labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2011 -jameiro /junho 2011

Autobiografia de mulheres cartunistas:

a aventura íntima da alteridade reinventada

 Daiany Ferreira Dantas

Resumo:

A proposta deste trabalho é suscitar uma reflexão acerca da produção autobiográfica em Histórias em Quadrinhos como estratégia de visibilidade para as mulheres cartunistas, um grupo minoritário nesse ramo. Busca, também, investigar, à luz da teoria, se tal escolha estilística afirmaria a alteridade destas mulheres, que utilizariam o testemunho pessoal, e seu atributo de verdade, na construção de suas identidades de gênero.

Palavras-chave: autobiografia, Histórias em Quadrinhos, mulheres quadrinistas, feminismo, subjetividade.

 

Mulheres produzindo quadrinhos: tensões e lugares de fala       

A representação das mulheres na cultura de massas vem, desde a sua origem, atrelada à reprodução dos valores e estereótipos vinculados aos interesses hegemônicos da indústria. Além disso, a expressiva quantidade de imagens e textos nos quais elas figuram como objetos da representação contrasta com a sua pouca representatividade nos setores de criação da cultura, como idealizadoras de conteúdo dos produtos.

Ainda que esta desigualdade tenha sido progressivamente reduzida, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, a inclusão das mulheres nos espaços de produção não eliminou a representação de formas opressoras de feminilidade, tampouco implicaria necessariamente numa crítica expressa a estas.

Como exemplo desta relação, observamos que, na história da cultura de massas do século XX, a inserção das mulheres cartunistas em seu campo de produção ilustra, de forma singular, uma ambigüidade sujeito (da representação) – objeto (representado)  - sendo, estas, protagonistas no campo da produção cultural, mas também reprodutoras de seus estereótipos redutores, face aos limites fixados pelos mercados editoriais.

De início, isto se evidenciava no fato de que as cartunistas mulheres tinham sua liberdade criativa cerceada pelos mecanismos reguladores da indústria, que exercia o controle sobre a produção. Eram comuns os casos de desenhistas que, sob imposição, apenas decalcavam um padrão físico designado pelas distribuidoras, ou produziam seus desenhos atendendo a um sistema de briefing que especificava a compleição física e o caráter das personagens, de acordo com roteiros pré-estabelecidos sobre os quais os desenhistas não possuíam poder de intervenção ou qualquer resistência (Iannonne; Iannonne, 1996: 51).

Nos Estados Unidos, onde, desde o seu surgimento, a indústria editorial foi fortemente regulamentada com o fim maior de atender aos interesses dos grandes distribuidores (Luyten, 1986), o trabalho autoral das cartunistas teve pouquíssima visibilidade no limiar da história dos quadrinhos. Só passariam a ser percebidas como agentes distintos pela singularidade de sua produção com a consolidação do quadrinho alternativo e o surgimento de pequenas editoras independentes. Segundo Robbins (1997), a quase totalidade das cartunistas, hoje, arca financeiramente com suas publicações e não sobrevive deste trabalho.

No contexto atual, pode-se afirmar que, embora numericamente estejam em desvantagem no mercado editorial, as mulheres contam com alguns exemplos de significativa notoriedade. É o caso da argentina Maitena Burundarena e da iraniana Marjane Satrapi. Ambas dialogam com temas que dizem respeito à condição das mulheres no contemporâneo, no entanto, sob perspectivas diferentes.

Maitena carrega no traço a herança de cartunistas – homens e mulheres – sul americanos, ao esmerar-se no humor caricatural e de cunho político comum às páginas dos pasquins e pequenos jornais panfletários surgidos nas décadas de 60 e 70, em protesto aos regimes antidemocráticos que se espalhavam pelo continente no período (Dantas, 2006). Já Satrapi, surge como expoente contemporâneo de um estilo de história em quadrinhos que cresce tanto em quantidade de títulos quanto em reconhecimento público: a autobiografia em quadrinhos.

