labrys,
études féministes/ estudos feministas
A literatura subversiva de Ercilia Nogueira Cobra Cláudia J. Maia Resumo Ercilia Nogueira Cobra foi uma escritora feminista dos anos de 1920. Escreveu dois livros em que trata de temas pioneiros no feminismo brasileiro. Neste artigo, proponho refletir a produção de imagens e sentidos de mulheres em sua obra Virgindade Inútil, sublinhando seu caráter de autobiografia ficcional, de uma “escrita de si”, e procuro destacar o caráter subversivo da sua literatura. Palavras Chave: Literatura; mulheres; representações, escrita de si. “(...) seu trabalho se caracteriza por muita personalidade: pensa por si e diz o que pensa em linguagem crua com uma coragem, que se náo encontra nos arraiais do outro sexo”. [1] Em 1986 Maria Lúcia Mott publicou uma biografia da “revoltada” Ercilia Nogueira Cobra, ressaltando de início a dificuldade em recuperar o passado da escritora devido à completa ausência de referências sobre sua obra e de pistas e fontes que possibilitassem rastrear a vida e, sobretudo, a morte da escritora. Pairava sobre Ercilia um silenciamento, tanto por parte dos meios literários, por julgar sua obra de menor importância, quanto por parte de sua própria família, pois, era vista por alguns membros como uma espécie de “vergonha” moral. Este silêncio também pode ser percebido nas histórias dos feminismos no Brasil em que raramente o nome da feminista aparecia[2]. Ao justificar a importância do seu tema naquela ocasião, Maria Lúcia Mott argumentava que: (...) ao tentar tirar a escritora do esquecimento talvez as crianças do ano 2000 tenham uma praça (...) chamada Ercilia Nogueira Cobra e as mães e os pais e elas mesmas vivam numa sociedade onde a palavra feminista não só tenha perdido sua conotação pejorativa como, apenas, qualifique a luta empreendida pelas mulheres, no passado ... (Mott, 1986:90) Passados vinte e três anos, uma rápida pesquisa no Google fornece em apenas 0,15 segundos, 994 referências sobre a escritora, e embora a palavra “feminista” ainda esteja carregada de preconceitos, já existe escola com o nome de Ercilia; dissertações de mestrado sobre sua obra; um dos seus livros está disponível para download, assim como a planta do sobrado que mandou fazer na rua Dr. Gabriel dos Santos, em Santa Cecília, no ano de 1921 e a cópia do requerimento que encaminhou a prefeitura. No momento, uma reconhecida editora está em face organização de um livro com sua vida e obra[3]. O silenciamento por longo tempo em torno de Ercilia pode ser explicado pelo fato de ter sido, em sua época, subversiva da família e da moralidade sustentada pela sociedade brasileira; do modelo esperado e desejado de mulher e de feminilidade; das regras e convenções da literatura e escrita literária; e do feminismo “bem-comportado” – a expressão é de Celi Pinto – que embora falasse em opressão feminina, se limitava à reivindicação de direitos à cidadania para as mulheres sem procurar destruir a ordem e as relações de poder estabelecidas. Não obstante, sua emergência discursiva – ou seja, a saída dos bastidores para o centro do teatro discursivo (Foucault, 1984) – se deve, sem dúvida, às reviravoltas provocadas pelos feminismos e a incessante tarefa de uma História das Mulheres e da Literatura feminista comprometidas em dar a voz aquelas que foram esquecidas (Perrot, 1998), a recuperar histórias de vida das mulheres que sempre estiveram presentes nos espaços públicos e do saber, mas que foram, por longo tempo, negligenciadas, esquecidas por uma história androcêntrica. Recuperar estas vozes femininas no passado, tão escondidas, difíceis de serem escutadas pelo silêncio das fontes, pela obscuridade da escrita – suas obras e idéias – significa fazer uma história do possível. Da minha parte, a obra de Ercilia chamou a atenção pelo seu pioneirismo em tratar de certos temas relativos à opressão feminina, pelo radicalismo da sua escrita e dos seus posicionamentos, pela sua capacidade de sair fora de redes de significações que constitui o feminino para criticá-las (Lauretis, 1994), mas também por ficar presa à determinadas matrizes de discursivas da sua época, não conseguindo escapar de representações hegemônicas como as práticas sexuais enquanto instinto e imperativo da natureza. Nesse sentido, este artigo pretende ser mais uma contribuição ao desvelamento das idéias desta escritora feminista, destacando o caráter subversivo da sua literatura, bem como as contribuições da sua escrita na produção de sentidos sobre as mulheres e seus corpos. Proponho ainda pensar o seu texto como um tipo de “escrita de si”. Ao me debruçar sobre seus escritos e refletir sobre eles, entretanto, estou também criando, conforme sublinha tania navarro swain,“um novo texto cuja interpretação é atravessada pelas minhas próprias condições de produção, de meu tempo e meu lugar de fala”. (navarro--swain, 2008:207) A autora e suas condições de produção Segunda sua biógrafa Maria Lúcia Mott, Ercilia nasceu em Mococa, interior de São Paulo, no primeiro dia de outubro de 1891, filha do advogado Amador Brandão Nogueira Cobra e de Jesuína Ribeiro, rica filha de fazendeiro do café. Ercilia recebeu uma educação “para o lar”, como as moças de sua geração; aos 17 anos fugiu de casa – possivelmente com a conivência e patrocínio da mãe – quando o pai morreu deixando a família empobrecida. Por causa disso, foi internada no Asilo Bom Pastor de São Paulo, destinado à recuperação de “moças perdidas”, por ordem de Washington Luiz, então Secretário de Segurança. Mais tarde, em 1914, formou-se professora na cidade de Pirassununga, e após ser aprovada em primeiro lugar em concurso