labrys,
études féministes/ estudos feministas
Conflitos, estigmas e discriminação: lésbicas e feministas em lutas por direitos nos anos de 1970 e 1980[1] Tânia Pinafi[2] Resumo: Raramente, a produção acadêmica sobre a história do feminismo no Brasil abordou a participação das lésbicas. As interlocuções entre os Movimentos Feminista e Lésbico ainda é um trabalho por se escrever e evidencia a falta de interesse em tecer reflexões acerca da presença e importância que as lésbicas tiveram, especialmente na década de 1980. Neste trabalho iremos ressaltar alguns dos conflitos e tensões resultantes das aproximações entre feministas e lésbicas a partir de uma abordagem, predominantemente, histórica e descritiva. Desse modo, a primeira parte do trabalho focaliza o panorama sócio-histórico e político que envolveu a emergência do primeiro grupo homossexual em 1978, além de situar as principais características do feminismo daquele período. A seguir adentramos a década de 80 assinalando os principais acontecimentos que influenciaram o curso do feminismo e da militância lésbica. De tal modo, menos que esgotar a questão o presente trabalho busca mais instigar novas produções sobre a temática abordada. Palavras-chave: Feminismo. Lésbicas. Heterossexismo.
Anos de resistência: “Brasil! Mostra sua cara...” A repressão institucionalizada que recaiu sobre o país com o golpe de 1964 vigorou, formalmente, até 1985 e, politicamente, até 1989, quando houve a primeira eleição direta para presidente depois do golpe. O Movimento Homossexual se forma no Brasil no final da década de 1970. O primeiro grupo homossexual brasileiro organizado emergiu em 1978, ou seja, quase 10 anos depois da revolta no bar nova-iorquino The Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969. Os freqüentadores do bar (gays, lésbicas, drag queens, travestis, garotos de programa, etc.) há muito já haviam se habituado às batidas policiais, elas faziam parte da rotina do lugar, por isso foi uma grande surpresa para os policiais quando eles se rebelaram. Conhecidos internacionalmente “os protestos de Stonewall passaram a assinalar simbolicamente a emergência de um Poder Gay, e a data passou a ser posteriormente consagrada como o ‘Dia do Orgulho Gay e Lésbico’.” (Simões; Facchini, 2009: 45). Para James Green (2000a) a ditadura militar brasileira foi um dos fatores que impossibilitou a emergência da militância política de gays e lésbicas no início dos anos 70. Além disso, no Brasil, “ao contrário de países como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, onde as relações homossexuais tinham sido proibidas e ainda existiam restrições legais, o movimento brasileiro convivia com uma situação na qual não havia legislação explícita contra o homossexualismo [...].” (Howes, 2003: 298-299). Tal situação talvez tenha desfavorecido a mobilização política dos homossexuais, uma vez que o preconceito não se colocava explicitamente na esfera legal. De qualquer forma, em 1978, quando a ditadura entra em declínio e a censura arrefece, um grupo de homossexuais se organiza em São Paulo. De início este grupo se autodesignou como: Núcleo de Ação pelos Direitos Homossexuais. Em seu documento-memória relata que seu surgimento se deu: [...] a partir de uma idéia comum a várias pessoas, para possibilitar o encontro de homossexuais (homens e mulheres) fora dos costumeiros ambientes de badalação. Neste primeiro período, procuramos alcançar uma identidade enquanto grupo e recuperar a consciência individual da homossexualidade comum a todos. (Grupo Somos. [1979 ou 1980]. Histórico. São Paulo, 1p) Ao longo de alguns meses os integrantes, entre dez e doze pessoas, do Núcleo de Ação pelos Direitos Homossexuais se reuniram de modo bastante discreto, em reuniões semi-secretas (Green, 2000b), sem procurar visibilizar o grupo. Um deles conta que naquele momento: A coisa não foi fácil. Tivemos uma existência quase clandestina e muito conturbada. Imaginem um bando de pessoas frequentemente com problemas básicos de aceitação pessoal, tentando