labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/ décembre 2008 -julho/dezembro 2008

“Com que roupa eu vou?” A Academia Brasileira de Letras e o “fardão feminino”

Michele Asmar Fanini[1]

Resumo

A Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, manteve-se incólume à presença feminina até 1976, ano em que o Art. 17 do Regimento Interno, que até então restringia a eleição aos “brasileiros do sexo masculino”, é alterado, assegurando às mulheres a possibilidade de candidatura. A primeira mulher a sagrar-se imortal é Rachel de Queiroz, em 1977, cujo ingresso suscitou um verdadeiro debate estético em torno da veste cerimonial que, durante os primeiros oitenta anos de existência da entidade, fora confeccionada exclusivamente para os homens: a presente ocasião, ao demandar a criação da versão feminina do fardão, transformou a Academia em uma verdadeira “arena de moda”, farta em inegáveis impasses e “saias-justas” que recaíram sobre as prerrogativas de gênero, tal como pretendemos evidenciar neste artigo. 

Palavras-chave: Academia Brasileira de Letras; elegibilidade feminina; vestes cerimoniais.

Abstract

The Brazilian Academy of Letters, established in 1897, remained untouched by the feminine presence up to 1976, in which year the 17 clause of the Internal Regulation, which until then had restricted the election to “Brazilians of the masculine sex”, was modified to assure the women the possibility of candidacy. In 1977, the first woman to take part in the writers’ immortal circle is Rachel de Queiroz, whose admission raised a true aesthetic debate around the ceremonial uniform, which during the first eighty years of existence of the institution was designed exclusively for men. At this occasion, the Academy was transformed into a true “fashion arena”, in which undeniable impasses and embarrassing situations around the gender prerogatives abounded, as this article intends to elucidate.

Keywords: Brazilian Academy of Letters; feminine eligibility; ceremonial clothes. 

 

Uma mulher fardada é horrível de se olhar”.

Olegário Mariano

 

O projeto inaugural a partir do qual a Academia Brasileira de Letras foi criada assegurou-lhe uma compleição marcadamente misógina, e esta característica permaneceu inalterada por décadas a fio. Com isso, a elegibilidade feminina, ainda que tenha integrado a pauta de algumas das incontáveis sessões acadêmicas, foi mantida fora de cogitação, precisamente durante os oitenta primeiros anos de existência da agremiação, ora em decorrência de um acordo tácito – inicialmente, estabelecido entre seus membros fundadores, mas logo transformado em legado –, ora respaldada pelo Regimento Interno.[2]

Foi apenas em 1977 que a primeira mulher transpôs os umbrais da ABL.[3] E a eleita em questão foi Rachel de Queiroz, cujo ingresso suscitou um verdadeiro debate estético, em torno da veste cerimonial que, até então, fora confeccionada exclusivamente para os homens: a presente ocasião demandava a criação da versão feminina do fardão.  

Portanto, com as portas enfim (entre)abertas às mulheres, a Academia se transformou em uma verdadeira “arena de moda”, cenário fecundo para a multiplicação de toda a sorte de palpites e deliberações acerca do modelo a ser adotado para o “fardão feminino”. Já era de se esperar tamanho frisson: recém saída de um jejum de oito décadas, pela primeira vez a ABL sediava uma discussão desse tipo, farta em inegáveis impasses e “saias-justas”, tal como veremos ao longo deste artigo.

Fardão e espada: um breve histórico sobre a indumentária cerimonial

A Academia Francesa[4] foi o modelo inspirador no que concerne à adoção do traje cerimonial, o chamado fardão, pela congênere brasileira. A proposta de utilização partiu do então Presidente interino da ABL, Medeiros e Albuquerque, em junho de 1910, tendo sido aceita pela maioria dos acadêmicos, com exceção de José Veríssimo.[5]

Rui Barbosa elegeu-se o sucessor de Machado na presidência da ABL. Mas foi Medeiros e Albuquerque, contudo, quem, em 1910, no comando interino da entidade, instituiu o fardão como uniforme dos quarenta imortais. Embora Machado, durante a presidência, relutasse em adotá-lo, também esse aspecto do cerimonial interno foi inspirado na Academia Francesa, cujo fardão, desenhado pelo pintor David, fora encomendado por Napoleão Bonaparte.

Na ABL, ficou decidido que o fardão seria usado nas solenidades de posse (110 anos da ABL, 2007: 60) 

Sua idealização deixa também evidente a contigüidade dos laços entre a diplomacia e as letras, já que teve nas insígnias que compõem o uniforme do corpo diplomático brasileiro uma fonte de inspiração inegável. Tal como nos informa a Ata da ABL de 4 de junho de 1910, o modelo do uniforme foi discutido tendo sido “adotado o de ministro residente do corpo diplomático brasileiro, substituídos os emblemas de fumo e café pelo de folha de murta, e a cor preta do estofo pela verde garrafa” (imagem 1). Foi então que, em agosto deste mesmo ano, na cerimônia de recepção a Paulo Barreto (cognome do dândi João do Rio), a idéia foi posta em prática.

Em 1916, o acadêmico Affonso Celso sugeriu a modificação do uniforme, de modo a simplificá-lo. A discussão se estendeu por alguns anos, até que, em 1922, Celso entrega à Mesa[6] 4 croquis elaborados pelo desenhista e ilustrador Julião Machado. Assim, no ano seguinte “o uniforme configurou-se de forma definitiva com os bordados em forma de louro, a espada e o bicórneo de veludo preto com plumas brancas” (110 anos da ABL, 2007: 60), tal como evidencia a imagem 2.

Mesmo adotado de forma consensual, o traje, por sua pompa e ostentação, provocou desconforto em alguns acadêmicos. Alberto de Oliveira, por exemplo, chegou a aventar a possibilidade de seu uso ser facultativo; José Veríssimo, tal como mostramos acima, foi contrário à sua adoção; Machado de Assis também não se revelou grande entusiasta da idéia (muito embora não tenha chegado a presenciar a aprovação e criação da vestimenta, pois falecera um pouco antes, em 1908). Ainda que a proposta de Medeiros e Albuquerque tenha encontrado adversários convictos, o grupo opositor era minoritário, de modo que o fardão foi, com facilidade, instituído traje obrigatório nas solenidades de posse dos acadêmicos e, até os dias atuais, continua sendo um signo de distinção.  

Trata-se, pois, de um modelo hirto, abundante em adereços (plumas, botões metálicos, bordados fartos), impregnado por referências simbólicas, presentes desde a proposta embrionária, tais como as folhas de murta, em alusão à poesia, e o verde-garrafa, uma provável homenagem ao símbolo máximo da nacionalidade, a bandeira do Brasil.

    Imagens 1 e 2 – À esquerda, Raimundo Correia, com o antigo fardão, confeccionado em 1910; à direita, Gustavo Barroso, em 1923, portando o novo modelo. Fonte: 110 anos da ABL. Rio de Janeiro, 2007: p. 136 e p 171.

A adoção do fardão se coadunava com o tipo de ambiente literário que então se constituía, conferindo às cerimônias pomposas um ar de nobreza, formalidade e suntuosidade. Para tanto, basta lembrarmos que, “durante muito tempo, a roupa hirta – incômoda aos olhos de hoje – era símbolo de distinção social”, um indicador de que o portador de tal traje não exercia trabalhos manuais (PONTES, 2004: 37).

