labrys, estudos feministas

número 1-2, julho/ dezembro 2002

      Um feminismo em múltiplas vozes,

um movimento em atos: os feminismos no Québec

 

Francine Descarries [1]

tradução: tania navarro swain

 

Resumo

O presente artigo se debruça sobre o passado do movimento das mulheres no Québec, assim como sobre as ações e estratégias que criou, ao longo dos últimos anos. Nesta perspectiva sócio- histórica, busca ilustrar como, no último decênio, o movimento das mulheres no Québec buscou retomar um militantismo sociopolítico, mais aberto à diversidade das experiências vividas pelas mulheres e à complexidade da imbricação das relações sociais de divisão e de hierarquização , que marcam a pluralidade e a seqüência de suas posturas.

Palavras-chave: feminismo, movimento das mulheres, Québec, pluralidade

 

Segundo o ponto de vista expresso por Élizabeth Spelman (1988), em Inessential Women , falar das mulheres em função do que elas partilham ou do que as une torna difícil, quase impossível, toda tentativa de falar das diferenças entre elas e vice-versa. No presente artigo, vou, ao contrário, sustentar que, afastando-se das propostas pós-modernas de nomadismo identitário, cultural e político, que se multiplicam em sua margem, os movimentos das mulheres no Québec, na década de 1990, realimentou uma militância sócio-política aberta a realidades diversas; situou-se, assim, longe  do clima de resignação esclerosante e de individualismo revanchista, que parece ser um traço dominante da movimentação social neste mesmo período.

 Uma análise preliminar das ações e estratégias iniciadas  pelos movimentos québécois de mulheres,  neste período, incita-me, com efeito, a postular que este, através de suas práticas mobilizadoras, procurou "aumentar o impacto de [sua] análise " e "denunciar os sistemas que engendram a exclusão e o crescimento da dominação" (Matte et David, 2001: 2).

 Pluralismo, democracia e solidariedade inscrevem-se, assim, no centro de seu discurso e de seu projeto ético-político, ao mesmo tempo em que a busca da realização de tais objetivos favorece as práticas de coligações nas quais, segundo uma observação que tomo de Hirata e Le Doaré (2001: 27), “as diferenças entre as mulheres são reconhecidas e ouvidas,  e as fronteiras não se demarcam pelo que as mulheres são, mas por aquilo que pretendem realizar juntas”.

Deste modo, as reivindicações que foram formuladas pelos movimentos das mulheres do Québec, na Marcha do Pão e das rosasna Marcha mundial das mulheres no ano 2000,  e, mais recentemente  ainda, no Fórum das Mulheres, na Reunião dos Povos, em 2001, no Québec, indicam que este é um momento determinante na história destes movimentos. Determinante no sentido  em que suas práticas militantes, orientadas sob "uma outra maneira de ver o mundo" (Matte et David, 2001: 2), estão atravessadas por um programa mais inclusivo, que busca se abrir ainda mais à diversidade das experiências vividas pelas mulheres; recusa, portanto, "confinar a individualidade do minoritário ( ou d@s excluíd@s) à sua marca social, à sua diferença" (C.S.F., 1997a: 47), ou ainda considerar esta diferença como um "em si", para utilizar a expressão de Danielle Juteau (1996).

As análises convergem, certamente, para demonstrar que uma tal abertura é difícil de ser vivida no quotidiano dos grupos de mulheres, e nos movimentos, de forma geral. De fato, um sério problema coloca-se, como sublinha a Portaria do Conselho da Condição da Mulher no Québec (1997b: 3), sobre os Direitos das mulheres e diversidade, no que diz respeito à "maneira de conciliar o negociável e o não-negociável, nas necessidades de adaptação de nossas instituições à práticas diferentes". Em outras palavras, esta atitude é necessária ao traduzir o pluralismo em intervenções sociais, atualizar as coalizões ou ainda desenvolver plataformas locais ou internacionais, fundadas no respeito de outras distinções identitárias, sem comprometer os princípios feministas em matéria de igualdade e  ganhos das mulheres no Québec. Imagina-se, facilmente, que tais conciliações são ainda mais difíceis de conceber e de realizar, tendo em vista que “o capitalismo e o  patriarcado dão-se as mãos quando se trata de gerar a exclusão” (Matte et David, 2001: 2) e que uma tal interação alimenta-se de relações sociais complexas, imbricadas em múltiplos processos, ao mesmo tempo distintos e interligados, entre os quais:

