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abrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /décmbre 2009 -janeiro/dezembro 2009

Flávia Schilling e a escrita de si como dispositivo de resistência

Susel Oliveira da Rosa

Resumo:

Flávia Schilling viveu os “tempos sombrios” da ditadura militar, exilando-se no Uruguai com a família logo após o golpe em 1964. Lá militou, foi presa e permaneceu encarcerada por oito anos. Retornou ao Brasil somente em 1980, após uma ampla campanha nacional e internacional pela sua libertação. Durante os anos de cárcere escreveu muitas cartas endereçadas a sua família. Esse artigo é o resultado de um contato inicial com as cartas de Flávia, pensadas aqui enquanto “dispositivo de resistência”.

Palavras-chave: Flávia Schilling, ditadura militar, escrita de si

 

 

Esta semana [...] estive explorando a lua e as estrelas e caminhando pela estratosfera.

Flávia Schilling, carta de 26/04/75

“Reli todas as cartas que tinha e fiz com elas o colchãozinho de ternura e amor que necessitava para sobreviver”, escreveu Flávia Schilling em uma carta datada de 01/02/1975. “Vocês nem imaginam como me ajudaram nos vinte dias mais compridos da minha vida” (Schilling, 1980:49). Essa carta, como as demais que foram publicadas, era endereçada a sua família. Os vinte dias se referem ao tempo que ela ficou sendo torturada em um dos inúmeros quartéis do Uruguai, pelos quais passou nos quase oito anos de cárcere.

Flávia Schilling foi uma das brasileiras obrigadas a sair do país em 1964. Seu pai (ligado ao grupo de Leonel Brizola) pediu asilo político no Uruguai, juntamente com a esposa e as quatro filhas do casal. Na época, Flávia tinha 11 anos e a ditadura uruguaia não havia sido instaurada. Os anos de militância começaram cedo, ainda durante o secundário – nosso atual ensino médio. Com 18 anos, Flávia já havia participado da Frente dos Estudantes Revolucionários (FER) e fazia parte dos “Tupamaros” - ou Movimento de Libertação Nacional (MLN) -, grupo político de guerrilha urbana formado no Uruguai nos anos 1960. Entre as ações executadas pelos Tupamaros, ficaram conhecidas as “expropriações” a bancos e, por vezes, a posterior distribuição de dinheiro, e mesmo comida, aos pobres de Montevidéu. Outra ação conhecida dos Tupamaros foi o seqüestro e a morte de Dam Mitrione, policial dos Estados Unidos que ensinava técnicas de tortura aos sul-americanos - e morou dois anos no Brasil - usando mendigos como cobaias nas aulas práticas.

No final dos anos 60, as Forças Armadas do Uruguai iniciaram uma intensa repressão ao grupo, através de prisões em massa, assassinatos e desaparecimentos de militantes. O ano de 1972 foi o marco dessa ação, pois, apesar de não instaurada ainda a ditadura no Uruguai, a repressão e os “esquadrões da morte” detiveram e destruíram a maior parte da estrutura do movimento com seus militantes sendo presos ou deixando o país.

Em 24 de novembro de 1972, Flávia e seu companheiro receberam ordem de prisão numa das ruas de Montevidéu. Ela tentou escapar, jogou em cima do policial a bolsa de roupas que carregava e correu, mas um tiro a paralisou: o disparo do policial uruguaio atingiu seu pescoço. Flávia permaneceu as cinco primeiras semanas de prisão, sem autorização para receber visitas, no Hospital Militar de Montevidéu. A única comunicação com o mundo externo eram as cartas, que passavam pelo filtro da censura prévia para serem liberadas:

Por mim não se preocupem, tive muita sorte, a ferida não foi muito grave e estou melhorando. Nos primeiros dias, quem olhasse para mim morreria de riso: cheia de tubinhos por todos os lados. O soro pela perna, a respiração pelo caninho da traqueotomia, e tomando líquidos por um tubinho que tenho desde o nariz até o estômago. Agora já fecharam a traqueotomia e continuo apenas com os outros dois. O mais chato é que há dezesseis dias estou à base de líquidos (tenho a faringe ferida) e estou tão fraca que não me agüento. Imaginem: caminho da cama ao banheiro e quando me deito é como se tivesse estado fazendo ginástica uma hora sem parar [...] Aqui me tratam muito bem, os médicos me atenderam genial. (...) O chato é que não se tem nada que fazer, e os dias ficam muito compridos. Não pensem que me queixo. Muita gente está pior do que eu. (...)Trecho da primeira carta de Flávia: domingo, 10 de dezembro de 1972 (Schilling, 1980:11)

São as primeiras notícias que ela escreve, narrando, na medida do possível, seu estado geral. Já nessas cartas, quando Flávia ainda estava no hospital, podemos perceber como a escrita de si é fundamental, transformando-se em potência de vida, fornecendo-lhe forças para enfrentar a dura situação:

Querida família:

Não imaginam como me alegrou e me deu forças a carta que recebi. Estou fazendo o impossível para me comportar bem, como é preciso saber se comportar nas circunstâncias em que estou vivendo. Confesso que me sinto fortíssima espiritualmente e trato de me situar diante de tudo. Recebi a encomenda quarta-feira, que aqui é chamada “o dia do choro”, porque todas as mulheres se derretem quando recebem carta. Eu prefiro guardar as minhas lágrimas para as ocasiões tristes, e não para estas. Bem, meu estado de saúde é o seguinte: estou pesando (caiam duros!) 45 quilos. Perdi nove quilos em 22 dias. Já tiraram todos os tubos e sondas e comecei a tomar líquidos pela boca.