Além de ser uma vestimenta de gala, Alessandra El Far (2000) lembra que o fardão recende a distinção entre os “eleitos” e os “simples mortais”, sendo capaz de recrudescer o sentimento de pertença ao grupo, i.e., demarcar a unidade corporativa dos acadêmicos, tornando-os visivelmente diferentes daqueles que não fazem parte da agremiação.[7] Nestes termos, é possível apreender o significado e a relevância desta indumentária pelo teor simbólico que lhe é subjacente e que dela emana: utilizado em ocasiões solenes, que envolvem aparições públicas, o traje faz com que a individualidade seja obnubilada pela “máscara” momentânea que rege os rituais públicos que, por sua vez, adquirem uma coloração homogênea. O uso do fardão, peça fundamental de distinção, reveste os rituais dos signos visuais que implicam a delimitação de “fronteiras sociais”, garantindo a eficácia do cumprimento dos papéis designados à função de imortal (Idem, Ibidem).

Em se tratando dos modelos de fardão já utilizados pela ABL, as duas imagens acima, a primeira de 1910, e a segunda de 1923, nos possibilitam analisar, de forma contrapontística, as alterações por que o traje passou desde sua concepção. Vale ressaltar que os traçados que caracterizam este último muito se assemelham ao modelo utilizado atualmente (imagens 3 e 4). Diferentemente do imaginado, as modificações não foram significativas, nem representaram uma simplificação no que se refere ao excesso de bordados, tal como sugeriram alguns acadêmicos.

O que se nota no modelo de 1923 é uma maior sofisticação, um maior apuro e abuso dos brocados. Por isso, a mais nítida alteração se refere ao fato de a camisa branca ter-se deixado encobrir completamente pelo casaco, cujas abotoaduras, mais fartas, se estendem até o colarinho.

Quanto às simplificações, são pouco perceptíveis. Uma delas está localizada nas mangas, cujos detalhes dos ornatos aparecem mais enxutos, sensação deixada pela ausência de uma das fileiras que no modelo de 1910 compunha o bordado, especificamente aquela que circundava o punho, formada por argolas douradas, levemente achatadas. Estas mesmas argolas também constituíam os detalhes da parte frontal do casaco, que foram substituídas por duas tiras douradas, ladeadas, dispostas de modo a acompanhar a seqüência das abotoaduras, chegando até a base do casaco, como uma espécie de contorno, com ares de acabamento.

Poderíamos, então, dizer que o fardão passou por pequenos ajustes, todos insuficientes para a promoção de uma descaracterização de seu desenho original, sem dúvida, confeccionado com vistas a ser portado exclusivamente por indivíduos “do sexo masculino”.   

Imagens 3 e 4 – Detalhes do fardão doado à ABL, pertencente ao acadêmico Afonso Arinos.

 

A presença de mulheres na ABL é uma “questão saial

E se na farda das academias há flores, que engrinaldam como símbolos exteriores da majestade do saber, os ramos de café ou de louro muito mais se assentam na mulher, de onde irradiam, além dos clarões azulados dos privilegiados da influência, a delicadeza e suavidade de sentimentos, que a fizeram senhora dos homens e dominadora do mundo.[8] 

As tentativas de ingresso (ou ao menos de candidatura) de mulheres na ABL foram acompanhadas por retumbantes fracassos. Desde a sua criação, em 1897, a entidade foi o cenário de sessões esporádicas dedicadas à discussão acerca da (in)elegibilidade feminina, nas quais podia-se perceber nitidamente que a poeira que se levantava a partir das contendas, muito rapidamente se assentava, e a acintosa e arrebatadora calmaria se instaurava, ano após ano. Tratar, pois, da presença (na verdade, ausência) de escritoras na ABL tornou-se parte de um ritual que, acompanhado pelas repetidas alusões ao tema do “fardão feminino”, costumava tornar as sessões mais descontraídas.

Isso porque, a despeito das posturas divergentes que suscita, o fardão – especialmente sua versão feminina – é mencionado com insistência, seja direta ou indiretamente, e não só pelos acadêmicos. Arriscamos dizer que ele faz parte do imaginário dos letrados e, mais do que isso, que está atrelado à postura misógina que caracteriza a ABL. Trata-se de um índice potencialmente capaz de reforçar a compleição da agremiação, ao ser mobilizado como justificativa para a inadequação da presença de mulheres em seu interior, muito embora o fragmento acima, escrito por Odylo Costa, nos queira convencer do contrário.

Assim, revelando-se uma obsessão que beira a precaução, as discussões acerca da (in)elegibilidade feminina no cenáculo apresentam correlação direta com a manifesta curiosidade dos acadêmicos em torno da indumentária que as mulheres viriam a portar nas cerimônias de posse, caso fossem algum dia eleitas. Estamos, portanto, diante de um tema que antecede, e muito, sua real necessidade de criação. Se, por um lado, pensar sobre o traje cerimonial para mulheres não representava para os imortais o tratamento de uma possibilidade concreta, i.e., de um “perigo iminente” – pelo menos até 1977 [9] –, por outro, a alusão à incongruência de um “fardão feminino” reforçava, e muito, a feição que a agremiação desejava sinalizar e atualizar.

Desta feita, as referências à saia ou a elementos associados às “vestimentas femininas”, sempre como o antípoda dos trajes masculinos, não são tão fortuitas ou descomprometidas quanto parecem, pois exprimem algo precipuamente intencional: denunciam o desajuste, a não-identificação entre as mulheres e a ABL.

Por isso, até 1977, quando nenhuma mulher havia conseguido eleger-se membro da Academia, conjecturar sobre o “fardão feminino” afigurava-se quase como um passatempo para os imortais, já que tais especulações não transcendiam os limites do hipotético. Tanto que muitos comentários revestiam-se do descomprometimento do deboche, ou eram emanações de uma curiosidade despretensiosa.

Por exemplo, Rodrigo Octávio, ao responder à interpelação “deve a mulher pertencer à ABL? [10], alude ao “avesso” do que o uniforme dos acadêmicos supõe: a saia, chegando a definir, ironicamente, a possibilidade de eleição feminina como uma “questão saial” (BEVILÁQUA, 1930: 25). Por sua vez, Olegário Mariano se mostra curioso quanto às implicações que o ingresso de uma mulher pudesse desencadear no cenáculo, em termos de indumentária, e questiona se à mulher seria oferecido um quimono ou um hábito (Idem, Ibidem: 28-29). O acadêmico chega até mesmo a responder àquela provocação de Henriqueta Lisboa – na qual a poetisa exprime, em 1930, sua insatisfação para com a “firula gramatical”, i.e., a equivocada interpretação que o Estatuto rendeu – dirigindo-lhe, então, uma réplica em nada “poética”.[11]

Muitos são contra. Outros, por medo ou covardia,

Acham de pôr na idéia entusiasmos supremos.

Que a mulher, magra ou gorda, alta ou baixa, seria

Um lírio ornamental no Jardim de Academus.

Se é por ela afinal que todos nós vivemos,

Se é dela que nos vem o encanto da Poesia,

Por que havemos de usar de processos extremos

E fechar-lhe o portão da douta Academia?

Há um obstáculo só, que me parece enorme:

O “habitat vert”. Que fazer? Criar novo uniforme,

Ou deixá-la à paisana o templo penetrar?

Os velhos do “Trianon” quase não dizem nada,

Mas preferem por certo a mulher decotada,

Que uma mulher fardada é horrível de se olhar (apud FILHO, 2006: 24).

O fardão ocupa o centro da argumentação de Olegário Mariano, sendo recrudescida pela linguagem metafórica, que apreende a mulher como um “lírio ornamental no Jardim de Academus”, enfim, como musa inspiradora masculina, vindo a reforçar a idéia de que “o homem estava apto, em função de suas capacidades mentais, a criar as grandes obras, ao passo que as mulheres não passavam de colaboradoras” (SIMIONI, 2004: 33) ou, simplesmente, como é o caso, fonte passiva de inspiração.

Tal qual um Deus Pai que criou o mundo e nomeou as coisas, o artista torna-se o progenitor e procriador de seu texto. À mulher é negada a autonomia, a subjetividade necessária à criação (...) É musa ou criatura, nunca criadora (TELLES, 2001: 403).

