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études féministes/ estudos feministas
O anarco-feminismo espanhol: Lucía Sanchez Saornil e Amparo Poch y Gascón > Margareth Rago RESUMO: Esse artigo relata o movimento de descoberta da autora do grupo anarco-feminista espanhol Mujeres Libres, ativo durante a Revolução Espanhola (1936-1939) e violentamente perseguido durante a ditadura do general Francisco Franco. Apresenta as reflexões políticas libertárias de duas das fundadoras da organização, Amparo Poch y Gascón, médica pediatra e Lucía Sanchez Saornil, poetisa, ambas editoras da revista do mesmo Grupo. Destacando a atualidade de suas críticas feministas, tanto à moral sexual dominante, quanto às formas de controle exercidas pelos partidos e grupos de esquerda, dos quais não excluem os próprios membros da CNT, Confederación Nacional do Trabalho, ao longo do processo revolucionário vivido nesse período. - Descobertas Ouvi falar do Grupo Mujeres Libres por volta de 1998, numa conversa com a anarquista italiana Luce Fabbri, que, muitos anos antes, tivera um breve contato com um das fundadoras desta organização anarco-feminista. Amparo Poch y Gascón escrevera-lhe uma carta, em 24 de maio de 1936, convidando-a a participar do grupo que estavam formando, com algum artigo destinado à revista de nome homônimo. A carta, que encontrei anos depois, numa pesquisa realizada no International Institute of Social History (IISH), de Amsterdã, traz um timbre, como se lê abaixo: “Mujeres Libres, Periódico de cultura y Documentação social. “Srta Luce Fabbri estimada companheira Por correio à parte, envio-lhe um número da revista “Mujeres Libres” que começa a ser publicada em Madrid e de cuja redação formo parte. Minhas companheiras me encarregam, ademais de afetuosas saudações para ti, o pedido insistente de que possamos contar consigo entre as colaboradoras de “Mujeres Libres”, suplicando-lhe que nos envie cinco ou seis laudas, como possa, para que alcancem o número de junho. O tom da Revista poderá ser apreciado já nesse primeiro número; queremos interessar às mulheres pelas idéias libertárias, porém paulatinamente, portanto, nossa publicação não pode ser francamente confessional. Esperamos a sua colaboração que sentimos, por ora, não poder retribuir, pois a Revista não conta com meios para isto. Com uma carinhosa saudação de Amparo Poch y Gascon” (POCH Y GASCON, 1936). Surpresa com o desconhecimento sobre esse grupo, mesmo nos meios libertários brasileiros, parti para uma investigação histórica. Não demorou muito para que outra anarquista, desta vez, a uruguaia Maria Eva Isquierdos sinalizasse para a importância do contato com o passado das lutas femininas. Em depoimento concedido à Revista Diógenes, de Buenos Aires, esta anarco-feminista afirma que se deparou com o grupo Mujeres Libres, em 1993, por ocasião de um encontro libertário internacional, realizado em Barcelona. Nesse contexto, conheceu não apenas as atuais militantes anarco-feministas, como suas antecessoras: Descobri que esse nome surge com a revolução espanhola, desde 1936, e que depois se formou o primeiro grupo de mulheres anarquistas chamado Mujeres Libres (...). Naquele momento, eu apresentava um texto, em Barcelona, que se chamava “Feminismo e Anarquismo”, sobre esta problemática na Argentina e tive o prazer de ter ao meu lado, uma companheira que pertencera ao Mujeres Libres, Pepita Carpena, uma mulher mais velha que me contou sua história (ISQUIERDOS, 1998, 56). O contato foi suficiente para que Maria Eva decidisse constituir um grupo semelhante na Argentina, onde residia, especialmente por sentir que as mulheres têm necessidades, interesses e questões específicas, pouco contempladas pelos movimentos sociais, mesmo entre os anarquistas, ainda relativamente desconectados das questões feministas. Entendendo a importância de construir uma ponte entre anarquismo e feminismo, recuperando laços constitutivos da própria origem dessas duas doutrinas, ela afirma: Os