Meu apelido é “empório da tosse”, pela quantidade de tosse que tenho quando engulo [...] Estou falando um pouco mais claro, e pode ser que a voz fique um pouco mais baixa (e essa!), segundo o cirurgião, mas a verdade é que não estou entendendo nada. Teria que ver o dicionário. A bala destroçou a epiglote. [...]

Sabem de uma coisa? Começo a gostar muito dos dias de chuva. Me analisei (!!!); deve ser porque aí a gente tem uma desculpa e se sente feliz por estar debaixo de um teto, sem se molhar. Que coisas a gente pensa quando está em cana! [...]

Trecho da segunda carta de Flávia: domingo, 17 de dezembro de 1972 (Schilling, 1980:12)

Para Foucault, a escrita de si “dá ao que se viu ou pensou um olhar possível [...] e desempenha o papel de um companheiro” (1992, p.131). Ao escrever para sua família, Flávia narrava o que acontecia com ela e, mesmo coagida pela censura, estabelecia uma forma de contato com o mundo externo.

Após cinco semanas no Hospital Militar, Flávia foi enviada para o Sexto Regimento da Cavalaria, onde começou a rotina dos “interrogatórios”, acompanhada dos “translados” entre presídios e quartéis, pois no Uruguai,

o prisioneiro político devia atravessar primeiro o circulo infernal da tortura, onde muitos morreram, e a maioria ficou com seqüelas físicas ou psíquicas. Translados aos presídios, deviam destinar os primeiros tempos à adaptação às duras condições de vida e alijamento de tudo o que pudesse ter um significado para eles. Depois, os anos de desgaste diário, algumas viagem aos quartéis para ser novamente torturado; as doenças provocadas pelas condições carcerárias: toda uma maquinaria a serviço da destruição do ser humano (Baumgartner, 1987:184).

Para Flávia, a rotina perversa da repressão uruguaia começava: das torturas aos translados e permanências prolongadas em calabouços. As duas cartas publicadas referentes a esses dias são curtas, fazendo intuir seu estado:

[...] o que mais acontece à gente, e acho que às vezes isso é péssimo, é divagar. Chegou um momento em que a gente está pensando em que vestido vai pôr quando sair de novo para passear na Rambla ou o que vai comer no primeiro café da manhã com seus seres queridos. Isto é ruim. É preciso tentar viver no presente, tirando do dia-a-dia tudo o que possa ser tirado, e não se perder num futuro que para quase todos nós é longínquo. (...)Trecho da carta de Flávia: terça-feira, 23 de janeiro de 1973 (Schilling, 1980:14-15)

Flávia estava certa quanto ao futuro longínquo, pois, no Uruguai, em conjunto com a tortura e os “desaparecimentos”, a repressão utilizou a prisão prolongada – as condenações variavam de 3 a 30 anos – como forma de destruição lenta e sistemática dos presos políticos. “O país transformou-se num campo de concentração do tamanho de seus limites geográficos e numa ubíqua câmara de tortura” (Baumgartner,1987:15). Se o futuro livre dos cárceres e da tortura parecia longínquo a Flávia, se à sua volta sentia na pele um mundo repleto de dor e solidão, a escrita de si talvez minimizasse um pouco os efeitos ou, como diz Foucault, os “perigos da solidão”. Flávia compartilhava essa solidão pela própria escrita ou pela possibilidade de ser lida pelos seus destinatários, pois, quando falamos com alguém, ouvimos o que dizemos; quando escrevemos, lemos o que está sendo escrito. Dessa maneira, tanto a escrita de si quanto o falar de si, possibilita um exercício pessoal. Exercício que ameniza a solidão, pois a carta enviada “atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e releitura, sobre aquele que a recebe” (Foucault, 1992:145)[1].

Depois da primeira fase de interrogatórios, Flavia seguiu para o presídio de Punta Rieles e de lá para vários quartéis, permanecendo por três anos ou mais em “calabouços”, totalmente isolada. O episódio marcante desse círculo repressivo aconteceu em 1973, quando Flávia e outras sete presas foram retiradas de Punta Rieles. Concomitantemente, nove prisioneiros do “Libertad” – presídio utilizado para encarcerar os homens – também foram retirados da prisão. Eram os presos políticos mais perigosos, para a repressão uruguaia. A partir daí, foram transformados em reféns da ditadura, eram transferidos para sucessivos quartéis do país e mantidos incomunicáveis em calabouços, sendo que, se algum atentado fosse cometido contra os militares ou pessoas ligadas à repressão, eles seriam assassinados. Para Maria Elena Curbelo de Mirza, ex-presa política uruguaia, o refém não tinha nenhum tipo de vida social, o refém está sepultado em vida e seus carcereiros se propõem, desta forma, matá-lo lentamente. [...] é a tortura que tenta destruir devagar, que tenta a destruição lenta, mas total dos militantes, pesando, além de tudo, a permanente ameaça de que qualquer ação de seu partido ou organização política pode determinar seu fuzilamento (Baumgartner, 1987:185).