encontrar o ponto comum para iniciar um diálogo sobre si mesmas. Tudo bastante dilacerado, de um lado. Muita dúvida porque tudo era novo. E uma extrema oscilação de gente entrando e saindo. Muitos vinham para espiar. Se decepcionavam. De fato, não tínhamos nenhuma fórmula para mudar o mundo. Eles iam embora. Pelos motivos mais diversos. Só não diziam que era por medo, insegurança – coisa que todo mundo lá dentro sentia. (Míccolis; Daniel, 1983: 98) Dentre as inúmeras preocupações que os assolavam havia a volatilidade do grupo. Pensando que talvez o nome fosse demasiadamente político e propositivo – para um grupo que ainda tateava às escuras por uma identidade enquanto coletivo –, e que não partilhava, naquele momento, de uma agenda política definida, o nome do grupo se tornou uma questão polêmica. Após muitos debates preferiram outro nome: SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual. Foi como SOMOS que eles se apresentaram, em fevereiro de 1979, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo para o debate: “O caráter dos movimentos de emancipação”, cujo foco era os grupos discriminados, isto é, mulheres, negros, povos indígenas, homossexuais, etc. A partir dessa exposição pública o grupo cresceu rapidamente, em poucos meses, tendo chegado a contar com quase 100 pessoas no final do primeiro semestre de 1979. Foi só depois deste evento na USP que houve o ingresso das primeiras lésbicas no SOMOS. A militância lésbica-feminista no Grupo SOMOS A rápida expansão do Grupo SOMOS alterou profundamente sua dinâmica de funcionamento. Inicialmente, articulado em torno de um número reduzido de participantes prezava por formas coletivas de tomada de decisão, além de negar qualquer espécie de burocratização. A velocidade com que houve uma mudança no perfil do grupo conflitou diretamente com o modelo de auto-gestão em vigor. De tal modo, diferentes pontos de vista fervilhavam e o consenso se tornava uma palavra cada vez mais utópica, levando a dissabores e rixas internas, principalmente, nas convivências entre gays e lésbicas. Esse clima de tensão perdurou de fevereiro a junho de 1979, quando a partir de uma reunião geral foi instituído formalmente o subgrupo Lésbico-Feminista (LF) – composto pela maioria das lésbicas do SOMOS, com exceção de algumas que preferiram continuar a freqüentar reuniões junto aos homens até se desvincularem totalmente do grupo. Os homens que já haviam entrado em contato com a ideologia feminista foram solidários à formação do subgrupo lésbico, no entanto, outros “[...] criticaram a proposta alegando que era ‘divisionista’ e lamentando a perda de um contato tão novo e valioso com lésbicas, até então vistas por alguns como seres totalmente estranhos.” (MacRae, 1990: 246). Ao trabalharem conjuntamente com os gays, as lésbicas perceberam que havia uma grande diferença entre as homossexualidades masculina e feminina, pois ser uma mulher lésbica em uma sociedade androcêntrica, patriarcal[3] e machista é muito diferente de ser um homem gay, visto que a sociedade privilegia socialmente os homens ainda que sejam eles gays (Welzer-Lang, 2001). De tal modo, se aperceberam que os padrões sociais andro-heterocêntricos as tornavam vítimas de uma dupla opressão, enquanto mulheres e enquanto homossexuais. A representação social do mundo estruturada em dois sexos (macho/fêmea) que se complementam traz consigo a heterossexualidade como relação legítima e preconizada no discurso instituído. Neste sentido, a lésbica ao ir contra a hegemonia do sistema heterossexual acaba por ser estigmatizada já que recusa e exclui o homem em sua relação mulher/mulher. Por isso sua figura é ilegitimada e estigmatizada nos discursos: “machonas, viragos, feiosas, mal amadas”[4] – imagens depreciativas que a retratam como uma caricatura mal feita do homem ou como uma mulher que se encontra fora do paradigma da feminilidade. De acordo com Richard Parker e Peter Aggleton (2001: 11) o estigma “[...] desempenha um papel central na produção e na reprodução das relações de poder