Porém, o ponto alto do poema é seu desfecho, momento em que o acadêmico, diga-se de passagem, discípulo de Clóvis Beviláqua, revela que “uma mulher fardada é horrível de se olhar”, sendo desejáveis aquelas que ostentam decotes. Embora se mostre favorável à presença de mulheres no cenáculo, seus apontamentos exprimem ressalvas e não deixam de ser um verdadeiro testemunho de que o assunto era apreendido como um chiste, chegando o acadêmico a definir, em termos não tão explícitos, que a uma mulher de fardão seria praticamente uma aberração. O poema se limita a versar sobre a forma como as mulheres se apresentariam ao cenáculo, e, com isso, vê-se reduzido ao registro de uma mera superficialidade.  

Contudo, um comentário revelador acerca desse assunto não vem de um imortal e, talvez por isso, se distancie do lugar-comum em que costumam se inscrever as apreciações que suscita: “sob aquela cúpula, não entra em conta, exclusivamente, a potência cerebral, mas a condição primeira de cobertura das pernas”.[12] Não vestir saia se afigura, então, como o passaporte de entrada para a agremiação. Ainda que audaciosa, essa consideração está longe de ser uma novidade!

Com isso, podemos perceber que, além das interpretações enviesadas que o Art. 17 do Regimento Interno facultou, certos elementos ritualísticos também foram mobilizados como justificativas para a inelegibilidade feminina, ainda que mais sutilmente, vindo a compor o anedotário dos acadêmicos e a reforçar o pendor misógino da agremiação.

***

Até aqui, tratamos de alguns dos “antecedentes de 1977”, longo período no qual a idéia de um “fardão feminino” se apresentava como mera suposição e, no limite, uma “anomalia”. No entanto, o que muitos acadêmicos talvez duvidassem era que chegaria o momento de promover uma discussão em torno deste assunto. E isso aconteceu em 1977, em virtude da eleição de Rachel de Queiroz.

Assim, muito embora tenham sido significativos os “ajustes” e reparos que o ingresso da primeira imortal exigiu por parte da ABL, a confecção do “fardão feminino” – expressão por si só contraditória e sugestiva –, se nos afigura como a mais emblemática, especialmente por ser portadora fecunda da demarcação das diferenças entre a recém-ingressa e os demais escritores, cristalizadas no que poderia ser denominado de um “dimorfismo estético” (PONTES, 2004: 32). E isso sem mencionar que, na contramão do que muitos poderiam supor, ainda que tenha sido um assunto discutido coletivamente, tendo despertado muito alarde e provocado um mar de palpites, a decisão final do modelo do “fardão feminino” coube exclusivamente à escritora eleita, fato merecedor de nossa atenção.

Desta feita, no tópico a seguir nos debruçaremos sobre os meandros da emaranhada treliça que compõe este bordado, com o intuito de desatar muitos de seus nós e, quem sabe, costurar muitas de suas fissuras.

“Pano pra manga”: a conversão do Petit Trianon em uma “arena de moda”  

A memória das mulheres é vestida

Michelle Perrot

A exatamente um ano da eleição de Rachel de Queiroz, o acadêmico Josué Montello publica sua opinião sobre como deveria ser o traje feminino. [13] Além de prenunciar a proximidade da admissão de mulheres na ABL, “sem que [julgasse] preciso, para isso, mudar a letra dos Estatutos”, as considerações do acadêmico podem ser inscritas na contracorrente do que já fora aventado acerca da inadequação deste “viril” traje cerimonial para as ingressantes. Vejamos por quê:

Ao conjecturar acerca da eleição de uma mulher, Montello considera ser desnecessária a modificação do fardão, argumentando que “hoje, depois da fase dos terninhos, já as mulheres estão afeitas às calças compridas. O chapéu de plumas fica-lhes a calhar”. No entanto, a ressalva fica por conta da utilização da espada, que, confessa, lhe causaria muito estranhamento. Segundo as próprias palavras do acadêmico, “só ainda não me acostumei com a idéia de vê-las de espada à cinta”. Aqui, novamente, a aura de comicidade parece envolver as apostas lançadas pelo acadêmico.

Já às vésperas da posse de Rachel de Queiroz, os jornais da época tornaram-se porta-vozes de alguns palpites aventados por outros acadêmicos. E o curioso é que as publicações eram unânimes em afirmar que a escritora, quando de sua posse, não seria obrigada a usar fardão, tampouco o chapéu bicórneo e a espada. O Jornal de Minas, por exemplo, traz como destaque a seguinte notícia: “Sem o fardão, Rachel de Queiroz é a primeira mulher na Academia”. [14] O próprio Presidente da entidade, Austregésilo Athayde, afirmou que, para a cerimônia de posse, à escritora bastaria a imposição do colar, que lhe seria oferecido por Alceu Amoroso Lima.

Nesta mesma loteria, o jornal O Globo, de 9 de outubro de 1977, divulga um leque de opções elaborado pelos pares de Rachel de Queiroz:

uns chegaram a sugerir boleros, como se ela [Rachel de Queiroz] fosse para a arena fantasiada de toureiro; alguns Acadêmicos, da Irmandade do Outeiro, idealizaram uma espécie de opa, de acompanhar procissão!”. A mesma matéria traz uma declaração da escritora em questão, que já nos fornece pistas de como seria o seu traje: “meus vestidos são todos chémisier, todos absolutamente do mesmo feitio; eu não me visto, eu me cubro”.

Este já parece ser o primeiro imbróglio que a eleição de Rachel de Queiroz suscitou. Ela usaria ou não um traje cerimonial? Afinal, com que roupa a escritora iria à sua cerimônia de posse? Era chegado o momento de pôr à prova a previsão do acadêmico Montello e de outro tantos palpiteiros incontidos.

Quando às indagações acima formuladas, a resposta à primeira é afirmativa, já, quanto à segunda, temos a confirmação do improvável: ela portaria sim um “fardão feminino”. Tanto que em um segundo pronunciamento, Austregésilo de Athayde muda o discurso, e assinala que, além do colar cerimonial, um traje estava sendo decidido:

Rachel de Queiroz não usará fardão, mas ainda não temos um uniforme escolhido para ela. O figurinista Guilherme Guimarães apresentou um que me parece o mais apropriado. É um vestido longo preto, com franjas douradas e o colar. A eleita não usará espada, embora Joana D’arc tenha usado.  [15]

Com isso, temos que o ingresso de Rachel de Queiroz ensejou a criação do tão comentado e pouco compreendido “fardão feminino”, expressão reveladora de uma inegável ambigüidade. Há um segundo imbróglio anunciado: a inadequação do nome do traje – se é fardão, como pode ser feminino? São termos inconciliáveis, diriam muitos acadêmicos. Portanto, as apreciações dos acadêmicos acerca da versão feminina do traje, com exceção de Montello, que apenas fazia restrições quanto ao uso da espada, continuavam a reiterar sua inadequação. Para driblar esta incompatibilidade, a saída encontrada estaria na concepção de uma indumentária “eminentemente feminina”. E é justamente o que acontece: a indumentária de Rachel de Queiroz foi confeccionada de modo a materializar as diferenças entre os sexos, não mantendo qualquer semelhança com o traje portado pelos homens.

Em suma, com a proximidade da cerimônia de posse de Rachel de Queiroz, que ocorreu em 4 de novembro de 1977, a ABL se rende ao que se apresentava como uma nova demanda e passa a dar linha às discussões que já fervilhavam nas rodas informais. Como salienta Hollanda (1992),

foi assim que a Casa de Machado de Assis tornou-se o palco de um dos mais estranhos debates deste final dos anos 70, com todos os lapsos e atos falhos a que a psicologia impressa nos permitiu” (p. 79):

Eleita Rachel de Queiroz e aparentemente resolvido o debate gramatical em torno do ingresso feminino na ABL, uma antiga pendência continua a alimentar ansiedades atávicas no Petit Trianon: Que roupa usaria Rachel para compatibilizar-se com a simbologia heróica expressa pela espada e os louros do fardão dos imortais?