Na carta de julho de 1973, Flávia, transformada em refém, relata o episódio de sua “transferência”:

Querida Família:

Estou bem – bem cansada, como podem imaginar. Tenho um milhão de coisas para contar, porque na carta anterior, achando que não iam recebê-la, fiz só uma divulgação. Nos levaram de Punta, quarta-feira, dia 20, com destino ignorado. Com a amabilidade que caracteriza o estabelecimento, não houve uma palavra de despedida. [...] E lá fomos as vítimas da neurose da Punta: primeiro, Alba Antunez (minha irmã!) e Estela Sanchez, depois Jessie Marchi e Grazia Dri, por um lado, e Cristina Cabrera e eu por outro; finalmente Raquel Dupont e Elena Curbelo.

Deve ter havido outro grupo com Lúcia Topolanski no lugar de honra. Era a máfia completa. Parece que, para justificar a medida, fizeram correr o boato de que planejávamos uma fuga. Coisinha de nada, o boato, hein? As gurias literalmente subiam pelas paredes. Quando fomos levadas, naturalmente, toda Punta Rieles estava nas janelas. Mares de lágrimas (...)[2]Trecho da carta de Flávia: quarta-feira, 3 de julho de 1973 (Schilling, 1980:27)

A “amabilidade” que caracteriza o presídio feminino de Punta Rieles – situado a 12 km do centro da cidade de Montevidéu – era conhecida na época. Flávia, por exemplo, na maior parte do tempo que esteve fora dos “calabouços”, a partir de 1976, ficou presa no setor “B” do local. As prisioneiras acordavam às 05h45min da manhã para trabalhar: entre outras coisas, carregar pedras de um lugar para outro para, no final, deixarem as pedras no mesmo lugar de onde haviam sido tiradas. A punição para qualquer infração ao regulamento do local variava entre permanecer 30 dias nos calabouços do presídio e ficar quatro horas em pé, sem se mexer, no pátio de recreio.

O tratamento “amável” – todas ali eram vidas descartáveis, vidas nuas, para a ditadura – tinha como objetivo destruir e levar à loucura as presas políticas. Tanto que, em janeiro de 1978, a presa política Norma Cedrés, impedida de dormir no calabouço onde era mantida, suicidou-se. Provavelmente, calabouço semelhante ao que descreve Flávia:

E aqui estou. O calabouço é pequeno, calculo que 1,5m por 2,5m. Tenho uma cama, um armário pequeno que serve de mesa, e uma cadeira. Há espaço para caminhar (cinco passos ida e volta, cinco passos). As paredes estão pintadas de azul, teto branco, uma janelinha com oito vidros pequenos, cobertos com tinta branca, pelos quais brinco de adivinhar como está o dia, que cor terá o céu.

Por um dos vidros, vejo uma árvore. Acho que quando sair vou sentir terror aos espaços abertos e às multidões (se continuo muito tempo aqui). Não temos recreio, e só saímos do isolamento para ir ao banheiro. Tomamos banho uma vez por semana, porque aqui não há água quente e é preciso levar-nos à enfermaria. Nunca vejo a Cristina. Para não esquecer minha voz, canto, porque o que falamos com os carcereiros se reduz a "preciso passar no banheiro", "obrigada", "apague a luz", etc [...] Trecho da carta de Flávia: quarta-feira, 3 de julho de 1973 (Schilling, 1980:28)

Brincar de adivinhar como estava o dia, que cor teria o céu, contar os vidros, os passos e cantar para não esquecer a própria voz eram alguns dos artifícios que Flávia usava para não enlouquecer. Muitas de suas cartas fazem referência a esses confinamentos nos calabouços da repressão uruguaia: na carta de março de 1973, por exemplo, ela fala do tempo na prisão e do tempo no calabouço, ambos diferentes do tempo fora desses espaços e campos de exceção:

Querida família:

Sabem como se conta o tempo na prisão? A data mais importante é, logicamente, a da queda: dia “zero” de uma nova era da nossa vida. Eu, por exemplo, não estou na segunda-feira, 19 de março, mas a quase quatro meses da noite 24 de novembro [...] Nossa semana começa no dia da chegada dos pacotes e cartas (quarta-feira). Neste dia recebemos o “ânimo” de fora que nos permite agüentar agüentar até a outra quarta-feira. [...] Os dias mais importantes são os de visitas. [...] Quando estava no calabouço, como além de tudo não tinha relógio, o mais importante era a comida, e depois da janta começava a situação mais importante de cada dia, que era a espera dos interrogadores. [...]Trecho de Flávia: punta rieles, segunda-feira, 19 de março de 1973(Schilling, 1980:20)

Se o tempo da tortura é outro - um tempo que se mede em intensidade, como diz Nilce Cardoso[3] –, o tempo do calabouço também é outro, é um tempo de obscuridade, de silenciamento total, de dor, no qual nem mais o tempo cronológico ancorava a espera de Flávia. Viñar acena para o que chama de unanimidade entre os ex-presos políticos que entrevistou: a de que “é mais terrível esperar que sofrer. É durante este tempo de espera que se trama a fraqueza ou a coerência” (1992:32).