companheiros eram sempre criticados pela falta de presença da mulher, porém, é claro, os homens não sentem esta necessidade. Cada ser humano se move com base em suas próprias necessidades, e nós, como mulheres, sentimos essa necesidade e formamos o grupo que hoje já tem 5 anos de vida (ISQUIERDOS, 1998, p. 58). Minha descoberta do Grupo Mujeres Libres, na década de 1990, foi enriquecida com a publicação de alguns estudos produzidos pelas historiadoras Mary Nash e Martha Ackelsberg. A primeira, que se ocupa com a história das mulheres espanholas em geral, pesquisa o tema desde o final dos anos setenta, tendo publicado inúmeros livros sobre a história das mulheres na Espanha. Em 1999, lança o excelente estudo Rojas. Las mujeres republicanas en la Guerra Civil (NASH, 1999). A historiadora norte-americana Martha Ackelsberg, por sua vez, tem seu trabalho Free Women in Spain. Anarchism and the Struggle for the Emancipation of Women publicado em 1991 e traduzido para o espanhol em 1999 (ACKELSBERG,1999). Em 2002, a escritora espanhola Antonina Rodrigo lança uma biografia da Dra. Amparo Poch y Gascón (RODRIGO, 2002a), acompanhando a trajetória de sua personagem da infância até o exílio e a morte. Aqui, traz preciosas informações sobre a médica anarquista, que ultrapassam sua atuação política no Grupo Mujeres Libres e na própria Espanha. Em 2003, o livro de Jesus M. Montero Barrado, intitulado Anarcofeminismo en España. La revista Mujeres Libres antes de Guerra Civil é publicado pela Fundación Anselmo Lorenzo de Madri (BARRADO, 2003). Trata-se de um precioso estudo realizado a partir de correspondências estabelecidas entre as trabalhadoras leitoras da revista e suas editoras, num período bastante recortado, isto é, entre março e julho de 1936, que o autor considera fundamental para o conhecimento da experiência revolucionária que se desdobra posteriormente. Para Barrado, trabalhar com a documentação encontrada no Arquivo Histórico de Salamanca, na Espanha foi fundamental para conhecer de modo “mais direto, sincero, apaixonado e espontâneo”, as experiências, os sentimentos, as práticas cotidianas das mulheres espanholas pobres e as suas relações com as líderes libertárias e com os anarquistas em geral, naquele período que antecede a eclosão da guerra civil. Segundo ele, essa importante correspondência permite, ainda, perceber, na troca epistolar entre as mulheres pobres e incultas e as ativistas intelectualizadas, a evolução na prática do projeto emancipador proposto pelo Grupo Mujeres Libres. Destaco, ainda, nesse livro a maneira como conceitualiza a experiência do grupo, considerando-o claramente como “anarco-feminista”, termo até recentemente inexistente na literatura libertária. Na verdade, já Mary Nash havia utilizado esse termo para referir-se a esse grupo de libertárias feministas, mas apenas mais recentemente a expressão passa a aparecer explicitamente nos estudos acadêmicos ou nos textos de militantes. Outro trabalho de destaque foi produzido também na década de noventa por Shirley Mangini, que focaliza as narrativas autobiográficas das mulheres que participaram das lutas daquele período. Trata-se de Recuerdos de la Resistencia. La voz de las mujeres de la Guerra Civil Española (MANGINI, 1997) Segundo ela, a maior parte das autobiografias que analisou, escritas pelas ativistas políticas espanholas desse período, utilizam o que denomina de “a voz solitária e urgente do testemunho coletivo”, ao invés de assumir uma narrativa em primeira pessoa, como costuma acontecer como um trabalho de memórias (MANGINI,1997,173). E´ de se notar que, do mesmo modo, na antologia sobre a Revolução Espanhola intitulada 19 de Julio, Luce Fabbri também se coloca como uma testemunha “solitária”, responsável pela preservação da memória de acontecimentos ameaçados (ALBA, 1937). O sentimento de perda, a ameaça de ruptura com a tradição marcam o empreendimento da ativista libertária, atenta para o movimento histórico do período em que vive. Ao