Embora tenham surgido em meio à contracultura dos anos 60, nos quadrinhos underground produzidos sob a insígnia do “faça você mesmo” - as encadernações de fundo de garagem costumavam trazer também fatos da realidade cotidiana de seus autores, ilustrados de forma crua, numa estética de aparente desleixo - o reconhecimento, os prêmios e a vendagem fazem desta categoria de quadrinhos emblema de nossa época, com o advento das graphic novels, romances gráficos, distribuídos por grandes editoras e traduzidos em diversos idiomas (Dutra, 2003). 

Como exemplos, temos HQs autobiográficas celebradas por público e crítica. Uma notória referência do gênero é a graphic novel Maus (Spiegelman, 2003). Vencedora do Prêmio Pulitzer em 1992, conta a relação de Art Spiegelman - filho novaiorquino de judeus sobreviventes ao gueto de Varsóvia - com seu passado de guerra.

Em seu encalço, vem a série Persépolis (Satrapi, 2007) cujo primeiro livro recebeu o prêmio Angoulême, em 2001, na França. Por meio dela, Marjane Satrapi, a filha de uma família classe média e de visão política liberal do Teerã, tornou-se conhecida mundialmente. Sua narrativa perpassa pouco mais de duas décadas na vida da autora. Revela como, diante das idéias libertárias que cultivou desde a infância, ela pôde sobreviver ao regime Xiita, expondo também a sua ambivalência, quando adolescente, ao lidar com sua identidade étnica na vida como uma imigrante na Europa.

O exemplo de Satrapi confirma um fenômeno consolidado nas últimas décadas, sobretudo nos EUA.  A constância das vozes femininas na HQ autobiográfica, em sucessivos títulos da produção independente, mas também em obras de grande circulação, tais como Fun Home (Bechdel, 2006) e Mas ele diz que ama (Penfold, 2006). 

Alison Bechdel ganhou o prêmio Will Eisner em 2007, e teve sua HQ eleita o melhor livro do ano pela Revista Time, em 2006. Nesta graphic novel, a cartunista, lésbica assumida, reconstrói episódios da infância e adolescência ao tentar desvendar as possíveis respostas implícitas no suicídio do pai, um homossexual enrustido.

Já a obra de Rosalind Penfold – um pseudônimo utilizado para proteger a verdadeira identidade da autora -  narra, na primeira pessoa, a situação de violência doméstica vivida por uma mulher de 35 anos, na convivência com um namorado de comportamento abusivo.

Tais HQs atestam o impacto que o relato testemunhal, com seu atributo de comprometimento com a verdade e a legitimidade histórica, é capaz de suscitar, proporcionando uma visão em que se articulam versões capazes de evocar uma leitura que considere o contraste e a diferença diante dos oportunos silêncios da História e da cultura.

De fato, percebe-se que, no contemporâneo, há uma recorrência ao autobiográfico como um recurso em se contar histórias que, não casualmente, foram deixadas à margem. No caso das mulheres, conhecendo a classe de representações de gênero que notadamente se disseminam na cultura de massas, os estereótipos culturais sexistas e heteronormativos, bem como a problemática de sua inserção no campo da produção, a escolha por este tipo de narrativa é, já, uma questão para a análise.

Ao traçar um panorama sobre a produção de cartunistas mulheres nos Estados Unidos, Robbins (Ibid, 1997) atenta que a autobiografia consta como “o estereótipo mais comumente atribuído” em torno da produção das cartunistas. Uma afirmação que nos leva a deduzir que certo estigma povoa a imaginação coletiva em torno da produção comum a esse segmento, talvez semelhante ao que designava a “literatura de mulheres” no século XIX, vista como algo menor, explicitamente por caracterizar a vida privada das mulheres, então atreladas ao universo doméstico e à esfera do cuidado familiar, com menores incursões na vida pública.

Para explicar o fenômeno evitando recair nos essencialismos recorrentes, uma hipótese possível é de que esta tendência indique a relação entre as aspirações de alteridade das autoras e a cultura sexista onde inscrevem seus produtos. Outra é a de que esta escolha deflagra uma estratégia de intervenção diante da indústria, na qual elas operam o que pode ser descrito como um falar da fronteira (Bhabha, 1998), onde os seus lugares e identidades tornam-se perpassados por trocas e deslocamentos de sentido.