A espera de Flávia foi longa, e não apenas nos calabouços: ela ficou presa dos 19 até os 26 anos nos cárceres da ditadura uruguaia. De novembro de 1972 a abril de 1980, foram quase oito anos de espera. As visitas nem sempre eram autorizadas, por vezes as proibições duravam meses. Outras vezes, ficavam proibidas as cartas, ou os pacotes enviados pelos familiares não eram entregues. Em alguns locais as presas recebiam as visitas através de muros, ou algemadas (como aconteceu com Flávia). Visitas que duravam, no máximo, 30 minutos. Sendo que, durante os anos que Flávia esteve presa, tanto seu pai quanto sua mãe – em datas diferentes – foram expulsos do Uruguai. Logo, quem a visitava depois disso, eram as irmãs.

No entanto, Flávia parece ter movimentado todas as suas forças para não se deixar dominar pela situação-limite à qual estava submetida. Brincar - ou ironizar - essa situação foi uma das brechas encontradas para não sucumbir. Numa das cartas enviadas do “calabouço”, ironiza sua situação utilizando-se dos personagens do cartunista argentino Quino: “também pensei que já estou cheia de mim mesma! Acho que vou fazer como o Miguelito (de Mafalda) e, através de um golpe de estado, derrocar a minha velha personalidade” (Schilling, 1980:58).

Outra estratégia foi a de valorizar os “companheiros possíveis” que se juntavam a ela no calabouço. Nessa mesma carta ela conta que tinha uma companheira: uma gatinha que vinha todos os dias, nos horários das refeições, lhe fazer companhia. Além dela, outros personagens povoavam o local:

vejam os nomes dos bonecos que moram comigo no calabouço: ‘Pepón’, ‘Margarito’, ‘Martina’, ‘Dark’, ‘Grillín’, ‘Flashita’, ‘Nosotros’. Algum dia apresentarei eles a vocês. ‘Nosotros’ é um palhacinho que ganhei de presente de Mabel; ela ficou com ‘Nosotras’. O nome surgiu quando Mabel estava sozinha; para não falar consigo mesma, ela falava com a palhacinha e lhe dizia sempre: “porque nós (nosotras) pensamos tal coisa... o que é que achas se nós...” Daí vem o nome. Entenderam algo? Mando tantos beijos como quando semeávamos a terra em Punta Rieles, jogando punhados de sementes no solo recém-plantado. Trecho da carta de Flávia: 19/06/1975(Schilling, 1980:59)

Mabel (Alba Mabel Antúnez de Balmelli) era amiga de Flávia, prisioneira em Punta Rieles que também era deslocada constantemente para calabouços e outros quartéis. Por alguns dias, elas conseguiram ficar juntas na mesma cela. A alegria de ambas é demonstrada pelas cartas de Flávia desses dias, nas quais Mabel também escreve para a família Schilling:

Oi! E esta letra estranha? Sou a Negra. Estamos aqui, juntas. Parece incrível, mas é absolutamente real. Aqui estou, com a Flá sentada à minha direita e escrevendo nesta folha que lhes pertence, só para compartilhar com vocês a alegria que a nova situação tem produzido em nós. Claro que nunca é perfeito, e ser duas significa suportar a Flá!!! – a qual nesse momento olhou o que eu estava escrevendo e pôde-se escutar um “mmmm” que eu suponho que significa desaprovação. Tendo por certo o fato de que ela é malcriada e não mal-educada, eu me pergunto: como é que vocês fizeram para suportá-la 19 anos e ainda tem forças para querer continuar fazendo isso? Porque, francamente, com a ajuda de outras companheiras, mais ou menos é possível agüentá-la, mas sozinha... é uma luta. Trouxeram-na ao meu “quarto”, mas ela parece não dar bola para isso.

Desde que veio estou tentando fazer valer os meus direitos de propriedade, mas é inútil. “Flá, o que é que você acha de colocarmos esse boneco aqui?” “Não, aqui”, e ponto final, sem nenhum constrangimento. Se eu troco de lugar, me viro e parece que o boneco tem pernas: sempre está onde a Flá quer. Em teimosia, Flá é a primeira. Não está bem que vocês fiquem sabendo dos nossos desentendimentos, mas acho que não vou poder agüentar muito tempo mais. Agora vou deixar lugar para ela, portanto termino esta minha atrevida incursão. Nem pensem que a lista de queixas termina por aqui, toda a folha não seria suficiente. Apesar de todas as coisas negativas, eu a quero muitíssimo (sempre acontecem essas coisas incompreensíveis, não é?) e vocês não podem imaginar a alegria que sinto por ter que agüentá-la. Tomara que seja por muito tempo. [...] Mabel

P.S. – Dormimos em média 4 horas por dia. Durante as outras 20, FALAMOS. Embora a Flá diga que eu a deixo tonta, a concorrência é dura.

Bom, com esta introdução, já puderam notar como é minha companheira de cativeiro, atrevida e super impertinente. [...] Já faz uma semana (que parece um mês de tão comprida) que a estou agüentando, mas como sou um anjo de paciência e compreensão, nos entendemos bastante bem. Falando sério: que beleza, heim? Estamos tão ocupadas todo o dia (fofocando naturalmente), que nem temos tempo pra ler. [...] Vocês teriam que ver como está nova situação melhorou nosso estado de ânimo (que nunca esteve mal, mas agora estamos contentes).

