labrys, estudos feministas

número 1-2, julho/ dezembro 2002

A incredulidade a respeito das  metanarrativas:

articulando pós-modernismo e  feminismos

Linda Hutcheon

Tradução: Margareth Rago

Resumo

Enquanto os feminismos utilizarem as estratégias paródicas pós-modernas da desconstrução,  não sofrerão da confusão do pós-modernismo em relação a programas políticos ( o fato de recusar tanto a direita quanto a esquerda e de ser aceito por ambos)e isto se deve em parte,  por suas posições, que oferecem diversos modos de compreender os costumes estéticos e sociais, à luz das relações entre os gêneros. Enquanto os feminismos e o pós-modernismo trabalharam para compreender os modos dominantes de representação, os feminismos, por sua vez, pressionam  o pós-modernismo a reconsiderar os desafios anti-metanarrativos para o universal humanista, em termos de gênero.

 Palavras chave: Pós modernismo, feminismo, meta narrativas, gênero

 

Era a política conservadora, era a política subversiva ; era o retorno da tradição, era a revolta final da tradição ; era o desenraizamento  do patriarcado, era  a reafirmação  do patriarcado.

Anne Frieberg

Quando Jean-François Lyotard definiu a condição pós-moderna como um estado de incredulidade em relação as metanarrativas ( Lyotard, 1984) , estabeleceu o patamar para uma série de debates sobre os vários sistemas narrativos pelos quais a sociedade humana organiza e dá significado, unidade e “universalidade” à sua experiência. O próprio Lyotard, no debate com o defensor do “projeto inacabado” da modernidade, Jürgen Habermas (1983:3-15), analisou o que considerava como as narrativas dominantes de legitimação e emancipação, argumentando que a pós-modernidade se caracteriza, não por uma narrativa mestra totalizadora, mas por narrativas menores e múltiplas que não buscam (nem obtém) qualquer estabilização ou legitimação universalizante.

Fredric Jameson (“Foreword” to Lyotard, VII-XXI) mostrou que tanto Lyotard quanto Habermas estão de fato trabalhando a partir de posições alicerçadas numa “narrativa mestra” – uma de inspiração francesa e  revolucionária (1789) e outra germânica e hegeliana; uma valorizando o compromisso, a outro o consenso. Richard Rorty (1984), por sua vez, fez uma crítica radical de ambas as posições, observando ironicamente que partilhavam um  sentido quase  ultrapassado do papel da filosofia hoje.

Ultrapassada ou não, esta posição sobre o papel e a função das metanarrativas, em nossos discursos  de saber pede nossa atenção. Vários tipos de teoria e critica feminista convergem a partir de um ângulo particular: a metanarrativa que tem sido sua preocupação principal é obviamente o patriarcado, especialmente em seu ponto de imbricação com as outras narrativas dominantes de nossos dias – o capitalismo e o humanismo liberal. Em seu modo específico de crítica, os feminismos [1] têm se sobreposto às teorias marxistas e pós-estruturalistas e ao que tem sido chamado de arte pós-moderna – arte que é paradoxalmente tanto auto-reflexiva e historicamente fundamentada, quanto paródica e política: as pinturas de Joanne Tod ou  de Joyce Wieland, a ficção de Susan Swan ou de Jovette Marchessault, a fotografia de Geoff Miles ou Evergon. Tal arte é irônica, não nostálgica em seu engajamento com a história e com a história da arte. Trabalha para ‘de-doxificar’ a  ‘doxa’ – aquilo que Roland Barthes chamou de opinião pública ou de “Voz da Natureza” e consenso. (Barthes, 1977:47)

Mas há uma armadilha aqui: devido ao seu uso da ironia como uma estratégia discursiva, o pós-modernismo tanto inscreve quanto subverte seu alvo. De suas primeiras manifestações na arquitetura até o presente, a arte pós-moderna justapôs e deu igual valor ao mundo fechado em si mesmo, da arte, e o mundo aberto para o exterior, da história e da experiência. A tensão entre estas aparentes oposições finalmente define os paradoxais  “textos”  do “vivido”  pós-modernista. Respondendo à questão da metanarrativa, a posição  do pós-modernismo é aquela que deseja contestar os modos culturais dominantes (patriarcado, capitalismo, humanismo, etc),  ao mesmo tempo sabendo que não pode  se desembaraçar completamente deles: não há posição  fora dessas metanarrativas, de onde se lançar uma crítica que não esteja comprometida, de alguma forma, com elas. E isto se derrama , igualmente sobre a política, não menos real e inevitavelmente comprometida, do pós-modernismo. De fato, é justamente seu comprometimento  que torna suas políticas reconhecíveis e mesmo familiares para nós.

É este paradoxo da crítica pós-moderna , cúmplice da metanarrativa, que os feminismos e o pós-modernismo compartilham. É claro que , recentemente,  muitas comentadoras apontaram o caráter masculino da tradição modernista, subjazendo  qualquer pós-modernismo, mesmo que este se desenhe  enquanto reação ou mesmo  ruptura consciente em relação  esta última.