(...)O chá das 5 reverte-se numa arena da moda. Na procura da roupa da Rachel, discussões acaloradas acompanhavam o passar de rendigotes trespassados, tailleur com alamares e dragonas, desfiles de Guilherme Guimarães, da butique Mônaco e de Silvia Souza Dantas, deliciando os acadêmicos (HOLLANDA, 1992: 79)

Um verdadeiro arsenal fashion foi deslocado para o interior da ABL, e tamanha mobilização surtiu efeito: Rachel de Queiroz usava em sua posse não um fardão, mas o feminino deste termo (que até hoje não possui uma nomenclatura própria, daí utilizarmos a expressão “fardão feminino” sempre entre aspas).[16] Confeccionado pouco depois de ter sido eleita, em 4 de agosto de 1977, o vestido cerimonial segue à risca o modelo proposto no croqui, datado de 23 de setembro de 1977:

Imagem 5 – Croqui do “fardão feminino”.Fonte: PIZA, 2003: 75.

Contrariando a aposta de Athayde, que tinha como favorito o modelo apresentado por Guilherme Guimarães, a autoria do croqui ficou por conta da estilista Sílvia Souza Dantas, que seguiu à risca as recomendações de Rachel de Queiroz (imagem 5). A escritora elegeu como característica do traje a sobriedade, e justifica sua escolha lançando mão de uma explicação inegavelmente insólita: foi na natureza, mais especificamente no reino animal, que diz ter encontrado sua grande fonte de inspiração: “todas as fêmeas da espécie animal são menos ornamentadas que os machos. De maneira que segui a regra”.[17] Ainda segundo a recém-eleita, “criou-se uma polêmica em torno da roupa, se deveria ser calça ou vestido. Então achei que deveria tomar a frente. Decidi usar longo”.

(...) quando a Rachel tomou posse, e ela foi a primeira, ela quem decidiu como ia ser o fardão, e como ela era uma pessoa muito pouco vaidosa, uma sertaneja, então, ela escolheu a coisa mais simples que podia, e tanto que o fardão dos homens é muito mais bordado e muito mais enfeitado do que o das mulheres.[18]

Imagem 6 – Rachel de Queiroz, logo após ser empossada. Fonte: Arquivo Rachel de Queiroz/ABL.

Aliás, um episódio, protagonizado por Dinah Silveira de Queiroz, evidencia o poder de decisão de que se investia Rachel de Queiroz. Em 1980, quando fora enfim eleita, a autora de A muralha propôs algumas alterações no traje sacramentado por sua antecessora, mas não obteve o consentimento da Diretoria da entidade, de modo que o modelo definido por Rachel de Queiroz foi adotado como padrão para as demais escritoras eleitas e seguido à risca.[19] Segundo Nélida Piñon, este episódio revela o grande prestígio que a primeira imortal possuía entre os demais acadêmicos:[20]

Uma vez que Rachel definiu, e ela era tão poderosa de algum modo, em relação aos homens, que aquele fardão é aprovado em plenário, e tinha que ser aquele. Pelo prestígio dela, ela consagra o vestido, e a próxima não podia mudar mais. É o modelo oficial. [21]

O “fardão feminino”, por mais estranho que a expressão possa soar é, na verdade, uma espécie de túnica longa, em crepe, com detalhes em dourado, que representam as folhas de murta, adornando tanto a gola em “V” quanto as bordas das mangas. Um modelo indubitavelmente mais frugal e discreto que a vestimenta masculina, já que esta ostenta bordados diversas vezes mais imponentes e adereços multifários, dentre os quais os já citados bicórneo de veludo negro com plumas brancas e a espada, e cujo dourado das murtas encobre quase que por completo a parte frontal do casaco (imagem 3). Se, por um lado, a espada é um item indispensável da indumentária masculina, por outro, o colar – que também integra o fardão dos acadêmicos – se torna seu equivalente, na composição da vestimenta feminina. Da mesma forma, à calça masculina, ao contrário da aposta de Montello, corresponde o longo vestido.

Nestes termos, as informações fornecidas pelas imagens 6 a 8 atestam o contraste visual que os vestidos das acadêmicas mantêm com relação à vestimenta masculina, exatamente por protagonizarem uma inesperada inversão, enfim, pela insinuação expressiva que se faz notar até mesmo pelos olhares mais incautos: os adornos, o brilho, o glamour, elementos ditos constitutivos da “moda” feminina, estão quase que ausentes do uniforme das imortais, em contraposição ao exagero que se faz notar com relação à vestimenta da “ala masculina”. Esta inversão pode ser melhor compreendida se tivermos como parâmetro a estética tradicional das indumentárias (exterior à ABL).

Enquanto que, para os homens, a aparência e os trajes tendem a apagar o corpo em proveito de signos sociais de posição social (roupas, ornamentos, uniformes etc.), nas mulheres, eles tendem a exaltá-lo e dele fazer uma linguagem de sedução (BOURDIEU, 2003: 118).  

Imagem 7 – Posse de Dinah Silveira de Queiroz, em 7 de abril de 1981. Em pé: Bernardo Elias, Herberto Sales, José Honório Rodrigues, José Cândido de Carvalho, Adonias Filho, José Sarney, Miguel Reale, Francisco de Assis Barbosa, Américo Jacobina Lacombe, Mauro Mota e Vianna Moog. Sentados: Josué Montello, Aurélio Lyra Tavares, Dinah Silveira de Queiroz, Austregésilo de Athayde, Luiz Vianna Filho, Pedro Calmon e Rachel de Queiroz.Fonte: Academia Brasileira de Letras: 100 anos (1897-1997), p. 111.

 

Imagem 8 – Sábato Magaldi, Ledo Ivo, Barbosa Lima e Nélida Piñon, na posse do cardeal dom Lucas Moreira Neves. Fonte: Academia Brasileira de Letras: 100 anos (1897-1997), p. 112.

Destarte, é possível pensar que os trajes dos acadêmicos, em termos da “gestão da imagem”, encenam transfigurações reveladoras, especialmente ao redefinirem a idéia de que a “atenção à aparência física e predisposições à sedução estão de acordo com o papel que, tradicionalmente, compete mais à mulher” (Idem, Ibidem: 120). O “fardão feminino” é, nestes termos, a representação da hexis corporal ausente de conotação sexual.   

Além disso, pensando na escolha (intencional) de Rachel de Queiroz por um traje sóbrio, os fardões como que reproduziram as distinções atinentes às relações entre “macho” e “fêmea”, de tal forma que o interior da ABL parecia mimetizar, e com certa fidedignidade, as clivagens encontradas no mundo animal: o macho ostenta suntuosidade, é exibicionista, esplendoroso, em contrapartida, a fêmea é pouco notada, modesta, simplória, dando a sensação de retraimento. Esta é exatamente a impressão que se tem a partir da análise das imagens acima, em que as acadêmicas aparecem ladeadas por seus pares.    

Portanto, as mulheres eleitas puderam contar com a criação de um modelo desenxabido, sobremaneira distinto do traje masculino, e considerado por Rachel de Queiroz como mais “afeito” a elas. Temos, pois, anunciada, uma complexa malha na qual se entrelaçam elementos que simbolizam distinções, vindo a promover clivagens no interior da homogeneidade que as vestes rituais de um só modelo, até 1977, cintilavam.