Antes de prosseguir com esta argumentação, é importante lançar um breve olhar sobre os  movimentos contemporâneos das mulheres, revendo seus contornos e situando o contexto de sua recente modificação . Como definição, e correndo o risco de simplificar demasiadamente, contento-me em lembrar que os movimentos de mulheres no Québec são movimentos sociais multiformes, que se desdobram em uma vasta  colcha de retalhos, composta de práticas e  ações políticas pontuais. Realidade com múltiplas faces, variável no tempo e no espaço, foi atravessada , desde seu reaparecimento  nos anos 60,  por diferentes correntes políticas e teóricas e engajando-se  em diferentes e numerosas causas. De fato, há mais de quarenta anos agora, os movimentos de mulheres representam, no Québec, um locus de mobilização e agente  importante na vida política, cujos principais objetivos são a defesa dos direitos das mulheres, a abolição das desigualdades entre os sexos e a transformação das instituições, regras e comportamentos que regem as relações mulheres-homens. Enquanto agente sócio-político permitiu entre outros  aspectos, subverter o pensamento “naturalista”, em relação a um pretenso “destino” das mulheres e o suposto caráter universal das noções de cidadania e de direitos, colocando assim um termo, como diria Tourraine (1997:226) “à identificação de uma categoria particular de seres humanos ao universal” e ao “monopólio do sentido e do poder à disposição dos homens”.

         Neste texto, não colocarei uma distinção formal entre as denominações movimentos de mulheres” e “ movimentos  feministas”. Entretanto, é preciso lembrar que os primeiros designam um vasto conjunto de práticas e coalizões, constantes ou não ao longo do tempo, que tiveram e têm ainda por objetivo, transformar a situação sócio-econômica e política das mulheres e a redefinição de seu papel na sociedade, sem necessariamente questionar os mecanismos reprodutores da divisão social dos sexos. Por outro lado, aos movimentos feministas, associo um conjunto mais restrito de discursos e de práticas que dão prioridade à luta das mulheres, propõem um projeto de sociedade alternativa e colocam como objetivo a abolição, ou ao menos a transformação profunda, da ordem patriarcal e de seu poder regulador, em nome dos princípios de igualdade, de equidade e de justiça social. Nesta distinção, sublinho aqui os movimentos feministas como parte importante e dinâmica dos movimentos das mulheres, mas que não englobam necessariamente todos estes movimentos. É preciso, sobretudo, ter em mente que os projetos teóricos e militantes dos feminismos modificaram-se sensivelmente e tornaram-se mais complexos ao longo dos anos, enquanto que as concepções de igualdade e de liberação multiplicaram-se (Dagenais, 1987) e até se entrechocaram (Descarries et Roy, 1988) .   

Assim, o período que se desdobra do fim dos anos 60 ao início dos anos 80 caracterizou-se por um feminismo sócio-político militante, que tomará forma em contacto com os movimentos americanos, franceses e anglo-canadenses, conhecendo seu apogeu no fim dos anos 70. Engajado na efervescência social do momento, foi chamado de idade de ouro do feminismo,  pela visibilidade de suas lutas e de seu impacto econômico e jurídico. Atravessado por diferentes correntes, políticas e ideológicas, em diversos graus de radicalismo , esta fase da militância feminista será animada por uma vontade de transformar os discursos, as regras e as normas sociais que legitimam a dinâmica sexuada das relações sociais. Para isto, o movimento tentará criar, por um lado, um vocabulário teórico e estratégico para expressar e analisar a situação das mulheres, descrita em termos de desigualdade, discriminação, opressão ou apropriação, segundo sua origem teórica e política. Por outro lado, será instigador de lutas espetaculares para reivindicar a autonomia sócio-econômica e jurídica das mulheres e obter o controle de seus corpos e sua fecundidade.