e de controle em todos os sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam desvalorizados e que outros se sintam de alguma forma superiores”. Assim sendo, à medida que as lésbicas-feministas diagnosticaram a simultaneidade das opressões que recaíam sobre suas vidas começaram a defender a necessidade de atuar politicamente tanto na causa feminista quanto na homossexual. Deste modo, apregoavam a inseparabilidade da luta simultânea junto ao feminismo e junto à militância homossexual. Mulheres feministas nos Congressos da Mulher Paulista O ano de 1979 foi muito importante para as feministas, pois neste ano foi realizado, na capital de São Paulo, o I Congresso da Mulher Paulista (CMP). A realização deste Congresso, que contou com a participação de mais de 500 mulheres, assinalou um espaço para as questões político-ideológicas feministas na arena pública. De acordo com Heloisa Pontes “f[...]oi a primeira vez que segmentos do movimento de mulheres e grupos feministas se uniram para realizar um evento dessa natureza, organizado de forma independente dos setores políticos atuantes no país”. (1986: 58) Ao distinguir movimento de mulheres de grupos feministas a autora assinala suas características distintas. O movimento de mulheres surgiu entre as classes médias e populares, em um período anterior a década de 70. Segundo Célia Regina Pinto “[...] foram movimentos organizados não para pôr em xeque a condição de opressão da mulher, como no caso do feminismo, mas para, a partir da própria condição de dona-de-casa, esposa e mãe, intervir no mundo público” (Pinto, 2003: 43) . Já as feministas preocupavam-se com as transformações políticas e as de ordem cultural, questionando os preconceitos e as condições de opressão culturalmente estabelecidas sobre as mulheres. O feminismo brasileiro dos anos 70 foi fortemente influenciado pelas condições políticas, sociais, históricas e culturais vigentes naquele período. De tal modo, estruturou-se fundamentalmente na ideologia política de esquerda, a qual situava as bandeiras de luta nos problemas das mulheres trabalhadoras a partir de questões ligadas à melhoria das condições socioeconômicas, como: a luta por creches, a diferença salarial entre homens e mulheres, a dupla jornada de trabalho, entre outras (Manini, 1995/1996). Contudo, logo nos primeiros anos da década de 80 este perfil sofrerá alterações significativas devido às influências de duas medidas que ocorreram no plano político em 1979, a saber: a anistia política e a reforma partidária que institui o multipardarismo no Brasil. Os desdobramentos destes acontecimentos irão gerar discussões acaloradas acerca das alianças político-partidárias, dividindo opiniões e formando facções no Movimento Feminista já na fase preparatória do II CMP. O II Congresso da Mulher Paulista que aconteceu nos dias 8 e 9 de março de 1980, no Tuca[5], contou com a presença de mais de três mil mulheres. Segundo Pontes (1986), a convite dos grupos feministas, a preparação do II Congresso da Mulher Paulista foi aberta à participação de qualquer grupo político, desde que realizassem algum tipo de trabalho com mulheres. Diante disto, o que se viu foi uma miscelânea de grupos e entidades (grupos de periferia, do movimento estudantil, de sindicatos, movimento negro, etc), totalizando 51 organizações ao final das reuniões de preparação do Congresso (Ibid.). Durante a fase preparatória: [...] a inclusão das lésbicas na comissão de preparação do II CMP não foi aceita tranquilamente pelas organizações envolvidas. Várias delas, mesmo as que se rotulavam como feministas, expressaram veladamente o receio que sua inclusão poderia afugentar as mulheres de periferia, que ainda seriam muito preconceituosas. [...] O grupo insistiu em afirmar a sua natureza lésbica e até chegou a comparecer a uma reunião de representantes de vários grupos feministas para exigir satisfações. As mulheres heterossexuais negaram que estivessem agindo com preconceito e a questão foi deixada de lado. (MacRae, 1990: 248) A composição heterogênea