***

Quando Rachel de Queiroz foi eleita, os meios de comunicação trataram exaustivamente de seu ingresso, porém enfatizando menos as jogadas políticas que estavam por trás de seu ingresso, do que literalmente os traçados de sua indumentária. Nestes termos, arriscamos dizer que a atenção desmesurada dada ao “fardão feminino” não se deveu apenas à relevância que o assunto representava. Este pode ter sido um engenhoso despiste que contou com a conivência dos meios de comunicação, ao possibilitar que o foco de atenção, que deveria estar voltado para os favorecimentos políticos que interferiram na eleição da escritora, fosse desviado para os imbróglios que o modelo da vestimenta cintilava.

A imprensa registrava, ligadíssima, o desenrolar dos trabalhos. Nas dezenas de matérias que povoaram os jornais (com a forte presença das sessões de cartas de leitores) sobre a roupa que usaria Rachel (HOLLANDA, 1992: 79-80)

Assim sendo, ser definido como uma grande incógnita já fazia do “fardão feminino” fonte profícua de especulações, eclipsando outros assuntos relacionados às circunstâncias de ingresso de Rachel de Queiroz. Um aspecto relevante, que levantou raras suspeitas e deu pouco “pano pra manga”, se refere à trama de conveniências que se teceu entre a escritora e o acadêmico Adonias Filho, seu principal cabo eleitoral, acusado de ter dado apoio integral à amiga como uma forma de retribuir um grande favor, a saber, a indicação de seu nome para ocupar o cargo de Presidente do Conselho Federal de Cultura.[22] Além disso, Ana Maria Machado faz outra leitura deste acontecimento, mas que também recai sobre a idéia que levantamos, de que o alarde acerca do fardão tenha sido uma forma de “despiste”, de “escape”, encobrindo “assuntos outros”, que não deveriam roubar a cena:

Despiste é a palavra. Eu acho que tem muito de um despiste, de um mal-estar da mídia, de não conseguir, naquele momento, de governo militar, de não conseguir discutir as questões que realmente estavam em jogo. A questão de uma nordestina, que começou a escrever muito cedo, muito rebelde, uma voz do povo sofrido, e que teve um comprometimento com a esquerda muito marcado na juventude, e que depois estava do outro lado, e que tinha relações de parentesco com pessoas do governo militar, enfim, numa Academia que a esta altura tinha um militar, Lyra Tavares, que estava aqui, que tinha sido Ministro da Defesa. Então, toda esta questão, a questão política, a de esquerda-direita, a de governo militar e oposição, a questão política mais ampla, de machismo ou não, a questão regional da força nordestina de uma pessoa que tinha uma obra de muito jovem (...).Então, tudo o que a mídia não podia discutir na ocasião, saiu pela discussão do fardão, que é mais superficial, uma “espuma flutuante”. Esta é uma hipótese que a minha visão crítica dita, porque eu sou uma crítica sempre.[23]

Portanto, não há como desconsiderar este aspecto, uma vez que a farta cobertura da imprensa sobre o “fardão feminino” parece ter escamoteado a premência destas outras facetas, bem menos glamorosas, que fizeram do ingresso de Rachel de Queiroz corolário de benefícios políticos, de jogos de interesse, de redes de favorecimento. E já havíamos assistido a algo parecido, quando a Academia, em 1930, deliberou em favor de uma “firula gramatical”. Desta vez, o pretexto passa a ser o “fardão feminino”.

A partir dessas considerações, não há como deixar de sublinhar a inegável influência da roupa na composição da atmosfera da Academia, perfazendo não apenas um item de oficialização do extraordinário e de demarcação de diferenças entre os gêneros, como também um acessório escamoteado em um insuspeito despiste.

O espírito do “fardão feminino”: do reino animal ao ambiente de gala

Ao se referir às diferenças sociais que se imprimem aos indivíduos como máscaras, que o passar do tempo cristaliza, Gilda de Mello e Souza (1996) chama a atenção para a importância da roupa, elemento capaz de acentuar um repertório de diferenças existente entre os sexos. Como lembra a autora, “a história do traje nos mostra, é verdade, como os dois grupos [homens e mulheres] sempre se diferenciaram através da roupa” (MELLO E SOUZA, 1996: 59). Assim, os trajes dos acadêmicos não fogem a essa constatação, e a expressividade destas vestes se pronuncia na medida em que têm descortinadas as suas idiossincrasias. A importância da indumentária para os imortais nos leva a enfatizar o primado do visual no processo de diferenciação que caracteriza os rituais da ABL.

Grosso modo, pensando menos na nomenclatura do que nos modelos, os homens usam fardão e as mulheres, vestido; os adereços masculinos são a espada e o bicórneo, enquanto o colar (que, como dissemos, sempre foi um acessório da indumentária masculina) complementa o traje das escritoras. As plumas que adornam o chapéu dos acadêmicos parecem deslocadas. Este elemento, que ao longo do tempo se tornou apanágio feminino, está de todo ausente da indumentária cerimonial das escritoras, figurando como adereço exclusivo da vestimenta masculina. Estas características vão ao encontro da constatação de Gilda de Mello e Souza, a propósito da mulher que, em busca de sua profissionalização, se vê incitada a se despir de todos os adereços e complementos que dão graça e brilho ao seu traje, como garantia de inserção social e reconhecimento.

Além disso, a simplificação progressiva da roupa masculina, observada por Mello e Souza (1996) ao se referir ao século XIX (mas que nos fornece pistas para pensarmos sobre os dias atuais), não coincide com os detalhes e luxo que o fardão ostenta, indicando de fato se tratar de uma instituição fincada no passado. O século XIX, período de criação da ABL, é o tempo todo reverenciado por seus membros; não à toa a vestimenta se apresentar como o avesso da moda, ou como seu contraponto.

Perseguindo o raciocínio de Gilda de Mello e Souza, para quem o traje não existe independente do movimento, a ABL tem no fardão um poderoso elo com o passado, uma ode aos que exercem trabalhos intelectuais, que podem se dar ao luxo de portarem roupas que dificultam os gestos – esta nos parece uma referência cifrada à dualidade prefigurada pelo esforço braçal, ignóbil de um lado e, de outro, pelo trabalho intelectual, reverenciado pelo traje. Da mesma forma que a mobilidade é apontada como condição indispensável para a existência de uma vestimenta, o colorido também é considerado pela escritora como seu elemento constitutivo. Assim, de acordo com esta chave analítica específica, o fardão se situa fora do esquadro basilar definido por Mello e Souza. De fato, o misoneísmo da Academia contrasta com a celeridade das transformações que movem a moda.    

Ainda na esteira dessas considerações, talvez seja possível pensar a diferença que a história das indumentárias sinaliza, se pensada à luz dos óbices enfrentados pela mulher que buscava seguir carreira profissional. Como mostra Mello e Souza, da segunda metade do XIX em diante, a mulher começa a manifestar interesse em seguir uma profissão, sendo esta, até então, restrita ao homem e compreendida em termos da austeridade do traje (1996: 106).

Desta feita, as mulheres que almejavam obter êxito em suas empreitadas profissionais – Gilda toma como exemplo a experiência das sufragettesque, aspirando uma experiência diversa e vendo na carreira uma fonte de realização pessoal, obrigavam-se ao desinteresse pelo adorno, pela vestimenta rebuscada, pela preocupação com a moda” (PONTES, 2004: 41) –, esquivando-se da pecha de amadoras, viam-se compelidas a abandonar, não impunemente, velhos hábitos que foram se constituindo vagarosamente, que de tão entranhados, chegam a compor uma segunda natureza.[24] Esse desprendimento, veladamente compulsório, se expressa por meio do “desinteresse pelo adorno, pela vestimenta rebuscada, pela preocupação com a moda” (MELLO E SOUZA, Ibidem: 106):

Lançando-se no áspero mundo dos homens, a mulher viu-se dilacerada entre dois pólos, vivendo simultaneamente em dois mundos, com duas ordens inversas de valores. Para viver dentro da profissão adaptou-se à mentalidade masculina da eficiência e do despojamento, copiando os hábitos do grupo dominante, a sua maneira de vestir, desgostando-se com tudo aquilo que, por ser característica de seu sexo, surgia como símbolo de inferioridade: o brilho dos vestidos, a graça dos movimentos, o ondulado do corpo (Idem, Ibidem: 106). [25]         

Em consonância com o que o período acima sugere, o “fardão feminino” é a representação do despojamento, da simplificação – o antípoda das vestimentas caracterizadas como “femininas”, que conferem à mulher uma silhueta bem delineada, transformando-a “num milagre de curvas” (Idem, Ibidem: 64). Pelo contrário, o vestido cerimonial encobre os contornos, oculta o perfil do corpo da mulher. É como se, de algum modo, ele anunciasse que a consagração acadêmica dessas mulheres vem acompanhada da abdicação dos acessórios e excessos que o acentuam. 