Já nos anos 80, o perfil do feminismo no Québec modificar-se-á progressivamente.  Como em outros lugares, as ações coletivas de grande envergadura tornam-se mais raras, mas os grupos de mulheres multiplicam-se e estendem seu raio de influência às bases do social. A militância atualiza-se em um feminismo de intervenção, cujas formas são mais variadas ou especializadas, porém, mais direcionadas e mais concretas, isto é, mais próximas dos problemas quotidianos das mulheres. Feminismo em atos, os movimentos de mulheres québécoises procuram, então, redefinir a maneira de produzir e de agir o Nós mulheres dos anos 1970, com o objetivo de aumentar sua rede de suporte e ajuda mútua, e atender às necessidades mais imediatas e urgentes das mulheres  adaptando-se à diversidade de suas novas condições de vida. Este feminismo se distingue, neste período por uma militância mais pragmática, porém igualmente mais dividida. Esta intervenção mais diretamente ligada à resolução de problemas concretos levará, ao longo dos anos, à implantação de centenas de grupos locais, regionais e nacionais de serviços e de ajuda comunitária, que existem ainda hoje, principalmente nos campos da saúde, do aborto, da educação popular, da inserção no mercado de trabalho e da luta contra a violência e o isolamento das mulheres. Atualmente, a rede assim constituída representa uma participação oficiosa do movimento das mulheres no Québec  e fonte primeira de sua força e resistência. Esta inscrição no quotidiano das mulheres foi qualificada, por diversas analistas, entre as quais Diane Lamoureux (1990), como uma transformação para um feminismo de serviços, consolidado e induzido em grande parte pelo apoio financeiro do Estado.

De minha parte, admito que uma tal transformação funciona como uma operação de transferência das responsabilidades sociais do Estado para os grupos de mulheres, e que assim corre o risco de se subordinar às regras de definição, de composição e de eficiência ditadas pelas agências financeiras. Entretanto, não retenho a denominação “feminismo de serviços” para designar a orientação tomada pelos movimentos das mulheres. Prefiro feminismo de intervenção ou feminismo em atos. Pela prioridade que é concedida à intervenção direta, parece-me, com efeito, que uma tal dinâmica permite a um número considerável de mulheres uma tomada de consciência  das coerções ideológicas, institucionais e estruturais, que presidem à organização de suas vidas. Permite-lhes também desenvolver diversas especializações e familiarizar-se com a militância, enquanto que os movimentos das mulheres no Québec abrem-se à novos campos de experiência e de práticas feministas. De fato, considero que é em razão da existência destes grupos de mulheres que se forjou a possibilidade de se ver ressurgir no Québec, nos anos 90, um movimento sócio-político cujo apelo à democratização de suas lutas e à diversificação de suas bases foi amplamente ouvido. Desde a grande manifestação Mulheres na cabeça, que reuniu milhares de mulheres, no início da última década, para sublinhar o 50o aniversário da obtenção do direito de voto para as mulheres – manifestação marcada por tensões entre diferentes grupos de mulheres de diversas origens – os movimentos de mulheres no Québec esforçaram-se em adotar uma postura analítica e estratégica suscetível de afasta-los da ficção homogeneizante e redutora de um amálgama “mulheres” reafirmando, porém, a importância da integração de uma visão feminista para dar voz à um movimento de solidariedade, reunido em torno de certas reivindicações e estratégias fundamentais. A mobilização das mulheres sob uma só bandeira, de um projeto feminista único, parecerá, então, menos essencial, e não será, talvez, nem mesmo vista como uma possibilidade.

As tensões, contradições e problemas estratégicos que atravessam a atual busca de solidariedade entre as mulheres, na renovação política que aqui nos interessa, não são novidade no seio dos movimentos das mulheres. Já no fim dos anos 70, bem antes das propostas pós-modernas, a representatividade e o potencial de agrupamento destes movimentos  havia sido colocado em dúvida  por numerosos coletivos de mulheres, que afirmavam não se reconhecer em um projeto principalmente pensado e animado por mulheres brancas, heterossexuais, de classe média. Feministas afro-americanas, coletivos de mulheres imigrantes ou autóctones, lesbianas ou ativistas dos países do Sul, para nomear as mais presentes, foram numerosas ao protestarem contra o silêncio das teorias e práticas feministas a respeito de suas respectivas situações, promovendo um modelo de liberação pouco flexível, em relação às necessidades das mulheres de condições sócio-culturais diversas. Sublinharam energicamente que a evocação de condições comuns ou universais, ainda que eficaz para favorecer a mobilização inicial, não podia mais se sustentar diante da diversidade e dos efeitos conjugados das relações sociais vividas pelas mulheres. A ambição de uma unanimidade feminista deveria, com certeza, ser revista.