lado dessas importantes publicações, a porta mais importante para o contato com a organização Mujeres Libres se abriu através do contato com Antonia Fontanillas, nascida em Barcelona, em 1917, “no velho Bairro de Raval, perto do porto, impregnado também de história operária e libertária”, como ela mesma descreve (Apud RAGO; BIAJOLI, 2008, 118). Ainda muito jovem, em 1936, ela participa desse movimento revolucionário (FONTANILLAS, 2008, 28). Atualmente, reúne em seu arquivo privado uma imensa quantidade de documentos sobre a Revolução espanhola e é, dentre as antigas militantes anarquistas, uma das que mais se destaca na luta pela preservação desse rico patrimônio da atuação feminina/feminista. Para encontrá-la, viajei a Dreux, pequena cidade localizada a 80 kms de Paris, para onde Antonia se mudou muitas décadas atrás, por ocasião do exílio espanhol. Desde esse local, onde se confundem sua casa e seu arquivo pessoal, ela articula-se com mulheres e homens anarquistas de vários países do mundo, da Espanha ao Uruguai e ao Brasil, cuidando da conservação do passado como de um refúgio seguro e acolhedor, organizando publicações, escrevendo, incentivando pesquisas, fornecendo informações, recolhendo fragmentos de memórias que as antigas ativistas puderam guardar em suas fugas inesperadas e constantes, diante das perseguições dos franquistas, ou dos fascistas em outras partes do mundo. Por seu intermédio, conheci outra antiga militante do Mujeres Libres, Sara Berenguer, também nascida em Barcelona, em 1919, em uma família operária anarquista. Começa a trabalhar aos 13 anos e aos 17, entra para o Comitê Revolucionário de Las Corts, integrado por militantes da CNT. Depois de passar uma semana em casa de Antonia, pesquisando os jornais, revistas e correspondências de seu arquivo, ouvindo suas estórias, escutando suas canções e desfrutando de sua companhia tão envolvente, dirigi-me para Béziers, no sul da França, onde encontrei Sara, em setembro de 2001. Esta é uma senhora de tez clara, bonita e serena, embora agitada ao falar, como que convulsionada pela explosão das intensas recordações. Com os cabelos loiros presos na nuca, anda com passos estreitos e rápidos de um lado para o outro, na casa cercada por um lindo jardim florido e ensolarado. A cada momento, é interrompida pela filha, ou pela neta, ou ainda por amigos/as, como Marianne Anckell e Vicente Martí, recentemente falecido, que chegam para um rápido almoço, ou que simplesmente telefonam para dar um alô. Em meio a tudo isso, Sara me trouxe à tona fragmentos de sua vida, da infância e da adolescência, da descoberta da militância, de suas paixões, mas também dos momentos de dor, desespero, medos, perseguições, lutas e do exílio. Minha sensação era a de que ela tinha tudo bem organizado na cabeça, pois já havia vasculhado profundamente suas próprias recordações, trabalhado ininterruptamente suas memórias, contando e recontando inúmeras vezes essas mesmas histórias. Aliás, descubro em seguida, que já havia mesmo escrito suas memórias, intituladas Entre el Sol y la Tormenta, Trinta y dos meses de guerra (1936-1939)(BERENGUER, 1988). Neste livro, que me oferece de presente, dedica:
A Margareth Rago Vivencias de una juventud lhena de ilusiones de cara a la libertad y a la emancipación de la mujer. Fraternalmente, Sara Berenguer, Montady, 28-8-2001.
- Impactos Através desses contatos, tive acesso às publicações do Grupo Mujeres Libres e de outros livros, como Horas de Revolución, de Lucía Sanchez Saornil, publicado pelo Sindicato Único do Ramo de Alimentação de Barcelona, em 1937 (SAORNIL, 1937a). Nele, a anarquista espanhola, - uma das fundadoras dessa organização feminista, ao lado da advogada Mercedes Comaposada e da médica pediatra Amparo Poch y Gascón -, reflete sobre os acontecimentos políticos e sociais que afetam a Espanha, naquele instante. Inquieta e apreensiva, pergunta-se pelos rumos do processo revolucionário que se abre aos seus olhos, desde o ano anterior. Em