labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2011 -janvier /juin 2012  - julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012

 

BAFÃO do KIT GAY: ANÁLISE DO DISCURSO DA MILITÂNCIA LGBT[1]

Zuleide Paiva da Silva[2]

 

Resumo

Reconhecendo a linguagem patriarcal como produtora de violências discursivas que recaem, sobretudo, nas mulheres, este trabalho, construído à luz da Análise do Discurso da linha francesa, tem o proposto de analisar os sentidos que emanam das práticas discursivas produzidas pelas militância LGBT no contexto do “Bafão do kit gay”, isto é, no ato de expressar posicionamento político em relação ao veto da presidenta Dilma Rousseff  a todo o conteúdo do kit informativo do Projeto Escola sem Homofobia. O corpus analisado se circunscreve a um conjunto de mensagens eletrônicas produzidas e socializadas por militantes gays nesse contexto, fazendo alusão ao Gênero e à Sexualidade da presidenta. O interdiscurso é produzido pelas teóricas feministas que apresentam o patriarcado e a heterossexualidade compulsória como chave de análise da violência contra a mulher. O resultado aponta que a crise gerada em torno do referido  veto visibiliza tanto a misoginia gay, quanto a solidariedade entre as mulheres.

Palavras-chave: Projeto Anti-homofobia  ABGLT. Homofobia Violência de gênero contra mulher

Introdução

Um pequeno deslize pode causar um grande problema

                                 (Provérbio popular)

 

No cenário brasileiro da última eleição para presidente da república[3], o slogan do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, Transgênero), “Somos milhões, estamos em todos os lugares e o futuro nos pertece” ecoou em diferentes espaços. Ruas, praças e lares foram corloridos pelas bandeiras do arco-íris. É possivel dizer, sem, contudo, afirmar, que jamais na história deste país o voto colorido das pessoas LGBT foi tão procurado pelos partidos políticos.

A matéria intitulada “Agenda gay sai do armário e entra na pauta”, veiculada pelas redes sociais em 25 de julho de 2010[4], afirma que o Partido dos Trabalhadores - PT, que possui um núcleo de gays e lésbicas desde 1991, é o primeiro partido a investir no eleitorado gay. De acordo com Julian Rodrigues, coordenador nacional setorial LGBT do PT, também coordenador do programa de governo de Dilma Rousseff nessa área, 80% dos militantes gays estão no PT. Nesses 80% estão inseridas as lésbicas e as mulheres bissexuais, invisibilizadas pela linguagem que universaliza os sujeitos e transforma o humano em “homem”; lésbicas e mulheres bissexuais em “gays”, dentre outras possibilidades de violência da linguagem.

Mas a mesma militância LGBT, de dentro e de fora do PT, que em 2010 foi às ruas, fez campanha, votou e comemorou a vitória da primeira mulher brasileira a chegar ao cargo de presidente do Brasil, em 25 de maio de 2011 foi surpreendida com a decisão da presidenta Dilma Rousseff de vetar a divulgação dos materiais produzidos no contexto do Projeto Escola sem Homofobia, isto é, um “kit” informativo composto por 1 cartaz, 6 boletins, 3 vídeos e 2 cadernos.

A expectativa era a distribuição desse material em 6 mil instituições de ensino da rede pública, contribuído assim, com o processo de mudança de mentalidade. Além do kit informativo, vale o esclarecimento, fazem parte do referido projeto Escola sem Homofobia a realização de uma pesquisa de abrangência nacional sobre o tema e 5 capacitações, sendo uma em cada região brasileira.

 A possibilidade real de difusão de um material dessa natureza, capaz de contribuir com a pluralização dos gêneros, isto é, capaz de contribuir com a produção de sentidos sobre gêneros e sexualidades que põem em risco a ordem sexual vigente, provocou a fúria ddos fundamentalistas religiosos que tramam, tecem uma rede de intrigas e inverdades em torno do material. Uma das inverdades difundidas por esses  sujeitos afirma que os vídeos que compõem o Kit informativo fazem apologia a homossexualidade. No entanto, as cópias dos referidos vídeos que circularam pela Internet desmontam essa afirmação, pois os vídeos trazem para o debate não o proselitismo em relação à homossexualidade, mas cenas do cotidiano escolar, com foco na superação da violência vivenciada por estudantes lésbicas, bissexuais e travestis.

A surpresa inicial da militância LGBT com o veto da presidenta foi transformada em indignação, reação. Com a mesma força empenhada na eleição da presidenta, a militância divulgou notas de repudio e foi às ruas protestar contra o veto. Pelas redes sociais, espaços privilegiados de produção e difusão de sentidos, de forma quase ininterrupta, circularam, e ainda circulam, diferentes correntes de pensamento sobre o tema “Kit gay”. A militância LGBT, sentindo-se traída pela presidente, mostrou- se feroz, criou pelas redes sociais o “Bafão do Kit”, um caloroso debate político em torno do veto da presidenta. Não há quem não tenha uma opinião, contra ou a favor sobre essa polêmica, cujo pano de fundo é a violência simbólica contra pessoas LGBT Diferentes grupos organizados, a exemplo da AGBLT, AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras); ABL (Articulação Brasileira de Lésbicas, Católicas pelo direito de decidir), dentre tantas outras entidades, produziram moções de repúdio ao veto. Mas há quem preferiu não fazer pronunciamento público coletivo, a exemplo da LBL (Liga Brasileira de Lésbicas), que, por não ter participado, do processo de construção do referido Kit, optou por não produzir nota pública sobre a questão. Mas, em reunião das organizações da sociedade civil que integram o Conselho Nacional LGBT, convocada pela Ministra Maria do Rosário  a fim de tratar da suspensão do Kit anti-homofobia, a LBL, através da sua/nossa representante neste Conselho, apresentou um posicionamento critico, reconhecendo que o pronunciamento da Presidenta, ao dizer que "o governo não fará propaganda de opção sexual" (sic), autoriza  no não dito, o recrudescimento da violência homofóbica, além de abrir precedentes para outras proibições. A represente da LBL também questionou o fato de parte da militância LGBT estar atuando junto ao governo, comprometendo assim, a autonomia dos movimentos.