Mas se as críticas foram elementos de divisão e de oposição, também contribuíram com o enriquecimento, para a transformação mesmo, dos modelos e das estratégias inicialmente propostas. Podem, inclusive, ser consideradas como um dos componentes da dinâmica do processo crítico multidimensional que marcou a transformação dos movimentos das mulheres e de suas reivindicações, questionando a igualdade que fora o leitmotiv de suas grandes mobilizações e nutrindo sua ambição de teorizar a identidade, a alteridade, a diversidade e as desigualdades através da pluralidade dos  pontos de vista das mulheres.

Estas posturas críticas foram também ponto de partida para a definição de um leque mais amplo de questionamentos teóricos e políticos, proposto pelos feminismos contemporâneos: tentar resolver, ou minimizar, as tensões inerentes à contradição que existe “entre universalismo e particularismo, entre tentações identitárias e projetos igualitários” (Kandel ,1995 : 363). Neste sentido, poucas analistas, mesmo entre aquelas que aderem estritamente à uma problemática desconstrucionista, pensam que seria apropriado afastar as análises políticas dos feminismos ou as análises macro-estruturais das desigualdades sociais para reivindicar uma melhor justiça redistributiva ou assegurar um mínimo de dignidade às pessoas mais discriminadas.

Em contrapartida, se a maior parte das militantes e intelectuais feministas adere, sem reserva, ao princípio que aponta para a descentralização da análise e da ação, ( são poucas as que negligenciam a importância das diferenças entre mulheres), esta abertura encontra maior dificuldade  em sua ressonância na ação política, pois toda insistência sobre as diferenças tem, muitas vezes, como resultado concreto, uma desconstrução, em escala infinita, de identidades e de relações sociais. Assim, percebe-se  uma tal fragmentação como um freio à consolidação de um projeto coordenado, assim como a uma mobilização política eficaz.

Enfim, se existe uma vontade indiscutível de abertura nos movimentos das mulheres no Québec e se o pluralismo é visto como uma questão importante, sua realização, entretanto, tarda a se concretizar, pois, como constata Josée Belleau (2000 : 48). “continua, porém, inacabado e exploratório, colocando, a cada pessoa e a cada organização feminista, o desafio constante de pensar e agir em diversas dimensões ao mesmo tempo”.  Apesar da expressão de uma vontade política bem real e claramente formulada e do progresso realizado neste sentido, a questão aventada por Yuval-Davis (1996), a respeito da articulação “pensável e praticável das diferenças entre mulheres”, continua sem resposta. Da mesma forma, não se  vislumbra uma forma  para o reconhecimento das diferenças e solidariedades feministas, evitando-se a falácia de um  consenso fictício, pois ainda que várias iniciativas tenham favorecido a emergência de novas alianças entre mulheres de diferentes meios, no último decênio, muitas dificuldades restam a ser ultrapassadas, como: promover uma partilha de poder na elaboração de definições e de estratégias, aumentar a representação das mulheres dos grupos minoritários nas lideranças dos movimentos, multiplicar os espaços de diálogo e de ações comuns, para  assim dar-se prioridade ao princípio de igualdade e de justiça na confluência razoável  das diversidades sócio-econômicas, políticas e culturais, nos planos local e internacional.

Para tanto, os movimentos das mulheres no Québec preconizaram o desenvolvimento de ações pontuais de coalizão e a promover a adesão solidária, mais que a consensual, do maior número de mulheres possível, a um projeto feminista cujo ritmo, perspectivas e expressões seriam diversificados; o leme, porém, ´permaneceria voltado para a eliminação dos processos sociais sexuados de divisão e hierarquização atualizadas nas sociedades contemporâneash. “Somos muitas, somos múltiplas, somos realidades plurais e apostamos na solidariedade” , este é o aforismo que Josée Belleau (2000 : 46) propõe para descrever a escolha de orientações e de estratégias estabelecidas pelos movimentos das mulheres, sobretudo depois da Marcha do pão e das rosas, em sua luta  contra a discriminação e exclusão das mulheres, e  pela promoção de suas reivindicações, em prol de um projeto de sociedade não- sexista e democrática.