Dizemos bobagens, morremos de rir e nos contamos coisas, dessas que a gente só conta às pessoas muito amigas e que nos compreendem muito. Não sentimos nenhuma saudade dos trabalhos manuais, e agora só desejamos três coisas: não voltar para Punta Rieles, não voltar para “Cavalaria IV” e tomar uma xícara de chá. Ninguém pode dizer que somos exigentes demais, não é? Além disso, estamos contentes por ter suportado bem esses anos de incomunicabilidade, sem perder a fé...Trecho da carta de Flávia: 05/06/1974,(Schilling, 1980:39-40)

Nesses dias, coincidiu de Flávia e Mabel estarem num Quartel no qual o comandante permitiu que ambas convivessem. Contudo, foram poucos dias, logo voltaram para Punta Rieles e de lá para vários outros, incluindo novas estadias nos calabouços. Na carta seguinte, do próximo mês, Flávia já anuncia que deverá ir para o “Cavalaria IV” – pelo visto um dos quartéis mais temidos para ela, juntamente com Punta Rieles, aos quais ela desejava não mais voltar, como diz na carta anterior:

Analisei desde o porque me tornei “tupa” (razões políticas, sociológicas, psicológicas e circunstanciais) até hoje [...]; além disso, notei outro “derretimento de esquemas” (porque meus esquemas são muito especiais, não se rompem, derretem lentamente como a manteiga) e outras coisas mais. Tudo isso me faz muito bem, pois tenho uma tendência muito grande em meter-me na carapaça e não pensar em coisas que possam vir a me complicar. É tal a defesa psicológica, mas convém não exagerar. Por enquanto, estou fazendo uma reserva de paciência bem grande para poder agüentar de novo o “Cavalaria IV”, para onde deveremos ir outra vez [...] Trecho da carta de Flávia: 20/07/74 (Schilling, 1980: 41-42)

 “Há cartas que não guardam apenas recados, doenças do fígado, frases bem feitas, há cartas que captam instantes fugidios, fases específicas, mudanças de rota, pontos de desconversão da alma, seu gênero narrativo possibilita fixar as forças do devir de uma existência”, diz Ionta (2007, web). Nesse sentido, segundo Foucault, a escrita de si incita-nos à invenção de outras formas ao conjugarmos os verbos da nossa vida. A pergunta “o que tenho escolhido fazer de mim?” acompanha essa escrita. Essa pergunta parece ter guiado Flávia na reflexão anterior, quando ela fala da análise que fez dos motivos que a levaram a entrar para a guerrilha – “porque me tornei ‘tupa’ [tupamara]” – levando Flávia a uma flexibilização de seu olhar – o “derretimento de esquemas”. Reflexão que, conclui ela, faz muito bem. Esse tema é retomado na carta seguinte:

[...] Porque sabes duma coisa? Eu não sou um bicho esquisito, não tenho estrelas de cinco pontas gravadas na testa [bandeira dos tupamaros], não gosto de slogans, nem de rótulos, nem de etiquetas. E odeio os pedestais, não quero ser exemplo de ninguém nem de nada, nem símbolo ou bandeira. Sou como sou, com um monte de contradições dentro de mim, de dúvidas, de medo, de fraquezas. A única diferença entre eu e os outros é que, numa determinada circunstância política, pessoal, familiar, optei por um caminho que não era o mais fácil (podia ter continuado estudando tranquilamente). Mas isso, para mim, não é nenhum mérito. Simplesmente se deram todas as conjunturas para que eu pudesse dar esse passo. E depois de dado o passo, o mínimo que posso fazer é me manter da melhor forma que puder, com a velha filosofia de tirar proveito de todos os fatos da vida.

O que me preocupa é que a imagem que os outros têm de mim não seja diferente demais do que eu sou realmente: em outras palavras, que não me coloquem uma etiqueta irreal. Já tinha lhes falado em outra carta, como uma determinada imagem ou conceito que os outros têm da gente pode chegar a aprisionar a pessoa, a impedir-lhe de ser realmente. E essa pessoa passa a viver exclusivamente em função dos outros.

Eu quero ser o mais livre possível. Se algum dia me cansar e decidir “Chega!” e viver tranqüila, não quero nada com a famosa todo-poderosa opinião pública, ou como queiram chamá-la, que me faça adotar posições falsas. Sou como qualquer pessoa: todo mundo escolhe na vida um objetivo ou um modelo para seguir, e tenta parecer-se ao máximo com ele. Eu escolhi o meu, e tento ser um monte de coisas, mas daí a ser realmente, há uma grande diferença. Meu Deus! Hoje me entusiasmei. [...] Trecho da carta de Flávia: 17/08/1974 (Schilling, 1980:43)

Distante de uma “narrativa de heróis”, Flávia, apesar do aprisionamento, mostrava-se em devir, aberta às novas possibilidades que pudessem surgir e, de maneira alguma, aprisionada a qualquer dogmatismo. Além disso, suas cartas não são densas, não se mostrava esvaziada pela violência do cárcere, das torturas, e mesmo pelos meses que se sucediam. Não reclamava nas cartas, tentava mostrar-se bem e tranqüila, apesar da situação. Conta que, quando possível, em contato com as outras prisioneiras, faziam piadas da situação:

[...] Gostamos muito do “mantecol”, dos doces e pirulitos [que receberam da família de Flávia] Uma noite fizemos uma orgia com eles, comemos um atrás do outro enquanto morríamos de rir com a imagem da gente: “perigosas sediciosas comendo pirulitos” ou, quando Lia se engasgou com um pauzinho do pirulito, “perigosa sediciosa morre subitamente engasgada com pauzinho de pirulito”. Choramos de riso, vocês poderão imaginar. É isso aí, se a gente se propõe, consegue resgatar a alegria em qualquer circunstância. E que importante é não perder a alegria. Eu me convenço cada vez mais que, se a gente leva dentro de si, como sua bagagem, essas coisinhas tão importantes como a alegria, a esperança, o desejo de dar, a paz consigo mesmo, é capaz de ser feliz e (o que está intimamente ligado a ser feliz) fazer felizes os que nos rodeiam.