público, foi nomeada para uma escola em Mogi-Guaçu. Em 1929, aos 38 anos, solteira e sem filhos, nomeou como herdeira sua irmã mais velha Estella, também solteira. Na década de 1930, tornou-se dona de uma casa de mulheres em Caxias do Sul, sendo conhecida como Suzy do Royal. Nessa cidade é lembrada como “uma mulher fina, que se vestia com elegância sem espalhafato”, introspectiva, temperamental, reservada, de uma ironia fina, comportamento assustador e “socialista” avançada (Mott, 1986, p. 980-99). Conforme pôde apurar Mott, Ercilia era culta, leitora de poesias e jornais; de autores como Anatole France, Nietzsche, Flaubert, Zola, Victor Marguerite, Monteiro Lobato e Fernando de Azevedo. Tocava piano, falava fluentemente francês;“freqüentava o teatro no Rio de Janeiro, esteve na França (1920) e em Buenos Aires. Conheceu prostitutas, ouviu-lhes as queixas e confidências, bases para os seus livros” (Id. Ibid., p.98). Estas, ao lado de outras imagens femininas, como as esposas e solteironas, foram personagens centrais dos seus livros. Ercilia escreveu dois livros: o ensaio Virgindade Anti-hygienica: preconceitos e convenções hypócritas, publicado em 1924, e o romance Virgindade Inútil, novella de uma revoltada, de 1927. A primeira edição de Virgindade Anti-higiênica foi apreendida pela polícia por ser considerada literatura pornográfica, conforme explica a autora em nota aos leitores na segunda edição publicada por ela própria. Para Rubem Queiroz Cobra, Virgindade Inútil teria sido publicada pela primeira vez em 1922 e lançada na Semana da Arte Moderna – Ercilia era prima de Oswald de Andrade e foi um dos membros menos famosos do Movimento Modernista – uma vez que na obra de 1924 consta uma propaganda do romance (Cobra, 2007). Em 1927 as duas obras foram reunidas e publicadas pela Societé d’Editions Oeuvres des Maîtres Celèbres de Paris sob o título Virgindade Inútil e Anti-higiência: novela liberística contra a sensualidade egoísta dos homens. Minha cópia dessa obra reunida é datada de 1932 e não consta notas tipográficas. Essa ausência de dados tipográficos, conforme sublinha Mott, contribuiu para que suas obras fossem classificadas como literatura pornográfica, pois essa era uma prática comum entre as editoras deste tipo de publicação para evitar represálias ou má fama. Além disso, ao tratar abertamente de temas como amor livre, prostituição, prazer sexual feminino e denunciar a moral sexual sem moderação ou “papas na língua”, Ercília provocava e escandalizava uma sociedade que investia e trabalhava árdua e incessante, por meio de diversos dispositivos, para instituir uma moral sobre o comportamento sexual dos indivíduos, uma educação dos corpos e um tipo de sexualidade voltada exclusivamente para reprodução (Cf. Maia, 2008). Por esse motivo, seus escritos/idéias foram censurados, confiscados e proibidos. Classificá-los como pornográficos, impróprios para moças de família, obscenos e “obra do demônio”, sem dúvida foi uma estratégia de poder utilizada para desqualificá-los, controlar sua distribuição e circulação, conjurar seus perigos (Foucault, 1999), evitando os ecos de suas denúncias e, principalmente, que fossem lidos. Não obstante, eles circularam nos grandes centros urbanos, nas cidades do interior, há notícias de que também no exterior, e tiveram muitos leitores/as entre adolescentes, jovens universitários, homens e mulheres letrados e não letrados, e possivelmente também entre jovens casadoiras[4]. Assim, seus livros, como uma prática discursiva, produziram, reproduziram e circularam sentidos no passado e contribuíram para instituição do real. Conforme assinala tania navarro swain, a literatura, assim como a produção artística, não são uma mera reprodução do real, “elas se fundam em condições de produção e de imaginação e em seu discurso revelam os valores que as constituíram e que modelam a realidade em sua pesada materialidade”. Dessa forma, “o discurso literário partilha uma economia de produção de verdades e de circulação de imagens/representações”. (navarro-swain, 2008: 213-214) Os sentidos não são produzidos por uma atividade cognitiva intra-individual ou por uma simples reprodução de modelos, conforme sublinham M. J. Spink e B. Medrado, mas “é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso (...) e busca entender tanto as práticas discursivas que atravessam o cotidiano (...) como os repertórios utilizados nessas produções discursivas” (Spink; Medrado, 2000:41). Isto nos remete também ao interdiscurso, ou seja, aquilo que é produzido antes, em outro lugar, mas que está presente numa situação discursiva, pois “todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de estar em relação multiforme com outros discursos” (Charaudeau; Maingueneau, 2004:286). Assim, percebe-se que os discursos de Ercília, materializados em seus livros, estão inteiramente imbricados na vida concreta, sua e de pessoas à sua volta – especialmente as mulheres –, nas hierarquias de gênero, em acontecimentos cotidianos e mantêm relação com outros discursos, em especial os da emergente sexologia e da medicina social preocupadas com a eugenia e a higiene. O período que vai dos finais do século XIX até o final dos anos 1920 foi de crescente divulgação de um discurso sobre a sexualidade no Brasil, marcado pela agitação em torno daquilo que ficou conhecido como a “questão sexual”. Esse período testemunhou também a expansão da sexologia, que chamou para si os temas vinculados à sexualidade, à vida íntima, à educação e aos aconselhamentos sexuais. Esses temas ganharam terreno devido à importância e a preocupação com a descendência sadia, a procriação e, ao