Busco neste estudo, analisar sentidos que emanam do “Bafão do kit gay”, isto é, das práticas discursivas produzidas pelas militâncias LGBT, em especial da militância gay, no ato de protestar, de expressar posicionamento político. Como pesquisadora feminista com especial interesse na produção de sentidos sobre a sexualidade lésbica e relação desses com a violência de gênero contra a mulher, pensada como uma violação dos Direitos Humanos, me interessa, sobretudo, investigar a violência do discurso como um efeito de sentido.

Reconhecendo que toda leitura exige um artefato teórico, me filio à Analise de Discurso apresentada por Orlandi (2009), que problematiza o ato de ler, de pensar, de escrever e de comunicar; problematiza o sujeito que fala, o sujeito que ouve, o sujeito que vê. Da mesma forma, problematiza o dito, o não dito, o esquecido, o lembrado, o guardado, o apagado, sem separar sujeito e sentido (ORLANDI, 2009).  De acordo com Orlandi, a Analise de Discurso oferece dispositivos que “nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem” (ORLANDI, 2009: p. 9). Ressalto, porém, que este estudo não se pretende um discurso de verdade, mas  a emergência de efeitos de sentidos.

Questões norteadoras da análise

Reconhecendo que a linguagem não é neutra, questiono: Quais são as redes de sentido produzidas nas práticas discursivas da militância LGBT em torno da polêmica “Bafão do Kit gay”? Como o lugar de fala, da memória e do imaginário LGBT se articulam na produção de sentidos sobre o veto da presidenta? Que imagem discursiva da presidenta é produzida pela militância LGBT no cenário em questão?

    O Corpus

O Corpus analisado se circunscreve a um conjunto de mensagens eletrônicas produzidas em uma lista de discussão LGBT que reúne diferentes grupos e pessoas LGBT. Essa lista é aqui apreendida como um espaço profícuo de produção e difusão de sentidos e organização política sobre diferentes questões de interesse das pessoas LGBT. Todas as mensagens que compõem o corpus foram produzidas no contexto do “Bafão do Kit gay”, representado na nota abaixo, isto é, são mensagens relacionadas ao veto do Kit anti-homofobia do projeto “Escola sem homofobia”.

Frente ao pânico moral que cercou o KIT ANTI-HOMOF​OBIA do Ministério da Educação. DILMA E O KIT ANTIHOMOFO​BIA. A presidenta e o "kit gay". EXPLICAÇÃO E SOLUÇÃO PARA O BAFÃO DILMÁ. Sobre o Kit contra homofobia - URGENTÍSSI​MO!!!!. OTIMA ANÁLISE!!!  A Guerra Santa dos Neopenteco​stais. Nota Oficial da ABGLT sobre a suspensão do kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia. Manifestação em repúdio ao veto de Dilma ao Kit Anti-homof​obia do MEC. PAU DE SEBO PARA DILMÁ.Marcha pela Liberdade - Manifesto LGBT! Kit Escola Sem Homofobia. Superinten​dente da Educação Básica fala sobre respeito à diversidade​e. UFBA pelo Estado laico e em defesa do Projeto Escola Sem Homofobia.] Polêmica do kit contra homofobia leva assunto para sala de aula NAO É MACHISMO QUESTIONAR Há quanto tempo ALGUEM NAO GOZA?[5]

Diante da profusão de mensagens relacionadas ao Kit que circularam por essa lista, em função da especificidade da questão, o Corpus se restringe a mensagens enviadas/recebidas no período de maio a junho de 2011, com alusões, ditas e/ou não ditas, sobre o Gênero e/ou à Sexualidade da presidenta . No total, são 7 mensagens selecionadas. Essas mensagens são fruto do diálogo entre três gays e uma lésbica. Por questão de ética, esta analise não identifica a Lista LGBT, tampouco os nomes verdadeiros dos(as) autores(as) das mensagem, que recebem os seguintes nomes fictícios: João Mata, Pedro Mata, Marco Mata e Márcia. O número de falas masculina e feminina representa a baixa participação lésbica na referida lista.

     O Interdiscurso

Caracterizado como lugar de onde a leitura é feita, interdiscurso é o referente teórico que auxilia-nos para fazer emergir sentidos ditos e a partir destes os não ditos.  Pinçado das teorias feministas que norteiam a pesquisa de doutorado que desenvolvo sobre sexualidade lésbica, o dispositivo de análise é embasado nas correntes teóricas  feministas, que apresentam categorias fundamentais para a análise, isto é o “Patriarcado” e “Gramática sexual” (SAFFIOTT, 1997, 2002, 2004); “Contrato Sexual” (PATEMAN, 1993)  “Pensamento Hetero” (WITTIG, 1980), “Heterossexualidade Compulsória” (RICH, 1981, WITTIG, 1980), apresentadas como categorias políticas; chave de leitura dos fenômenos sociais. A partir dessas categorias estruturantes da analise, outras se encaixam na análise do interdiscurso, dentre as quais destaco: a “invisibilidade” (SWAIN, 2009; LESSA, 2003). Destaco ainda o “continuum lésbico” (RICH, 1881)

Sempre aprendiz, diante do corpus, reconhecendo o interdiscurso como produto do enlace entre os Dispositivo Teórico e Analítico, busco, como nos orienta Orlandi ( 2009: 59),

colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentido das suas palavras.

Através do enlace entre o dispositivo analíticos supracitado e o dispositivo teórico da Analise do Discurso destaco operar com os conceitos de: a) Relações de Força e Relações de Sentido; b) Antecipação: formações imaginárias; c) Formação Discursiva; d) o dito e o não dito. À luz da Analise do Discurso, busco não o sentido verdadeiro, pois não há verdade atrás do texto, mas a compreensão de como um enunciado produz sentido, isto é, efeitos de sentidos numas dadas condições de produção.