julho de 1936, o povo espanhol respondera com armas em punho à invasão do exército do general Francisco Franco, vindo do Marrocos, apoiado pelas forças ultra-reacionárias do país e do exterior. Tinha início um dos momentos mais dramáticos da história da Espanha, a Guerra civil espanhola e simultaneamente uma revolução social. Nesse livro, Lucía lamenta os horrores da guerra que atinge também mulheres e crianças. “Antes, a barbárie selecionava suas vítimas (...) Hoje, até a barbárie degenera”, conclui. Denuncia as formas de boicote que os governos opõem ao movimento revolucionário espanhol e incita os trabalhadores a unirem-se na ação direta, na criação de brigadas e de extensas redes de solidariedade, em luta contra o fascismo espanhol e internacional. A militante libertária, vinculada à CNT - Confederação Nacional do Trabalho, desde a greve de 1931, reflete sobre as experiências autogestionárias em curso no país, experiências das quais, vale lembrar, ainda pouco se fala. Expliquemos um pouco essa questão. Embora a historiografia sobre a Guerra civil espanhola seja imensa, grande parte foi escrita por comunistas ou liberais, o que significa que muito pouco espaço foi destinado à revolução social e ao movimento autogestionário que marca a história da Espanha, entre 1936 e 1939. Em meio à luta contra o fascismo internacionalmente articulado e contra a invasão das tropas mouras e do exército espanhol liderado pelo general Franco, eclode uma das mais importantes experiências de transformação radical da vida social, de reorganização das relações produtivas e de distribuição das riquezas. Coletivizam-se as fábricas, desapropriam-se as terras, abole-se o dinheiro e formam-se conselhos operários que passam a gerir a vida econômica libertariamente (PEIRATS, 1977). Desde as indústrias metalúrgicas às farmacêuticas, das padarias, restaurantes e hotéis aos bondes e ônibus, tudo é colocado a serviço do povo, organizado pelo poder conselhista. Como constata, em suas memórias, a anarquista Federica Montseny (1905-1994), que se tornaria Ministra da Saúde e da Assistência Social, no governo de frente comandado pelo socialista Francisco Largo Caballero, em 1936: Há que destacar, acima de tudo, as Coletivizações, pela importância que tiveram e porque, de fato, é o que fica e ficará, historicamente, da Revolução Espanhola. Isto é, a iniciativa e a inteligência dos operários que, poucos dias depois do triunfo sobre o fascismo, abriram as fábricas, oficinas e diversos centros de produção, nomearam Comitês de Fábrica e puseram em marcha as máquinas, não permitindo que se interrompesse, por causa da fuga dos patrões, a vida econômica. De uma economia que, de particular, passou a ser coletiva. O capitalismo desapareceu, de fato, e foi substituído pela organização de trabalho sobre bases novas demonstrando a capacidade construtiva e organizadora dos trabalhadores (MONTSENY, 1987,94). Lucía se une a outra companheira, nesse mesmo ano de 1937, em que se pergunta pelas possibilidades de se transformar não apenas a realidade exterior do cotidiano das mulheres espanholas, tão submissas à religião, ao Estado e à família, mas sua própria subjetividade, formando novas mulheres, nos novos contextos coletivistas que se configuram sob o impulso da revolução social. Questiona a atuação pouco libertária dos companheiros que se casam nos sindicatos anarquistas, revestindo práticas conservadoras com roupagem libertária. Para ela, esses casamentos resultam numa traição da proposta libertária do amor livre, tão cara ao anarquismo, como ela avalia: Se a Revolução é reforma de costumes, comecemos por aí; e logo, rapidamente, levemos à prática tudo o que ontem constituía nossas aspirações, nossa lei e nossos princípios. (...) Dissemos outro dia que a Revolução deveria começar em nós mesmos, e se não o fizermos, perderemos a Revolução social, nem mais, nem menos; nossa mentalidade burguesa não fará mais do que revestir de roupas novas os velhos conceitos, conservando-os