dos grupos envolvidos na preparação do II CMP trouxe uma série de conflitos internos devido às diferentes concepções político-partidárias, apesar de o elo de integração ter sido pactuado em torno de um Congresso apartidário, voltado para as questões específicas das mulheres. O expressivo aumento no número de participantes chamou a atenção dos recém-formados partidos políticos de esquerda – nascidos a partir da instituição do multipartidarismo no Brasil no ano anterior – ávidos por conquistar força política. Dentro desta conjuntura houve uma disputa em torno da hierarquia de bandeiras, dentre as chamadas lutas gerais (luta maior) versus lutas específicas (luta menor), entre as lideranças de esquerda e as feministas. Os partidos políticos de esquerda consideravam as propostas feministas separatistas, além de ser um entrave ao avanço pelas liberdades democráticas do país. Desta forma: Insistindo na tese de que a libertação era uma dívida com a classe operária, e que as questões da dominação, da exploração e da violência não diziam respeito às mulheres, mas àtoda a sociedade, a insistência das feministas em discutir seus temas específicos, tais como o da sexualidade e dos papéis sociais, entre outros, era considerada inoportuna e divisionista, até mesmo porque estes não seriam os problemas das mulheres operárias. (Zanatta, 1996/1997: 200) Pode-se dizer que o Congresso ficou ideologicamente dividido entre os que eram a favor de debater os problemas específicos das mulheres e os que recusavam qualquer tipo de luta levada pelas mulheres em particular. De acordo com Maria Carneiro da Cunha: A finalidade desse congresso era a discussão dos problemas específicos da mulher. Mas por reunir um número tão grande de pessoas, muitas delas com interesses políticos divergentes, tornou-se praticamente impossível evitar que houvesse uma tentativa de manipulação por parte das diversas correntes político-partidárias, mais preocupadas em fazer propaganda de seus “slogans” do que em discutir a problemática da mulher, apesar dos esforços de diversos membros da coordenação, preocupados justamente em impedir que isso acontecesse. Ou seja, que a mulher servisse mais uma vez de “massa de manobra” para interesses que não são os seus. (Cunha, 10 mar. 1980: 5) Alguns grupos políticos procuraram manipular os debates e atrair o maior número possível de mulheres para a sua causa, como: o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) – um contingente do PMDB –, o PT, o PC, a Convergência Socialista, e o PC do B (Cardoso, 2004; MacRae, 1990; Pontes, 1986). Durante a realização da plenária final, onde seriam definidas as bandeiras políticas tiradas do Congresso, houve a irrupção da violência física e verbal inviabilizando o encerramento. Diante disto, a coordenadoria do II CMP se reuniu alguns dias depois para realizar uma avaliação do evento e para elaborar um documento final a ser encaminhado a todos os grupos que participaram. Além disso, ficou decidido que os grupos e entidades que o tumultuaram seriam expulsos da coordenação. Edward MacRae (1990: 250) conta que “num clima desses, as lésbicas do Somos (participaram aproximadamente 13), sem nenhuma experiência de como agir nessas situações, encontraram grandes dificuldades em causar impacto no Congresso com suas reivindicações”. No entanto, apesar das dificuldades, as lésbicas avaliaram positivamente sua participação, pois adquiriram conhecimentos sobre as formas de atuação da esquerda, estreitaram laços com as feministas, e entraram em contato com as donas-de-casa de periferia (MacRae, 1990; ChanacomChana. 