 

Kit Anti-homofobia: produto do diálogo entre o Estado e os Movimentos LGBT

Atuar, produzir, criar é remédio para todos os males

                           (Provérbio popular)

 

Grande parte da militância LGBT, sobretudo os movimentos ligados ao PT, estabeleu diálogos profícuos com o governo Lula, considerado o “papai noel dos gays”, como sugere a reportagem da revista Veja, publicada e 2003.[6] A experiência da militância LGBT junto ao governo Lula foi, de fato, muito profícua. Muitas foram as ações desenvolvidas que garantem avanços para a comunidade LGBT.

Dentre essas ações, está o Programa Brasil sem Homofobia, criado em 2004, e a 1ª Conferência Nacional LGBT, realizada 2008, em Brasília, convocada por decreto presidencial.  Vale ressaltar que a partir das resoluções aprovadas nesta Conferência, que contou com a participação de representantes dos poderes públicos e da sociedade civil, oriundos de todos os 26 estados do país e do Distrito Federal, foi produzido o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos LGBT, lançado em 2009[7], uma política importante para toda a sociedade, já que implica uma formação mais humana no campo da sexualidade. Uma das ações contempladas neste Plano foi a criação de um projeto de cooperação público-governamental de extensão nas escolas públicas, utilizando produções artístico-culturais com temática de sexualidade, diversidade sexual e identidade de gênero, com recorte de raça e etnia, como forma de educar para a diversidade.

No Documento Final da Conferência Nacional de Educação, realizada em 2009, consta, entre as inúmeras propostas aprovadas na plenária final relativas à população LGBT, o compromisso do Estado de garantir que o MEC assegure os recursos necessários para a implementação de políticas públicas para a educação presentes no Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, lançado em maio de 2009, a exemplo do Projeto Escola sem Homofobia, apoiado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (MEC/SECAD), hoje SECADI -. Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão. Esse projeto, de acordo com nota divulgada pela ABGLT, em 31/05/2011[8], tem o seguinte propósito:

![...]contribuir para a implementação do Programa Brasil sem Homofobia pelo Ministério da Educação, através de ações que promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos e da respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de gênero no âmbito escolar brasileiro”. (ABGLT, 2011: on line)

 

Kit anti-homofobia   Kit Gay !?

             “Os dedos não são iguais”

               (Provérbio popular)

Reconhecendo a interdependência das praticas discursivas, isto é, reconhecendo que os textos sempre recorrem a outros textos contemporâneos ou historicamente anteriores para lhe garantir sentido, coloco em suspenso a expressão “kit Gay”. Por que um conjunto de material didático que trata da diversidade sexual e do respeito à diversidade  foi transformado em um “Kit gay”? Que redes de sentido são acionadas por essa formação discursiva? Se levarmos em conta que a produção do referido Kit é de autoria dos movimentos ligados a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis), é possível dizer que a simples substituição de uma expressão por outra revela a autoria do mesmo. Mas se levarmos em conta que o movimento LGBT é formado por uma pluralidade de sujeitos, é possível dizer que o termo “gay” oculta todos os outros. Cabe então questionar o que sustenta esse ocultamento.

Segundo Saffioti (1997), nas sociedades humanas não há um único eixo de hierarquização, pois socialmente são construídas várias gramáticas, ou eixo de regras, que regem o comportamento de homens e mulheres, de brancos e negros, de ricos e pobres, de crianças e adultos, das pessoas normais e daquelas interditadas, consideradas loucas. Para a autora, as principais gramáticas normativas da sociedade são:

·         Gramática sexual ou de gênero, que regula as relações entre homens e mulheres, as relações entre homens e as relações entre mulheres, especificando as condutas socialmente aceitáveis quanto ao sexo [...].

·         A de raça/etnia, que define as relações, por exemplo, entre brancos e negros, determinando que estes obedeçam aqueles. Brancos e negros são de raças diferentes, que são socialmente hierarquizadas[...].

·         A de classe social, cujas leis exigem comportamentos distintos dos pobres e dos ricos. Estes, para se manterem no poder, precisam dominar/explorar os pobres [...] (SAFFIOTI, 1997: 41).

De acordo com Foucault, (2010, p.10), o louco “desde a alta Idade Média é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância [...]”. Foucault também evidencia que ao longo da história o qualitativo de perverso, de doentio sempre foi associado aos homossexuais.  Ainda hoje, em especial no campo da psicanálise, ainda se encontra a associação entre a homossexualidade e a perversão, à loucura (BARBEIRO, 2005)

Essa rede de sentidos tecida pela “gramática de gênero” desenha uma pirâmide social onde o homem branco, heterossexual, de classe favorecida está no topo da pirâmide, seguido dos gays brancos da mesma classe social. As mulheres e as lésbicas, em especial as negras pobres estão na base da pirâmide. Essa hierarquia do sistema de gênero brasileiro, que divide os gêneros em duas categorias: Homem e Mulher, tem sido amplamente problematizado pela literatura feminista, especialmente pelo feminismo lésbico, que tem o propósito de produzir saberes relevantes para as lésbicas e suas/nossas lutas. Uma das pesquisadoras do feminismo lésbico que mais contribui com o debate sobre a hierarquia dos gêneros é Monique Wittig, que apresenta a noção de “Pensamento Hetero” (1980), que promove a divisão da sociedade em dois sexos e faz da linguagem um forte instrumento de dominação dos sistemas teóricos modernos e das ciências sociais. De acordo com Wittig, o mundo inteiro é apenas um conjunto das mais diversas linguagens, onde os seres humanos são literalmente os signos utilizados para comunicar.  Essas linguagens, ou melhor, estes discursos, ressalta a autora, se encaixam um nos outros, se se interpenetram, apoiam-se uns aos outros, reforçam-se, se auto-originam, dando origem uns aos outros.  O conjunto desses discursos, que tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a heterossexualidade, constitui o “pensamento hetero” (WITTIG, 1980), que oprime, sobretudo, as lésbicas, as mulheres e os homens homossexuais.