Desta forma, os leitores passam a acessar universos tangíveis, corporificados em imagens e atestados pela assinatura – numa narrativa gráfica e textual – de mulheres que depõem sua experiência de vida acerca de temas que carregam as tensões de gênero, tais como a violência doméstica, o abuso, a experiência como mãe solteira, o lesbianismo, a infância num país islâmico – ou numa comunidade hippie nos anos 70 -  a condição das mulheres na guerra, o uso do véu, o racismo, as migrações. Marcos pessoais que se tornam também experiências coletivas na trajetória humana, sobretudo num mundo tão povoado de conflitos, onde as identidades carecem de um eixo de singularidade e tratam de voltar-se a um horizonte que as valide.

Narrativas autobiográficas: o testemunho da alteridade no palco midiático

É incipiente a pesquisa em torno das autobiografias em quadrinhos que atente ao caráter político destas publicações, mas, embora já se tenha apontado a tendência de concentração das cartunistas mulheres em torno deste estilo, permanece em aberto a demanda por uma investigação que leve em conta a hipótese de que elas, por seu testemunho e pela declarada verdade que carregam, utilizariam a legitimidade do relato autobiográfico para situar sua diferença.

Além disso, é importante considerar que a busca pela expressão da subjetividade, num ato político de inscrição de sua autoria, se revigora frente ao aspecto confessional da cultura contemporânea, algo que permeia a sociedade ocidental a partir o final do Século XIX (Foucault, 1993), quando o ocidente passou a mergulhar nos testemunhos autônomos, e se intensifica no presente, naquilo que Zizek (2003) chama de “paixão pelo Real", apurando-se num "show do eu" (Sibilia, 2008), em que a intimidade se espetaculariza e o banal se radicaliza na repetição de diversas tendências narrativas documentais, em mídias distintas: seja na autobiografia, no auto-retrato ou no diário virtual, por exemplo.

Em níveis mais ou menos acintosos, com propósitos ora meramente individualistas, ora coletivistas - que talvez seja o caso do lugar das mulheres na produção de autobiografias em quadrinhos - a afirmação da subjetividade é uma força motriz do pensamento que, hoje, constrói as mídias e as tornam palco em que interagem sujeitos cada vez mais dispostos e mais despertos à exposição.

Esses indivíduos caracterizam um sujeito pedagógico, que se relaciona criticamente com a mídia, reconhece o poder de mediação e a potência formadora e transformadora operada por aquilo que Kellner categoriza como “pedagogia crítica da mídia” (2001). Ou seja, consideram a relação estabelecida entre aqueles ou aquelas que desenvolvem as práticas de produção cultural e o seu lugar da cultura, tendo em conta as trocas entre a experiência individual que os distinguem, de forma subjetiva, e os aspectos transformadores que, porventura, possa advir de suas obras, compreendendo  que os efeitos da cultura da mídia são muito complexos e mediados, exigindo estudos da origem e da produção de seus textos, da distribuição e da recepção destes pelo público e dos modos como os indivíduos os usam para produzir significados, discursos e identidades. O melhor modo de discernir tais efeitos é por meio de estudos concretos da maneira como certas produções da cultura popular (...) circulam e produzem efeitos na cultura da mídia e na vida cotidiana (Kellner, 2001: 142).

Admite-se assim, que distinguir quais os elementos constitutivos da produção cultural - suas tensões, fissuras e dissidências - é parte do entendimento de como os efeitos da cultura produzem sentidos, capazes de mediar ou estabelecer aquilo que determina a percepção acerca de um grupo, de um território ou de uma nação, que se diferenciam nos aspectos econômicos, políticos e culturais.

Feminismo e deslocamento na representação cultural das mulheres

Os estudos de gênero são uma corrente crítica que bastante contribuiu com a cartografia transdisciplinar que orienta a pesquisa em comunicação. Apesar disto, ainda que um largo investimento já tenha sido empreendido em investigar a representação das mulheres na cultura midiática, muitas as lacunas permanecem a respeito de como se dá a inserção destas no plano da produção da cultural e de que forma os discursos que projetam são recebidos pelo público.       