mesmo tempo, o controle da natalidade e o prazer sexual que passou a ser percebido como elemento fundamental para assegurar a felicidade no casamento. Os discursos sobre sexo, articulados à higiene e à eugenia, “emergiam de uma espécie de nebulosa, cujos vapores emanavam da agitação que a ‘questão sexual’ produzia em diferentes pontos do campo intelectual” (Russo; Carrara, 2002:274). Conforme Maria sublinhou Izilda Matos, o cientificismo do período “permitiu os médicos expandir o controle sobre a vida de homens e mulheres, normatizando os corpos e os procedimentos, disciplinando a sociedade, ordenando a sexualidade e os prazeres” (Matos, 2003:109). Assim, se por um lado Ercilia denunciava a moral sexual, sendo uma ferrenha crítica da concepção de virgindade feminina ligada à honra[5] – tema que articula a tessitura da sua narrativa e que dá título aos seus dois livros – como um dos fatores de opressão e escravidão feminina, Sim, senhores! Os homens, no afan de conseguirem um meio prático de dominar a mulher, collocam-lhe a honra entre as pernas, perto do anus, num logar que, quando bem lavado, não digo que não seja limpo e até delicioso para certos misteres, mas que nunca jamais poderá ser sede de uma consciência. (...) A mulher não pensa com a vagina nem com o útero. (...) sobre elles não pode pesar lei nenhuma alheia à lei da natureza (Cobra, 1932:172). Por outro lado, seu discurso estava ancorado na enunciação médico-científica que transformou o desejo sexual em instinto, em imperativo da natureza, por isso, para Ercília, era no mínimo perverso colocar a honra feminina no seu aparelho sexual, “órgão tão exigente como o estomago”(p. 104). A imposição da virgindade e a ausência de educação profissional constituíam, para Ercília, a principal causa da prostituição, da cafetinagem e do infanticídio, pois, seduzida e desonrada a moça seria atirada na rua pela família sem nenhum preparo para a vida, sendo seu destino único e implacável o cabaré. A prática sexual ou o uso dos prazeres aparece no discurso da autora como um dos elementos que determina o comportamento e a hierarquia entre as mulheres." (...) É desta necessidade de satisfação sexual em que vive a mulher constantemente é que nasce o seu nervosismo, histerismo, beatismo, visionismo”. (Id. Ibid.:121) Estas são algumas matrizes de sentido usadas na construção das imagens femininas no romance Virgindade Inútil, foco da minha reflexão. “Esposas humilhadas, solteironas martirizadas e meretrizes tripudiadas”: o triste destino das mulheres No romance Virgindade Inútil, Ercilia narra a história de Cláudia, neta pelo lado materno de um rico fazendeiro, filha de advogado que casou-se por interesse no dote da mãe[6]. Vivia numa cidade do interior da fictícia República de Bocolândia – clara paródia ao Brasil. Cláudia era bela, morena de olhos verdes, culta, inteligente, lia romances, onde as heroínas viviam belas histórias de amor, e fora educada em colégio de freiras para casar-se com um homem de sua posição social ou um profissional liberal, como um médico, seu possível pretendente. Todavia, viu uma por uma de suas amigas mais afortunadas se casarem, inclusive o seu pretendente quando ela ficou órfã e se espalhou a notícia da decadência financeira de sua família. Ao contrário das irmãs mais novas que já foram criadas na fase empobrecida da família, ela não queria fazer um casamento para baixo, pois “os pretendentes que agora se lhe cercavam eram ínfimos demais”. Também não sacrificaria sua vida casando-se com um velho. A compreensão e a revolta de Cláudia com a situação das mulheres iniciaram quando foi preterida ao casamento por uma moça afortunada e, ao tomar nota “do valor econômico das suas amigas que casavam”, constatou que “a alma do casamento era o dinheiro” (Ibid.p. 21). Ela não tinha um bom dote para “comprar marido”, por isso, o fantasma da solteirona lhe assombrava e já tinha “a certeza de que não se casaria e seria uma parasita da classe das Correias e outras celebres solteironas do logar, cuja função se reduzia a desbastar com os cotovellos o peitoral das janelas” (Ibid.p.22). Sua aflição aumentava ainda porque, como as moças de família da sua geração, não havia recebido uma educação que lhe assegurasse uma profissão para sua própria sobrevivência. Mas ela gostava da vida, amava o amor, adorava o flirt e contemplar seus tipos de homens favoritos nos filmes. Para escapar ao estereótipo da solteirona e viver a vida, Cláudia resolve “pisar todas as convenções” e ser livre. Com o consentimento da mãe, parte para a capital Flumen a fim de trabalhar. No trem, ela arquitetou um plano e entregou sua virgindade a um desconhecido, sem “perigo de apaixonamento”; “estava agora só e completamente livre” (Ibid.p.39). Em Flumen não conseguiu emprego já que não tinha uma educação profissional, perambulou pelas ruas em busca de trabalho como governanta ou doméstica até ser detida pela polícia a pedido da mãe, pois ela era menor e virgem. Para não voltar à casa da mãe e garantir sua liberdade, ela revelou não ser mais virgem e se submeteu ao exame de virgindade, pois, conforme lhe assegurou o médico "é esse o único meio da senhora ficar livre” (Ibid.p.48). Ao constar o desvirginamento, o delegado quis saber o nome do sedutor a fim de caracterizar o crime de sedução. Nesse episódio, Ercilia possivelmente faz uma sátira a este delito, caracterizado no código penal brasileiro como crime contra a honra e a família, e muito recorrente nas delegacias brasileiras até a década de 1970. Cláudia responde ao delegado: “Não poderei dizer o nome de um ente que não existe. Não fui seduzida. Sahi de casa por livre