em toda a sua integridade. É preciso tomar cuidado com essas pequenas coisas (está se referindo ao aumento de casamentos nos sindicatos), que às vezes, sãos os melhores delatores de nossa falta de capacidade revolucionária. Condenemos, se nos agrada, a liberdade de união; mas não a disfarcemos covardemente com hipócritas cerimônias, mesclando os Sindicatos em nossas covardias espirituais.” (SAORNIL, 1937a, 26) Questionando as atitudes moralistas e conservadoras no interior dos grupos libertários em que atua, Lucía introduz a dimensão da subjetividade nas intermináveis discussões sobre os rumos da revolução. Não se furta à difícil e delicada questão de pensar a produção da própria subjetividade no processo de transformação política e social em curso naqueles anos, enquanto que, para muitos militantes, tudo se resume a interferir criativamente no espaço público, transformando as formas de produção da economia e efetuando mudanças palpáveis no mundo exterior. Sem renovar o espírito, acredita ela, dificilmente se poderia inovar nas ações empreendidas nos múltiplos campos da vida social. A revolução social passa, assim, pelo trabalho interior, pelo questionamento das práticas subjetivas de cada um, pela crítica à moral burguesa que oprime, humilha e submete à revelia dos próprios atores. Diz Foucault que o “cuidado de si”, prática de subjetivação, de relação de si para consigo, desenvolvida especialmente na Antiguidade greco-romana, caracteriza-se por um trabalho sobre o eu bastante diferenciado das formas de produção da subjetividade impostas na Modernidade e Pós-modernidade, pelo Estado, pela família e pela mídia (FOUCAULT, 1984). Longe da crença na interioridade como lugar privilegiado do refúgio do indivíduo, longe do narcisismo e do culto à própria personalidade, os gregos e os romanos desenvolveram formas éticas e livres de relação consigo mesmo que implicavam necessariamente na relação com o outro. Tratava-se de inflexionar as forças do Fora sobre si mesmo e construir-se como um indivíduo temperante, capaz do governo de si como forma de equilíbrio e não como renúncia a si e aos prazeres. Longe de propor uma anulação de si mesmo, como afirmará o cristianismo, longe de reprimir os desejos para constituir-se como cidadão honesto, trabalhador obediente e submisso, o “cuidado de si” do mundo greco-romano supõe um trabalho minucioso e elaborado sobre si mesmo, que conduz a uma estilização da própria vida, a partir do “uso dos prazeres” no tempo oportuno e na medida certa. “Estética da existência” é o conceito cunhado por Foucault, para dar conta dessas práticas da liberdade, constituídas por “tecnologias de si”, através das quais os indivíduos se elaboram, definem suas regras de conduta, ao mesmo tempo em que procuram “modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.” (FOUCAULT, 1984,15; 2001,1229) O conceito é bastante operacional para nomear aquilo que Lucía, a seu modo, reclama como tarefa revolucionária fundamental. Aqui, ética, liberdade e política confluem na busca de construção tanto de novas formas de existência, quanto de outros modos de sociabilidade. A tarefa revolucionária supõe a invenção de si para homens e mulheres como atividade imediata e trabalho incessante, que não pode ser abandonado para o dia seguinte, nem mesmo em função das pressões econômicas impostas pela guerra. Em outras palavras, o cuidado de si para consigo supõe a recusa à obediência, pede uma crítica radical às formas insidiosas de sujeição e aos modos de manifestação do poder, sobretudo no interior dos próprios grupos revolucionários. Como analisa a anarquista em relação aos deslocamentos que observa nos discursos dos grupos que lideram a ação política, são crescentes as tentativas de inibição e freio às iniciativas populares de autogestão, pelo apelo à obediência e à disciplina ao Partido: Ao conhecido e já velho “Precisamos ganhar a guerra”, começam a acrescentar-se outras frases que nos fazem tremer: “Precisamos acabar