Tal intenção parece estar contida numa das correntes críticas da pesquisa na área, que identifica uma cultura das minorias, compreendendo-as

 “não como um sujeito coletivo absolutamente idêntico a si mesmo e numericamente definido, mas como um fluxo de mudança que atravessa um grupo, na direção de uma subjetividade não capitalista. Este é na verdade um ‘lugar’ de transformação e passagem, assim como o autor de uma obra é um ‘lugar’ móvel de linguagem” (Sodré, 2005:.12).

Observar aquilo que se produz a partir destes “lugares” é uma tarefa urgente para os estudos em comunicação. A produção cultural exemplar destes sujeitos, que afirmam a sua dissidência, é reflexo da relação entre estética e política presente no contemporâneo, desvelando o nítido componente político presente nas representações da cultura, mas, também, nos possibilitando admitir que “é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas de emancipação e nas ilusões e desilusões da história” (Ranciére, 2005: 11-12).

No que toca ao objeto em questão, é bastante evidente esta relação. As Histórias em Quadrinhos são um meio cuja narrativa é composta de imagem e texto gráfico, simultaneamente e em diálogo. O que significa que as autoras são, a um só tempo, roteiristas, desenhistas e (na maioria das vezes) editoras, ou seja, possuem uma autonomia pouco usual sobre o conteúdo que irão dispor ao público.

O fato de que tenham escolhido o estilo autobiográfico depõe sobre a forma como se colocam diante da indústria, podendo também ser o indicativo de que este posicionamento seria de enfrentamento e resistência diante das desigualdades editoriais impostas pelo mercado, com a exposição de um destino singular de “mulheres”, diversas e dissidentes, negociando o sentido de suas identidades.

A crítica feminista contemporânea já reconhece esses deslocamentos e busca, em vez de situar o gênero binário, que fixa as mulheres numa condição antagônica à hegemonia patriarcal, tentar mapear o seu desdobramento plural. Ao tratar da representação das mulheres, vislumbra sujeitos “com biografia, corpo e história” (Richard, 2000: 48)[1], que nos possibilite - aos leitores - reconhecer em seus textos - aqui entendidos como produtos culturais – as pulsões do entorno em que emergem. As narrativas autobiográficas tratam de sujeitos plurais que, antes invisibilizados em um determinado campo da produção, galgaram notoriedade ao preço da própria exposição, de uma autoria levada à radicalidade, na documentação de dores, feridas e conflitos que evidenciam os seus lugares, sua diferença e, consequentemente, sua condição de gênero. São outros discursos, outros sentidos, outras pequenas histórias que tangem a oficial e maiúscula.

                        Spivak descreve essa relação com a História:

A História, mais que um significante transcendental para o peso da autoridade [ou de uma explicação do autoritarismo] é uma catacrese, um metáfora sem referente literal. A posição do sujeito-construtor é definida pelo distanciamento e pela diferenciação (mais que pela remoção de) uma narrativa dominante da história. (Spivak, 1999:  331, tradução nossa)[2]

Na produção da cultura, as mulheres vêm reconstituindo histórias invisíveis a partir da aberturas de seus próprios baús, diários e arquivos de cartas, é na reconstituição do pessoal como político, na contextualização de suas histórias pessoais frente ao contexto geral, que elas dão ênfase aos seus devires e lugares. Diante de um cânone cultural historicamente omisso, passam a figurar e a serem percebidas por sua distinção. São múltiplas as veredas percorridas pelo sujeito mulher que reconquista a sua subjetividade, como afirma Nelly Richard:

Parece que apenas uma teoria da escritura aberta à pluralidade heterogênea do sentido como resultado de uma multiplicidade de códigos (sexuais, mas também políticos e sociais, ideológico-literarios, etc), entrecruzados na superfície do objeto semiotizado, é capaz de pôr em ação uma leitura destotalizadora, e por fim, de mobilizar o feminino como pivô contra- hegemônico dos discursos de autoridade. (Richard, 1990: 51, tradução nossa)[3]