A palavra “discurso” tem ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. É palavra em movimento, linguagem em ação (ORLANI, 1999). Assim, a partir da linguagem a sociedade heterossexual é fundamentada e o discurso da heterossexualidade é apresentado como o discurso hegemônico e todo discurso que o questiona é oprimido, negado, invisibilizado. A sociedade hetero, ao operar com uma estrutura bipolar, que hierarquiza corpos e mentes; define papeis sociais e sexuais, constrói o “verdadeiro homem” e a “verdadeira mulher”, que se complementam e se reproduzem. Corpos que escapam a esse modelo são abjetos, não importam para a sociedade. A noção de abjeção aqui é dada por Butler. Cito-a:

O abjeto designa aqui aquela ‘zonas inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam de status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito (2003:. 155).

Desse ângulo de análise, o corpo gay, assim como o corpo lésbico, que escapa ao modelo binário ao romper com a norma sexual estabelecida, é corpo abjeto, descartável. A partir dessa relação de sentidos, isto é, a partir da gramática de gênero apresentada por Saffiotti (1977) e da noção de “pensamento hetero”, apresentado por Wittig, é possível afirmar que a lógica discursiva que transforma o Kit anti homofobia em “kit gay” é uma lógica perversa de desqualificação do material e a invisibilidade dos demais sujeitos autores do referido material.  O que está em questão é a desqualificação, a não aceitação da homossexualidade e a supremacia masculina, independente da orientação sexual. É a linguagem (re)produzindo a hierarquia social e legitimando discursos.

 

Ameaça e desqualificação LGBT: “Pau de sebo para Dilmá”

                         “Se sua língua transformar-se em faca, cortará sua boca”

                                              (provérbio popular)

 Em conjunto, a avalanche de mensagens que circularam pelas redes eletrônicas imediatamente após o veto de Dima Rousseff ao Kit aint-homofobia pode ser classificada em 4 tipos a saber: a) informativas – aquelas que trazem informações e opiniões de especialistas sobre o tema; b) opinativas – aquelas que expressam a opinião dos(as) integrantes da lista quase sempre  carregadas de sentimentos, em especial, a indignação e a revolta; c) propositivas - aquelas que propõem alguma ação/intervenção política; d) deliberativas – aquelas que apresentam uma decisão/posicionamento coletivo.

Dentre as propositivas, estão as mensagens 1 e 2, trocadas entre João Mata, e Pedro Mata:

Quadro 1: mensagens eletrônicas: “Pau de sebo para Dilmá” -Lista LGBT- maio/ 2011

 

Mensagem 1

Autor: João Mata

Data de postagem: 30 de maio de 2011

Assunto: PAU DE SEBO PARA DILMÁ

 

Mensagem 2

Autor: Pedro Mata

 

Data de postagem: 30 de maio de 2011

 

Assunto: PAU DE SEBO PARA DILMÁ

 

Colegas

Caso a Presidenta não volte atrás e o Kit antihomofobia Escolar não seja realmente autorizado, claro que Dilma estará na lista do Pau de Sebo, pois gente menos graduada e com ação menos homofóbica recebeu esse troféu. Alguém é contra?

 

[...]

sugiro que Dilma receba o Pau de Sebo pela sua atitude ridícula e apolítica de trair os LGBTT e suspender a distribuição do Kit Anti-Homofobia [...]

E, mais, sugiro uma campanha de "Impeachment" contra a traidora da cidadania. Arrependo-me do meu voto [...]

Agora, no primeiro turno votei em Dilma, e no segundo nela também.

Arrependi-me amargamente.

Abaixo Dilma, fora traidora dos LGBTT

 

O dito das mensagens acima é revelador da intencionalidade dos seus autores. A expressão “PAU DE SEBO PARA DILMÁ”, indicada no assunto das mensagens, aciona uma rede de sentidos que evidencia a presidenta Dilma como “má”, “malvada”. Uma inimiga, homofóbica que deve ser punida, calada, interdita. Por sua vez, o  não dito dessas mensagens ratifica o pensamento machista vinculado nas vozes dos homossexuais, que se traem pelo discurso, pois utilizam o mesmo padrão de pensamento e crítica do macho em relação à fêmea como forma de assimetria de gênero, isto é, revela desigualdades produzidas a partir das diferenças percebidas entre os sexos.  Os ditos e os não ditos das mensagens se inscrevem no “pensamento hetero”, que fundamenta e é fundamentado pelo “patriarcado”.

De acordo com Saffioti (2002, 2004), “patriarcado” é um regime político sexual de dominação-exploração das mulheres, onde o fenômeno da exploração deve ser explicado ao lado de dominação. Para essa autora, um dos elementos nucleares do patriarcado, que está em permanente transformação/atualização, reside exatamente no controle da sexualidade feminina (2004: 49). Para explicar essa afirmativa, Saffioti recorre a Pateman (1993) e faz uma incursão na vertente sexual a partir da teoria/doutrina do contrato social, entendido pelas autoras como um contrato entre os homens, cujo objeto é as mulheres. De acordo com Carole Pateman (1993: 16)

O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido de patriarcal – isto é, cria o direito dos homens sobre as mulheres -, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres [...]. O contrato está longe de se contrapor ao patriarcado: ele é o meio pelo qual o se constitui o patriarcado moderno.

Pateman ressalta que a ideologia patriarcal tem defendido a ideia de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este último à esfera privada. Na visão de Pateman (1993) e de Saffioti,(2002, 2004,) “Patriarcado,” um conceito que traz de forma implícita a noção de relações hierarquizadas entre seres desiguais. Para elas, o patriarcado é o único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher e que singulariza a forma de direito político que todos os homens têm sobre as mulheres pelo simples fato de serem homens. É, portando, no regime patriarcal, que o machismo, entendido como uma prática social, uma forma de sexismo, se estabelece.