vontade”. (Ibid.p.47) Ao assumir seu papel de sujeito, de co-autora no evento, Cláudia descaracterizava o crime uma vez que para, as mulheres deveriam se comportar como inocentes vítimas, pessoas sem vontade, desejo, escolha e decisão sobre seu próprio corpo[7]. A idéia de liberdade associada à ausência da virgindade apareceu, portanto, em dois momentos da trajetória da protagonista: quando ela saiu de casa e quis ser livre para o amor e o trabalho; e quando ela escapou de voltar para a casa e para o controle da mãe. Assim, a virgindade e a castidade – invenção dos homens “para uso alheio” e para terem sempre “carne fresca”, conforme afirma a autora em vários trechos do romance – aprisiona as mulheres, enquanto o amor livre e a tomada de posse do próprio corpo as libertariam. Na concepção de Ercília, por um lado, a entrega voluntária e desapaixonada da virgindade seria uma forma de escapar à dominação masculina, à apropriação do corpo feminino pelos homens, e por outro, uma forma de viver e gozar a vida. Dessa forma, a solteirona aparece na condição de mulheres que “não vivem” já que não podiam desfrutar os prazeres sexuais, que se apresentaram no discurso como a única forma de “viver a vida” e não trair a natureza. A solteirona padece todos os martyrios, desde o ridículo duma falsa situação social, alvo permanente da chacota das outras mulheres que conseguiram dote para comprar marido, até os horríveis ataques de histerismo, lógicos num systema nervoso em pandarecos por força de recalque. Vive só, em abandono completo, sem um carinho na vida e cala-se. Vive morta, e antes de conhecer a solidão do tumulo, onde ao menos descansará, morre aos poucos em plena vida, sem nunca dar expansão ao mais forte dos seus instintos, o sexual. Torna-se ente completamente nullo que vive aguado (sic) a contemplar o goso (sic) dos outros. Tudo lhe é negado, e todos se riem da sua “virtude” (Ibid.p.70). (grifos meu). Para Ercília, o martírio da solteirona era a ausência ou a impossibilidade de uma prática sexual, motivo também da sua solidão, dos problemas derivados do sistema nervoso, e de se tornar motivo de chacota. Seu enunciado veicula e disponibiliza sentidos sobre a abstinência sexual feminina instituídos pelo discurso médico-científico do período. Apesar de suas críticas à dupla moral sexual, autora, em suas condições de produção, partilha da noção de destino biológico. Enquanto a solteirona é forçada a abster-se das práticas sexuais, a prostituta faz uso delas em excesso, para sua sobrevivência. Ambas, porém, vivem humilhações e martírios: a prostituta “tem um corpo que não é seu mas de quem o paga”, vive para satisfazer a volúpia alheia. “Sente a alma espezinhada morrer dia a dia até sumir-se de todo, deixando vazio um corpo de megera gasta, coberto de rugas e cicatrizes – hierogliphos que escondem a história dos mais horrendos martyrologios” (p.71) . A solteirona era prisioneira da sua castidade, enquanto a prostituta fazia da prática sexual meio de vida e exercício de liberdade, embora seu corpo – assim como o da mulher casada – já não lhe pertencesse mais. Todavia, entre uma e outra, justifica ser melhor o destino de prostituta, pois “(...) ser solteirona é ainda mil vezes mais triste do que ser prostituta! Mal por mal, o menor. Ao menos, como prostituta, vivia”, nesta condição “pelo menos seguia a lei da natureza”. (p.79) No discurso da autora, a diferença entre a solteirona e a prostituta foi construída a partir do uso do sexo e dos prazeres, a segunda em excesso, a primeira completamente ausente. Ambas, porém, aberrações, desvios da natureza que a velhice iguala, Na velhice a mão implacável do tempo confunde a virgindade inctacta da solteirona com a carne triturada da rameira. As rugas de ambas denunciam as duas pontas do mesmo crime social, da monstruosidade que crea taes victimas, e lá vão as duas para pasto dos vermes indifferentes (p.72). Ercilia descreve no romance, um quadro “pintado na solidão” pela personagem Cláudia que o nomeou de “As martyres sociais”. Tratava-se de um retrato de duas mulheres na velhice, uma meretriz e a outra uma solteirona. Elas tinham a mesma fisionomia “olhos cansados e sem cor, bocca de cantos descahidos e tão triste que pareciam soluçar”... Apenas os trapos indicavam que o calvário de ambas fora diferente” (p.108). Explicava ter pintado o que viu, uma realidade sinistra, obra da moral criada e imposta pelos homens, pois “foram elles que crearam a idéia de obrigar a mulher a conservar-se virgem após a puberdade. Foram elles que lançaram o anathema sobre as que fugiam de submetter-se à innominavel exigência, quando por serem pobres não podiam adquirir marido”. Por isso, “os homens podiam gabar-se das suas creações! Estes dois entes, fora das leis da natureza, eram puras invenções suas” (p.72). Para instituir uma moral sexual e assegurar donzelas ricas para casarem-se, os homens criaram assim duas categorias de mártires sociais: as solteironas e as prostitutas (p.67). O prazer sexual e o modelo hegemônico de sexualidade masculina também são matrizes discursivas usadas pela autora em sua narrativa, na construção das imagens das mulheres casadas. Embora pudessem “saciar seu appetite”, muitas esposas sofriam com desconfortos nas relações sexuais, como a desproporcionalidade dos parceiros, e com a solidão dos lares à noite, enquanto os maridos trilham o caminho do bordel em busca de prostitutas para satisfação de seus desejos sexuais. A prática sexual com a esposa era meramente reprodutiva. As mulheres que tinham dote e conseguiam casar-se, orgulhavam da sua condição superior em relação às outras, entretanto, a