Além disso, é possível arriscar que a eficácia da dimensão performática do “fardão feminino” esteja relacionada justamente à sua discrição, que até parece reproduzir, em termos estilísticos, a exígua participação feminina na agremiação. Impossível não pontuar tal paralelo. Portanto, não seria apressado dizer que a falta de brilho oriunda da insipidez e da sobriedade que emanam do longo vestido em crepe o transformaram em um traje representativo e em sintonia com a exigüidade do número de mulheres que o portam. Assim, se a inserção feminina na agremiação se processa a conta-gotas, as eleitas encontram na vestimenta uma espécie de confirmação e coroamento de sua sutil presença, i.e., algo semelhante ao ocultamento obtido por um processo de camuflagem, cujo efeito seria, metaforicamente, o de um holofote desligado.

Em suma, a indumentária feminina não chama a atenção, senão pelo seu viés, cristalizado na lisura de seu traçado, impondo-se antagonicamente aos excessos que qualificam o modelo masculino. Se as acadêmicas já são pouco numerosas, ainda portando vestes que esbanjam simplicidade, passam quase que despercebidas, em meio a tantos “pavões”.

Arremate

A sofisticada investigação encaminhada por Gilda de Mello e Souza, em O espírito das roupas, nos despertou para o potencial heurístico do fardão e de seus contrapontos suscitados pela versão feminina, justamente porque os referenciais manejados pela autora revelam as incompatibilidades e fissuras existentes entre as condições de existência da moda – a saber, a plenitude multicor e a célere mobilidade –, e o hirto traje cerimonial, que reverencia a tradição e economiza na têmpera.

Ainda que desacompanhado de uma exegese estética e sociológica acerca das vestimentas, é possível constatar que a sobriedade da indumentária cerimonial feminina ombreia com o exagero dos ornatos que o fardão masculino ostenta. Ao chamar a atenção para o peitoral, parte do corpo que, simbolicamente, representa a virilidade, a altivez, o vigor, o traje masculino concorreria para a intensificação do brio dos acadêmicos, reforçando a idéia de masculinidade, não fosse seu significativo contrapeso: o excesso de brocados, que acaba por torná-lo mais “feminino” do que propriamente “varonil”. Por sua vez, o traje das acadêmicas supõe o olhar desviante, mais dispersivo, já que não oferece tantas informações visuais a ponto de prender a atenção: ele é uma espécie de eco da simplificação por que passaram as roupas femininas a partir do século XIX, sintomática do êxito profissional das mulheres (que corresponde ao gradativo abandono do “brilho dos vestidos, da graça dos movimentos, do ondulado do corpo”).   

Nesse sentido, a vestimenta dos membros da ABL opera uma insólita inversão que subentende um duplo processo: as relativas “feminização do masculino” e “masculinização do feminino”, i.e., enquanto a indumentária cerimonial masculina se anuncia como signo do exagero, fato que a aproxima culturalmente do que se convencionou denominar de “feminino”, o vestido das escritoras tem na discrição, na sobriedade e na aridez de brocados índices alusivos, ainda que sub-reptícios e não premeditados, à idéia de “masculinidade”, além de retraduzirem esteticamente a exígua presença das mesmas na agremiação. 

Bibliografia

BEVILÁQUA, Amélia de Freitas. Amélia Beviláqua e a Academia Brasileira de Letras: documentos histórico-literários. Rio de Janeiro: Besnard Frères, 1930.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

COSTA, Odylo. “Academia Brasileira de Letras”. Jornal do Commercio, 5 de junho de 1930.

EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos primeiros anos da República (1897-1924). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

FILHO, Adonias. “Resposta do Sr. Adonias Filho a Sra. Rachel de Queiroz”. In: Discursos Acadêmicos (1975-1980), vol. XXIII. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1981, pp. 61-68.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “A roupa da Rachel”. In: Revista Estudos feministas, nº 0. Rio de Janeiro, Editora Imago, pp.187-202, 1992.

MELLO E SOUZA, Gilda de. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Editora Schwarcz, 1996.

MONTELLO, Josué. “As mulheres na Academia”. Jornal do Brasil, 5 de agosto de 1976.

PIZA, Daniel. Academia Brasileira de Letras: Histórias e revelações. São Paulo: Dezembro Editorial, 2003.

PONTES, Heloísa. “Modas e modos: uma leitura enviesada de O espírito das roupas”. Cadernos Pagu – Dossiê: O gênero da moda e outros gêneros (22), Jan.-Jul, 2004.

______. “A paixão pelas formas: Gilda de Mello e Souza”. Novos Estudos CEBRAP, no. 74, março de 2006.

RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2001.

SCHVARZMAN, Sheila. “Entrevista com Michelle Perrot”. Cadernos Pagu – Dossiê: História das Mulheres no Ocidente (4), 1995, pp. 29-36.

SIGNER, Rina. Academia Brasileira de Letras: nacionalismo à francesa. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Letras Modernas, São Paulo, 1988.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884 e 1922. São Paulo: USP, 2004. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, 2004.

TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras”. In: M. Del Priore (org.), História das mulheres do Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.

                Entrevistas realizadas

MACHADO, Ana Maria. A Academia Brasileira de Letras e a elegibilidade feminina. [ago. 2008]. Entrevistadora: Michele Asmar Fanini. Rio de Janeiro, 07 de agosto de 2008.  

PIÑON, Nélida. A Academia Brasileira de Letras e a elegibilidade feminina. [ago. 2008]. Entrevistadora: Michele Asmar Fanini. Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2008.   

                Acervo da ABL – Biblioteca Lúcio de Mendonça

Academia Brasileira de Letras: 100 anos, Rio de Janeiro, 1997.

Ata da ABL de 4 de junho de 1910.

110 Anos da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2007.

FILHO, Alberto Venâncio. “As mulheres na Academia”. Revista Brasileira/ABL. Out./Nov./Dez. 2006, ano XIII, no. 49. 

VASCONCELLOS, Pinheiro de. “A nossa Academia de Letras e a mulher”. Gazeta de Notícias, em 6 de junho de 1930.

                Arquivo/ABL

Arquivo Ana Maria Machado

Arquivo Dinah Silveira de Queiroz

Arquivo Lygia Fagundes Telles

Arquivo Nélida Piñon

Arquivo Rachel de Queiroz

Arquivo Zélia Gattai

Arquivo Ana Maria Machado

COSTA, Odylo. “Academia Brasileira de Letras”. Jornal do Commercio, 5 de junho de 1930.

MONTELLO, Josué. “As mulheres na Academia”. Jornal do Brasil, 5 de agosto de 1976.

Currículo resumido:

Graduada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP-SP) e mestre em Sociologia pela mesma instituição (USP-SP). Atualmente, cursa o último ano de doutorado em Sociologia, também pela Universidade de São Paulo (USP-SP), sob a orientação da Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda. Possui experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: campo literário, confluências entre produção literária e experiência social, aspectos da viabilização literária feminina.