Assim, ao anunciar a presidenta como uma mulher “má”, “homofóbica”, que merece “pau de sebo” e "Impeachment", os autores das mensagens fortalecem o “pensamento hetero”, e, ao fazê-lo, (re)produzem a “violência psicológica”, definida no glossário do Portal da Violência contra as mulheres como

Ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, humilhação, isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal (PORTAL violência, 2011: on line)

A mensagem de Pedro Mata, além de reiterar a suposta “maldade” da presidenta, sugere o "Impeachment" da primeira mulher a chegar à presidência do Brasil. Ao fazê-lo, vai de encontro às bandeiras feministas que promovem a inclusão das mulheres nas esferas de poder.

Recorrendo ao conceito de antecipação, cabe questionar se, ao mostrar arrependimento por ter votado em Dilma nas eleições de 2010, ao anunciar “Abaixo Dilma, fora traidora dos LGBTT”, estaria Pedro da Mata antecipando o processo eleitoral de 2014?  Seria essa uma estratégia discursiva de campanha eleitoral anti-Dilma?

Dima Rousseff: “Bem estilo sapatona”

                 “A dor que dói no outro é tão grande quanto a que nos dói”

                                   (provérbio popular)

Nas mensagens 3 e 4, indicadas no Quadro abaixo, João Mata e Pedro Mata refletem sobre o veto da presidenta fazendo alusão ao gênero e a sexualidade da presidente: “Bem estilo sapatona” ; “sapatão guerrilheira”

Quadro 2: mensagens eletrônicas: Dilmá-Sapatona/guerrilheira - Lista LGBT – maio e junho/ 2011

Mensagem 3

Autor: João Mata

Data de postagem 26/05/2011

Assunto: EXPLICAÇÃO E SOLUÇÃO PARA O BAFÃO DILMÁ

Mensagem 4:

Autor: Pedro Mata

Data de postagem: 31/06/2011

Assunto: DILMA ASSINA CARTA APOIO EVANGELICOS

 

Colegas

Refleti sobre esse cipoal de opiniões do governo em relação ao Kit Gay e gostaria de sugerir uma pista para entender e solucionar este grave impasse provocada pelas declarações intempestivas, contraditórias e tresloucadas da Presidente, de seu ministro porta voz e do ministro da educação.

[...]

Dilma caiu no conto dos evangélicos, que maliciosamente entregaram a ela um vídeo sobre sexo seguro na prevenção da AIDS, dizendo que era o kit da abglt, ela viu de noite, e segundo seu porta voz, ficou indignada e divulgando outros adjetivos altamente depreciativos. Bem estilo sapatona. QUE temas sobre costume tem de ser objeto de plebiscito, etc (grifo nosso)

 

 

Vergonhoso. Passei a campanha toda com questionamento sobre como iríamos votar num sapatão que inclusive fora guerrilheira. Enfrentei muito preconceito. Agora, estou arrependido de defender alguém, que, mesmo sabendo que as pessoas usaram a opção sexual dela como forma de baixar o nível da sua campanha, eu apostei nela e estou bastante ofendido [...].

 

O que revela o dito dessas construções discursivas? Qual é o não dito? O imaginário? O real? O que é sapatona?

As teorias do século XIX, que trataram a homossexualidade feminina como doença passível de cura e tratamento, influenciaram os profissionais da ciência do início do século XX, que produziram como verdade a noção de que o relacionamento amoroso e a prática sexual entre mulheres são desvios sexuais, comportamento de pessoas doentes, perigosas, perversas, nocivas ao convívio social (NOGUEIRA, 2008: 62). Até mesmo Beauvoir (1949), matriz teórica do pensamento feminista, via as lésbicas como seres invertidos, incompletos, irrealizados: “a homossexualidade da mulher lésbica é uma tentativa, entre outras, de conciliar sua autonomia com a passividade da sua carne (BEAUVOIR, 1949: 146).

Ao discutir a lesbiandade nos feminismos, Lessa (2003) questiona quem são as lésbicas, o que tem sido escrito sobre elas, onde suas falas aparecem. A autora não apresenta respostas para essas questões, mas evidencia o silêncio da história em relação às lésbicas. Utilizando argumentos de Swain para ressaltar que existem muitos sentidos expressos no silêncio da História, Lessa diz que a aparição das lésbicas pode representar uma contradição à ordem naturalizada da heterossexualidade dominada pelo masculino. 

A homossexualidade feminina ou lesbiandade, como queiram, está sendo engendrada, seja através dos silêncios ou das idéias e práticas que buscam engessá-la em modelos mais atraentes ou quem sabe mais vendáveis. O silenciamento das vozes sociais não é o simples apagamento dos seus personagens, mas o silêncio marca uma existência abjeta, indesejável, por isso quando se proíbem certas palavras de circularem proíbem-se junto a elas certos sentidos (LESSA, 2003: 5).

Que as lésbicas vivam a sua sexualidade em segredo, que não mostrem sua/nossa existência à sociedade, é o desejado pelo regime patriarcal produtor de verdades e de silêncios que invisibilizam, marginalizam, maltratam, agridem e matam as lésbicas. Mas, levando em conta a cultura patriarcal que deseja manter na invisibilidade, no silêncio, no apagamento não só a sexualidade lésbica e toda a sexualidade que escapa à matriz da “heterossexualidade compulsória” (RICH, 1981), votar em uma “sapatão guerrilheira”, isto é, votar em uma mulher que rompe com amarras grilhões históricos para presidente do Brasil não deveria ser, a princípio, um motivo de orgulho para os ativistas LGBT, como o é para os movimentos feministas e de mulheres? Qual o interesse em visibilizar a suposta sexualidade lésbica da presidenta e ainda adjetivando de sapatona?