com os Comitês”, e se diz que não é obra revolucionária socializar a terra e a indústria. Em uma palavra, nega-se a Revolução. Sob a consigna de “obediência cega”, que se pretende seja sinônimo de disciplina, se quer cortar o passo à iniciativa popular....A verdade é que temos de ganhar a guerra para a Revolução; porém, muito cuidado! Há que atuar revolucionariamente ao mesmo tempo (SAORNIL, 1937a,30). Nascida em um bairro pobre de Madri, em 1895, militante da CNT a partir do trabalho na Central Telefônica de Madri, Lucía condena o processo de centralização que se esboça e as atitudes excludentes que se manifestam em relação às conquistas populares.Vale destacar a dimensão libertária presente constantemente nas posturas, reflexões e críticas dessa mulher, que denuncia, no calor da hora, as manobras que vão sendo feitas à medida que o povo consegue maior liberdade e autonomia. No fragmento intitulado “Soluções Imitativas. O Stakanovismo”, ela acusa a intensificação do processo produtivo em moldes centralizadores, importados da experiência russa: é sob pretexto de ganhar a guerra – sem dizer por que, nem para que -, que vemos dia a dia morrer os organismos criados nos primeiros momentos pela iniciativa popular; é, outras vezes, um afã imitativo – por desgraça nascido em nossa juventude - , de que temos dito com freqüência que sua virtude maior é a espontaneidade, o que vai incorporando ao nosso movimento com palavras exóticas aspectos ou frases que, se não são em absoluto contrários à nossa idiossincrasia, são, quando menos, em muitas ocasiões, inoportunos (SAORNIL,1937a, 40). Mas não se pode deixar de considerar o veio poético da libertária, que, anos antes, participara do movimento de vanguarda denominado Ultraísmo. No “Romance del 19 de Julio”, que publica na revista Mujeres Libres, sua sensibilidade aflora com muita intensidade diante dos acontecimentos políticos: (...) La vida se paró en seco en la ciudad y en la aldea; se enfrió el horno del pan y sobre el trigo la muela Se inmovilizó de pronto sin acabar la tarea. (...) (SAORNIL, 1937b) Ao lado de Lucía, a médica Amparo Poch y Gascón, nascida em Zaragoza, em 1902, também participa ativamente das atividades do Grupo Mujeres Libres, que ajudara a fundar em 1936. A dra. “Salud Alegre”, como se auto-intitula em vários textos, produz e escreve na revista do grupo, destinada ao esclarecimento e à reflexão das trabalhadoras espanholas; organiza cursos de capacitação para as operárias, cursos de alfabetização e profissionalização; trabalha nas creches e hospitais, defendendo novos métodos terapêuticos e programas de saúde para a população. Dentre seus vários textos, destaco os que se referem à moral sexual, como o poema em prosa “Elogio del Amor Libre”, em que Amparo, especialmente crítica do lugar de submissão destinado às mulheres na esfera privada do lar, lugar de sua absoluta anulação pessoal e sexual, reivindica uma nova relação amorosa para elas: Amor Livre! E então, mulher, apaixonadamente enamorada, não peça nada por seu amor. Semeie-o, como a vida; faça-o florescer, como a roseira; levante-o, como o eucalipto; sem perguntar nada, sem pedir nada para amanhã. Nem a videira, nem a roseira, nem o eucalipto, antes de granar, antes de florescer, antes de se levantar, pedem um jardineiro que os atenda; nem exigem promessa de que o sol não haverá de secá-los, nem o vento haverá de quebrar seus talos, nem a água impetuosa haverá de afogar suas raízes. Eles são generosos e quando um deles perece, muitos mais nascem para a vida. Ame, ame, mas que os braços não lhe sirvam como amarras, mas como coroa. Deixe que tudo vá e venha, e você, sorria sempre, tenaz procuradora de todas as alegrias terrenas. Sorria sempre, ágil e sentimental, doce e reflexiva, através do esquecimento, do desprezo, da crítica. Alente sua criação: lance à Vida um novo módulo para a valorização de seu sexo. A Vida já está farta da Mulher-esposa, pesada, demasiada eterna, que perdeu as asas e o gosto