As ações dos movimentos das mulheres tomaram  a frente da luta contra a pobreza, a marginalização d@s trabalhador@s e contra a exclusão social da qual as mulheres são, de forma desproporcional, as vítimas, sobretudo quando assumem  sozinhas  as responsabilidades familiares ou pertencem a grupos minoritários.  Como seqüência deste engajamento e das aberturas estratégicas que o conduzem, os movimentos das mulheres no Québec se afirmam cada vez mais como movimentos sociais centrados nos direitos humanos e sociais  d@s  mais desamparad@s, sejam el@s mulheres, homens ou crianças. Diferente do projeto político sócio-identitário no qual as mulheres, em sua maioria de classe média e alta, se engajaram no fim dos anos 60,os movimentos atuais tomam a forma de uma vasta coalizão, com múltiplas vozes, que reagrupa agora as mulheres “mais diferentes que semelhantes e mais divididas economicamente que antes”  (Belleau, 2000: 47), buscando reunir as mulheres onde elas se encontram, prestando uma atenção particular, mais consciente e direta, aos problemas daquelas que são duplamente e triplamente descriminadas.

Assim, tornando-se organizadores da Marcha mundial das mulheres do ano 2000 , os movimentos das mulheres almejavam, não somente se posicionar, de forma mais visível e significativa, atores críticos nas cenas políticas do Québec e do Canadá, mas igualmente apontavam, como seu objetivo precípuo,  provocar uma mobilização, o mais ampla e diversificada possível, em torno de suas análises, política e econômica; de seu combate pelo avanço de um programa feminista, quanto a dois temas centrais: a pobreza e a violência contra as mulheres, e enfim, sua vontade de abertura à uma visão mundial das questões feministas. (Fédération des femmes du Québec, FFQ, 2001).  

Esta missão foi parcialmente cumprida e permite-nos uma análise preliminar deste acontecimento, pois os primeiros diagnósticos convergem para atestar que a Marcha mundial das mulheres ocasionou uma manifestação sem precedentes da energia dos movimentos das mulheres no Québec e de sua abertura voluntária à solidariedade e à diversidade.

De fato, jamais estes movimentos haviam conseguido reunir tantas mulheres, de horizontes tão diversos, e nunca  levantaram um capital de simpatia tão grande, no seio da população, nem obtido uma tão forte visibilidade midiática Missão parcialmente cumprida igualmente, pois, com esta Marcha, os movimentos  mostraram que era possível para as mulheres comunicar-se, não importa de onde viessem, ou qual fossem seus particularismos identitários, bem como traçar uma plataforma comum a fim de  manifestar, coletivamente, seu desejo de ver a humanidade construir uma sociedade de justiça, de igualdade e de paz.

Da mesma forma, a experiência da Marcha mundial das mulheres do ano 2000 lembrou-nos, como observa Moller Okin (1995 : 65-66), que “ certas características e situações são partilhadas por uma grande parte das mulheres do mundo e que, com freqüência, as mulheres poderiam aproveitar estes aspectos comuns de sua existência para o exercício de um maior poder.” E isto não apenas para manter o objetivo da eliminação dos processos sociais sexuados de divisão e hierarquização atualizados na maioria das sociedades atuais, mas igualmente para evitar que as lutas das mulheres sejam apagadas e continuamente subordinadas à de outros movimentos sociais ou buscas de identidade (Le Doaré, 2001).

Mas as apostas estariam assim ganhas? Claro que não, se levamos em conta que capitalismo e patriarcado estão presentes para justificar os fundamentalismos religiosos, os controles sociais crescentes,  a importância dada ao econõmico, os racismos e as coerções à heterossexualidade, que constituem os principais vetores da reprodução das desigualdades e da discriminação.