Não importa onde vivemos, se este lugar onde a vida nos pôs não é aquele com que sonhávamos; o meio não é definitivo. Tudo é feito por nós, criado por nós e depende de nós. Temos que tratar de buscar sempre, em qualquer circunstância e lugar em que estejamos, o bom, o rico, “porque no orvalho das pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e toma sua frescura”. A felicidade não é uma idéia abstrata, nem está formada por sonhos, mas sim nasce cada dia dessa capacidade nossa de deixar que nosso coração encontre sua manhã no orvalho das pequenas coisas.

Para isso, é óbvio, temos que viver o presente, embora esse não corresponda ao presente que tivéssemos desejado. E tampouco podemos deixar que nossos sonhos limitem nossa capacidade de viver o presente. Eu sempre digo que sonho muito e que é preciso sonhar muito no futuro, mas que esse sonho seja feito a partir da realidade de hoje e não uma utopia irrealizável, ou um desejo de retorno ao passado. Se fazemos isso, o sonho deixa de ser uma esperança de um futuro melhor, uma força positiva que nos ajuda a superar o difícil presente, para transformar-se num fator frustrante em nossa vida. [...] Trecho da carta de Flávia: 08 de outubro de 1975 (Schilling, 1980:67-68)

Ao escrever sobre “outros espaços”, Foucault situou as “heterotopias” como contra-posicionamentos, lugares que, apesar de instituídos socialmente, estão fora de todos os outros lugares. Para Foucault, o barco – enquanto pedaço de espaço flutuante, de lugar sem lugar – seria a heterotopia por excelência, pois “nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam” e a espionagem “substitui a aventura e a polícia, os corsários” (Foucault, 2006:422).

Mesmo na prisão, uma instituição disciplinar por excelência, no seio de uma civilização já sem barcos, na qual a polícia já havia substituído os corsários, comunicando exaustivamente os afetos tristes dos poderes estabelecidos e dos tomadores de almas, Flávia sonhava não com uma utopia – “posicionamento sem lugar real na sociedade” (Foucault, 2006:414) – mas com um contra-posicionamento a partir de um lugar efetivo. A partir de um espaço de dentro, Flávia construía seu espaço de fora – para além da prisão – como percebemos no trecho da carta acima: ela não havia deixado de sonhar, tampouco de viver o presente, os tempos sombrios oferecidos pelas ditaduras latino-americanas. Mesmo que para isso, algumas vezes, fosse preciso transformar-se em “borboleta”, como escreve na carta de 4 de fevereiro de 1976: “Encantos: Por aqui, tudo bem. Estou com vontade de transformar-me em borboleta como os mandingas do ‘Reino deste Mundo’ e sair voando por aí. Isso é uma coisa que faço todos os dias, embora apenas em pensamento” (Schilling, 1980:74).

Onde Flávia encontrou forças para não esgotar seus sonhos, para permanecer acreditando nas possibilidades e potencialidades da vida?

Seguindo o fluxo das cartas que analiso parcialmente aqui, penso que Flávia usou os dias, meses e anos de confinamento para refletir sobre suas práticas, flexibilizando seu olhar, mostrando coerência entre suas posturas e uma percepção libertária da vida, como podemos perceber no trecho que segue:

A outra coisa que eu queria dizer (e já briguei com meio mundo por isso) é que não existem formas mais ou menos importantes de militância, todas são importantes, todas são grãozinhos de areia, todas servem. [...]Vocês conhecem a música “Volver a los 17”, de Mercedes Sosa? O que eu queria lhes comentar dessa canção é isso “voltar aos 17 depois de viver um século”. Nossos anos aqui e tudo o que vivemos corresponde a viver um século. O importante é não perder a capacidade de voltar a ter 17 anos. Trecho da carta de Flávia:16/08/1975(Schilling, 1980:64)

“Voltar aos dezessete depois de viver um século [...]

Meu passo recuado quando o de vocês avança

o arco das alianças penetrou em meu ninho

com todo seu colorido passeou por minhas veias

e até a dura corrente com a qual nos ata o destino

é como um diamante fino que ilumina minha alma serena[...]

O que pode o sentimento não o pôde o saber

nem o mais claro comportamento, nem o mais amplo pensamento

tudo muda o momento qual mago condescendente

nos afasta docemente de rancores e violências

Só o amor com seu saber nos torna tão inocentes[...]

Vai se enredando, enredando

como no muro a hera

e vai brotando, brotando

como o musguinho na pedra

como o musguinho na pedra, ai sim..., sim..., sim..