1983. São Paulo, nº 3 maio). Agora, para o Movimento Feminista “[...] o 2º Congresso tornou-se principalmente, o marco de passagem do feminismo dos pequenos grupos, do período 1975/80 para o feminismo como movimento social mais amplo a partir de 1980” (Nehring, 1981: 275). Cerca de três meses depois do II CMP, entre os dias 21 e 22 de junho, alguns grupos feministas se encontram novamente, agora, no interior de São Paulo na cidade de Valinhos, para o I Encontro dos Grupos Feministas do Estado de São Paulo. Oito grupos estiveram presentes: Nós Mulheres, Associação de Mulheres, Pró-Mulher, Brasil Mulher, Ação Lésbico-Feminista, Grupo Feminista 8 de Março, Coletivo Feminista de Campinas e Frente de Mulheres Feministas (Pontes, 1986). Este foi um Encontro onde “[...] foram discutidas as tentativas de cooptação do movimento de mulheres por parte dos grupos de militância político-partidário e onde se procurou delinear as especificidades do feminismo” (MacRae, 1990: 266). A feminista Teresa Verardo, testemunha viva dos acontecimentos desse Encontro, se lembra: Quando as homossoxuais resolvem se inserir com a gente nessa luta no Movimento Feminista porque, até então, os grupos eram bem separados, né? Em alguns momentos pontuais a gente atuava juntas. Esse momento foi o momento do Encontro de Valinhos, em 1980, depois que nós já tinhámos feito dois encontros da Mulher Paulista. [...] E as militantes homossexuais foram pra esse Encontro. Tinha uma pauta, né? Então, aquela coisa bem militante. Tinha uma pauta, nós íamos discutir objetivamente aquela pauta quando as lésbicas resolveram subverter tudo. Então não queriam discutir aquela pauta coisa nenhuma e queriam discutir a nossa relação enquanto mulheres. Queriam discutir a questão da sexualidade. E queriam discutir a militância feminista com prazer. E eu acho que essa discussão de Valinhos deu uma virada total em toda nossa militância. Nós descobrimos junto com as lésbicas que era possível fazer discussões sobre sexualidade, né? E essa discussão mexia com um monte de coisa internamente com a gente. Era assumir uma outra postura de vida e uma outra postura de militância. E, principalmente, que era possível fazer uma militância com prazer. (Mulheres Participando, 1991) Foi para refletir sobre os atritos verbais e, em alguns momentos, até físicos ocorridos no II Congressso da Mulher Paulista que foi realizado o Encontro de Valinhos. Entretanto, a postura subversiva das mulheres homossexuais alterou a pauta pré-estabelecida e redirecionou o debate polítco para além das questões tradicionais. De tal modo, pode-se dizer que o discurso lésbico serviu de disparador para uma série de questões até então pouco exploradas pelas feministas heterossexuais. Sobre as novas possibilidades de atuação política desencadeadas neste Encontro Teresa Verardo diz: Com essa mexida toda, né? Que a entrada das homossexuais colocaram pras feministas, né? Enquanto um todo. Essa discussão da sexualidade que eu acho que ela muda de enfoque, né? O que fica importante disso tudo é o seguinte: é a gente começar a perceber que a gente pode continuar junto com todas as mulheres, independente da sua opção sexual, e aprender a respeitar as diferenças. Mas, principalmente levar em conta que diferença não é desigualdade. Quer dizer, nós podemos respeitar o outro enquanto indivíduo com a sua cor, com a sua opção religiosa, com seus temores, com sua opção de sexualidade, com sua opção de vida, sem que nada disso signifique desigualdade. Eu acho que o fundamental que se tirou disso tudo, e que precisa ser levado sempre adiante, é esse respeito pelo outro. O respeito pelas diferenças. (Mulheres Participando, 1991) Contudo, “o respeito pelas diferenças” não foi exatamente o lema que melhor poderia traduzir o III Congresso da Mulher Paulista de 1981. Nele as lésbicas sofreram uma série de ataques e a polêmica disputa em torno da questão da “dupla militância” tomou a cena. O II Congresso da Mulher Paulista, do ano anterior, já sinalizava tensões entre os que defendiam uma posição “autonomista” e os que traziam uma posição em favor de alianças com partidos políticos e/ou grupos de esquerda. Célia Regina Pinto (2003: 45) explica que: Se até o ano de 1979 a questão havia sido de hierarquia de bandeiras de luta, agora era a própria unidade do movimento que estava ameaçada com as feministas se dividindo em diferentes partidos, primordialmente entre PT (Partido dos Trabalhadores) e