pelo deliciosamente pequeno e pelo nobremente grande; está farta da Mulher-prostituta, a que já não toca senão a raiz sucintamente animal; está farta da Mulher-virtude, séria, branca, insípida, muda... Crie o novo tipo; ponha sal na Vida; cor e chama em beijos desiguais. Ame, fale, trabalhe. Compreenda, ajude, console. Aprenda a desaparecer e a desobrigar de sua presença; e a conhecer o valor do “eu” livre. Sem nada; nem por dinheiro, nem por paz, nem por sossego... Amor Livre! (POCH Y GASCON,1936) Anarquista radical, Amparo critica com ousadia a monogamia, em seu texto “A vida sexual da mulher”, de 1932, e entende que o adultério resulta da asfixia provocada por normas rígidas, que violam as possibilidades humanas. Indigna-se com a absoluta ignorância das mulheres sobre a sexualidade e o corpo e critica a ausência de educação sexual nas escolas, razão pela qual procura explicar a fisiologia do corpo feminino, nomeando e referindo-se a cada órgão de seu corpo e a cada fase de sua vida, da menstruação à menopausa. Considera que embora surjam “novas mulheres”, com comportamentos bastante diferenciados das dos “velhos tempos”, ainda predominam as antigas, em cuja mentalidade pesa a herança de muitos séculos de obscurantismo. Por isso, defende a educação sexual nas escolas, entendendo que no lar nada acontecerá, nem também em uma escola que carregue uma moral de malícia e vergonha, aprofundadas pela religião. De nossas escolas atuais não se pode esperar uma educação e uma higiene sexual, porque as professoras que as governam não estão capacitadas para isso por haverem sido formadas em uma sociedade que não fala do sexo se não for entre cochichos e reticências (...) (apud RODRIGO, 2002b,111). Como médica, a Dra. Amparo faz profunda crítica aos mitos construídos pela medicina moderna sobre a economia desejante das mulheres. Questionando o mito da frigidez feminina, explica que o prazer sexual não deve ser visto como um pecado e que o sexo não deve se limitar à procriação. Do mesmo modo, critica os maridos que deformam as esposas com a sua psicologia masculina da prostituição. O direito ao sexo para as mulheres é, diz ela, uma necessidade fisiológica, tanto quanto para os homens. Amparo denuncia a moral burguesa que abre as portas da prostituição para o homem, enquanto a mulher deve esperar, antes do casamento, para poder ter qualquer atividade sexual. Portanto, ensina vários métodos contraceptivos. Contudo, mesmo defendendo o prazer sexual e as novas relações amorosas para as mulheres, a Dra. Amparo é atenta, ao dizer que é necessário fundamentar-se uma nova moral. Assim, estabelecendo as diferenças entre as antigas e as novas mulheres afirma que se as mulheres do passado se educavam e viviam “exclusivamente para o amor, sem o que a sua vida carecia de sentido e de fim”, a nova mulher já aponta para outras direções. Diz ela: A nova mulher não pode preencher sua existência com o amor. Necessita buscar-se e encontrar-se a si mesma em várias atividades na profissão escolhida, no estudo a que se consagrou, na oficina, na fábrica e na Universidade. (...) As mulheres que renunciavam a tudo por amor, que não sabiam viver se não sentissem uma forte mão masculina sobre as suas, vão ficando, pouco a pouco, apenas para una categoria de romances; porque o novo tipo feminino nos brinda com corajosas heroínas que suspiram de gozo ao encontrar sua liberdade perdida entre as ruínas de um amor, e que não necessitam nem querem mãos alheias que lhes afastem os obstáculos da vida (AMPARO Apud RODRIGO, 2002b, 143). “Corajosas heroínas”, como ela mesma, ou ainda, como Lucía Sanchez Saornil, que hoje valorizamos como guerreiras que souberam alterar criativamente o curso da vida que lhes havia sido destinada, ousando reinventar-se a partir de seus próprios desejos e necessidades e referenciando-se por uma moral libertária, na qual ética, política e liberdade estão intrinsecamente associadas.
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