Trecho da composição de Violeta Parra. Música gravada por Mercedes Sosa. Versão brasileira: Milton Nascimento

Mesmo tendo vivido um século – o peso dos anos na prisão deixava essa sensação –, não perder a capacidade de voltar a ter 17 anos. Essa parece ser uma questão importante para Flávia. Não se ter deixado destruir pela dura situação vivida, por mais pesada que fosse. Como um pequeno musgo que teima em permanecer na pedra, como a hera que surge no muro pesado da repressão. O amor poderia afastá-las dos rancores e violências. Amor entendido aqui como cuidado e compromisso com o mundo no sentido atribuído por Hannah Arendt. Mundo que para a filósofa é o “espaço-entre”, no sentido de que o mundo está entre as pessoas. Sendo que para Arendt “manter-se empenhado com o mundo” significa não se sentir bem no mundo de seu tempo e, apesar disso, continuar acreditando nas possibilidades, manter seu compromisso em relação a ele. Ao aceitar o compromisso com o mundo, torna-se contingente refletir sobre o que estamos fazendo de nós mesmos, problematizar nossas práticas, localizando-nos no “entre-tempo” das coisas que não são mais e daquelas que virão a ser (Arendt, 1991:36).

Aliás, creio que há algo mais em comum nesse amor do qual fala Flávia Schilling e sobre o qual escreveu Arendt. No prefácio do livro Homens em tempos sombrios, no qual Arendt fala da amizade, da inquietação e do cuidado com o mundo, ela conta que o título do livro foi inspirado no poema “aos que vão nascer”, de Bertold Brecht:

os “tempos sombrios” a que o título se refere transparecem, penso eu, ao longo de todo o livro. Fui buscar a expressão ao famoso poema de Brecht “aos que virão a nascer”, que fala da desordem e da fome, dos massacres e dos assassinos, da revolta contra a injustiça e do desespero “quando só havia injustiça e não revolta”, do ódio legítimo que no entanto nos desfigura, da cólera justificada que enrouquece a voz [...] (Arendt, 1991:8)

Em função da censura, Flávia não poderia escrever as frases do poema ou fazer maiores referências ao mesmo, mas diz identificar-se muito com ele, desde seus 13 anos. Faz isso ao situar sua família como errante, pois foram sucessivamente expulsos de seus países pelas ditaduras: primeiro do Brasil, em 1964; depois do Uruguai e novamente sob ameaça de expulsão na Argentina. Enquanto Flávia permanecia presa:

(...) Sabem o que estava pensando há uns dias? Que o “povo errante” moderno somos todos nós que, no tempo de uma vida, devido aos vaivens do mundo, nos vemos obrigados a andar, apesar de nós mesmos, mudando de pátria e viver sem fechar as malas. Anteontem me lembrava daquele poema de Bertold Brecht que tanto me entusiasmou desde meus treze anos, “Aos que vão nascer”, que fala do tempo que sobre a terra nos foi concedido. Identifico-me muito com tudo que ele diz, embora não mencione o maravilhoso, pleno e único que também nos proporciona esse “tempo”, se sabemos vivê-lo. [...] Trecho da carta de Flávia: 29/03/1976 (Schilling, 1980:78)

Realmente, eu vivo num tempo sombrio [...] Que tempo é este em que uma conversa sobre árvores chega a ser falta, pois implica em silenciar sobre tantos crimes? [...] A fala denunciava-me ao carrasco. Bem pouco podia eu [...] Assim passou-se o tempo que sobre a terra me foi concedido. Minguadas eram as forças. E a meta ficava a grande distância; claramente visível, conquanto para mim difícil de alcançar [...]Vínhamos nós então mudando de país mais do que de sapatos, em meio às lutas de classes, desesperados, enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma. [...]E entretanto sabíamos: também o ódio à baixeza endurece as feições, também a raiva contra a injustiça torna mais rouca a voz. Ah, e nós, que pretendíamos preparar o terreno para a amizade, nem bons amigos nós mesmos pudemos ser [...] Trecho do poema “Aos que vão nascer” – Bertold Brecht


            Mesmo tendo vivido os tempos sombrios, Flávia acreditava na possibilidade de tornar esse tempo mais ameno. E suas cartas não paravam de ser produzidas, tomando a forma de um arquivamento de si. Arquivamento de si que, para Artières, de prática íntima, adquire, muitas vezes, uma função pública que sobrevive ao tempo e à morte, não como um processo de sujeição, mas como uma forma de subjetivação, como um “dispositivo de resistência” (Artières, web).

[...] Sabem como é que me sinto quando escrevo? Como se tivesse um dique dentro de mim, e deixasse passar por uma portinha um fiozinho de água. Fiozinho que evita que a gente se sinta completamente impotente; só meio impotente. O pior é quando este dique faz parte da gente, e não é imposto, como no meu caso. Trecho da carta de Flávia: 04/02/1976 (Schilling, 1980:75)

A escrita permitia a Flavia não se sentir totalmente impotente. Nesse sentido, escrever parece ter sido uma das formas que ela encontrou para resistir à situação traumática. Mesmo que não houvesse propriamente uma regularidade nas cartas enviadas - em alguns dos quartéis pelos quais passou, podia escrever uma vez por semana; em outros, a cada quinze dias; chegou a ficar proibida de escrever por meses –, a correspondência que enviava e recebia era sua âncora com o mundo fora da prisão. Foram essas cartas que mobilizaram a luta pela libertação de Flávia no Brasil e também fora do país.