o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). De tal modo, pode-se perceber que o processo de aproximação do Movimento Feminista junto à esfera política não se deu de forma tranqüila, sendo marcado por conflitos, intrigas, disputas e divergências entre os grupos. Entre a realização do II e III Congressos muitas demarcações de territórios eclodiram no seio do feminismo. De um lado, “[...] algumas feministas priorizaram a chamada luta geral, deixando provisoriamente de lado a luta feminista propriamente dita” (Pontes, 1986: 89). De outro, a prática da dupla militância, a que muitas aderiram, trouxe um clima de desconfiança e ataques antes mesmo da realização do III Congresso da Mulher Paulista. O jornal Hora do Povo: No seu número de 6 de fevereiro de 1981, um artigo atacava as “autonomistas” do movimento feminista: grã-finas desorientadas, lideradas por lésbicas! Acima do artigo, uma charge assinada por Maringoni em que apareciam, entre outras mulheres, duas lésbicas, uma tendo um ataque histérico ao ver mulheres do povo, enquanto a outra, caricaturalmente “machona”, tenta levá-la para casa. (MacRae, 1983: 58) Esta charge expõe os modos pelos quais as feministas “autonomistas” eram desqualificadas numa nítida associação a um estado de desequilíbrio mental, pois uma das personagens retratadas está tendo um ataque, e, por fim, lésbicas. Se uma das formas de descrédito utilizadas fazia menção à orientação sexual homossexual pode-se imaginar que o cenário político não estivesse muito receptivo às lésbicas. Diante deste quadro, não surpreende o fato de que a participação das militantes do Lésbico-Feminista no III CMP tenha sido vetada por parte do grupo de esquerda, Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Naquela época, “falavam aos jornais que não permitiam a entrada das lésbicas no movimento. Uma dessas militantes, Márcia Campos, declarou à Folha de S. Paulo (11/2/1981) que ‘a lésbica nega a sua própria condição de mulher, e não pode fazer parte de um movimento feminino’” (Teles, 1993: 124). Enquanto isso, o jornal Lampião da Esquina[6], simpático a causa homossexual, noticiava os episódios do III CMP sob o sugestivo título: “A hora da porrada”. Nesta matéria comentou que “de tímidas participantes o ano passado, as lésbicas emergiram para a crista da onda neste 3º CMP, ao se tornarem alvo predileto do grupo HP[7], para quem a coisa se colocava assim: de um lado as lésbicas, de outro o povo brasileiro”[8]. Na leitura da teórica feminista Tania Navarro-Swain: "Se voltarmos o olhar, hoje, para os caminhos plurais do feminismo detectamos movimentos de cruzamento, de oposição ou de imbricação com o lesbianismo. Classificadas como radicais, separatistas, recusando os homens, e a dominação masculina, as lesbianas sempre atemorizaram as feministas, num medo despertado pelas imagens forjadas no cadinho dos enunciados do senso comum, cuja repetição criava a realidade: machonas, viragos, feiosas, mal amadas. [...] Enquanto feminista, como se aproximar ou trabalhar em conjunto como estes seres marcados, sem se contaminar, sem partilhar as nódoas e os insultos contra “aberrações da natureza”, “imitações de macho”? (2002, s/p): Assim, a representação da lésbica e da feminista como “macha”, não-mulher, difundida pelo imaginário social tornou-se um obstáculo ao trabalho das mulheres que visavam à emancipação, pois se autonomear feminista significava expor-se a chavões depreciativos e estigmatizantes. Como recorda Margareth Rago (1995/1996: 11) a estigmatização das feministas vem de longa data: De Oswald de Andrade, no começo do século, ridicularizando as sufragetes como figuras que o assustavam e espantavam profundamente, aos “rapazes” do Pasquim, nos anos setenta, investindo com unhas e dentes contra a estética de Betty Friedan, as feministas foram percebidas como mulheres feias, infelizes e sexualmente rejeitadas pelos homens e, convenhamos, não é muito raro ouvirmos outras mulheres reafirmando estes estigmas. À guisa de conclusão A partir de tudo o que foi exposto, pode-se depreender que a aproximação entre mulheres homossexuais e heterossexuais foi atravessada por questões que transcendem a esfera da sexualidade, do corpo e dos prazeres. Tanto as lésbicas-feministas quanto as feministas, constantemente, tiveram que batalhar para conseguir algum espaço no cenário político à condução de interesses específicos que lhes diziam respeito. Como já foi assinalado pela teórica feminista Joan Scott : [...]