing women. The Women’s Press Ltd, London. ENGELS, Magali. (1997). “História e sexualidade” in: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (eds.). Domínios da história: ensaios sobre teorias e metodologias. Editora Campus, Rio de Janeiro, pp. 297-312. FOUCAULT, Michel. (2001). História da sexualidade 1: A vontade de saber. 14ª ed. Rio de Janeiro, Editora Graal. _________________. (2004). Microfísica do poder. 19ª ed. Rio de Janeiro, Editora Graal. HOLLIBAUGH, Amber. (1996). “Desire for the Future: Radical Hope in Passion and Pleasure” in: JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and Sexuality: A Reader. New York, Columbia University Press, pp.224-229. JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue. (1996). “Sexual Skirmishes and Feminist Factions: Twenty-Five Years of Debate on Women and Sexuality” in: JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and Sexuality: A Reader. New York, Columbia University Press, pp. 1- 31. KELLY, Liz. (1996). “It’s everywhere: sexual Violence as a Continuum” in JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and Sexuality: A Reader. New York, Columbia University Press, pp. 191-206. MACKINNON, Catharine A. (1991). Toward a Feminist Theory of State. Harvard University Press. __________________. (1996). “Does Sexuality Have a History?” in: STANTON, Domna C. (ed.). Discourses of Sexuality: From Aristotle to AIDS. The University of Michigan Press, pp. 117-136. MILLET, Kate. (2000). Sexual Politics. University of Illinois Press, pp. 157-234. NAVARRO-SWAIN, Tânia. (2000). O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense. NAVARRO-SWAIN, Tânia. (2000). “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitário” in NAVARRO-SWAIN, Tânia (org.). Feminismos: Teorias e perspectivas. Revista da pós-Graduação em História da UnB, Brasília: UnB, vol. 8, n 1 / 2, pp. 47-84. RICH, Adrienne. (1996). “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence” in JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and Sexuality: a Reader. Columbia University Press, New York, pp.130-143. RUBIN, Gayle. (1975). “The Traffic in Women” in: REITER, Roy. Towards an Anthropology of Women. New York, Review Press, pp. 1-33. WRIGHT, Susan. In: NOW S/M Policy Reform Project, in: http://members.aol.com/NOWSM/Presentation.html , janeiro de 2006. Nota biográfica Amanda Presotti Corrêa tem 27 anos e é feminista radical. É historiadora, com mestrado na área de Estudos feministas e de Gênero. Interessa-se, sobretudo pelos estudos feministas e suas imbricações com os estudos da sexualidade, tanto que desenvolveu sua tese ao redor do tema – esta se intitula “Pedagogias do desejo: erotismo, violência e construção da sexualidade feminina” e foi orientada pela Profa. Dra. Tânia Navarro-Swain. [1]O termo “segunda onda” dos feminismos se refere ao movimento de liberação das mulheres que emergiu em muitos países ocidentais no final da década de 1960 e começo da década de 1970. Mais sobre o assunto em DESCARRIES, Francine. “Teorias feministas: liberação e solidariedade no plural” in: NAVARRO-SWAIN, Tânia (org.). Feminismos: teorias e perspectivas. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, Brasília: UnB, 2000, vol.8, n 1 / 2, pp. 9-45. [2]Nossa sociedade funciona sob a égide do dispositivo da sexualidade, que na concepção de Foucault compreenderia os conjuntos de práticas, discursos de todos os tipos, instituições, leis, medidas administrativas, poderes e resistências que produzem, administram e normatizam a sexualidade em nossa sociedade. Mais sobre o assunto em FOUCAULT, Michel. (2001). História da sexualidade 1: A vontade de saber. [3] SNITOW, Anne (ed.). Powers of Desire. Monthly Review Press, 1983. [4] http://members.aol.com/NOWSM/Presentation.html , janeiro de 2006. [5] Para mais no assunto, consultar JACKSON, Stevi & SCOTT, Sue (eds.). Feminism and sexuality – a reader. Columbia University Press, New York, 1996, pp. 1-26. [6] A NOW, ou National Organization for Women (Organização Nacional para as Mulheres), é a maior organização de feministas ativistas norte-americanas, fundada em 1966 e contando com meio milhão de contribuintes. Para maiores informações sobre a NOW, consultar http://www.now.org/ , junho de 2008. [7] Para acessar o projeto de reforma política apresentado por Susan Wright na íntegra, ver: http://members.aol.com/NOWSM/Presentation.html , janeiro de 2006. labrys, études
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