O Movimento Feminino pela Anistia (MFA) iniciou a campanha pela libertação de Flávia dos cárceres uruguaios em 1979. Luta que foi assumida também pelo Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), difundindo-se por todos os estados brasileiros. Atos públicos, publicações na imprensa e shows foram organizados para arrecadação de fundos e visibilização da campanha que começou em 1979 e se estendeu até a libertação de Flávia, em abril de 1980. Ao chegar ao Brasil, Flávia agradeceu aos que participaram do movimento pela sua liberdade com uma carta:

Esta carta é muito especial: hoje estou sentada em minha casa; já passou tudo (passou?), deparo-me agora, reaprendendo a vida cotidiana, o diálogo, a espontaneidade, todas as pequenas coisas [...], insegura em muitos aspectos, porém lutando para que o medo à liberdade nunca seja mais forte que do que o amor a ela. [...]Uma pessoa nunca para; todos os dias de sua vida se vai fazendo, nunca se chega. Não pode nem se deve parar. Hoje, eu, que creio não ter parado, faço autocrítica de muitas coisas que fiz e disse. Penso que me livrei de esquematismos, (que somente aprisionam), de muito radicalismo (que faz a gente ser muitas vezes parcial, injusta) [...]Porque descobri a existência de uma atitude humilde ante a vida é que lhes deixo as minhas cartas com humildade.São o “racconto” de momentos de tensão e de angústia, algumas são puro desabafo, outras são brincadeiras, outras, talvez, terapia [...] expressão da eterna luta do homem contra a morte [...]São Paulo, 21/04/1980 (Schilling, 1980:125-126)

Após seu retorno, Flávia ficou morando em São Paulo. Graduou-se em pedagogia, fez mestrado em educação e doutorado em sociologia. Trabalhou em escolas, fez parte do Núcleo de Estudos da Violência da USP, foi consultora da mulher no parlamento latino-americano e atualmente é professora da USP. Pesquisa, orienta e escreve sobre temas que tratam da violência, dos direitos humanos, de relações de gênero, entre muitos outros.

Flávia viveu os tempos sombrios da repressão e da ditadura. No entanto, mesmo presa, manteve-se atenta aos movimentos de afirmação da vida, para além do encarceramento e das torturas. Transcendeu a redução a “vida nua”, criando possibilidades de resistência e subjetivação para além dos “afetos tristes que nos comunicam os poderes estabelecidos” (Deleuze, 1998:75). Se tudo é encontro no universo, como diz Espinosa, Flávia parece ter buscado a potência aumentativa da vida nos encontros com outras presas políticas e na escrita de si.

Referências Bibliográficas

Agamben, Giorgio. 2004. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Arendt, Hannah. 1991. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio d´Água.

Artières, Phillipe. 1998. “Arquivar a própria vida”. Revista do CPDOC. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/234.pdf.

Baumgartner, José Luiz et all. 1987. Os desaparecidos – a história da repressão no Uruguai. Porto Alegre: Editora Tchê!

Deleuze, Gilles e Parnet, Claire. 1998. Diálogos. São Paulo: Escuta.

Foucault, Michel. 2006. Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Foucault, Michel. 1992. O que é um autor? Portugal: Passagens.

Ionta, Marilda. 2005. “A poética do sigilo: cartas de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade”. Anais do XXIII Congresso Nacional de História. Disponível em: http://www.anpuh.uepg.br/xxiiisimposio/anais/textos/MARILDA%20IONTA.pdf

Schilling, Flávia. 1980. Querida Liberdade. São Paulo: Global Editora.

Viñar, Maren e Marcelo. 1992. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta.

Nota Biográfica

Susel Oliveira da Rosa é pesquisadora do Departamento de História da Unicamp, onde desenvolve sua pesquisa de pós-doutoramento com o apoio da Fapesp. Tem experiência na área de Ciências Humanas, com ênfase em História do Brasil (período da ditadura militar), trabalhando com os seguintes temas: violência, biopolítica, estado de exceção, feminização da cultura, narrativas de militantes. Doutorou-se no Departamento de História da Unicamp em 2007. Concluiu o mestrado em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela PUC/RS em 2002. Graduou-se em História pela UFSM em 1998. Dentre suas as publicações recentes estão os artigos: entre o silêncio e as palavras: trajetos possíveis quando a realidade passa dos limites (Labrys, Études Féministes); a escrita de si na situação de tortura e isolamento (Revista História e Imagem); 'cabeça de porco' e 'elite da tropa': relatos de vida nua no estado de exceção (Revista da USS).


 

[1] Desenvolvo uma análise mais demorada do tema no artigo: A escrita de si na situação de tortura e isolamento: as cartas de Manoel Raimundo Soares (Revista História e Imagem, n.7/set.2008).

[2] Os destaques em negrito dos trechos das cartas aqui citadas são ênfases minhas.

[3] Nilce Azevedo Cardoso foi militante do grupo “Ação Popular” durante os anos da ditadura militar. Viveu a clandestinidade, conheceu as prisões e torturas praticadas no DOPS/RS e na OBAN/São Paulo. Para mais detalhes sobre sua trajetória, pode-se consultar o artigo: “Entre o silêncio e as palavras: trajetos possíveis quando a realidade passa dos limites”, publicado na Revista de Estudos Feministas Labrys, n.14 e disponível em http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys14/textos/susel.htm.

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abrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /décmbre 2009 -janeiro/dezembro 2009