“a alta política é, ela própria, um conceito generificado, pois estabelece sua importância crucial e seu poder público, suas razões de ser e a realidade de existência de sua autoridade superior, precisamente às custas da exclusão das mulheres do seu funcionamento”.(1986/1995: 92) A conflituosa relação de ambos os movimentos com os partidos políticos, assim como a desqualificação de suas demandas sob a adjetivação de “lutas menores”, ou seja, secundárias, não-representativas, divisionistas e, no mais, um entrave a luta pelas liberdades democráticas do país, é ilustrativa de um campo de forças sexista, machista e misógino. Quando as feministas começaram a lutar por uma reconfiguração das relações de poder entre homens e mulheres, sofreram uma série de ataques por ousarem transgredir as normativas sociais masculinistas pré-estabelecidas. Das inúmeras estratégias de descrédito utilizadas para impedir que se estabelecesse uma representação positiva da identidade feminista, uma delas foi a associação da figura feminista à da lésbica, através da imagem da “feminista sapatão”. A propósito dessa questão é ilustrativo o depoimento de Eleonora M. de Oliveira: "[a imagem da “sapatão”] foi construída pelo mundo masculino, pela razão universal masculina, que tem pé grande, que calça mais do que 40, que não tem delicadeza prá andar [...]. Então, quando esse mundo masculino ouviu, na década de 70, as mulheres dizerem que queriam pensar por conta própria [...], ficou louco, completamente sem sapatos, ficou descalço. Então eles olharam e falaram: “Elas estão tomando nossos sapatos; elas vão querer pisar forte [...]; a feminista está tomando o nosso lugar”. Chamar de sapatão é desqualificar a mulher que não precisa do homem [...], tanto faz ser lésbica como não ser [...]." (Oliveira, [199-] apud Ferreira, 1995/1996: 181) Dentro do Movimento Feminista as questões lésbicas foram em algumas circunstâncias acatadas, entretanto, na maior parte das vezes, o que ocorreu foi uma falta de adesão das feministas às problemáticas próprias das lésbicas, apesar das mulheres homossexuais lutarem ao lado das feministas em defesa das reivindicações aspiradas pelo feminismo. Em decorrência disso, as lésbicas-feministas passaram a considerar que: Somos violentadas também quando nos acusam de sermos prejudiciais ao Movimento de Mulheres, no entanto, nós não constituímos um fenômeno que deve ser negado, escondido, disfarçado ou explicado. Dizem que nós comprometemos o bom nome do Movimento, para nós, essa reação significa o desejo de se agarrar à aprovação masculina.[9] Compartilhar de uma mesma opressão não é condição suficiente para evitar discriminações, pois como constataram as lésbicas-feministas: “[...]se dentro do movimento homossexual brigávamos contra o sexismo [dos gays], no movimento feminista íamos começar a brigar contra o heterossexismo [das feministas heterossexuais] (briga que dura até hoje) e todas suas implicações ‘reformistas’”[10]. (ChanacomChana. 1983: 2. Apesar das feministas examinarem os efeitos da ordem social-patriarcal na posição relativa das mulheres na sociedade, não estavam dispostas a problematizar o paradigma heterossexual e, por isso, não compactuavam com o ataque das lésbicas ao regime da heterossexualidade. Para as lésbicas, a heterossexualidade socialmente imposta a todas as mulheres era tida como uma instância a mais por onde perpassa e perpetua-se a dominação das mulheres pelos homens, como no caso do trabalho doméstico gratuito e da obrigatoriedade do sexo no casamento. Ainda que os posicionamentos feminista e lésbico estejam ancorados em lastros ideológicos desiguais, ambas as posições, cada uma a seu modo, acabaram por interrogar os constructos dos gêneros instituídos pela lógica heterossexual. Nessa perspectiva, Melina Marson avalia que: "Na medida em que o movimento feminista colocou em questão a ordem social-patriarcal vigente e buscou questionar a igualdade das mulheres frente aos homens, ele acabou por questionar também as noções de masculinidade e feminilidade. Seria o homem, como até então se achava, superior à mulher, mais inteligente, mais racional, mais prático? Seria a mulher só beleza, maternidade, submissão, docilidade e afeto?"