A construção discursiva sapatão/sapatona/guerrilheira aciona outras redes de sentidos. Comumente os termos “sapatona”, “sapatão”, assim como “fanchona”, “Buch”, dentre outros, são usados como xingamento para identificar uma mulher que se relaciona sexualmente com outras mulheres, especialmente a mulher que assume performance masculina, se afastando completamente das normas esperadas do comportamento do feminino (NOGUEIRA, 2009: 77). “Guerrilheira”, por sua vez, é um termo usado para indicar uma pessoa envolvida em luta armada, “sem obediência às normas estabelecidas nas convenções internacionais”, conforme sugere o Novo Dicionário Aurélio (1986). Uma mulher guerrilheira também se afasta de todos os esquemas definidores do lugar e o papel da mulher na sociedade.

O passado guerrilheiro da presidenta, sua luta política, sua agência não se encaixam no modelo explicativo da sociedade heteronormativa, que, conforme ressaltado anteriormente, opera com a lógica binária e cria tanto a “mulher de verdade”, aquela a quem o prazer sexual é negado, como o “homem de verdade”; aquele a quem a sociedade patriarcal reservou os prazeres da carne, a liberdade sexual, e o direito à mente e aos corpos das mulheres. Esse mito “mulher de verdade” é reiterado pelo “pensamento hetero”, que através dos fios da cultura, forja o gênero a partir dos corpos sexuados, isto é, a partir das diferenças percebidas entre o sexo (SCOTT, 1995: 86).

Tanto o gênero quanto a sexualidade são inteiramente culturais, já que o gênero é maneira de existir do corpo e o corpo é uma situação, uma performance (BUTLER, 2003: 192) ou seja, um campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas. Nessa perspectiva, o corpo de uma mulher é fundamental para definir sua situação no mundo. Contudo, é insuficiente para defini-la como mulher. O gênero cria o sujeito. Mas a constituição do sujeito, homem/mulher/lésbica/gay, dentre tantas outras possibilidades de ser do sujeito, não se faz exclusivamente através do gênero. A classe, a raça/etnia, a sexualidade também são constitutivas do sujeito.

Dilma Rousseff, gozando de privilégios da raça e da classe que a constituem sujeito, escapa às amarras do gênero e torna-se a mulher mais empoderada do Brasil ao chegar a Presidência da República, mas, em função do seu gênero, não escapa da violência discursiva dos gays em questão.

Transformar discursivamente a mulher mais poderosa do país em sapatona/sapatão/guerrilheira num contexto social em que o imaginário desqualifica a lesbianidade,  é uma tentativa de destituí-la do poder. É operar com a lógica patriarcal instituída no/pelo pensamento hetero. É fortalecer todas as redes discursivas que dão aos homens o direito à mente e aos corpos das mulheres. É vulnerabilizar  a sexualidade feminina.

Assim, constituídos pela lógica patriarcal, sentindo-se traídos por uma suposta “igual”, “autorizados” pelo poder que garante a supremacia do macho, mesmo sendo gays, e como tal, são constituídos corpos abjetos, os autores das mensagens, João Mata e Pedro Mata, fazem da linguagem uma lâmina cortante, e, através da língua, atacam a presidente na sua condição de mulher, atacando a “perigosa sexualidade feminina”, que sempre foi terreno sobre o qual proliferaram discursos das mais diversas instituições, além de influenciar os próprios sujeitos.

O Machismo gay e a solidariedade feminista

Questionar é uma arte. Questionar-se é a arte das artes

           (provérbio popular)

Machismo pode ser entendido como um ordenamento social de gênero através de um conjunto de leis, que não só acolhe o poder masculino sobre a mulher, como o normatiza, proibindo e criminalizando seus excessos. Assim pesado, o machismo promove a ordem do gênero, onde o homem desfruta de grandes privilégios em relação à mulher. Esses privilégios são construídos e mantidos pela ideologia patriarcal, representada no regime atual de relações homem/mulher através do esquema de dominação-exploração masculina.

Saffioti (1997) pontua que relação “exploração-dominação” é exercida pelos homens em todas as sociedades. Para essa autora a exploração e dominação masculina são faces de um mesmo fenômeno e a relação “Exploração-dominação” não pressupõe o esmagamento da figura subalterna, ao contrário, integra a necessidade de preservação da mulher, que não é vitima passiva. Como bem ressalta essa autora, “Em todas as sociedades conhecidas as mulheres detêm parcelas de poder” (SAFFIOTI, 1997: 184), o que lhes permitem negociar a sua sobrevivência.

Assim, fortalecidos na crença de que possuem um “direito natural” sobre as mulheres, mas negando as mulheres em função da identidade sexual que os constituem sujeitos do discurso, gays machistas se legitimam e insistem em questionar a sexualidade da presidenta, trazendo para o debate tanto a suposta sexualidade lésbica da presidente como uma suposta ausência de orgasmo na sua vida sexual, como mostram as mensagens 5 e 6, produzidas por Marco Mata e João Mata, respectivamente.

Quadro 3: mensagens eletrônicas- Não é machismo questionar – Lista LGBT – maio / 2011

Mensagem 5

Autor: Marco Mata

Data de postagem 26/05/2011

Assunto: Há quanto tempo a Homofóbica Presidenta Dilma não Goza? [Sic]

 

Mensagem 6:

Autor: João  Mata

Data de postagem: 26/05/2011

Assunto: NAO É MACHISMO QUESTIONAR Há quanto tempo a Homófiva  (sic)Presidenta Dilma não Goza?

 

 

 

Uma leitora de carta me revelou que a Presidenta Homofobica Dilma Roussef não goza há mais de 5 anos?

 

Será que é isso tudo?

 

Quanto tempo voce acha que ela não goza?

 

 

[...] essa mensagem posso repassar para as listas, né, não compromete a politica interna [...]

colegas feministas de plantão

NAO TEM MACHISMO ALGUM EM QUESTIONAR ALGUEM, SEJA COM PICA OU BUCETA, SE FAZ MESMO CINCO ANOS QUE NAO GOZA.

esse patrulhimo feminista é dose, nao busquem machismo onde nao há. embora gozar nao leva necessariamente a acertar na vida, mas evita varias neuroses e frustrações sim.