desilusão e o “sinal indellevel do desgosto estampava-lhes no rosto entristecido”, devido à “salafratice do marido egoísta que nellas procurava apenas um meio de subir depressa...” (p.81). Foi assim com as amigas de Cláudia, Carlinha que se divorciou e o marido lhe tomou na justiça os filhos e o dinheiro; e Martha que no dia seguinte ao casamento, o pai revelou a falência e o noivo, “fulo de raiva”, pediu a anulação do casamento sob a alegação de que a "mulher não estava a seu gosto” (p.60-62). As esposas viviam na ignorância, eram escravas que educavam outras escravas, constituíam uma categoria de serva dos homens “para lhes trazer o dote e lhe servir de dona de casa e enfermeira”. (p.80) Dentre as categorias de mulheres – esposas humilhadas, solteironas martirizadas e meretrizes tripudiadas – a cortesã aparece no discurso da autora como a única capaz de salvar-se a um triste destino de opressão masculina, “porque sabe prender o focinho do macho a argola da volúpia por onde o conduz, como um cão, a todas as concessões” (p.43). Assim, após passar por uma escalada de infortúnios, característica das heroínas nos romances, este será o destino, ou “final feliz”, da protagonista Cláudia. Ao ser comprovado seu desvirginamento, foi internada no “Asylo do Bom Senhor” para regenerar-se; ao sair passou fome e para sobreviver, tornou-se prostituta. Viajou por toda Bocolândia onde conheceu a miséria da prostituição: drogas, violência, assassinatos de amigas, humilhação, desamores, doenças, ambientes infectos, poluídos, de odores fétidos, pobreza e analfabetismo; presenciou de perto o suicídio de muitas jovens cansadas de sofrer, e de outras mais velhas, solitárias e de corpos gastos. Ela própria cogitou esta solução para fugir ao horror daquela vida. Conforme sublinha Tânia Navarro Swain, Na mesquinhez do bordel, onde não se encontra afeto – apenas entre as próprias mulheres – perdura-se o retrato da miséria de um feminino entre a submissão a um destino de violência e enfado e o medo da velhice, dos corpos gastos, dos sonhos perdidos em gosto de suor gestos de desamor. (Swain, 2008: 205) Cláudia decide emigrar para Buenos Aires, onde por ser bonita e inteligente finalmente ascendeu à categoria de cortesã, ganhando muito dinheiro. Em Buenos Aires viu a beleza física nos homens e experimentou o amor pela primeira vez. Interrompeu a vida de cortesã – de muitos homens – e viveu ardentemente para seu amante, experimentando sensações jamais sentidas: os beijos de amor que apagam da mente “todas as tristezas que a brutalidade da vida nella gizou”, o arrepio do corpo, a ansiedade da espera, “achou-se transportada às regiões de ouro das lendas” (p.90). O romance, porém, durou apenas um mês, tempo gasto pelo amante para lhe roubar. Na relação somente seu amor e sua entrega eram verdadeiros, todo o resto eram farsas e mentiras, até mesmo o nome do sujeito amado, que meticulosamente a conquistou para roubar-lhe. O sentido que emerge desta cena é que mesmo a cortesã, descrita pela autora como a mais esperta das mulheres, quando se deixa apaixonar por um homem é enganada e expropriada. A moça busca afogar suas mágoas e desilusões amorosas atirando-se em aventuras e no afeto de uma outra mulher, certa espanhola fogosa chamada Clariska Monteiro. Meses depois, descobre-se grávida e retira-se do ambiente do bordel para ter, sozinha, sua filha a quem chamou de “Liberdade”. De pai desconhecido – ou intencionalmente suprimido – dizia que Liberdade era uma “autêntica filha só mãe” e que se parecia com a espanhola com quem manteve relações eróticas. Nas páginas anteriores, a autora construiu uma noção de liberdade feminina, a partir da entrega voluntária e desapaixonada da virgindade, que significa o não apego e a não sujeição ao masculino, e uma forma de escapar definitivamente ao casamento – que escraviza as mulheres – uma vez que uma mulher desonrada está desqualificada ao matrimônio. Aqui, a noção de liberdade reaparece e mais uma vez é caracterizada pela ausência do masculino e de instituições patriarcais. Assim, Liberdade, materializada na filha da cortesã, existe fora do casamento, da família, da heterossexualidade obrigatória e do amor romântico. O romance encerra-se em Paris, onde a narradora, através da personagem Cecília, explica: “vou imitar nossos patriarcas, fazer amor na capital do mundo” (p.126)[8]. Em Paris, Cláudia encontra-se com o médico, seu ex-pretendente, a diverti-se nos teatros da cidade luz com o dinheiro do sogro, enquanto a esposa o aguarda solitária num frio quarto de hotel. Pensa finalmente consolada: “Do que escapara!” (p.131). Na contramão do romance Virgindade Inútil não é um romance convencional, com as características das narrativas e enredos do período em que foi escrito. A autora utiliza-se de uma linguagem agressiva, irônica, ácida, as vezes panfletária, em que a sátira dá o tom. O enredo do livro não se tece através de uma história de amor com seus encontros e desencontros, mas através da história de sobrevivência de uma mulher solteira, da aristocracia em decadência, independente e sem uma formação profissional. Através dessa história os temas secundários se articulam: a hipocrisia da sociedade patriarcal, a dupla moral sexual, a educação das mulheres, a prostituição, as formas de dominação masculina e de opressão feminina. A relação amorosa heterossexual, vivida pela protagonista Cláudia aparece também como um dos temas secundários da trama. No Brasil dos anos de 1920 já estava em expansão a idéia do casamento como princípio de uma escolha individual e tendo como objetivo, não mais o estabelecimento de alianças sócio-econômicas, mas a