 Os Feminismos tem resistido à sua incorporação ao campo pós-moderno, e com bons motivos: suas agendas políticas estariam ameaçadas ou pelo menos obscurecidas pelo duplo código desta critica cúmplice; suas particularidades históricas e seus posicionamentos relativos poderiam se tornar obscurecidos. Ambos trabalham em direção a um conhecimento da natureza social da atividade cultural, mas os feminismos não se satisfazem com esta explanação: as formas artísticas não  podem mudar, a menos que as práticas sociais o façam.  Uma exposição artística pode ser o primeiro passo, mas não o último. No entanto, as artistas feministas e os pós-modernos compartilham uma visão da arte como um signo social inevitavelmente  mesclado a outros signos nos sistemas de significado e valor. Mas eu argumentaria que os feminismos querem ir além , para trabalhar no sentido da mudança desses sistemas, não apenas para “de-doxificá-los” . Mas há ainda uma outra diferença entre os dois projetos. Barbara Creed coloca-a da seguinte maneira:

Enquanto o feminismo procura explicar esta crise (de legitimação que Lyotard descreveu) em relação aos efeitos da ideologia patriarcal e da opressão das mulheres e de grupos minoritários, o pós-modernismo procura outras causas possíveis – particularmente a confiança do Ocidente em ideologias que estabelecem verdades universais – o Humanismo, a História, a Religião, o Progresso, etc. Enquanto o feminismo argumenta que a posição ideológica comum de todas essas “verdades” é que elas são patriarcais,  a teoria pós-moderna...reluta em isolar um único fator determinante. ( Creed, 1987:52)

“Reluta em” porque ela não pode – não sem cair na armadilha da qual implicitamente  acusa outras ideologias: a da totalização. Creed está correta ao afirmar que o pós-modernismo não oferece uma posição privilegiada e não problemática de onde falar. Portanto, ela observa, ‘(o) paradoxo em que nos encontramos, nós feministas, é que enquanto olhamos os discursos patriarcais como ficções, procedemos como se nossa posição, baseada na crença na opressão das mulheres fosse, de certa forma,  muito mais próxima da verdade. (idem: 67)

 Mas a rejeição pós-moderna de uma posição privilegiada é uma posição tão ideológica quanto essa postura feminista. Por ideologia, entendo todo o complexo de práticas sociais e sistemas de representação. A confusão política em torno do pós-modernismo – recusado e recuperado tanto pela esquerda quanto pela direita – não é acidental, mas resultado direto de seu duplo código de cumplicidade e crítica. Enquanto os feminismos puderem usar as estratégias paródicas pós-modernas da desconstrução,  nunca sofrerão desta confusão de agenda política, em parte porque  tem uma posição e uma “verdade” que proporcionam meios de compreensão das práticas sociais e estéticas à luz da produção de questionamentos sobre as relações de gênero. Esta é a metanarrativa dos feminismos. Esta é também sua força e, aos olhos de alguns, sua limitação necessária.

Enquanto os feminismos e o pós-modernismo têm trabalhado para ajudar-nos a compreender os modos dominantes de representação vigentes em nossa sociedade, os feminismos têm focalizado especificamente o sujeito feminino da representação e têm começado a sugerir modos de desafiar e mudar estas formas dominantes, nas várias dimensões da cultura. Ensinaram-nos que aceitar inquestionavelmente quaisquer representações fixas – na ficção, no cinema, na propaganda ou onde  quer que seja – significa perdoar sistemas sociais de poder, que validam e autorizam algumas imagens de mulheres ( ou negros, asiáticos, gays, etc) e não outras. A produção cultural é construída num contexto social e numa ideologia – um sistema de valores vivido – e é  nisso que o trabalho feminista nos tem feito prestar atenção. Os feminismos têm, nesse sentido, tido um efeito muito profundo no pós-modernismo. Não é por acaso que o pós-moderno coincide com a reavaliação feminista de formas não canônicas de discurso narrativo, como por exemplo, uma autobiografia bem pós-moderna,  Roland Barthes by Roland Barthes e uma biografia   bem pós-moderna, Paterns of Childhood de Michael Ondaatje, ou Ana Historic, de Daphne Marlatt. Eles todos não apenas desafiam o que consideram ser literatura (ou antes, Literatura), mas também o que antes era assumido como algo inteiro,  narrativa unificada de representações de subjetividade na escrita da vida.

Victor Burgin declarou que queria, com a fotografia e sua teoria da arte  mostrar o significado das diferenças sexuais como um processo de produção, como “algo  mutável, histórico, e, portanto aquilo que podemos modificar’ ( Burgin, 1986: 108).  O pós-modernismo não pode fazer este algo, no entanto, pode  des-fazer, mas sem o apoio de uma metanarrativa para dirigir sua agenda política, e isto é tudo o que ele pode fazer.