A autoridade passa a ser reivindicada no momento em que se interpõe uma história outra. Uma efusão de leituras e pluralidade de discursos, de um sujeito pedagógico, imerso e inscrito na cultura, que dentro dela opera, articulando em seu tecido as trocas simbólicas entre opressor e oprimido, que já não podem mais ser interpretadas como uma relação necessariamente assimétrica - na qual o conteúdo hegemônico apenas circula de cima para baixo. O dominado, sabe-se, tem voz, ainda que ela ecoe das margens, há uma permeabilidade no campo cultural em que as fronteiras tornam-se, também, um campo para a circulação de idéias.

O movimento de “rearticulação do signo, no qual se possam inscrever identidades culturais” (Bhabha, 1998: 240) pode ser compreendido como a constituição de uma “agência”, por meio da qual os grupos e indivíduos estigmatizados pela cultura poderiam afirmar suas vozes e testemunhos dentro dela.

Uma possível evidência desse impacto na produção de sentidos é o lugar que ora ocupam as autobiografias em quadrinhos: antes, tidas como um subgênero, destinado a purgar as inquietações e lamentos das cartunistas que não conseguiam um maior espaço no mercado, agora, eleitas nas premiações literárias e entre críticos que as equiparam ao cânone literário. É sintomático também que passem a ser um gênero mais e mais explorado por autores homens.

Podemos admitir que, ao assumirem questões que expõem a sua alteridade - aquilo que as distingue, que as confronta com a imagem convencional de mulher consolidada ao longo de um século, numa indústria calcada em estereótipos bidimensionais de mulheres que oscilam entre a vamp e a donzela e cujas variações gráficas de suas proporções se limitam a um corte de cabelo ou à mudança no guarda-roupa - elas passam a disputar o direito a uma pluralidade na representação feminina como um todo.

Não apenas por representarem mulheres, num processo auto-reflexivo, mas por escolherem alçar sua intimidade, a suposta e auto-afirmada verdade de seus discursos,  à esfera pública, que é também política e é o espaço onde se configuram os discursos e se estipulam os valores destes.

Marjane Satrapi, em Persépolis, reconstrói o Irã no período do golpe político que estabeleceu a ditadura do Xá Mohammad Reza Pahlevi e mostra a perda de direitos no reconhecimento das transformações que atingem a sua intimidade de menina. Refletidas na impossibilidade de ouvir a música estrangeira de Michael Jackson, na obrigatoriedade do véu, nas opiniões cerceadas no ambiente da escola. Ao reconhecer o anel de sua vizinha - que há poucos dias lhe fora exibido com orgulho, enquanto as duas conversavam em seu quarto sobre os sonhos de adolescência - na mão que se desprendia dos escombros da casa atingida por um ataque aéreo, deflagra, num delicado jogo de contrastes, todo o horror da guerra, sem a utilização gráfica de bombas ou sangue.

Rosalind Penfold, em seu Mas ele diz que me ama, dá início a sua narrativa convidando os leitores a entrarem na garagem de sua casa, vasculhando no alto das prateleiras a caixa onde estariam guardados os seus desenhos - aqueles que registram todo o período em que fora vítima do abuso e das agressões físicas e verbais de seu companheiro, e constam nas imagens subseqüentes da Graphic Novel. Ao fazer isso, indica que está compartilhando um segredo, antes de se confessar vítima da violência doméstica pede a cumplicidade do leitor, o que dá legitimidade ao enredo que se desprende daí por diante.

Alison Bechdel, a autora de Fun Home, também revira seus guardados. Cartões postais, álbum de família, cartas, o diário íntimo da infância, os cômodos de sua casa de outrora, a mobília, os tecidos das cortinas, os tipos de lustres na decoração, o vestido da primeira comunhão, telegramas, o intercâmbio literário com seu pai, que lhe apresentou a James Joyce e Scott Fitzgerald, tudo isso é graficamente registrado, em alguns momentos com impressão realista, destoando do aspecto caricatural da obra,  e interligado na narrativa. São as pequenas porções de um grande quebra-cabeças em que ela desperta em sua memória a constatação da condição de homossexualidade em que vivia o seu pai - e a forma como sua a consciência desta coincidiu com a descoberta de sua própria homossexualidade.