realização do amor romântico. O dote, já em desuso desde o final do século XIX, passa a ser condenado por intelectuais, literatos, médicos e juristas, que sustentavam a idéia de que a união matrimonial deveria brotar da atração física e mental dos indivíduos, objetivando a satisfação pessoal. As relações amorosas visam assim, se concretizar no âmbito da vida conjugal, “o amor tornava-se o fundamento do casamento, este tornava-se mérito sempre renovado do amor”. (Luhmann, 1991:187) A literatura constituía, neste contexto, uma importante prática discursiva na instituição do ideal burguês do casamento por amor, concretizado nas relações sexuais. Os romances em geral procuravam seguir o modelo básico inaugurado por Richardson em Pámela que concentravam “o interesse num namoro que conduzia ao casamento”; (Watt, 1996:131) e em Shakespeare em que a ideologia do amor romântico justificava a saída dos filhos do controle dos pais e a colocação dos interesses individuais acima dos interesses de família. Em Romeu e Julieta o casamento une os amantes “como indivíduos e não como personagens de um ritual inscrito numa ordem” (Lobato,1997:148).[9] Estes modelos, adaptados de diferentes maneiras, serviam de repertório para um tipo de literatura romântica, amplamente aceita e divulgada no Brasil, em que “o amor mantém um duplo papel de criar o alicerce ideológico para a dominação masculina”, pois tinha como fundamento a idealização moral feminina e a valorização do poder político-sexual masculino (Ibid. p. 164). Ercilia, através da personagem Cláudia, se posiciona de forma crítica à este tipo de literatura considerada por ela como fonte de ilusão e mentiras que mascarava a realidade para as mulheres. Ercilia escreveu no contexto do movimento modernista brasileiro que tinha como propósito retratar a cultura e a realidade sócio-histórica brasileira através de diversas expressões artísticas e literárias. Este parece ter sido um objetivo perseguido pela autora em seu romance. A realidade que procurou retratar, porém, foi da dominação e apropriação das mulheres através da persistência de valores inscritos na sociedade patriarcal, como o patrimônio familiar enquanto qualificador das mulheres no mercado matrimonial; do controle do corpo e da sexualidade feminina, por meio da virgindade, castidade, reprodução e prostituição; e da manutenção das mulheres na ignorância por meio de uma educação que não as preparava para o exercício de sua autonomia e independência. Assim, o amor romântico como atração irresistível, física e pessoal por um parceiro constitui uma das tramas do romance e um dos dramas vivenciados pela heroína. Cláudia ama pela primeira vez. Um amor que se manifesta com toda força e intensidade das grandes paixões: a glorificação, a erotismo, a sensação de desligar-se do mundo real e viver num mundo só dos amantes, onde não existem obrigações morais e sociais, ordenamentos, miséria e sofrimento, mas somente a beleza, o êxtase e a excitação dos corpos. (...) A vida sorria-lhe como a manhã de primavera sorri à rosa em botão. Momentos havia em que a sensação de bem estar lhe era tão intensa que seu corpo parecia planar. A realidade desapparecera... Bom momento para apparecer o amor!E o amor surgiu e envolveu-a no seu manto de phantasias e sonhos.Phantasias e sonhos do amor, que lindos são para quem ainda desconhece a miragem!Da primeira vez que amamos o indivíduo que nos impressiona parece um deus e todos os seus actos divinos. Tudo que lhe aze da boca é gracioso. A primeira resultante do amor é o fanatismo. Cláudia amava pela primeira vez. (...)A nudez dos corpos se confundia em doce amplexo, a cumprir um sagrado e terno rito.Um perfume de carne excitada pelo delírio sexual espalhava-se pelo ar de mistura às essências exóticas que embalsamavam o aposento. (Cobra, 1932: 87-91) (grifos meus) Nos braços do amado, Cláudia conheceu o céu. Mas, o amor – a fantasia, a miragem – durou pouco. Apenas um mês após seu início a realidade reaparecera[10]. O homem quem amara, envolveu-a somente para roubar-lhe o dinheiro e as jóias: (...) Enquanto com a mão esquerda a acariciava, com a direita, imitava-lhe a assignatura e lhe arrombava o cofre!... (...) Os seus abraços apaixonados, os seus beijos divinos, os seus delírios de paixão eram falsos como os cheques apresentados ao banco...Tudo mentira! (p.94) A traição de Emiliano/Ivan poderia ser de outro tipo, no entanto, está relacionada ao roubo. Este tipo de traição permite/conduz a uma associação direta entre a imagem do marido que casa-se para desfrutar e apropriar-se do dinheiro da noiva a fim de subir na vida, e a imagem do amante que rouba a cortesã rica. Com esta cena a autora iguala os homens em suas relações com as mulheres, sejam elas doces e protegidas donzelas casadoiras, ou experientes prostitutas. Uma relação de apropriação, tanto dos seus corpos e sexualidade – virgindade, reprodução, prostituição –, quanto da sua fortuna e patrimônio. A curta história de amor no romance funciona como uma espécie de alerta, de “conscientização” das mulheres – leitoras de romances que transfiguram a realidade – mas principalmente, no contexto da narrativa, como um desvio da heroína de seu caminho rumo à liberdade e a felicidade, desfecho final do livro. A Prostituição no discurso da autora se apresenta, nesse sentido, como um grande paradoxo. Ao mesmo tempo é representada como miséria do feminino – destino inexorável de mulheres seduzidas e abandonadas, única forma de escapar da fome, a exploração dos corpos para satisfação sexual masculina, etc. –, e como forma/estratégia de independência feminina, de exercício de poder pelas