Os feminismos, por outro lado, podem fazer mais. Por exemplo, ao conferir um novo e enfático  valor à noção de ‘experiência’,   deram um ângulo diferente a uma questão bem pós-moderna: o que constitui uma narrativa histórica válida? E quem o decide? Isto levou a uma reavaliação das narrativas pessoais ou de vida  – jornais, cartas, confissões, biografias, autobiografias, auto-retratos. Nas palavras de  Catherine Stimpson: ‘ A experiência gerou mais do que arte; foi do mesmo modo uma fonte de engajamento político ( Stimpson, :226).  Se o pessoal é político, então a separação tradicional entre história pública e privada deve ser repensada. Este repensar feminista coincidiu com uma renegociação geral tanto do contexto da narrativa histórica, quanto da política de representação e auto-representação.

Há, de fato,  um envolvimento de mão dupla do pós-modernismo com o feminismo: por um lado, os feminismos instaram o pós-modernismo a reconsiderar - em termos de gênero  – seus desafios anti-metanarrativos em relação a este ‘universal’ humanista  chamado ‘Homem’  e sustentaram/reforçaram suas tentativas “de-doxificar’ a separação entre privado e público, pessoal e político;  por outro lado,  as estratégias representacionais do pós-modernismo,  paródicas e irônicas, ofereceram às artistas feministas  modos efetivos de trabalhar no interior dos discursos metanarrativos dominantes, ao mesmo tempo em que os desafiavam. Dito isto, não há maneira pela qual os projetos feministas e pós-modernos, enquanto projetos culturais, possam confluir. As diferenças são claras, e nenhuma tão clara quanto a política”.

Chris Weedon (1988) abre seu recente livro sobre a prática feminista com as seguintes palavras: ‘ O Feminismo é uma política’. O pós-modernismo não é; ele é certamente político, mas é politicamente ambivalente, duplamente envolvido com cumplicidade e crítica, subvertendo e mantendo ao mesmo tempo a posição metanarrativa. Devido à sua noção necessária de “verdade”, como argumenta Barbara Creed , os feminismos não são  incrédulos em relação às suas próprias metanarrativas, mesmo se  contestam a patriarcal. Os feminismos  continuarão a resistir à incorporação ao pós-modernismo, em grande parte devido à sua força revolucionária, como movimentos políticos, que lutam por mudanças sociais reais. Eles certamente vão além de tornar  a ideologia explícita e descontruindo-a , argumentam sobre a necessidade de sua mudança , para produzir uma transformação real da arte, que só pode vir com a transformação das práticas sociais patriarcais.  O pós-modernismo não teorizou  este tipo de responsabilidade; não tem estratégias de resistência real que correspondam às feministas. Não pode ter. Este é o preço a pagar por essa incredulidade em relação a metanarrativa.

 

Bibliography

  Lyotard, Jean-François 1984. The postmodern Condition: A Report on Knowledge, trans. Geoff Bennington and Brian Massumi, Minneapolis: University of Minnesota Press

Habermas Jürgen . 1983. ‘Modernity – Na Incomplete Project’, trans. Seyla Ben-Habib, in Hal Foster, ed., The Anti-Aesthetic: Essays on Postomdern Culture ,Port Townsend, Wash: Bay Press,  3-15.

Jameson, Fredric, ‘Foreword’to Lyotard, vii-xxi.

Rorty, Richard Habermas .1984., Lyotard et la postmodernité’, Critique, 442,mars: 181-197.

Barthes, Roland. 1977. Roland Barthes by Roland Barthes, trans. Rochard Howard , New York: Hill & Wang, 1977

 Creed, Barbara. 1987. ‘From Here to Modernity: Feminism and Postmodernism’, Screen 28, 2

Burgin, Victor.1986. The End of Art Theory: Criticism and Postmodernity (Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press International, 1986), 108.

Stimpson, Catharine .1988. Nancy Reagan Wears a Hat: Feminism and its Cultural Consensus’, Critical Inquiry, 14, 2226.

Weedon, Chris, Femnist Practice and Poststructuralist Theory , Oxford: Blackwell, 1988).



[1]  Uso o plural, mesmo que pareça estranho, pois há muitos feminismos e feministas e nenhum consenso cultural de pensamento feminista sobre a representação narrativa. Como Catherine Stimpson argumenta (1988: 223) a história do pensamento feminista, neste tópico, contém  a contestação da representação dominante da mulher, a restauração da auto-representação das mulheres no passado, a criação de acuradas representações de mulheres e o reconhecimento da necessidade de representar as diferenças entre mulheres ( de sexualidade, raça, idade, classe, etnia, nacionalidade), além de suas diferentes orientações políticas. Como um signo verbal de diferença e pluralidade, “feminismos”  parece ser um termo adequado para designar não um consenso, mas a multiplicidade de pontos de vista, com alguns denominadores comuns, quando se chega à noção de política de representação narrativa.



Nota biográfica

Linda Hutcheon é professora de Inglês e Literatura comparada na Universidade de Toronto. É autora e co-autora de onze livros sobre crítica da cultura e teoria,   que navegam do pós-modernismo à Ópera.