(1995/1996: 71) A repetição acrítica de tais atributos delimitados a cada um dos sexos no cotidiano contribui para manter inalterada a assimetria de poder entre homens e mulheres. Daí advém que “[...] a masculinidade é interdita à mulher, pois a mulher no lugar do homem é o ‘mundo às avessas’, a ordem corrompida, a natureza ultrajada” (Torrão-Filho, 2005: 143). Por conseguinte, é a partir da difusão irrefletida desse tipo de pensamento que se chega a generalizações precipitadas e preconceituosas como a de que “toda feminista é sapatão”. Pois, como nomear mulheres que querem subverter a ordem social e “tomar o lugar do homem” senão como iguais àquelas que agem como os homens? Que outra forma haveria para designar essas mulheres a não ser como lésbicas? Esse breve panorama dos caminhos trilhados por feministas e lésbicas-feministas coloca em evidência o quanto são inúmeras e complexas as questões que permearam as lutas destas mulheres, dentro do contexto especificado. Este trabalho em nenhum momento teve a pretensão de esgotar a problemática abordada. Sendo seu objetivo maior produzir questionamentos e instigar o debate, para que se multipliquem as produções sobre esta temática, pois ainda há muito que se explorar. Referências bibliográficas Cardoso, Elizabeth. 2004. <<Imprensa feminista brasileira pós-1974>>, Revista Estudos Feministas, Vol. 12, número especial (set./dez.), pp. 37-55 ChanacomChana. 1983. São Paulo, nº 3 (maio) Convocatória. 1981. Os grupos Ação Lésbica Feminista e Terra Maria – Opção Lésbica convocam as mulheres homossexuais para participarem do III Congresso da Mulher Paulista, 1p Cunha, Maria Carneiro da. <<Tumultos e polêmica no 2º Congresso da Mulher. 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No atual momento, participa do Grupo de Pesquisa "Violência e Relações de Gênero" – NEVIRG e do "Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades" – GEPS, onde trabalha com as questões de gênero e sexualidade. E-mail: tania.pinafi@gmail.com [3] Utilizo sociedade patriarcal em referência a um conjunto de relações socais de sexo desfavoráveis às mulheres. De tal modo, assinalo-a nas diversas configurações que podem assumir, não a restringindo ao âmbito familiar. [4] Navarro-Swain, 2002. [5] Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. [6] Este jornal tinha entre suas metas a construção de uma imagem mais positiva dos homossexuais, de modo a não retratá-los “[...] como criaturas destroçadas por causa de seu desejo, incapazes de realização pessoal e com tendências a rejeitar a própria sexualidade” (Simões; Facchini, 2009: 85). Embora a temática da homossexualidade masculina tenha sido a prevalecente, nos três anos em que o jornal circulou (1978-1981), nunca foi seu único enfoque, pois “o jornal se propunha a ‘sair do gueto’ e ser um veículo pluralista aberto a diferentes pontos de vista sobre diferentes questões minoritárias.” (Ibid: 86). Seguindo nesta perspectiva, sempre foi dado espaço para questões relacionadas às lésbicas e ao feminismo. [7] HP é a abreviação do jornal “Hora do Povo” porta-voz do Movimento Revolucionário 8 de Outubro. [8] Lampião da Esquina. 1981. Rio de Janeiro, ano 3, n. 35 (ago.): 12. [9] Convocatória. 1981. Os grupos Ação Lésbica Feminista e Terra Maria – Opção Lésbica convocam as mulheres homossexuais para participarem do III Congresso da Mulher Paulista, 1p.
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