mulheres, em que aquela que sobressai, tem a possibilidade de assumir posição no outro pólo de poder (dominar os homens). É assim que, como uma prostituta de luxo, uma bem-sucedida cortesã, a heroína vai desfrutar a vida na cidade mais encantadora e aspirada do mundo, que é Paris, considerada berço da boemia e da efervescência cultural e intelectual naquele momento histórico. Desta forma, o “final feliz” do romance, não é um tradicional casamento, o reencontro dos amantes, as lembranças de uma doce e ardente relação amorosa, etc. mas, é justamente o contrário. Do alto da sua posição de cortesã, Cláudia contempla consolada do que escapara: as injunções do casamento monogâmico, heterossexual, burguês – lembrem-se do episódio do reencontro com o ex-noivo – e conclui: Sim, minhas senhoras! É para casar com typos daquelles que as mulheres guardam a castidade e conservam-se como botões fechados a vida inteira – quando possuem dote...Virgindade idiota! (p.131) Escapara a uma forma de dominação masculina para finalmente ser feliz e viver em (companhia) Liberdade. As experiências e dramas vivenciados por Cláudia, em especial o caráter paradoxal da prostituição como fator de exploração e independência feminina, remete à outra característica do romance: a autobiografia ficcional e a escrita de si. O romance como escrita de si A narrativa do romance não é feita pela própria protagonista, mas por uma narradora que se coloca fora da história, capaz de penetrar nos sentimentos mais íntimos da personagem. Os elementos usados na construção da heroína Cláudia, como sua ascendência e composição familiar, o cenário histórico-geográfico em que a trama se desenrola, os traços psicológicos e de personalidade – a indignação, a revolta e a não submissão – o não casamento, a inteligência, assim como os episódios da sua história, em muitos aspectos são iguais ou assemelham aos apurados e descritos por Maria Lúcia Mott na biografia da autora. Assim podemos, por exemplo, vislumbrar a revolta de Cláudia/Ercilia com o casamento “por interesse” levado a cabo por seu pai, pois, “era desses casamentos maldictos que nasciam seres como ella, Cláudia, filha da paixão de sua mãe e da ganância de seu pae” (p. 81); com a dilapidação do patrimônio e empobrecimento da família devido ao comportamento do pai que, quando morreu, deixou como herança às mulheres (a mãe, irmãs e ela própria) somente as dívidas e um destino pouco promissor; com a educação feminina do período, em especial a “educação freirática” recebida que não prepara as mulheres para sobreviverem de seu próprio trabalho; com o tratamento diferenciado entre ela e seus irmãos ou as dificuldades impostas pela sociedade à independência feminina. Deu uma vida à personagem Cláudia a partir de episódios da sua própria vida, como o internamento no asilo de moças para regenerar-se; o não casamento; a relação conflituosa com a família e o fato de ter que sobreviver da prostituição – os relatos não dão conta de afirmar que Ercilia fora prostituta, no entanto há indícios de que fora proprietária de uma casa de mulheres. Através da escrita e da personagem ficcional, passa a limpo/reelabora episódios da própria vida e expressa suas idéias, sonhos, frustrações e indignações. Philippe Lejeune ao falar da autobiografia ficcional utiliza-se de uma carta recebida em que o autor escreve: (...) Penso também que tal autobiografia, apresentada sob forma de “romance”, toca mais profundamente os leitores na medida em que é “essencial”, alheia às contingências anedóticas particulares da vida do autor. Esse aspecto “essencial” permite aos leitores pensarem, por sua vez, em sua própria história, não mais limitada a sua individualidade, a seu conteúdo, mas em sua “essencialidade”. (Lejeune, 2008:105) A escrita de Ercilia cria desta forma, a possibilidade para outras mulheres identificadas com as situações narradas e vivenciadas por Cláudia, como prostitutas, solteiras e também as casadas, a pensarem sua própria história, refletirem sobre sua posição nas relações de gênero. De outra parte, ao escrever sobre si, ela mostra-se ao outro e, ao mesmo tempo, constitui a sua própria identidade mediante “a recolocação das coisas ditas”(Foucault, 2000:143-144). Conforme sublinha Norma Telles, “ao escrever o escrevente cria a si mesmo ativamente. Trata-se de se constituir como sujeito da ação racional através da apropriação, unificação e subjetivação do fragmentário e da seleção do já dito e já selecionado. (Telles, 2009:p.8) A escrita de si é um veículo importante de subjetivação do discurso. Segundo Foucault, “(...) trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si”. (2000:137) Margareth Rago sublinha ainda que “a constituição da própria subjetividade na escrita” visa também muitas vezes, “manifestar um contra-poder às imagens que o poder nos impõe, aos estereótipos que ameaçam nos capturar, aos processos de identificação e de sujeição impostos do exterior” (Rago, 2009:1). Creio que, de certa maneira, Ercilia manifesta isso através da sua escrita, da sua literatura subversiva. Considerações finais Para, por hora encerrar, gostaria de destacar mais uma característica deste curto romance. Nele, Ercilia – assim como a feminista Maria Lacerda de Moura – foi antecipadora de importantes temas dos feminismos das gerações posteriores. Dentre eles, a idéia de apropriação das mulheres e de seus corpos, tão bem desenvolvida por Colette Guillaumin; ou ainda à crítica ao amor romântico como fonte de opressão das mulheres, inimigo primordial de sua emancipação levada a cabo por Bety Friedan, ambas na década de 1970. Virgindade Inútil é também de certa forma um prelúdio à defesa da liberdade sexual feminina nos anos de 1960. Para além dos sentidos que seus textos produziram e de revelar, a partir de um olhar/escrita feminino/feminista, os valores da sociedade de sua época, Ercilia e sua obra são indícios de que nem todas as mulheres, embora assujeitadas à um modelo de normativo de comportamento e de feminino idealizado, desejado e difundido, incorporaram passivamente tais modelos. Ela aponta para uma forma de vida que escapa a este ordenamento, a este processo de sujeição e identificação imposto, a esta rede de significações que constitui as mulheres e seus corpos. Sua literatura, ao contrário, subverte este ordenamento, este regime de verdade. Referências CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. COBRA, E. N. Virgindade Inútil e Anti-higiência. S./l., s./n. 1932(1922?