Endereços eletrônicos: michele.fanini@usp.br e michele.fanini@gmail.com

r


 

[1] Doutoranda em sociologia pela USP. 

[2] Conforme o art. Art. 2º do Estatuto da ABL, “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes”. Além disso, o Art. 30 do Regimento Interno da agremiação (que em algumas edições corresponde ao Art. 17) reitera o Estatuto, e postula que “os membros efetivos da Academia serão eleitos dentre os brasileiros, nas condições do art. 2.º dos Estatutos, que se apresentarem candidatos, mediante carta dirigida ao Presidente e entregue na Secretaria, que da mesma passará recibo”. No entanto, a partir de 1930, que é quando a escritora Amélia Beviláqua – esposa de Clóvis Beviláqua, um dos membros fundadores da ABL –, encaminha à entidade uma proposta de candidatura, a ABL torna-se palco de uma discussão em torno da elegibilidade feminina. Além de não consentir a candidatura de mulheres, a Academia oferece como justificativa uma interpretação enviesada do Art. 17, segundo a qual o vocábulo “brasileiros” aludia apenas a indivíduos do sexo masculino. O próprio Clóvis Beviláqua, que desempenhava a função de jurista, comprou uma briga com a agremiação ao advogar em favor da esposa. O jurista chegou a publicar artigos em que condena seus pares por desrespeito ao que considera um “preceito elementar de hermenêutica”, e deixa de freqüentar a Academia a partir de então. Esta “firula gramatical”, expressão utilizada pela escritora e acadêmica Ana Maria Machado, teve como corolário a modificação do referido Art., em 1951, que passou a incorporar o aposto restritivo “do sexo masculino”, oficializando a inelegibilidade feminina. Com esta alteração, o Art. 17 passou a designar que “os membros efetivos serão eleitos, nas condições do art. 2.º dos Estatutos, dentre os brasileiros, do sexo masculino, que tenham publicado, em qualquer gênero de literatura, obra de reconhecido mérito, ou, fora desses gêneros, livros de valor literário” (grifos nossos). Estava, assim, sacramentada a inadmissão feminina na Casa de Machado de Assis. Em 1970, Dinah Silveira de Queiroz propôs candidatura, mas teve a mesma fortuna que Amélia Beviláqua: o veto. Somente em 1976 a Academia suprime do Art. 17 o aposto restritivo e, no ano seguinte, assiste à eleição da primeira imortal, a escritora Rachel de Queiroz.              

[3] As subseqüentes menções à Academia Brasileira de Letras aparecerão sob a forma abreviada “ABL”.

[4] Ao longo do século XIX, a França firmou-se como metrópole internacional, o que se deveu ao seu potencial formador significativo, advindo do expressivo arsenal cultural de que dispunha (teatros, museus, cafés, galerias, academias, escolas de formação, ateliês), fornecendo aos artistas um espaço de convivência e um intercâmbio de experiências dos mais profícuos, consagrando-se pólo de atração de estrangeiros em busca de lapidação de seus conhecimentos, de remate de suas qualificações artísticas. Isso posto, a escolha da Academia Francesa, fundada em 1635, como modelo inspirador para a criação da ABL não foi gratuita, já que esta seria uma forma eficaz de ratificar o projeto tupiniquim, valendo-se, para tanto, de um referencial já consagrado, o que viabilizaria a oficialização da instituição, dando-lhe a legitimidade necessária para sua consolidação e perenidade (SIGNER, 1988; RODRIGUES, 2001).

[5] De acordo com a Ata da ABL de 4 de junho de 1910, “o sr. Medeiros de Albuquerque lê uma indicação assinada por vários membros para que seja criado um uniforme acadêmico, o qual deverá ser exigido dos novos membros. É aprovado contra o voto do sr. José Veríssimo”.

[6] Compunham a Diretoria da ABL os seguintes acadêmicos: Carlos de Laet e Afrânio Peixoto (Presidentes), Ataulfo Paiva (Secretário-Geral), Goulart de Andrade (Primeiro-Secretário), Aloísio de Castro (Segundo-Secretário) e Alberto Faria (Tesoureiro). Fonte: 110 anos da ABL, op. cit., p. 111.

[7] O fardão francês, criado em 1801, foi inspirado no uniforme do corpo diplomático francês. No Brasil, os acadêmicos continuaram seguindo o modelo francês, mas procedendo às adequações necessárias. Para tanto, a fonte inspiradora do traje dos imortais da ABL fora também o corpo diplomático brasileiro. O fardão francês era “além de uma roupa de gala de cor preta, compreendendo chapéu, casaco e calça bordados com ramos de oliveiras (...) A espada era de uso estrito aos que pertencessem ao Poder Executivo” (Oster, apud EL FAR, 2000: 103).

[8] Trecho do artigo “Academia Brasileira de Letras”, escrito por Odylo Costa e publicado no Jornal do Commercio, 5 de junho de 1930.

[9] Muito embora a modificação do Regimento Interno tenha sido promovida em 1976, foi apenas no ano seguinte que a primeira mulher conseguiu oficializar sua candidatura e sagrar-se imortal. Por isso, o ano de 1977 é considerado ponto de inflexão no concernente às discussões concretas acerca do “fardão feminino”.

[10] Esta questão foi lançada pelos acadêmicos, em 1930, em virtude da proposta de candidatura encaminhada por Amélia Beviláqua.

[11] No soneto em questão, Henriqueta Lisboa ironiza a interpretação “interessada” do Estatuto pelos membros da ABL, referindo-se, de forma cifrada, às discussões em torno do vocábulo “brasileiros”, deixando bem claro na última estrofe se tratar de “um velho tema”. Para tanto, a poetisa estabelece uma analogia com as cores das cadeiras e a “firula gramatical”, a partir da qual explicita a responsabilidade dos acadêmicos pelo veto, a cumplicidade dos mesmos para com o regimento elaborado quando da fundação da instituição, apoiado na adoção improvisada de um discurso sobremaneira “conveniente”. À guisa de ilustração, segue a íntegra do poema:      

“As cadeiras azuis da Academia

é problema insolúvel da mulher . . .

Acrescentar ao caso uma ironia,

Eis, a meu ver, o que se faz mister.

As reticências, em diplomacia,

são recursos melhores que qualquer,

Eu sei de gente má que malicia

pelo que se disser ou não disser . . .

Vejo-vos, ó poltronas, face a face,

e não posso atingir a honra suprema

enquanto ao meu alcance não descerdes!

Ai de mim se de leve alguém pensasse

que eu, fazendo lembrar um velho tema,

em vez de azuis vos ver, vos visse ‘verdes’”... (apud FILHO, 2006: 23)

[12] O autor do comentário é Pinheiro de Vasconcellos, que dedica um artigo à Amélia Beviláqua, intitulado “A nossa Academia de Letras e a mulher”.Texto originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 6 de junho de 1930. Fonte: Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL

[13] Trata-se da já mencionada crônica “As mulheres na Academia”, publicada no Jornal do Brasil, em 5 de agosto de 1976. Fonte: Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL

[14] 5 de agosto de 1977. Fonte: Arquivo Rachel de Queiroz/ABL.

[15] Correio do Povo. Porto Alegre, 5 de agosto de 1977; Diário de Minas. Belo Horizonte, 5 de agosto de 1977; Folha da Tarde, Porto Alegre, 5 de agosto de 1977; Jornal do Comércio. Recife, 5 de agosto de 1977. Fonte: Arquivo Rachel de Queiroz/ABL.

[16] A virilidade do nome “fardão” foi conservada, tendo sido apenas acrescida do adendo que o particulariza como “traje para mulher”.

[17] Declaração feita no dia de sua posse Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1977. Fonte: Arquivo Rachel de Queiroz /ABL.