Certamente que não, também, na medida em que continua a ser difícil evitar uma valorização excessiva das diferenças que contribuem ao esfacelamento das solidariedades e dos projetos feministas, ou ainda afastar um relativismo cultural abusivo, que leva a aceitar, e até justificar, normas e tradições patriarcais que restringem arbitrariamente, ou mesmo violentamente, os direitos e a liberdade das mulheres.

Claro que não, finalmente, se considerarmos o fraco eco criado pelas  reivindicações das mulheres nas esferas dos  governos do Québec e do Canadá, pois “ os ganhos obtidos quanto às reivindicações (estão) longe de corresponder às expectativas das mulheres e da Fédération des Femmes du Québec” (FFQ, 2001 : 3). “É paradoxal”, pode-se ler em um dos documentos preparados para a Assembléia geral da FFQ em 2001, “[...]atingir um nível tão complexo de organização, de mobilização e de credibilidade, sem conseguir traduzir isto em ganhos concretos importantes para as mulheres, a curto termo.”

Porém, talvez um resultado mais fundamental que a obtenção de ganhos imediatos com a realização da Marcha mundial, os movimentos das mulheres manifestaram-se em escala planetária, ou quase. Milhares de mulheres estiveram nela implicadas em todo o mundo, com uma plataforma comum, graças à iniciativa dos movimentos das mulheres do Québec. Mulheres de horizontes culturais, sócio-econômicos e políticos muito diversificados reuniram-se, em seus próprios países e no plano internacional, para criar situações de diálogo e reivindicar juntas medidas concretas, para obter a eliminação da pobreza e da violência exercida contra as mulheres. Sem sombra de dúvida, um tal acontecimento deve ter um futuro, na medida em que permitiu a um número sem precedente de mulheres,  expressarem-se enquanto cidadãs, fazerem-se ouvir nas esferas de poder, que raramente freqüentam e, elemento não descartável, perceberem a imbricação dos processos de categorização de sexo, de raça e de classe na organização de suas vidas.

A Marcha mundial  possibilitou a milhões de mulheres um re-agrupamento em torno de uma postura crítica, para reclamar a redefinição das regras religiosas, políticas, sociais, econômicas ou jurídicas que as gerem (Marche mondiale des femmes (2001); FFQ, 2001); realizou, também, uma ação militante, em escala planetária, em favor da liberdade de pensamento, de movimento e de ação para todas as mulheres do mundo . Resta-nos esperar que o dinamismo e o espírito que possibilitaram a realização da Marcha sobrevivam. E que a vontade de entendimento, seu motor, permita, por um lado, aos movimentos das mulheres, evitar o enclausuramento nas problemáticas do singular, do particular e dos particularismos e de outro, premunir-se contra um relativismo cultural abusivo, que levaria ao estilhaçamento ilimitado e auto-destruidor das solidariedades, acomodando-se em identidades concomitantes ou sucessivas das mulheres, assim como  em sua pluralidade e “serialidade” de suas posições.

 

Referências

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Nota biográfica:

Francine Descarries é doutora em sociologia  pela Université de Montréal. É professora do departamento de Sociologia da  Université du Québec à Montréal (UQAM) desde 1985 e membro do Comité Externe de direction du Fond pour la Recherche de la Condition Féminine Canada,  assim como membro du Comité d´edition de la Fédération canadienne de Sciences Humaines et Sociales. Francne Descarries é atualmente diretora universitária da ´Alliance de Recherche IREF-Relais Femmes, que reúne mais de 25 pesquiasadoras e 20 grupos comunitários.É fundadora do IREF-Institut de recherches et d’études féministes de l’UQAM) e suas pesquisas se debruçam sobre as teorias feministas, os movimentos de mulheres no Québec , a maternidade e a articulação família-trabalho na experiência das mulheres.  Recebeu, recentemente,  o prêmio Femme de Mérite 2002, dado pela Fondation Y des femmes, que reconhece assim sua notável contribuição no campo dos estudos feministas.


[1] Comunicação apresentada por Francine Descarries (ver notas biográficas no comité d´éditon na parte francesa de Labrys) no colóquio «Fragmentação de interesses e de práticas cognitivas dos movimentos sociais» 69o Congresso da ACFAS, Sherbrooke, 16 de maio 2001.