/ 1924). COBRA, R. Q. Ercilia: culta e destemida modernista brasileira. Disponível em < http://www.cobra.pages.nom.br/ft-ercilia.html>. Acesso em 20/08/2007. FOUCAULT, M. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: ___. Microfísica do Poder. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.15-38 FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. FAUCAULT, M. A escrita de si. In:___. O que é um autor? 4 ed. s/l. Passagens, 2000, p. 127-160. FRIEDAN, B. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971. GUILLAUMIN, C. Sexe, race et pratique du pouvoir. L’idée de nature. Paris: Côte-femmes, 1992 (1978). LAURETIS, T. de. A Tecnologia do gênero. Tad. de Suzana Funck. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. 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Mulheres, 2008; e os artigos “Viver para si? O celibato feminino como ato político”. Labys, estudos feministas, 2007; “Michel Foucault e a crítica ao sujeito constituinte: diálogos com a teoria feminista”. Caminhos da História, 2008. [1] Verbete no Dicionário de Autores Paulistas de Luiz Correia de Melo (1954), apud. MOTT, M. L. Biografia de uma revoltada: Ercilia Nogueira Cobra. Cadernos de Pesquisa, n. 58, ago./1986, p. 90. < [2] Susan Besse foi uma das primeiras a dar destaque à Ercilia em sua tese de doutorado, posteriormente publicada em livro. Cf. BESSE, S. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 1914-1940. São Paulo: Edusp, 1999. [3] Trata-se da Escola EMEF Ercília Nogueira Cobra em São Vicente-SP. A planta e o requerimento estão disponíveis no endereço http://www.fotoplus.com/dph/info12/i-manu.htm. O ensaio “Virgindade anti-hygiência” está disponível para download no site www.cobra.page.nom.br; e a Editora Mulheres anunciou o lançamento do livro sobre a vida e a obra de Ercília. Dados consultados em 23/03/2009. [4] Maria Lúcia Mott assinala que possivelmente a grande circulação dos livros de Ercilia se deve à Monteiro Lobato responsável por uma de suas edições e o esquema que criou para distribuição de livros. Ressalta ainda que, conforme uma das suas informantes, o bispo de Ribeirão Preto proibiu a leitura dos seus livros. > [5] Sobre a concepção de virgindade e honra feminina para o período, consultar CAUFFIED, S. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação. Campinas: Unicamp, 2000; MAIA, C. Corpos que escapam: as celibatárias. In: SWAIN, T.; STEVENS, C. A Construção dos corpos. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2008. [6] Embora o subtítulo do livro utilize a palavra novela, abordarei Virgindade Inútil como um romance. Conforme o Dicionário de Termos Literários, o que distingue a novela do romance seria basicamente o número de páginas. A novela, ainda pouco definida, “situa-se a meio caminho entre o romance e o conto”. A comparação feita pelo dicionário entre novela e romance nos aponta para as características do livro aqui analisado: “(...) o romance apresenta menos células dramáticas que a novela: esta pode estender-se para além do derradeiro episódio, ao passo que o romance termina completamente na última cena. Na perspectiva da macroestrutura, a novela é aberta no epílogo, podendo ser continuada indefinidamente, enquanto o romance é ocluso. Por outro lado, a novela fecha-se a vida, como se a pusesse entre parênteses, ao passo que o romance estabelece com a realidade permanente intercâmbio. Daí a polivalência do romance e um dinamismo análogo à vida real, e a petrificação da novela” (Moisés, M. 2004: 400-401). > [7] Para uma discussão sobre os crimes de sedução Cf. CAULFIED, S. Em defesa da honra. Op. Cit.; MUNIZ, D. C.G. Proteção para quem? O código penal de 1940 e a produção da “virgindade moral”. Labrys, estudos femininas/ études féministes. Jan./jul. 2005. Disponível em www.unb.br/ih/his/gefem. [8] A personagem de Cecília entra em cena no final do romance, ela é uma cortesã rica, bonita, altamente instruída, politizada e consciente da situação das mulheres. [9] Viveiros de Castro , E . B.; Bezaquen Araujo, argumentam que o romance de Romeu e Julieta pode ser interpretado como um mito que narra o nascimento do amor como “um tipo de relação social em que os parceiros eram definidos como indivíduos, e não como personas” englobada pela lógica social. O casal Romeu e Julieta surge, assim, como a primeira manifestação da família conjugal moderna que passa a ter como ponto foco as relações internas (afetivas), “não mais as relações que uniam diferentes famílias entre si” (1977: 152-155). [10] Não só a relação amorosa, mas também sua narrativa dura pouco. A autora dedica apenas três páginas para descrevê-la e mais 10 para falar da traição do amante de um total de 121 que compõem o romance.
labrys,
études féministes/ estudos feministas
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