[18] Entrevista concedida à pesquisadora, em 7 de agosto de 2008, por Ana Maria Machado.

[19] Como mencionado no início deste artigo, em 1970, Dinah Silveira propõe sua candidatura, mas tem o seu pedido negado, respaldando-se no “aposto restritivo” do Art. 17 do Regimento Interno. Apenas em 1979 tem sua candidatura formalizada, embora saia derrotada do pleito. É somente em sua segunda candidatura oficial que Dinah Silveira obtém a sagração como acadêmica, tendo sido empossada no dia 7 de abril de 1981. As demais escritoras a ingressarem na ABL foram: Lygia Fagundes Telles, em 24 de outubro de 1985; Nélida Piñon, em 27 de julho de 1989; Zélia Gattai, em 7 de dezembro de 2001 e Ana Maria Machado, em 24 de abril de 2003.

[20] Os gastos com a confecção do “fardão feminino” de Rachel de Queiroz ficaram por conta do Governo do Ceará, que desembolsou Cr$250.000,00 para o vestido e Cr$20.000,00 para o colar. Da mesma forma, os demais vestidos foram oferecidos às acadêmicas pelo Governo do Estado natal de cada uma. Porém, no caso de Dinah Silveira de Queiroz, a cortesia oferecida pelo então Governador de São Paulo Maluf foi prontamente dispensada. Fonte: Arquivo da ABL.

[21] Entrevista concedida à pesquisadora, em 10 de agosto de 2008, por Nélida Piñon.

[22] Muito embora Rachel de Queiroz afirmasse nunca ter tido a idéia de entrar para a ABL, dispensando a participação em associações e confrarias literárias, admitia a importância das mesmas, como espaços de legitimação do artista. Segundo a própria escritora, “o artista é um ser humano e como tal, está vulnerável a todas as tentações, ao poder, às ambições de toda natureza. O que acontece é que, às vezes, para se proteger, o artista tenta se legitimar nas confrarias, porque unido a outros artistas ele pode se sentir mais forte (...) A Academia é um lugar onde você encontra alguns amigos, troca idéias e busca compartilhar algumas coisas a respeito do seu ofício de escritor (QUEIROZ, 2002: 198). Portanto, de forma gradual, a indiferença se transformou em interesse, especialmente porque seu círculo de amizades, composto em sua maioria por escritores, estava cada vez mais vinculado à ABL, o que lhe despertou certa sensação de alijamento (ainda que voluntária), ao ver-se “excluída” dos encontros facultados pela agremiação (QUEIROZ & QUEIROZ, 1998: 210). Rachel de Queiroz assistiu, um a um, aos ingressos de seus amigos mais próximos à Casa de Machado de Assis, envolvendo-se especialmente com a candidatura de Adonias Filho e Otávio de Faria. Para quem possuía uma postura mais distanciada, e um declarado desinteresse pelas confrarias, era pronunciado o repentino envolvimento da escritora com o “Silogeu brasileiro”, tendo até mesmo participado da campanha para angariar votos para ambos, que obtiveram êxito nos respectivos pleitos. Fica, pois, evidente que a escritora estava cada vez mais inclinada a fazer parte da ABL, tendo tido em seus amigos acadêmicos verdadeiros incentivadores e aliados. Tanto que, se estabelecermos um paralelo com as propostas de candidatura de Amélia Beviláqua e Dinah Silveira de Queiroz, notaremos uma clara diferença, especialmente porque agora estamos diante de uma indicação (e não de “auto-indicações”), o que possui um peso outro neste processo de abordagem e apresentação à agremiação, sendo uma confirmação da boa relação que a escritora mantinha com seus pares, por conseguinte, de sua posição privilegiada neste espaço de constrições e disputas simbólicas. Por sua vez, a auto-indicação aponta justamente para o oposto, e atesta a desvantagem em que se encontra o(a) solicitante. Se as regras e critérios que orientam a seleção de novos membros são elaborados pelos próprios acadêmicos, a indicação atua como uma espécie de preâmbulo, de antecipação do ingresso. Desta feita, não se tratava, a princípio, de questionar os Estatutos e o Regimento Interno da ABL, mas de facultar o ingresso de alguém que mantinha laços estreitos com muitos acadêmicos, e que, “por ironia do destino”, era uma “brasileira, do sexo feminino”, portanto, não contemplada pelo Regimento Interno, que ainda bradava a referida emenda restritiva (“brasileiros, do sexo masculino”). Nestas condições, o Art. 17º  passou a ser um empecilho, e deveria ser modificado a contento. O posicionamento de Osvaldo Orico, que foi quem mais se empenhou internamente pela aprovação da candidatura de mulheres, atesta seu inconformismo, já que, além de haver se ausentado do pleito que sagrou Rachel de Queiroz, definiu publicamente a eleição como “um efeito de pressões de fora, especialmente do Conselho Federal da Cultura”, órgão presidido pelo acadêmico Adonias Filho, que, aliás, foi quem recebeu a candidata eleita quando de sua posse. De acordo com Orico, o empenho de Adonias Filho na campanha de Rachel de Queiroz, que chegou a envolver o Conselho Federal da Cultura, correspondia a uma troca de favores, pois fora a escritora quem o indicara para ocupar tal cargo no Governo. Outro aspecto que merece atenção é o discurso de recepção proferido por Adonias Filho na ABL, em recepção a Rachel de Queiroz, no qual referência alguma é feita ao fato de se tratar da primeira mulher a integrar a agremiação, reservando sua análise ao tratamento/enaltecimento de algumas das personagens femininas que compõem a faceta dramatúrgica de Rachel de Queiroz, referindo-se especialmente às peças Lampião e A beata Maria do Egito. Adonias Filho justifica que “é através da personagem feminina, efetivamente, que vós, atingindo a órbita social e aspectos do problema humano nordestino, fizeste do teatro um veículo para a auscultação” (FILHO, 1981: 63; HOLLANDA, 1992).

[23] Entrevista já citada, concedida por Ana Maria Machado.

[24] Ao mesmo tempo em que Gilda de Mello e Souza aborda a experiência social das sufragettes, sua trajetória profissional está sendo indiretamente tematizada, sob dois aspectos distintos, porém indissociáveis: tanto com relação ao conflito geracional que experimentou, quanto com relação às tensões de gênero que se colocaram como aspecto premente de seu itinerário. Como aponta Heloísa Pontes, Vilma Arêas chama a atenção para o modo sutil e esgueirado com que essa abordagem, que supõe a problematização do percurso da autora de O espírito das roupas, é engendrada e compõe, sob a forma de lampejos criativos, a dinâmica de seu processo de investigação sociológica. Assim, “o reprocessamento da experiência de transição vivida pelas mulheres de sua geração permite a ela [Gilda], como autora, uma lucidez particularmente aguda em relação aos meandros da chamada cultura feminina, vista sempre em relação e conexão com o universo masculino” (PONTES: 2004, 43; cf. Idem, 2006).    

[25] A título de ilustração, quando questionada sobre a vestimenta masculina ser uma “artimanha feminina para ter acesso ao mundo masculino”, a historiadora francesa Michelle Perrot, em entrevista concedida à também historiadora Sheila Schvarzman, lembra que Georges Sands “começa a se vestir de homem entre 1830, 1831 [aos 26 anos]. É o momento que, ainda casada mas já insatisfeita ela abandona o seu marido e vem para Paris e quer escrever. Adota o pseudônimo de Georges Sand e se veste de homem para ter maior liberdade: ir ao teatro sozinha, ir à Câmara dos Deputados que era evidentemente proibida para as mulheres. Se tolerava na época o fato de mulheres se vestirem de homem. Sand não era a única” (SCHVARZMAN, 1995: 35). 

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2008 - juillet/décembre 2008