AGORA PRESTEM ATENÇÃO, NAO SOU EU, “João Matta” quem está chingando dilmá, questionando se é mesmo lébica, oscambau. a unica coisa minha é mesma antes desse bafão, chanma-la de DILMÁÁÁÁÁÁ´(sic)

e Lula la, nunca mais também [sic].

Levando em conta que não há discurso que não se relaciona com outro, é possível afirmar que a ligação entre as praticas discursivas que questionam a ausência do gozo sexual da presidenta e aquelas que apontam a sua suposta sexualidade lésbica evidenciam uma tentativa de controle da sexualidade e do prazer da mulher, sustentada pela ideologia patriarcal; consequentemente, revela uma forma vil de desqualificar o feminino. Levando em conta as redes discursivas que definem o machismo, é possível afirmar que o dito das mensagens de Marco Mata e João Mata são carregada de machismo explícito, reduz a mulher a nada, a um objeto, um ser sem vida, sem desejos nem direitos. É crença no forte ou exagerado senso de masculinidade que se manifesta por atributos como coragem, agressividade, virilidade, exacerbação física e corporal e atitude de dominação sobre as mulheres. Estamos diante de cenas discursivas do machismo gay, muito embora João Mata conteste essa avaliação.

Recorrendo ao dispositivo revelador da relação de força e poder estabelecida entre os gêneros, considerando que aos códigos estabelecidos nas comunicações virtuais que reconhecem a fonte maiúscula como expressão de grito, é possível inferir que João Mata ao optar por grafar certos trechos da mensagem em caixa alta, revela vontade de poder/saber, é uma busca de legitimar o seu lugar de poder instituído pelo machismo.  Ao socializar a mensagem de Marco Mata para outras listas, na certeza de que não estaria ferindo a política interna da lista LGBT, conforme o dito da mensagem, João Mata estaria, ele próprio revelando posicionamento político pautado nos fundamentos do patriarcado, que promovem tanto a supremacia masculina quanto a solidariedade entre os homens, garantindo assim a permanente atualização do contrato sexual patriarca (SAFFIOTI, 2004; PATEMAN,1993)

Em texto intitulado “afinal que diabos é machismo”, assinado por Jack Deth, o autor afirma:

A acusação de que homens gays são machistas não procede (em parte). Dificilmente homens gays devem ter a intenção de “dominar” as lésbicas e muito menos se consideram superiores a elas. Homens gays, ao lutar por direitos iguais e criar uma cultura underground própria, estão apenas construindo seu próprio espaço no mundo. Porém, homens gays, de certa forma, são corajosos e agressivos, e até mesmo viris, ao lutar pelos seus direitos e construir uma cultura própria, e, se nos guiarmos pelas definições dos dicionários, nesse sentido eles são “machistas”.

A verdade é que os homens gays estão apenas sendo homens, e isto é o que realmente incomoda as lésbicas. Explicando melhor, homens (sejam heterossexuais ou gays), quando estão em alguma situação ruim, se unem em busca de soluções, lutam pelo que querem, etc

Não duvide que daqui a algum tempo apareça alguma intelectual lésbica com teorias de que os homens gays criaram um “patriarcado” dentro do movimento LGBT para “dominar” as mulheres lésbicas, da mesma forma que feministas adoram acusar os homens heterossexuais (Deth, 2010: on line).

O que significa ser “apenas homem” no contexto LGBT? Levando em conta que o patriarcado ao longo da história tem se reconfigurado, se metamorfoseado, se modernizado, estaríamos diante de uma reedição LGBT do patriarcado, isto é, estaríamos nós lésbicas e mulheres bissexuais vivenciando um “patriarcado gay” no seio do movimento LGBT?

Muito embora negado, não admitido, não reconhecido, portanto, difícil de ser desconstruído, o machismo gay, não passa tão despercebido pelas “feministas de plantão”, sempre atentas à violência do discurso, como mostra a mensagem 7, enviada por Marcia, em resposta à mensagens 5 e 6:

Em 27 de maio de 2011 14:54

MACHISMO!

è impressionante como o machismo aflora em situação de crise, ao menos esse episódio lamentável da presidência,e sta servindo para tirar os machistas do armário! [sic]

O “armário” referido por Marcia é apreendido como “segredo aberto”, dispositivo de regulação da vida de gays e lésbicas que concerne, também, aos heterossexuais e seus privilégios de visibilidade e hegemonia de valores (SEDGWIK, 2007).  A epistemologia do armário, com suas regras limitantes e contraditórias em torno da privacidade, do publico e do privado “serviu para dar forma ao modo como muitas questões de valores e epistemologia foram concebidas e abordadas na moderna sociedade ocidental como um todo” (SEDGWIK, 2007: 19). Nessa perspectiva, Dilma Rousseff teve seu armário “arrombado” pelos gays, que ao se legitimaram pela supremacia do sexo trouxeram a sexualidade da presidenta para as listas de discussão, tentaram desqualificá-la tratando-a de “sapatona”, “sapatão guerrilheira”, “mulher/homem”, “butch”, “mulher masculinizada”, dentre outros termos que o discurso patriarcal utiliza para se referir àquelas que ao longo da história foram acusadas de querer ser homem (Wittig, 1980).

Ao “arrombar” o armário da presidenta, João Mata, Pedro Mata e Marco Mata, escancaram seus próprios armários e deixaram escapar pelas brechas do discurso a ideologia machista que os constituem sujeitos políticos. Ao fazê-lo, tornam (re)produtores da violência da linguagem, “que é tomada como um espiral onde o uso e abuso das afirmações de desprezo e ódio se tornam justificadoras do ato linguístico, mas também no ato físico” (DÉPÊCHE, 2008: .214). Há aí o sistema da representação, da ideologia atravessando os sujeitos que se assujeitam pela linguagem e se contradizem nos atos falhos e no esquecimento ideológico, que produz a evidência do sentido, a ilusão de controlar seu discurso e de que os sentidos estão lá nas palavras. Para a AD as “ilusões” não são defeitos são uma necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos (ORLANDI, 1999,p36).