  Percebendo os fios que tecem os limites entre subjetividade e valor, na cultura, articulados pela exposição da intimidade, pode-se refletir sobre o discurso das mulheres que, diante de uma cultura de massas hábil em cristalizar e polarizar estereótipos de gênero, revolvem o entorno de suas fronteiras, lançando-se em enunciados autorais e testemunhais, numa acirrada negociação onde há uma disputa implícita pela autoridade em torno da representação de suas identidades.

Este estudo preliminar não pretende ser conclusivo em relação a estas questões, mas, somar-se ao debate já articulado, engendrando outras tantas, a respeito da intimidade como suporte da valoração cultural e de quais elementos da cultura são acionados no processo que eleva a autobiografia das mulheres nas Histórias em Quadrinhos do estigma à celebração.

Referências Bibliográficas

Bechdel, Alison. 2006. Fun Home – uma tragicomédia em família. Rio de Janeiro: Conrad

Bhabha, Homi. 1998. O local da Cultura. Trad: Myriam Ávila, Eliana Reis, Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG

Butler, Judith. 2003. Problema de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira

Dantas, Daiany. 2006. Sexo, mentiras e HQ : representação e auto-representação das mulheres nos quadrinhos. Recife: Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco

Dutra , Aristides. 2003. Quadrinhos de não-ficção. Belo Horizonte: Congresso Brasileiro

de Ciências da Comunicação, 24. Anais. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

Foucault, Michel. 1993. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal

Iannone, Leila.; Iannone, Roberto. 1994. O mundo das Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Moderna

Kellner, Douglas. 2001. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política. entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC

Penfold, Rosalind. 2006. Mas ele diz que me ama. Rio de Janeiro: Ediouro

Satrapi, Marjane. 2007. Persépolis completo. São Paulo: Companhia das Letras

Sibilia, Paula. 2008. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

Sodré, Muniz. 2005. Por um conceito de Minoria. In: Raquel Paiva; Alexandre Barbalho. Comunicação e Cultura das Minorias. 1º ed. São Paulo: Paulus

Spiegelman, Art. 2005Maus. São Paulo: Companhia das Letras

Spivak, Gayatri. 1999. Critique of Postcolonial Reason.: Toward a History of the Vanishing Present.: London/Cambridge, MA: Harvard University Press.

Luyten, Sonia. 1986. O que é Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense

Rancière, Jacques. 2005. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34

Richard, Nelly. 1990. De la Literatura de mujeres a la textualidad femenina. In Escribir em los bordes. Santiago do Chile: Cuarto Próprio

Robbins, Trina. 1997. Great women cartoonists. Nova York: Kitchen Sink

nota biográfica

Daiany Ferreira Dantas tem 33 anos e é professora do curso de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/ UFPE), onde desenvolve a pesquisa Autobiografias das mulheres nos quadrinhos: vozes e imagens da alteridade, na linha de Mídia e Estética, é autora da dissertação Sexo, Mentiras e HQ: representação e auto-representação das mulheres nos quadrinhos, por este mesmo programa de pós-graduação.
Pesquisa temas relacionados ao feminismo e inserção das mulheres no setores de criação da cultura de massas.


 

[1] No original: “biografia, cuerpo y historia”.

[2] No original: “History, rather than being a transcendental signifier for the weight of authority (or the authoritative explanation) is a catachresis, a metaphor that has no literal referent. Here the position of the architect-subject is defined by a distancing and differentiation from (rather than an effacement of) a dominant narrative of history”.

[3] Tradução nossa de: “Me parece que solo una teoria de la escritura abierta a heterogênea pluralidad del sentido como resultado de una multiplicidad de códigos (sexuales, pero también políticos y sociales, deológico-literarios, etc) entrecruzados em la superfície del objecto semiotizado és capaz de poner em acción una lectura destotalizadora, y por ende, de movilizar lo femenino como pivote contra-hegemónico de los discursos de autoridad”.

 

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