Segundo o mecanismo de antecipação, ao fomentar a imagem da presidenta Dilma Rousseff como “inimiga dos gays”, “homofóbica”, Sapatona/sapatão/guerrilheira” é possível pensar que o não dito, além de revelar a dificuldade masculina de reconhecer e valorizar o empoderamento feminino, revela intenções eleitorais em 2014, isto é, revela que os referidos gays João Mata, Pedro Mata e Marco Mata, podem estar em campanha anti-Dilma, tornando-se eles próprios, inimigos dos movimentos feministas e de mulheres, fato que nos deixam em alerta.

Por outro lado, a feminista Marcia, ao reconhecer e denunciar o machismo gay, aciona uma construção teórica que reconhece e visibiliza a solidariedade entre as mulheres, isto é, aciona o “continuum lésbico”,  (RICH, 1981), dispositivo que aponta que relações sociais nem sempre são patriarcais.Se implica no dizer e traz outros discursos para tecer o seu. Aciona a memória discursiva engendrada no social e as construções de sentidos sustentadas pelos discursos que apresenta para o debate.

O Continnum lésbico, diz Swain (2002: on line), que apresenta uma longa tradição de união entre as mulheres, nega o paradigma que aponta as mulheres como rivais, falando tanto as relações de amizade quanto das relações de amor e ou erótica no universo feminino. A partir do continuum lésbicos, mulheres tecem redes de amizade, de solidariedade, proteção e enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres.

Considerações finais

Este estudo, ao colocar em questão práticas discursivas que se articulam entre si e para além de si com grande capacidade de produzir efeitos de sentido que se materializam em violência do discurso que recai sobre o corpo feminino, busca corroborar com os estudos feministas que combatem a violência da linguagem que hierarquiza o corpo feminino, marcando-o de especificidades, de fraquezas, de dependências, de impossibilidades diversas.

Carregando intencionalidades situadas, essa análise se apresenta como um discurso lésbico feminista que não se pretende “de verdade”, único. Apresenta-se como registro de um olhar singular, um ponto de vista, um discurso possível.  Em síntese, encerro parafraseando Orlandi (1999) ao afirmar que este texto foi refletir como sujeitos e sentidos são fortemente regidos pela simbolização das relações de poder e colocar a linguagem como o lugar da constituição da subjetividade, provocando rupturas e deslocamentos necessários.

Referências bibliográficas

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DÉPÊCHE, Marie-France. Reações hiperbólicas da violência da linguagem patriarcal e o corpo feminino. In: STEVENS, C.M.T.; SWAIN. T. N. Construção dos corpos: perspectiva feminista. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2008, p.207-218.

DETH, J. Afinal, que diabos é machismo. 2010.

http://www.reflexoesmasculinas.com.br/2010/09/afinal-o-que-diabos-e-machismo.html. Acesso em 01/08/2011

FOUCAULT, M. A. Ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2010.

LESSA, Patrícia.  O que a história não diz não existiu: a lesbiandade em suas interfaces com o feminismo e a história das mulheres. Em Tempo de Histórias, n°. 7, 2003. Disponível em:  http://seer.bce.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2669/2218 >. Acesso em: 03.set. 2011.

ORLANDI, E. P.. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes, 1999.

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PINTO, Céli R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abrano, 2003.

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SAFFIOTI, H. I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Labrys Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez., 2002. Disponível em: <

http://www.labrys.net.br>. Acesso em: 10  abr.2010.

_________. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

_______________ (1997) Violência doméstica ou a lógica do galinheiro. In: Kupstas, Márcia (org.) Violência em debate. São Paulo: Editora Moderna, pp. 39-57.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n. 2 ,jul./dez. 1995, p. 71-99.

SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, n.28, p.19 jan.- jun., 2007

SWAIN, T. N. Feminismos e lesbianismo. Labrys, Estudos Feministas, (On line), n. 1-2, jul./dez., 2002.

Disponível em <http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1 _2/femles.html>. Acesso em: 18 jul. 2009

WITTIG, Monique. La pensée straigh: questions feminists. n. 7, Paris: Tierce, fev. 1980.


  nota biográfica:

Zuleide Paiva da Silva  é Bibliotecária, Professora Assistente da Universidade Estado da Bahia. Doutoranda do Programa Multi- institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), mestre em “Gênero, Mulheres e Feminismos”, pelo PPG/NEIM/UFBA.


[1] Trabalho orientado pelo Professor Doutor José Luiz Michinel do Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Didfusão do Conhecimento, da Universidade Federal da Bahia -(DMMDC UFBA)

[2] Bibliotecária, Professora Assistente da Universidade Estado da Bahia. Doutoranda do Programa Multi- institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), mestre em “Gênero, Mulheres e Feminismos”, pelo PPG/NEIM/UFBA.

[3] Em 2010, pela primeira vez na história do Brasil, foi preciso pouco mais de uma hora de apuração após o fechamento das urnas em todo o país para que a matemática confirmasse a eleição da primeira mulher à Presidência da Republica. A candidata petista Dilma Rousseff foi eleita com  55,99% dos votos.

[4<] Disponível em: http://radioleszone.com.br/pelafresta/?p=190. Acessado em 19/06/2011.

[5] Lista dos assuntos indicados nas mensagens que compõem o “Bafão do Kit gay Reportagegem intitulada “Lula: o papai noel dos gays”, postada em publicada na revista VEJA (2010). Disponível em: <[6] http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/lula-o-papai-noel-dos-gays/>

[7] http://portal.mj.gov.br/sedh/homofobia/planolgbt.pdf

[8] Disponível em http://www.eloslgbt.org.br/2011/05/nota-oficial-sobre-o-projeto-escola-sem.html. Acesso em 21/06/2011.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
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